segunda-feira, 13 de março de 2023

A ideologia petista

Já é hora de o governo do PT revisar suas posições, sob pena de produzir intolerância, instabilidade institucional, insegurança jurídica e a radicalização política

O que seja um governo de esquerda nos novos moldes petistas, diferente, por exemplo, do primeiro governo Lula ou o do presidente Fernando Henrique, parece ser uma fonte de desorientação dos novos governantes e líderes partidários. O que mais se sobressai são palavras vagas acerca da redução da desigualdade social, o que não caracteriza algo novo, pois até os liberais compartilham dos mesmos valores.

Talvez seja mais adequado atentarmos às políticas de esquerda no mundo e seus reflexos no País. Se observamos o discurso petista atual, sobressaem-se dois aspectos que, com certa dificuldade, entram em sintonia. Ora um ganha a frente, ora o outro, com os dois grupos frequentemente se contrapondo. De um lado, o discurso tradicional, de origem marxista, anticapitalista, contra a economia de mercado e a propriedade privada; de outro, a nova narrativa identitária, centrada em questões de gênero e de costumes em geral, embora essa última não seja tampouco exclusiva da esquerda, sendo compartilhada por liberais.

No que toca ao primeiro ponto, sua expressão mais utilizada consiste na fraseologia da luta de classes, no apoio à ditadura de Ortega, na consideração da propriedade privada como uma forma de usurpação, traduzindo-se em seu desrespeito, e na percepção do mercado como uma articulação de pessoas desalmadas, como se ele não obedecesse a suas próprias regras, para além das empresas e indivíduos. Pelo menos na versão marxista, o capitalismo, em razão de seu processo intrínseco, corria para sua própria derrocada, ato inaugural do surgimento de uma sociedade socialista e comunista.

Ocorre que o capitalismo não só não se extinguiu, como propiciou novas formas de desenvolvimento econômico e social, criando o Estado de Bem-estar Social, engendrando a democracia representativa e amplas formas de liberdades, de pensamento, civis e políticas. As experiências comunistas redundaram no despotismo, na violência e no terror, com a fome atingindo amplas parcelas de suas populações, casos da Rússia e da Ucrânia – ainda unidas, naquele então, à União Soviética. A única experiência de esquerda bem-sucedida foi a da social-democracia, com o seu reconhecimento da economia de mercado, da propriedade privada, das liberdades e do Estado de Direito.

Aqui, no Brasil, a social-democracia é considerada pelos petistas como de direita, não se sabe bem por qual razão. Talvez por receio de que o seu reconhecimento equivaleria a uma mudança necessária de orientação programática e partidária. Sobraram, assim, narrativas vagas dos “ricos contra os pobres”, permeadas recentemente por ataques ao Banco Central como se fosse um centro de rentistas contra os pobres, para além da defesa do Estado enquanto instrumento de desenvolvimento econômico, inclusive com o fortalecimento de empresas estatais. Nem tal posição, no entanto, corresponderia ao pensamento marxista, mas à sua forma leninista, trotskista e stalinista. O resultado só pode ser a desorientação governamental.

No que toca ao segundo ponto, a experiência pós-queda do Muro de Berlim e de desmantelamento da União Soviética levou a esquerda mundial, atordoada, à busca de novos valores que poderiam orientar a sua ação. Sua luta passou a centrar-se nos costumes e na moral, com questões de gênero ganhando a cena. É como se os problemas sociais pudessem ser resolvidos não mais pela luta de classes, mas pela luta de gêneros em suas mais distintas figuras.

Surgem, aqui, duas facetas: uma, a da intolerância, na medida em que qualquer questionamento dessas posições leva a qualificativos depreciativos, como se a pessoa fosse portadora de alguma fobia; a outra é a de que tais transformações deveriam ser conduzidas e impostas pelo Estado, e não fruto de necessárias transformações sociais, que consideram os valores em mutação, como ocorreu com os direitos civis, a igualdade racial e a emancipação das mulheres. Quando partem da sociedade, tornam-se progressivamente consensuais, e os novos valores são por todos compartilhados. Se são meramente impostos, provocam reações dos setores conservadores, que terminam politicamente por afirmar os valores existentes.

Se o atual governo Lula, diferentemente do seu primeiro mandato, salvo no quesito de apoio à invasão de propriedades rurais, perseverar em seu espírito anticapitalista – ou, melhor, de capitalismo de compadrio – e insistir em sua concepção de Estado ancorada na irresponsabilidade fiscal e na tolerância com a inflação, só produzirá conflitos insolúveis e o enfraquecimento do mesmo Estado que diz fortalecer, prejudicando os mais pobres e os desvalidos. Se insistir numa pauta identitária, conduzida pelo Estado, e não consoante com os progressos sociais e culturais, caminhará para enfrentamentos que, no passado, já elegeram Bolsonaro.

Já é mais do que hora de o governo petista revisar suas posições, sob pena de produzir a intolerância, a instabilidade institucional, a insegurança jurídica e a radicalização política.

Denis Lerrer Rosenfield, o autot deste artigo, é Professor de Filosofia na Univrsidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS. Publicado originariamente n'O Estado de S. Paulo, em 13.03.23

domingo, 12 de março de 2023

Ministro que trouxe joias ilegalmente ao Brasil ganha R$ 34 mil de conselho da Itaipu

Bolsonarista remanescente, Bento Albuquerque deve perder cargo em breve para aliados do governo Lula; ministro Juscelino Filho assumiu presidência de fundo de pensão dos trabalhadores das empresas de telecomunicações

Bento está no centro do escândalo da entrada ilegal de joias no Brasil, revelado pelo 'Estadão' Foto: Dida Sampaio / Estadão

O governo Luiz Inácio Lula da Silva começou a abrigar aliados em cargos estratégicos de empresas públicas que rendem até R$ 40 mil extras por reuniões mensais ou bimestrais. Os assentos nos conselhos das estatais são entregues para contemplar apoiadores, garantir controle nas decisões sobre os rumos das companhias e incrementar as remunerações de ministros e executivos.

Na Itaipu Binacional, indicações de Jair Bolsonaro devem perder em breve os cargos com remunerações de R$ 34 mil para encontros bimestrais. Entre os bolsonaristas remanescentes, estão o ex-assessor especial Célio Faria Junior e os ex-ministros Bento Albuquerque e Adolfo Sachsida.

Bento está no centro do escândalo da entrada ilegal de joias no Brasil, revelado pelo Estadão. Por indicação de Bolsonaro, os ex-ministros têm mandato até maio de 2024. O regimento da empresa, porém, permite a substituição dos conselheiros a qualquer tempo. O governo Lula está preparando as substituições, segundo petistas. Os novos nomes estão sendo analisados pela Casa Civil.

Bento está no centro do escândalo da entrada ilegal de joias no Brasil, revelado pelo 'Estadão'

No ano passado, 77 empresas públicas repassaram R$ 14,6 milhões em honorários e jetons para 460 pessoas. O gasto com os extras é ainda maior porque as empresas de economia mista não seguem as mesmas regras de transparência, e os valores pagos não são revelados. Os valores devem ser repetidos até dezembro.

Primeiras mudanças

As primeiras alterações no governo Lula já foram realizadas no Conselho de Administração do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), após a renúncia, em janeiro, de seis nomeados pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). Um conselheiro do BNDES recebe R$ 8,1 mil. O valor contempla as reuniões mensais e as extraordinárias. Em 2022, foram 51 encontros, média de quatro por mês.

Entre os novos membros da equipe estão a ex-ministra de Meio Ambiente Izabella Teixeira, que atuou no segundo mandato de Lula e no governo de Dilma Rousseff (PT), e o climatologista Carlos Nobre. A entrada deles, segundo o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, visa a uma “transição ambiental” no banco.

Chefe da assessoria especial da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República e ex-assessor do gabinete da liderança do PT no Senado, Jean Keiji Uema também virou conselheiro do BNDES. Além dele, está também Robinson Barreirinhas, secretário da Receita Federal escolhido pelo ministro da Economia, Fernando Haddad. Barreirinhas chefiou a Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura de São Paulo na gestão de Haddad (2013-2016).

Para a presidência do conselho foi escolhido o economista Rafael Lucchesi, ex-secretário de Ciência e Tecnologia do governo do petista Jaques Wagner, na Bahia. Lucchesi também esteve na equipe de transição do governo Lula, no fim do ano passado.

O economista Rafael Lucchesi foi escolhido para a presidência do conselho. Ele já foi secretário de Ciência e Tecnologia de Jaques Wagner, na Bahia, e esteve na equipe de transição de Lula. Foto: Felipe Rau/Estadão

Incremento

As vagas de conselheiros das empresas costumam ser entregues a ministros e executivos provenientes da iniciativa privada para incremento salarial. Os jetons não são considerados salário e por isso não entram nos cálculos de teto salarial, equivalente à remuneração mensal de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que passará a R$ 41,6 mil a partir de abril.

O chefe da pasta das Comunicações, Juscelino Filho, assumiu a presidência do Conselho Deliberativo da Fundação Sistel de Seguridade Social, o fundo de pensão complementar dos trabalhadores das empresas de telecomunicações. Por ser uma entidade privada, a remuneração dos membros do conselho não é pública.

O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, utilizou avião da FAB e recebeu diárias pagas pelo governo para participar de leilões de cavalos de raça que chegam a valer mais de R$ 1 milhão Foto: Wilton Júnior/Estadão

Deputado licenciado do União Brasil do Maranhão e sem expertise no ramo das telecomunicações, Juscelino Filho entrou na vaga da Telebras. A empresa diz que indica “executivos de alto nível como membros representantes para compor o seu conselho deliberativo”. É praxe a Telebras indicar um nome do ministério para o conselho. Até o ano passado a pasta era representada não pelo ministro, mas pela então secretária executiva, Maria Estella Dantas.

Como revelou o Estadão, o ministro requisitou diárias e avião da FAB para ir a compromissos em São Paulo que ele julgou urgentes: participar de dois eventos sobre cavalos, de uma festa sobre cavalos e de uma inauguração de praça em homenagem a um cavalo. Após reportagem, o ministro devolveu o dinheiro das diárias e teve de se explicar ao presidente Lula.

O governo Lula ainda não alterou a composição dos principais conselhos administrativos de estatais. Empresas como Petrobras e Embraer pagam jetons superiores a R$ 40 mil. As primeiras reuniões deliberativas estão em vias de serem realizadas. São previstas novas trocas a partir de abril deste ano. Procurada, a Casa Civil não comentou.

Decisão

Em 2020, o Supremo decidiu que políticos e servidores podiam acumular os vencimentos, extrapolando o teto atual do funcionalismo. As gratificações que garantiram supersalários foram consideradas remunerações privadas. Essa situação foi questionada por uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) apresentada pelo PT e pelo PDT ainda em 1996, no governo Fernando Henrique Cardoso. Depois da gestão do tucano, entretanto, os governos petistas de Lula e Dilma e também os de Michel Temer (MDB) e Bolsonaro recorreram à prática dos jetons para turbinar os vencimentos dos aliados políticos.

No governo Bolsonaro, generais da reserva e integrantes da equipe econômica estavam entre os que extrapolaram o teto do serviço público com nomeações para os conselhos de estatais. Um dos discursos do governo anterior é que, no caso da área econômica, os vencimentos inflados permitiam a contratação de executivos da iniciativa privada com salários mais elevados.

A priori, as indicações precisam passar por análise de instâncias do governo. A Casa Civil dá a palavra final sobre a aptidão técnica e a capacidade dos indicados para ocuparem cargos nos conselhos das empresas públicas. No entanto, virou quase uma praxe a nomeação de pessoas próximas do presidente ou de ministros sem relação direta com as áreas de atuação das estatais.

Limites

Iniciativas para limitar os jetons costumam não ir adiante. Em uma rara inflexão da prática de inflar os salários, a Lei de Estatais, de 2016, proibiu que dirigentes partidários assumissem cargos de direção. A norma que estabeleceu diretrizes de governança para as estatais, entretanto, não impediu o uso dos conselhos como instrumento de garantir altos vencimentos nem como moeda de troca nas negociações do Palácio do Planalto com o Congresso.

Valores

R$ 14,6 milhões foi o valor pago em honorários e jetons por 77 empresas públicas no ano passado. O gasto com os extras é ainda maior porque as empresas de economia mista não revelam os valores pagos aos conselheiros.

460 pessoas integrantes de conselhos foram beneficiadas.

R$ 8 mil é o valor pago aos conselheiros do BNDES por cada participação em reunião mensal.

Vinícius Valfré para O Estado de S. Paulo, em 12.03.23

Política e a aprendizagem institucional nas Forças Armadas

A polarização política persiste no País e deve afetar eleições futuras. É, pois, imprescindível que as Forças Armadas solidifiquem sua identidade de instituições apolíticas

Nos últimos anos, o envolvimento das Forças Armadas com a política ocasionou episódios de flagrante ofensa aos cânones da profissão militar. Alguns desses fatos foram determinados pelo presidente Jair Bolsonaro, ao passo que outros foram iniciativas de militares envolvidos. Notórios entre os primeiros foram o engajamento das Forças Armadas na fiscalização das eleições e as demissões dos comandantes de Força em 2021. Entres os últimos, citam-se a saudação como “líder” a um político (Jair Bolsonaro) em campanha, em 2014, por jovens prestes a receber a espada de oficial na Academia Militar das Agulhas Negras; a postagem de temas políticos e de notícias inverídicas nas redes sociais por militares da ativa; e a participação de militares em manifestações com pleitos claramente ilegais. São todos casos preocupantes, notadamente aqueles que se passaram sem intervenção do comandante supremo das Forças Armadas.

Em que pese nunca ter havido unanimidade entre os militares a respeito de tais episódios, a exigência de que as Forças tenham um pensamento claro de repúdio à politização recomenda que elas aprendam a partir deles.

Organizações, ou instituições estruturadas, aprendem. Elas o fazem corriqueiramente, pela aquisição de conhecimento por seus membros. Mas existe o conhecimento coletivo, bem mais relevante. Ele é obtido, por exemplo, quando cada membro da instituição compreende que, ao desempenhar suas tarefas, deve fazê-lo de modo a contribuir para que os demais sejam o mais eficiente possível nas tarefas deles. Ou – mais bem relacionado com o presente tema – quando todos os integrantes assimilam aquilo que assegura a “identidade” da instituição, sem a qual ela não realiza seus propósitos.

Instituições aprendem por perceberem que mudanças são benéficas ou por causa de falhas que comprometem sua efetividade ou existência. Muitas vezes, tais aprendizagens requerem autocrítica e a consciência de que a instituição é mais importante que qualquer um de seus membros.

Um caso típico de aprendizagem institucional ocorreu com o Exército dos Estados Unidos da América, por ocasião da Guerra do Vietnã. Durante o conflito, políticas de pessoal levaram ao surgimento de um “carreirismo administrativo”. Capitães e tenentes iam para a guerra interessados unicamente em poupar-se e sobreviver, ou dispostos a enviar seus subordinados para missões perigosas e, à custa de seu sacrifício, obter menções para promoção. A disseminação de tal mentalidade feriu de morte o espírito de liderança dos quadros e corroeu a coesão no Exército.

A correção de rumo iniciou-se alguns anos depois da guerra, impulsionada pela publicação do livro Crisis in Command: Mismanagement in the Army, por Richard Gabriel e Paul Savage. Os autores, ambos acadêmicos e oficiais da reserva do Exército, ofereceram à sociedade uma crítica contundente da situação e sensibilizaram para a necessidade de mudança. Embora o livro tenha sido recebido com ceticismo e reticência por parte da cúpula do Exército, acabou gerando uma autocrítica responsável, indutora de transformações que recuperaram a imagem e a eficiência da instituição.

A aprendizagem das Forças Armadas pode ser conduzida pelo Ministério da Defesa. Entretanto, essa modalidade não é eficiente quando a questão é desenvolver ou fixar uma mentalidade. Exército, Marinha e Aeronáutica têm princípios, valores e cultura próprios, o que torna inconveniente a administração de tal processo pelo governo.

Por outro lado, a aprendizagem endógena, que se origina na Força e é conduzida por ela, é bastante eficiente. Ela segue métodos adequados à instituição e leva em conta suas peculiaridades e idiossincrasias, o que é essencial para o êxito. Alguns podem argumentar que, em se tratando do atual envolvimento dos militares com a política, razões corporativas e ideológicas impediriam a correção de rumos. Entretanto, tal crítica é bastante questionável, uma vez que a maior parte dos oficiais generais e significativo segmento da oficialidade já se posicionaram a favor da atitude estritamente profissional da tropa.

A academia, por meio da Sociologia, da Ciência Política e das Relações Internacionais, pode oferecer uma grande contribuição para a aprendizagem nas Forças Armadas. A polarização política e os eventos que nos últimos anos conturbaram a normalidade democrática serão, certamente, objeto de estudo nos programas de pós-graduação de universidades e institutos de alto nível. Assim, pesquisas destinadas a analisar a participação ou a influência dos militares nesses acontecimentos serão muito úteis.

A polarização política persiste no Brasil e deve afetar eleições futuras. Por conseguinte, é imprescindível que as Forças Armadas solidifiquem sua identidade de instituições apolíticas. Aliado a isso, cada militar precisa saber conciliar o direito de ter posição política própria com o requisito de ser apolítico profissionalmente. Essas são as bases da aprendizagem que se faz necessária.

Fernando Rodrigues Goulart, o autor deste artigo, General de Divisão na Reserva, é Doutor em Relações Internacionais. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.03.23

A ‘criatividade’ fiscal de Dilma deu em recessão; e a de Lula vai dar no quê?

No tripé do novo governo, o pé que balança é a economia; Lula atira contra o BC, ironiza o rigor com o dinheiro público e só fala em gastos, nada sobre receitas

O presidente Lula e o ministro Fernando Haddad, da Fazenda, durante reunião ministerial realizada em 10 de março.  Foto: Wilton Junior/Estadão

A estratégia do presidente Lula para sobreviver, primeiro, e para o sucesso, ao fim e ao cabo, passa por um tripé: popularidade, governabilidade e desenvolvimento. A coisa balança nesse último pé, lembrando que os três vão se fechando ao longo do governo e vão definir, para o bem ou para o mal, a eleição de 2026 e a história.

Na questão da popularidade, Lula tem discurso, certezas e ações firmes, anunciadas em eventos regados a emoção, que miram o apoio decisivo da base da pirâmide, que vem desde sempre e foi fundamental em 2022: miseráveis e a massa de até dois salários mínimos, que decantam para o eleitorado feminino, pretos e nordestinos.

É basicamente para eles que Lula reativa e prioriza Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, Merenda Escolar e isenção do IR e lança o Desenrola (renegociação de dívidas da baixa renda com garantia do Tesouro). Sem falar no reajuste das bolsas da Capes e do CNPq, que atinge também a classe média.

Na governabilidade, o foco está em Arthur Lira, que tem controle raramente visto do Congresso e tem lá seu preço, mas Lula não vai regatear. Conta com Lira e os governadores para impedir a CPI do golpe e aprovar onze MPs, nova âncora fiscal e reforma tributária. Ninguém ganha todas, mas Lula está bem colocado. “É mais fácil negociar com o Congresso do que com a Gleisi (Hoffmann)”, diz-se na área econômica.

O pé que balança é a economia. Não há desenvolvimento sustentável sem responsabilidade fiscal, mas Lula atira contra o BC, ironiza o rigor com o dinheiro público e só fala em gastos, nada sobre receitas. Dinheiro não nasce em árvore e a última de Lula foi animar a plateia falando da “criatividade” de Fernando Haddad e Simone Tebet, o que remete à “contabilidade criativa”, ironia de Delfim Netto para o desmanche fiscal de Dilma Rousseff, que deu em dois anos de recessão.

Estudiosos e representantes do setor produtivo e da área financeira têm um pé atrás, acham o governo sem rumo e Lula 3 mais populista e esquerdista, gastador e voluntarioso. Mas com o benefício da dúvida: será só jogo político? Lula faz populismo, Haddad cuida da economia?

A resposta virá nesta semana, com a nova âncora fiscal. O “criativo” Haddad está serelepe, convencido de que sua engenharia para equilibrar receita e gastos, reoneração e investimento social é uma beleza. Fazer mistério para depois surpreender positivamente é um bom marketing, assim como o slogan de Lula que Haddad encampou: “Pobre no Orçamento e rico no Imposto de Renda”. Justo é. Resta saber o quanto e se a conta fecha.

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é Jornalista. Comentarista de política no tele-jornal "Em Pauta" da GloboNews. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.03.23

O salvacionismo lulopetista

Dino diz que, se Lula falhar, ‘abre espaço para a emergência do golpismo’, como se houvesse o imperativo moral de apoiar o governo. Mas a oposição não é feita só de golpistas

O governo Lula da Silva escolheu o tipo de oposição que mais lhe apraz. É essa direita radical, ignorante e golpista que, há cerca de dez anos, deixou de ser uma franja no mosaico político-ideológico da sociedade brasileira para se tornar uma força política capaz de mobilizar parcela considerável dos eleitores, culminando na eleição de um inimigo declarado da Constituição de 1988 para a Presidência da República no ano em que a Carta “cidadã” completou três décadas de vigência.

Não é novidade para ninguém que tanto o presidente Lula como seus partidários cultivaram a polarização política com Jair Bolsonaro com profundo esmero, para desventura do Brasil. As razões para esse mutualismo e seus efeitos deletérios, em que pesem as muitas diferenças que há entre o petista e sua nêmesis, já foram escrutinadas muitas vezes por este jornal, nesta mesma página.

A novidade é a tentativa do governo de reavivar o discurso da polarização com a direita radical no momento em que os fatos – notadamente a derrota de Bolsonaro em sua campanha pela reeleição e o assalto às sedes dos Três Poderes no fatídico 8 de Janeiro – começam a empurrar os extremistas de volta para o nicho da irrelevância ao qual eles sempre pertenceram. Tamanhos foram os reveses sofridos pela direita radical que alguns de seus notórios representantes já começam a dar passos públicos no sentido de uma certa moderação.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, resumiu esse movimento do governo em entrevista ao Estadão, publicada no dia 25 passado. Perguntado se o Planalto temia a reorganização dos grupos extremistas a partir do retorno de Bolsonaro ao País, Dino respondeu, com razão, que “esse ethos golpista, terrorista, do vale-tudo, continua aí, em um estado de latência”. Entretanto, o seu reavivamento, disse o ministro, dependerá das respostas dadas pelo próprio governo às prementes necessidades do País. “A pergunta é: o governo Lula vai melhorar a vida do povo brasileiro? Se a resposta for sim, o golpismo tende a ser uma força declinante. Se o governo enfrentar dificuldades no resultado, aí abre espaço para a emergência do golpismo.”

O busílis está nessa formulação marota segundo a qual o golpismo será mais ou menos forte no País a depender das eventuais “dificuldades” que o governo Lula terá de “enfrentar” para levar a cabo seus planos e, assim, produzir o “resultado” que dele se espera. Subjaz nesse discurso do ministro da Justiça um imperativo quase moral de a sociedade brasileira abraçar incondicionalmente a agenda do governo Lula e do PT, nos seus termos, ou a democracia morre no País. Era só o que faltava.

As críticas que porventura a sociedade brasileira possa fazer ao governo Lula – e as quais este jornal não se furtará a fazer quando julgar que é o caso – fazem parte de qualquer democracia digna do nome. Um eventual fracasso do governo Lula não resultará no fim da democracia – convém lembrar que outros governos fracassaram e não houve ruptura. Ademais, se o governo Lula não entregar o que prometeu, será por sua inteira responsabilidade, e não em razão das críticas que receber.

Para neutralizar a retórica salvacionista do lulopetismo, no entanto, é dever cívico da direita civilizada e democrática se recompor. Se, como força política representativa, essa direita será capaz de gerar uma liderança que conquiste corações e mentes da maioria dos eleitores, o tempo vai dizer. Para a democracia liberal, no entanto, importa apenas que ela seja capaz de formular soluções responsáveis para os problemas do País e que tenha voz. Os valores da democracia devem estar constantemente presentes no debate público.

A enorme dificuldade que Lula teve para derrotar Bolsonaro no segundo turno da eleição passada autoriza a inferência de que, fosse outro o adversário do petista – um representante da direita responsável, liberal e democrática –, talvez Lula não tivesse saído vitorioso daquele pleito. O presidente decerto sabe disso, daí seu estímulo à sobrevivência política do golpismo bolsonarista como espécie de fantasma a assombrar a democracia brasileira – que só Lula, evidentemente, se julga capaz de salvaguardar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em  12.03.23

sábado, 11 de março de 2023

Brasil votou para preservar democracia e o governo deve respeitá-la

Para país não ser 'refém de um só homem' há instituições como o BC autônomo

Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central - Adriano Machado - 7.mar.23/Reuters

O presidente da República, referindo-se ao presidente do Banco Central, afirmou que "o país não pode ser refém de um único homem (...) esse cidadão, que não foi eleito para nada, acha que tem o poder de decidir as coisas".

É justamente para que o país não fique "refém de um único homem" que existem instituições como o Banco Central autônomo. Se for dada ampla liberdade ao presidente da República para tomar toda e qualquer decisão, ele transformará a sociedade em sua refém.

A estabilidade das democracias exige pesos e contrapesos de poder. Em questões sujeitas à chamada "inconsistência intertemporal", na qual benefícios presentes (juros baixos, por exemplo) podem gerar ganhos políticos ao governante ao custo de grandes perdas futuras para a sociedade (inflação alta, juros altos e baixo crescimento, por muitos anos), as democracias caminharam no sentido de entregar o poder discricionário para técnicos com menores incentivos políticos e mais focados no bem-estar e estabilidade de longo prazo.

O Judiciário, o Ministério Público, as agências reguladoras, as Forças Armadas e outras instituições públicas também são (ou deveriam ser) comandadas por técnicos especializados nas respectivas funções, que mantêm distância das urnas. O mesmo se dá com instituições semipúblicas, como os fundos de pensões de empresas estatais.

Entregar ao presidente e demais autoridades eleitas o poder decisório dessas instituições significa instituir a ditadura da maioria. Daí porque há tanta preocupação e crítica quando há indicações políticas para a direção de tais instituições. É sinal de que seus objetivos precípuos e de longo prazo ficarão subordinados aos interesses da maioria do momento.

O presidente da Petrobras afirmou que a empresa tem "uma máquina de proibir coisas" e reclamou que a companhia "tomou alguns caminhos" de forma racional e "apolítica".

E não deveria ser assim? Uma companhia listada em bolsa, que capta recursos privados, precisa tomar decisões racionais e apolíticas. A "máquina de proibir coisas" é, na verdade, um conjunto de regras de governança que visa evitar que meia dúzia de pessoas tome as decisões que quiser, da forma que quiser.

O reforço da governança da Petrobras veio justamente em resposta ao elevado nível de corrupção ali instalado, quando, a título de atingir questionáveis objetivos de políticas públicas, dilapidou-se o patrimônio da companhia.

Mais uma vez estamos diante de mecanismos que protegem a coletividade —os acionistas majoritários (os contribuintes) e os minoritários— de decisões inconsistentes e irresponsáveis, que geram ganhos políticos no curto prazo, mas muitos prejuízos em seguida.

Um diretor do BNDES propôs que a instituição emitisse o seu próprio título público, para deixar de ser "refém" de recursos orçamentários alocados ao Banco pelo Tesouro. Ora, o BNDES é uma entidade 100% estatal, cuja missão é implementar políticas públicas. Dar ao BNDES o poder de emitir título próprio é praticamente criar um Tesouro Nacional paralelo. O BNDES emitiria o quanto quisesse, emprestaria para quem quisesse, sem dar satisfação às autoridades fiscais ou prestar contas ao Congresso.

O título do BNDES concorrerá diretamente com os do Tesouro, aumentando o custo de financiamento da dívida pública, e com debêntures e certificados privados que hoje já cumprem a função de financiar a infraestrutura e outros setores, sem precisar que o governo entre para fazer isso.

A bem da democracia, o BNDES tem que ser refém da autoridade fiscal. A restrição ao seu "funding" evita dar superpoderes ao Poder Executivo do momento. Assim como a governança da Petrobras deve redobrar a vigilância, agora que a companhia distribuirá menos dividendos (que iriam para o Orçamento da União, de forma transparente) para ter mais recursos a serem alocados por seus dirigentes, sob determinação do governo de plantão, com alta discricionariedade.

Lula foi eleito por pequena margem de votos, garantida por eleitores que temiam que Bolsonaro desmontasse a democracia. Seu governo precisa respeitar as instituições, limites, pesos e contrapesos típicos da democracia.

Marcos Mendes, o autor deste artigo, é pesquisador associado do Insper e autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?' Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 10.03.23

Bolsonaristas acampam na alfândega

Apoiadores de Bolsonaro protestam pela integridade das joias

Ilustração de Débora Gonzales para a coluna de Renato Terra de 9.mar.23 - Débora Gonzales

Nas redes sociais, Carlos Bolsonaro divulgou o áudio de uma conversa com o pai.

- Hello, daddy! Tudo joia?

- Não, meu filho. Tem também uma caneta, um anel, um relógio, um par de abotoaduras e um terço.

- Daddy, o que podemos fazer pra liberar nossa parada?

- Fala pro seu irmão mandar um cabo e um soldado irem lá, porra!

O diálogo foi interpretado pela base bolsonarista como um sinal cifrado de que os verdadeiros patriotas deveriam acampar na frente da alfândega no Aeroporto Internacional de Guarulhos. "Onde já se viu isso? Se o Bolsonaro ganhou um presente foi porque mereceu. O comunismo é assim. Primeiro, o Estado se apropria das nossas joias! E depois? Amanhã podem tomar o seu apartamento! Ou pior: podem tomar a pensão das filhas dos militares", denunciou Lucrécia Maria de Pádua Figueiroa, de 78 anos. Em seguida, Figueiroa jogou um coquetel Molotov no Free Shop.

No embalo, o vendedor Diógenes Petrúcio de Souza, de 72 anos, fez uma defesa enfática do Mito. "Antigamente a gente via dinheiro na cueca ou em malas. Bolsonaro e sua família prometeram fazer diferente. E fizeram. Hoje é tudo em cheque, barras de ouro e agora são essas joias. Viva o novo Brasil!", exclamou, enquanto atirava para cima com um fuzil de ouro.

Sobre um fundo rosa há uma mão com o polegar apontando para baixo e desse polegar estão caindo vários anéis.

Com a repercussão do acampamento, a rede de solidariedade às joias do ex-presidente se ampliou e começou a tomar proporções nacionais. Em Campos de Jordão, bolsonaristas organizaram uma joiaciata. "Vamos andar pela Suíça Brasileira erguendo colares de pérolas, brincos de diamantes, pulseiras Swarovski e braceletes de ouro puro", explicou Verinha Brazil, coordenadora do Movimento dos Sem Bijuteria.

Comovido, Flávio Bolsonaro escreveu no Twitter que o pai já tinha data para voltar ao Brasil, mas depois recuou. "É que a gente se deu conta de que ele teria que passar na alfândega ao desembarcar", explicou.

Em seguida, Eduardo postou um vídeo desmascarando a farsa da alfândega. "Vejam só. Semana passada, voltando de Dubai, passei na alfândega levando uma mochila lotada de pen drives e calendários. Mas ninguém apreendeu nada! Hipócritas!", vituperou.

No final da tarde, a sociedade civil organizada se organizou para organizar uma cerimônia de premiação ao Funcionário Público Desconhecido. "Essa pessoa anônima e heroica que fez o seu dever e reteve as joias. Depois, resistiu bravamente às tentativas de intimidação. No Brasil, isso não é pouca coisa", explicaram os organizadores. O prêmio concedido foi batizado de "Troféu Joinha".

Renato Terra, o autor deste artigo, é roteirista e autor de “Diário da Dilma”. Dirigiu o documentário “Uma Noite em 67. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 09.03.23

quinta-feira, 9 de março de 2023

Comissão do Senado vai investigar escândalo das joias de Bolsonaro e Michelle

Bolsonaro almoçou na Embaixada da Arábia Saudita, no Brasil, no mesmo dia em que Bento Albuquerque recebia presentes na Arábia Saudita

Senador Omar Aziz diz que grupo vai apurar razões dos presentes dados pelo regime da Arábia Saudita e também os negócios fechados pelo governo anterior com empresas do Oriente Médio

A tentativa do governo Bolsonaro de entrar ilegalmente no País com joias milionárias presenteadas pelo regime da Arábia Saudita será investigada pela Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor (CTFC) do Senado. A informação foi dada pelo presidente da comissão CTFC, Omar Aziz (PSB-AM). O parlamentar pretende direcionar os esforços da comissão para apurar negócios que foram fechados entre empresas do Oriente Médio durante a gestão Bolsonaro.

“É papel do Senado Federal a responsabilidade de apurar qualquer desvio de conduta de servidores públicos, seja ele um ministro ou presidente”, disse Aziz ao Estadão. “Essa é uma história mal contada, em que um ministro foi o portador de uma joia valiosa, que deveria ser do povo brasileiros, mas que ele disse que iria para a primeira-dama. Temos que apurar isso.”

Joias: Bolsonaro deu ordem para que diamantes apreendidos fossem cadastrados como acervo privado

Joias de três milhões de euros que seriam entregues a Michelle Bolsonaro foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País

Joias de três milhões de euros que seriam entregues a Michelle Bolsonaro foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País Foto: DIV - Wilton Junior/Estadão

Nas redes sociais, Omar Aziz disse que vai abrir a investigação no Senado para apurar temas como a venda refinaria da Petrobras Landulpho Alves, na Bahia, para o fundo árabe Mubadala Capital. “Qualquer violação ao interesse da União, relação com a tentativa de descaminho de joias, ou qualquer ato que tenha gerado vantagens a autoridades nessa venda, será levado à Justiça para punição dos envolvidos.”

O senador afirmou que o primeiro passo da comissão será pedir documentos da Petrobras sobre a eventual avaliação de preço abaixo do valor de mercado do ativo brasileiro para os estrangeiros.

Antes de voltar ao Brasil no dia 26 de outubro de 2021 e tentar entrar no Brasil de forma ilegal com as joias dadas a Bolsonaro pelo regime saudita, o então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque e sua comitiva tiveram compromissos durante quatro dias em Riade, incluindo encontro com o príncipe Abdulaziz bin Salman Bin Abdulaziz Al-Saud, ministro de Energia da Arábia Saudita, e o príncipe Mohammed bin Salman.

Foi na despedida desta viagem, em 25 de outubro, que o regime árabe entregou os presentes milionários para Bolsonaro, quando deixava o hotel com a sua comitiva para retorno ao Brasil. Naquele mesmo momento, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro almoçava na Embaixada da Arábia Saudita, em Brasília, na residência de Ali Abdullah Bahittam. Bolsonaro estava acompanhado do filho e senador Flávio Bolsonaro, além do ex-ministro das Relações Exteriores, Carlos França e diplomatas de demais países do Oriente Médio.

Naquele encontro, um dos temas abordados foi a venda da refinaria Landulpho Alves pela Petrobras. A estatal repassou a refinaria para o Mubadala Capital, dos Emirados Árabes. A operação foi concluída em novembro com o pagamento de US$ 1,8 bilhão (R$ 10,1 bilhões à época) para a Petrobras.

As relações que o governo Jair Bolsonaro mantinha com o regime da Arábia Saudita envolveram anúncios de acordos bilionários feitos diretamente pelo então presidente Bolsonaro e Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Dois anos antes da comitiva do então ministro de Minas e Energia deixar a Arábia Saudita com pacotes de joias de diamantes avaliados em cerca de R$ 16,5 milhões, Bolsonaro esteve em Riade, capital do país árabe, para celebrar acordos comerciais que envolviam US$ 10 bilhões (R$ 51,7 bilhões no câmbio atual).

No dia 29 de outubro de 2019, Bolsonaro celebrou a assinatura de um acordo que previa o investimento bilionário no Brasil, por meio do Fundo de Investimento Público saudita (PIF), que exploraria “oportunidades em parceria com o governo brasileiro”.

O próprio Bolsonaro tratou de ir às redes sociais para anunciar a negociação. “O fundo soberano da Arábia Saudita vai investir até US$ 10 bilhões em projetos no Brasil, cerca de R$ 40 bilhões”, escreveu o então presidente, em sua conta no Twitter

O ministro da Casa Civil à época, Onyx Lorenzoni, disse que iria “organizar um conselho de cooperação entre os dois governos, com a iniciativa privada dos dois países para fazer a definição em que áreas e em que velocidade esses recursos vão ser aplicados no Brasil”. Onyx afirmou que o conselho foi, inclusive, uma sugestão das autoridades árabes, e que seria formado em três semanas.

Um dos principais alvos dos árabes eram as concessões de infraestrutura no País, dentro da área de energia e em outros setores incluídos no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que reunia os projetos estatais que seriam repassados à iniciativa privada. Esses acordos, no entanto, não chegaram a avançar, devido a dificuldades tributárias que envolviam a entrada dos recursos no Brasil

Naquela ocasião, o governo Bolsonaro afirmou que a Arábia Saudita é o principal parceiro comercial do Brasil no Oriente Médio. O volume de intercâmbio comercial havia atingido US$ 4,42 bilhões em 2018, soma que superava os fluxos de comércio bilateral do Brasil com vizinhos da América do Sul, à exceção de Argentina, Chile e Colômbia. Tratava-se, também, do maior fornecedor de petróleo do Brasil, tendo suprido 33% do total importado do produto em 2018.

A lista completa das transações discutidas envolvia, ainda uma série de acordos, como cooperação na área de ciência e tecnologia, memorando de entendimento sobre vistos de visita, memorando sobre fundo bilateral de investimentos em produtos de Defesa, acordo de cooperação administrativa em matéria Aduaneira e memorando de entendimento entre o BNDES e o fundo de investimentos Saudi Development, para projetos em financiamento em parceria.

Em junho de 2019, Bolsonaro já tinha se encontrado com o príncipe Mohammed bin Salman, durante a reunião de Cúpula do G20, em Osaka, no Japão. “Há acordos bilaterais propostos em diversas frentes de cooperação, como facilitação de investimentos, ciência e tecnologia, uso pacífico de energia nuclear, e uso do espaço exterior. Em muitas delas, a cooperação bilateral poderia se beneficiar da complementaridade entre o conhecimento técnico existente no Brasil e a ampla disponibilidade recursos da Arábia Saudita”, afirmou o governo Bolsonaro, em outubro de 2019.

Adriana Fernandes e André Borges, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 09.03.23, às 19h50

Veja o que diz a lei e quais crimes Bolsonaro pode ter cometido no caso das joias da Arábia Saudita

Especialistas listaram crimes descritos no Código Penal que podem descrever a conduta do ex-chefe do Executivo e de membros de seu governo

A Polícia Federal descobriu que o segundo pacote das joias sauditas, de paradeiro até então desconhecido, foi listado como acervo privado do ex-presidente Jair Bolsonaro. (Foto: Reprodução/TV Globo)

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tem sustentado que não houve “ilegalidade” na tentativa de entrar no País com joias de valor milionário trazidas da Arábia Saudita sem o pagamento do imposto devido. Especialistas consultados pelo Estadão ponderam que os fatos ainda precisam ser elucidados por meio de investigação, mas listaram crimes descritos no Código Penal que podem enquadrar a conduta do ex-chefe do Executivo e de membros de seu governo.

Como mostrou o Estadão, Bolsonaro atuou em diversas frentes para reaver um pacote de joias avaliado em 3 milhões de euros (cerca de R$ 16,5 milhões), presenteado pelo regime saudita e apreendido pela alfândega no aeroporto de Guarulhos. O conjunto inclui um colar e um par de brincos para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, além de um relógio, uma escultura de cavalo com as patas quebradas e um anel. O ex-presidente mobilizou dois ministérios - das Relações Exteriores e de Minas e Energia -, a Receita Federal e também atuou por conta própria para tentar recuperar os bens, sem sucesso.

Um segundo pacote de bens valiosos passou despercebido pelos servidores da alfândega e está no acervo pessoal do ex-presidente, conforme ele mesmo admitiu.

Segundo especialistas, uma eventual investigação deve buscar entender se e de que forma Bolsonaro usou a estrutura do Estado para recuperar as joias; além disso, se a intenção do ex-presidente era de fato manter os bens consigo. O criminalista André Lozano explica a importância de se elucidar a motivação do presente. “Tem de ver se a Arábia Saudita deu esses bens na qualidade de governo ou de forma particular. Se foi de forma particular, tem de ver qual a motivação, porque ninguém recebe um presente de R$ 16 milhões. Eventualmente, se tiver algum interesse escuso da Arábia Saudita para dar esses bens, pode se pensar na possibilidade de corrupção passiva. Mas tudo ainda é embrionário, são conjecturas”, diz.

Como mostrou o Estadão, os auditores da Receita ofereceram a alternativa de declarar os bens como patrimônio do Estado brasileiro, o que livraria do pagamento de imposto, mas a comitiva brasileira declinou. “Isso tudo vai lá para a primeira-dama”, disse, na ocasião, o ex-ministro Bento Albuquerque.

Lozano também aponta a possibilidade, mediante investigação, do enquadramento das condutas nos crimes de peculato (quando um cargo público é usado para tomar posse de dinheiro ou bens móveis), advocacia administrativa (quando um funcionário público usa o cargo para patrocinar interesse privado) e descaminho (o que popularmente é conhecido como “contrabando”).

Veja artigos do Código Penal que podem descrever a conduta do presidente e do ministro:

Crime: Art. 312 (peculato): Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.

Situação: Bolsonaro tentou reaver as joias, mas não indicou claramente se elas iriam para o acervo público da União. Ao ouvir essa opção no aeroporto, Bento Albuquerque declinou. Um segundo pacote de joias está no acervo pessoal do ex-presidente.

Crime: Art. 321 (advocacia administrativa): Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário.

Situação: Bento Albuquerque, Itamaraty e o ex-chefe da Receita Federal, Júlio Cesar Vieira, encaminham ofícios pedindo a liberação dos bens. Se ficar comprovado que as joias eram para o acervo privado de Bolsonaro, pode ficar configurada advocacia administrativa.

Crime: Art. 334 (descaminho): Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

Situação: Servidores do Ministério de Minas e Energia tentaram passar pela alfândega brasileira sem declarar o conteúdo dos pacotes - joias que valem milhões de reais - e, consequentemente, sem pagar o imposto devido.

Joias do primeiro pacote, o que foi apreendido na alfândega, seriam para Michelle Bolsonaro, segundo o ex-ministro Bento Albuquerque.

Joias do primeiro pacote, o que foi apreendido na alfândega, seriam para Michelle Bolsonaro, segundo o ex-ministro Bento Albuquerque. Foto: Wilton Junior/Estadão

A especialista em Direito Penal Marina Pinhão Coelho afirma Bolsonaro deveria ter documentado o recebimento das joias à União, já que estava na condição de chefe de Estado quando as recebeu. “São bens que deveriam ser devidamente declarados ao País e tutelados como patrimônio do Estado brasileiro”. No ato de apreensão, foi dada a opção de declarar que se tratava de um presente de um governo para outro, mas a comitiva liderada pelo então ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia, não aceitou. Se o fizesse, as joias seriam tratadas como propriedade do Estado brasileiro e poderiam ser liberadas.

“Os tipos penais concretos só conseguimos apontar a partir de análises mais detidas dos documentos do caso, mas pode haver crimes tributários, crimes de falsidade e crimes praticados por funcionários públicos contra o patrimônio comum do Estado”, afirmou Marina Pinhão Coelho.

A criminalista Marina Brecht afirma que a conduta do presidente também poderia se enquadrar, em tese, na lei de abuso de autoridade. O texto descreve, em seu 33º artigo, o ato de “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal”. Bolsonaro teria feito isso quando impôs a ministros e ao secretário da Receita Federal que pressionassem pela liberação das joias.

Segundo Marina, a investigação precisa desvendar se há vínculo de Bolsonaro com a tentativa de entrada ilegal com as joias. Após o caso ser revelado pelo Estadão, o ex-presidente passou a dizer que “não pediu, nem recebeu” os presentes do regime saudita. “É preciso demonstrar se existia algum tipo de conluio, plano comum entre todos eles (o ex-presidente, o ministro Bento Albuquerque e os assessores). Existem sinais que indicam esse vínculo, que vão precisar ser melhor esclarecidos durante a investigação”, afirma.

Bolsonaro diz a TV que ficou com segundo pacote de joias da Arábia Saudita

'Isso tudo vai entrar lá pra primeira-dama', disse Bento Albuquerque.

‘Isso tudo vai entrar lá pra primeira-dama’, disse ministro de Bolsonaro ao tentar liberar joias

O que diz a lei sobre presentes recebidos na condição de chefe de Estado?

O decreto nº 4.344, assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 2002 e que trata da preservação “da memória presidencial como um todo num conjunto integrado”, diz que o presidente titular de determinado item deve “preservá-lo e conservá-lo de acordo com a orientação técnica da Comissão Memória dos Presidentes da República, autorizando o acesso a eles”. O texto determina, ainda, que trocas do local de guarda do acervo devem ser comunicadas ao Departamento de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República.

O decreto, contudo, é amplo e pode deixar interpretações em aberto. A decisão mais incisiva sobre o tema veio do Tribunal de Contas da União (TCU), que determinou, em 2016, que todos os presentes recebidos “por ocasião das visitas oficiais ou viagens de Estado ao exterior, ou das visitas oficiais de chefes de Estado estrangeiros ao Brasil” devem ser incorporados ao acervo público.

O tribunal lista exceções: “Itens de natureza personalíssima (medalhas personalizadas e grã-colar) ou de consumo direto (bonés, camisetas, gravata, chinelo, perfumes, entre outros)”.

Davi Medeiros para O Estado de S. Paulo, em 09.03.23, às 10h00.

Joias: Bolsonaro deu ordem para que diamantes apreendidos fossem cadastrados como acervo privad

 ‘Estadão’ apurou que, enquanto avião da FAB seguia para retirar joias em Guarulhos, houve solicitação para incluir dados dos itens apreendidos como “acervo privado”, ou seja, para posse de Bolsonaro

Jair Bolsonaro e Michelle; segundo ele, joias iriam para acervo da Presidência.

No mesmo dia em que Jair Bolsonaro determinou que um militar pegasse um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) em Brasília e fosse até Guarulhos para retirar as joias de diamantes apreendidas pela Receita Federal, o gabinete do ex-presidente solicitou que os itens avaliados em até R$ 16,5 milhões e que seriam dados a Michelle Bolsonaro fossem cadastrados no sistema federal como “acervo privado”.

O objetivo era claro: o presente era para a então primeira-dama e Bolsonaro queria as joias para si.

Os dados dos itens que entraram ilegalmente no País, uma caixa com relógio, caneta e outros itens de ouro, já estavam cadastrados no sistema do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica. Faltava cadastrar as joias apreendidas, como revelou o Estadão na última sexta-feira, 03. Conforme os planos de Bolsonaro, os diamantes deveriam ser retiradas da alfândega de Guarulhos naquele mesmo dia. Era uma quinta-feira, 29 de dezembro de 2022. Faltavam apenas dois dias para o encerramento de seu mandato. No dia 30, Bolsonaro e Michelle pegariam um avião com destino aos Estados Unidos. Dentro do Palácio do Planalto, a ordem era, portanto, adiantar o cadastro das joias que ainda estavam retidas nos cofres da Receita.

O Estadão apurou que o pedido de cadastramento partiu da Chefia de Ajudância de Ordens da Presidência, que era comandada pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Não cabia a Cid fazer esse cadastramento, mas ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica.

O fato revela a intenção clara de Bolsonaro em ficar com o bem, e não em repassá-lo para o acervo público da Presidência da República, o que significaria manter as joias sob o controle do Estado. A retirada das joias acabou não ocorrendo, devido à resistência do auditor-fiscal da Receita em Guarulhos, Marco Antônio Lopes Santanna, que negou a entrega das joias.

O Palácio do Planalto não confirmou se os dados referentes às joias permanecem no sistema do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica. Há informações de que esses poderiam ter sido retirados do sistema, depois de frustrada a tentativa final do presidente.

O portal G1 informou que, diante do fracasso da operação, a funcionária responsável pelo Departamento de Documentação Histórica excluiu os ofícios do registro oficial no dia 3 de janeiro deste ano, já na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O portal informa que a Polícia Federal tenta recuperar os ofícios excluídos e deve interrogar a funcionária responsável pelos registros – que, segundo investigadores, estaria apenas cumprindo ordens que vinham do gabinete da Presidência da República.

O caso está sendo investigado pela PF e o Ministério Público Federal. A partir do material recebido, os procuradores vão definir os próximos passos. Não há prazo para a conclusão dessa análise. O procedimento tramita em sigilo na Procuradoria em Guarulhos.

Adriana Fernandes e André Borges, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 09.03.23, as 19h51

A muamba de Bolsonaro

Almirantes, generais, um tenente-coronel e outros fardados no imbróglio do segredo das jóias


Colar e brincos de diamante, no valor de R$ 16,5 milhões, doados pela Arábia - @Pimenta13Br

O caso das joias presenteadas a Bolsonaro pela Arábia Saudita, trazidas na moita para o Brasil, está recheado de estrelas —nas fardas que seus protagonistas usam ou usavam até havia pouco.

O regalo milionário foi entregue ao então ministro das Minas e Energia de Bolsonaro, Bento Albuquerque, ex-almirante de esquadra. Almirante de esquadra é o segundo posto mais alto da Marinha, com quatro estrelas e uma poderosa âncora na insígnia. As joias viajaram de Riad a Guarulhos na mochila do guarda-marinha Marcos André Soeiro. Guarda-marinha é um aluno da Escola Naval prestes a se tornar segundo tenente.

Apreendida a muamba pela Receita Federal, apressou-se liberá-la o contra-almirante José Roberto Bueno Junior. Um contra-almirante tem duas estrelas e, idem, uma âncora na insígnia, mas isso não comoveu a Receita. Entrou em ação o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro. Um tenente-coronel está a dois passos do generalato, e Cid ainda tem o privilégio de usar Glostora no cabelo e farda com gravata-borboleta. Pois voltou de mãos abanando. Outro encarregado de peitar a Receita foi Jairo Moreira da Silva, primeiro-sargento da Marinha. Debalde.

Dois elementos da própria Receita instruídos por Bolsonaro para resolver o problema também se frustraram. Mas ganharam cargos fictícios nas embaixadas de Paris e Dubai, em atos assinados pelo ex-general e vice-presidente Hamilton Mourão na ausência de Bolsonaro, que fugira para a Flórida a dois dias do fim do mandato. Dia este em que um jato da FAB, com gasolina paga por você, foi de Brasília a Guarulhos com o fim exclusivo de desbloquear a batota —igualmente em vão. E Michelle Bolsonaro, cujos colo, orelhas, pescoço e braços ostentariam as joias, vem sendo municiada sobre o que dizer pelo ex-general Braga Netto.

Está certo. Pelo artigo 142, as Forças Armadas se destinam à defesa da Pátria.

Ruy Castro, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 08.03.23



quarta-feira, 8 de março de 2023

Bolsonaro recebeu, conferiu e está com joias de 2º pacote ilegal que valem no mínimo R$ 400 mil

Ex-presidente recebeu o estojo com relógio, caneta, abotoaduras, anel e um tipo de rosário no Palácio da Alvorada; ajudante de ordens de Bolsonaro disse ao ‘Estadão’ que estojo está com Bolsonaro, no ‘acervo privado’ dele

O presidente Jair Bolsonaro recebeu pessoalmente o segundo pacote de joias da Arábia Saudita que chegou ao Brasil pelas mãos da comitiva do então ministro de Minas e Energia (MME), Bento Albuquerque. No estojo estavam relógio com pulseira em couro, par de abotoaduras, caneta rosa gold, anel e um masbaha (uma espécie de rosário islâmico) rose gold, todos da marca suíça Chopard. O site da loja vende peças similares que juntam somam, no mínimo, R$ 400 mil.

Ao Estadão, o tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ajudante de ordens e “faz-tudo” do ex-presidente, disse que o estojo está com Bolsonaro, no “acervo privado” dele. A entrada das peças no Brasil sem declarar à Receita e a apropriação pelo presidente estão irregulares. O entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU) é que os ex-presidentes só podem ficar com lembranças de “caráter personalíssimo” como roupas e perfumes.

CGU e Comissão de Ética da Presidência vão investigar caso das joias de Bolsonaro e Michelle

Segundo pacote de joias árabes

Coronel Cid confirma que joias estão no acervo privado do ex-presidente Jair Bolsonaro

O Estadão teve acesso a documentos oficiais que comprovam que o pacote foi entregue no Palácio da Alvorada, residência oficial dos presidentes da República. O recibo indicando que Bolsonaro recebeu as joias de diamantes foi assinado pelo funcionário Rodrigo Carlos do Santos às 15 horas e 50 minutos do dia 29 de novembro de 2022. O papel da Documentação Histórica do Palácio do Planalto traz um item no qual questiona se o item foi visualizado por Bolsonaro. A resposta: “sim”.

Recibo do 2º presente de joias árabes entregues ao ex-presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada Foto: Redação

Recibo do 2º presente de joias árabes entregues ao ex-presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada, parte 2 Foto: Redação

Bolsonaro requisitou as joias faltando um mês para encerrar seu mandato e deixar o Brasil rumo aos Estados Unidos, onde se refugiou desde 30 de dezembro, quando perdeu a eleição para o seu rival Luiz Inácio Lula da Silva.

Antes, as joias ficaram por mais de um ano nos cofres do Ministério de Minas e Energia. Elas chegaram ao Brasil trazidas pelo então ministro Bento Albuquerque em outubro de 2021. Ele não declarou o ingresso do estojo, o que pela legislação é um crime. No mesmo voo, estava o assessor do ministro com outro estojo da marca Chopard, contendo um colar, um par de brincos, relógio e anel estimados em 3 milhões de euros (R$ 16,5 milhões). Essas últimas peças, porém, foram apreendidas pela Receita Federal quando o assessor do ministro também tentou entrar com elas ilegalmente no País, como revelou o Estadão.

Bolsonaro almoçou na Embaixada da Arábia Saudita, no Brasil, no mesmo dia em que Bento Albuquerque recebia presentes na Arábia Saudita Foto: Alan Santos/PR

Os documentos contrariam a versão de Bolsonaro, que no último sábado, 04, após evento nos Estados Unidos, disse que não pediu nem recebeu qualquer tipo de presente em joias do governo da Arábia Saudita. “Estou sendo crucificado no Brasil por um presente que não pedi e nem recebi. Vi em alguns jornais de forma maldosa dizendo que eu tentei trazer joias ilegais para o Brasil. Não existe isso”.

À CNN Brasil, Bolsonaro repetiu a mesma versão. “Estou sendo acusado de um presente que eu não pedi, nem recebi. Não existe qualquer ilegalidade da minha parte. Nunca pratiquei ilegalidade. Veja o meu cartão corporativo pessoal. Nunca saquei, nem paguei nenhum centavo nesse cartão.”

Foi o próprio ex-ministro de Bolsonaro quem revelou que as joias eram para o ex-presidente. Em entrevista ao Estadão, Bento Albuquerque contou detalhes. Disse que ele e sua comitiva estavam deixando a Arábia Saudita, onde participaram de um evento representando Bolsonaro, quando um representante do regime os encontrou no hotel e entregou dois pacotes. Segundo ele, o conjunto de brilhantes avaliado em R$ 16,5 milhões era um presente para a primeira-dama Michelle Bolsonaro. O outro pacote era para o presidente. “Isso era um presente. Como era uma joia, a joia não era para o presidente Bolsonaro, né... deveria ser para a primeira-dama Michelle Bolsonaro. E o relógio e essas coisas, que nós vimos depois, deveria ser para o presidente, como dois embrulhos”, disse ao jornal.

Estojo com relógio com pulseira em couro, par de abotoaduras, caneta rosa gold, anel e um masbaha rose gold, todos da marca suíça Chopard Foto: REPRODUÇÃO TV GLOBO

Ao desembarcar em São Paulo, a comitiva pegou um voo para Brasília e trouxe o segundo estojo, sem passar pela alfândega, como o próprio ex-ministro admitiu na entrevista ao Estadão. “Quando nós chegamos em Brasília, nós abrimos o outro pacote, que tinha relógio... era uma caixa de relógio... não sei se... tinham mais algumas coisas, e era um presente. Então, o que nós fizemos? Nós pegamos, fizemos um documento, encaminhamos para a Receita Federal ou para o Serviço de Patrimônio da União... não sei, quem fez isso foi o gabinete (do MME). E foi isso”, afirmou.

Ministro Bento Albuquerque admite que ele e sua comitiva entraram com segunda caixa no Brasil sem declarar à Receita Federal

Investigação

A Controladoria-Geral da União (CGU) instaurar ontem uma investigação para apurar o caso. Segundo a CGU, órgão do governo federal responsável pela defesa do patrimônio público, transparência e combate à corrupção, a medida foi tomada “em razão da complexidade da apuração, já que envolve autoridades e servidores de órgãos diferentes”. O caso também passou a ser apurado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal, em São Paulo.

O inquérito aberto pela Polícia Federal vai correr em sigilo na Delegacia Especializada de Combate a Crimes Fazendários da superintendência da corporação em São Paulo. Os investigadores têm 30 dias para concluir a apuração. Umas das primeiras medidas deverá ser o depoimento de integrantes da comitiva que trouxe as joias da Arábia Saudita.

Outro lado

O advogado Frederick Wassef, que representa o ex-presidente, declarou que Jair Bolsonaro, “agindo dentro da lei, declarou oficialmente, os bens de caráter personalíssimo recebidos em viagens, não existindo qualquer irregularidade em suas condutas”.

“De acordo com a Lei Nº 8394/1991 (FCM) e a sua regulamentação, por meio do Decreto Nº 4344/2002 (FHC), complementados pelo Acordão Nº 2255/2016 (TCU), entre outras leis e decretos, todos os atos e fatos relacionados ao Presidente Bolsonaro - ao contrário do que vem sendo divulgado pela grande mídia - estão em conformidade com a lei”, afirmou a defesa, por meio de nota.

“Estão tirando certas informações de contexto, gerando mal-entendido e confusão para o público. Como jamais existiu qualquer escândalo ou um único caso de corrupção durante os 4 (quatro) anos de governo Bolsonaro, buscam hoje, a qualquer custo, criar diversas narrativas que não correspondem a verdade, em verdadeira perseguição política ao Presidente Bolsonaro.”

Adriana Fernandes, André Borges e Tácio Lorran, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 07.03.23, às 21h21

Caso das joias afeta volta de Bolsonaro ao Brasil e planos do PL para Michelle

Flávio anuncia e logo depois recua sobre data de volta do pai ao Brasil; partido adia evento para promover ex-primeira-dama

Flávio Bolsonaro anunciou, mas depois recuou sobre volta do pai em 15 de março. (Foto: Adriano Machado/Reuters)

A revelação feita pelo Estadão de que o governo Jair Bolsonaro (PL) tentou trazer ilegalmente para o País um conjunto de joias avaliadas em € 3 milhões, o equivalente a R$ 16,5 milhões, freou a estratégia do PL traçada para projetar a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, levou o ex-presidente a estender sua permanência nos Estados Unidos e deixou até os aliados mais leais apreensivos com a repercussão do caso.

A avaliação de aliados próximos ao clã Bolsonaro e de parlamentares do PL ouvidos pela reportagem é de que o tema tem “materialidade” e desgasta o capital político do ex-presidente. Bolsonaristas consideram também que as explicações de Bolsonaro não convenceram.

O PL tinha planejado para hoje um evento de posse para Michelle no PL Mulher. A ideia era aproveitar a data do Dia Internacional da Mulher, mas a repercussão negativa do caso levou o partido a adiar a cerimônia preparada para dar visibilidade à ex-primeira-dama. O PL diz que o evento de posse está “em organização” e que a data ainda será definida. Michelle já despacha na sede da sigla e está montando sua equipe.

(Joias de três milhões de euros doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País.

Diamantes: Governo Bolsonaro fez 8 tentativas para ex-presidente ficar com joias de R$ 16,5 milhões

Joias apreendidas em 2021; itens no valor de R$ 16,5 milhões foram presente do regime saudita para o casal Bolsonaro.

Ministério da Justiça aciona PF para investigar joias de diamantes de Michelle e Bolsonaro)

Recuo

Ontem o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) anunciou nas redes sociais que o pai retornaria ao Brasil no próximo dia 15, mas recuou e apagou a mensagem pouco tempo depois. “Acabou a espera! Bolsonaro vem aí! No dia 15 de março, o nosso Johnny Bravo volta para o Brasil. Já pode pendurar a bandeira verde e amarela e vestir as cores do nosso país. Juntos, vamos fazer uma oposição forte e responsável, pelo bem do nosso Brasil. Deus, pátria e família!”, escreveu o filho mais velho de Bolsonaro.

O recuo veio em seguida: “Peço desculpas pela postagem anterior, deve ser a saudade grande! Na verdade, a data de retorno do nosso líder @jairbolsonaro no dia 15/março era provável, mas não confirmada ainda. Assim que houver uma data definitiva, ele mesmo divulgará, tá ok!.”, escreveu Flávio.

A ideia original era mobilizar as redes bolsonaristas para reunir uma multidão no Aeroporto de Brasília para recepcionar o ex-presidente na próxima semana.

Comunicação

O caso das joias veio à tona no momento em que Bolsonaro montava uma equipe de comunicação para assessorá-lo no Brasil. O grupo será comandado pelo ex-secretário Fabio Wajngarten.

Procurado, ele disse que “não há relação da escolha da data de retorno (de Bolsonaro ao País) e o caso das joias”. “O presidente vai voltar ao Brasil até o final do mês para liderar uma oposição robusta e defender suas bandeiras, como respeito à propriedade privada, costumes e liberdade.”

Pedro Venceslau, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 08.03.23

‘Vai doer no bolso’, avisa Tebet a quem pagar salário menor a mulher na mesma função

Segundo ministra do Planejamento, além de projeto de lei que iguala remunerações, governo deve investir em fiscalização e campanhas informativas

Ministra, ainda durante a campanha eleitoral, impôs como uma das condições para apoiar Lula a apresentação de projeto de lei igualando salários.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Entrevista com Simone Tebet, Ministra do Planejamento

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentará hoje projeto de lei que aumenta a multa para empresa que pagar salário diferente a homem e mulher na mesma função. Segundo a ministra do Planejamento, Simone Tebet, a obrigação de igualdade salarial já está prevista na legislação brasileira, mas a penalidade para quem a descumpre é irrisória, o que acaba sendo um estímulo a maus empregadores.

Diferença de remuneração entre homens e mulheres chega a 22%

A ministra, que no ano passado impôs como uma das condições para apoiar Lula justamente a apresentação de projeto de lei igualando salários, disse que a medida será o pontapé de uma série de ações contra a desigualdade salarial, que inclui fiscalização e campanhas informativas. “Paralelo a isso também vamos nos colocar à disposição de grandes setores para que eles sejam nossos parceiros”, afirmou à Rádio Eldorado. Veja abaixo alguns trechos da entrevista, cuja íntegra deve ir ao ar nesta quarta-feira, a partir das 17 horas.

A legislação brasileira já prevê igualdade salarial de homens e mulheres. Por que então é necessário novo projeto de lei para isso?

A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), há 80 anos, já dizia que um homem e uma mulher com o mesmo cargo, a mesma função, o mesmo perfil, tinham que ganhar salário igual. Só que, como não havia nenhuma pena, nenhuma punição, ela virou uma letra morta. Em 1988, a bancada do batom (formada por 26 parlamentares) conseguiu colocar pela primeira vez no texto da Constituição que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Então a Constituição, por si só, já valeria para dizer que, se homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações e a mulher está exercendo a mesma função do homem, se ela tem a mesma capacidade, o mesmo grau de escolaridade, ela já tem que ganhar salário igual. Mas isso também foi insuficiente.

Quando veio a reforma trabalhista em 2017, a bancada feminina (do Congresso) conseguiu dar um avanço. Só que aí, para nossa surpresa, nós vimos que o texto apresentado e aprovado na reforma acabava estimulando os empregadores a pagar pra ver. Ou melhor, não pagar porque a multa que foi colocada era tão irrisória que, se o empresário fosse pego na infração, ele preferia após anos pagando menores salários pagar essa multa. Porque, pasmem, a multa hoje é de até 50% do maior benefício da Previdência Social, ou seja até cinco salários mínimos, um pouco menos que isso. Então o mau empregador, aquele de má-fé, fala: ‘Bom, é melhor eu infringir a lei porque, se eu receber uma multa, ela é muito pequena considerando a diferença salarial que eu vou pagar por um ano, por dois anos ou por mais tempo.

Agora esse projeto de lei que o presidente da República vai apresentar hoje ao Brasil, que vai para o Congresso Nacional, fala realmente em impor essa obrigatoriedade de igualdade salarial fazendo doer no bolso, aumentando a multa e estabelecendo regras.

Como vocês pretendem lidar com as resistências no Congresso Nacional e como fazer para fiscalizar isso dentro das empresas?

Nós já enfrentamos isso na reforma trabalhista. Depois de 2017, a bancada feminina avançou num projeto que foi aprovado na Câmara e no Senado e estabelecia multa de até cinco vezes a diferença salarial. Então, hipoteticamente, uma mulher que trabalhou um ano e ganhou R$ 200 a menos que um homem multiplicaria R$ 200 por 12 meses e receberia uma multa de até cinco vezes esse total. Claro que o juiz ia ver se era caso de reincidência ou não para aplicar uma multa. Então era um projeto razoável, mas lamentavelmente o então presidente da República (Jair Bolsonaro) o recebeu e pediu para voltar ao Congresso. Eu acho que foi o único projeto em que Câmara e Senado aprovam, vai para o Executivo e depois é devolvido. O presidente poderia vetar o projeto, mas não teve a coragem de assumir esse risco porque ele ficaria mal com as mulheres brasileiras.

O argumento foi de que não era emenda de redação que havia sido feita no Senado, que era emenda de mérito, portanto precisava voltar para a Câmara. Isso é verdade, mas tinha sido negociado, como já aconteceu com outros projetos. Enfim, isso agora é passado e estou muito otimista porque é a primeira vez que sai realmente de forma enfática da boca de um presidente da República que esse é um projeto prioritário de seu governo.

Levando em conta que 40% dos trabalhadores estão hoje no mercado informal no Brasil, que outras frentes podem ser usadas para que essa outra parcela da população também seja protegida?

Esse é o primeiro passo de inúmeros. Eu me lembro que em 2015 foi a mesma discussão sobre a lei do feminicídio. Diziam: “Ah, mas já existe o homicídio doloso, então se a mulher é morta por um companheiro ele já vai responder pelo crime de homicídio”. E nós: “Não. Nós queremos deixar claro que ela está sendo morta não por qualquer outra situação banal, ela está sendo morta por um companheiro ou ex-companheiro pelo simples fato de ser mulher. Aí caracterizar como lei do feminicídio nessa também violência política e aumentar a pena para isso vai fazer com que os homens pensem duas vezes, dez vezes antes cometer uma violência contra mulher”.

Isso fez toda a diferença, até para que a gente tivesse um raio X da realidade dos feminicídios no Brasil. Então a lei é o primeiro de inúmeros passos. Vai doer no bolso, tem que doer no bolso. Paralelo a isso nós vamos fiscalizar. Paralelo a isso nós vamos fazer campanha informativa. Paralelo a isso vamos nos colocar à disposição de grandes setores para que eles também sejam nossos parceiros.

Como o Brasil está em relação à desigualdade salarial no mundo?

Esse é um desafio do mundo, não é só do Brasil. Mas no Brasil a diferença salarial entre homem e mulher é maior do que na média dos países evoluídos, nos países emergentes. Quando a mulher é solteira, a diferença salarial tende a ser menor. Quando a mulher é casada, a diferença salarial tende a ser maior. Quando a mulher tem filhos, a diferença salarial é maior ainda. Essa é uma triste realidade: ao ter esse cuidado maior com a família, com os filhos, a mulher é penalizada por isso. Olha que loucura.

Mas um estudo feito pela Organização Internacional do Trabalho em 2018/ 2019 mostra que, se todos os países do mundo pagassem salários iguais para homens e mulheres, o PIB mundial cresceria 26%. Por quê? Primeiro porque você distribui a renda. Segundo porque essa trabalhadora é uma grande consumidora. Ela não guarda, ela não tem condições de fazer poupança. Com exceção de presidentes, de CEOs de grandes empresas, a grande massa das trabalhadoras vai correr para o supermercado, para o comércio, ela vai comprar material escolar para o seu filho, vai pagar um exame de saúde. Isso faz com que o dinheiro circule na economia e todo mundo ganha.

O Estado acaba arrecadando mais sem aumentar impostos. Isso vai para as áreas da saúde, da educação, da segurança pública, de investimentos. O comércio ganha com isso, o setor de serviços ganha com isso. Além de tudo é uma questão de justiça social. Nós, mulheres, somos iguais aos homens, ponto. Ninguém é melhor do que ninguém e nós temos que lutar por igualdade.

Qual sua expectativa para apreciação do projeto pelo Congresso? As conversas com os setores produtivos já começaram?

A apresentação do projeto é o pontapé, mas nós não vamos começar do nada. A gente já conversou com esses setores na reforma trabalhista e dentro desse outro projeto. Nós vamos ter debates, vai passar pelas duas Casas do Congresso. Eu não vou ser mais realista do que o rei. Eu sei como funciona o Congresso e sei que esse projeto não vai ser aprovado em um mês ou dois meses. Mas, se a gente fechar o ano e na pior das hipóteses puder estar em 8 de março do ano que vem com esse texto sancionado pelo presidente da República, será um marco sem precedentes no avanço de políticas públicas voltadas às mulheres.

Não vou comparar esse avanço com leis relacionadas à violência contra mulher, porque acho que são duas questões muito distintas, não dá para hierarquizar. Porque só nós sabemos enquanto mulheres o quanto doem a violência doméstica, a violência física, a violência psicológica, o estupro, os abusos sexuais, os assédios, a violência moral e mesmo a violência política. Não estou querendo comparar, mas, deixando de lado esses projetos que foram grandes avanços e já olhando pelo lado da autonomia financeira e do direito à justiça social, esse projeto uma vez aprovado sem dúvida nenhuma será um marco, um divisor de águas porque ele vem com critérios que permitem que não vire uma letra morta, que o juiz lá no caso concreto possa arbitrar, possa punir realmente empresas que comprovadamente paguem salários inferiores à mulher por pura discriminação.

Entrevista concedida a Luciana Garbin e Carolina Ercolin para O Estado de S. Paulo. Publicada originalmente em 08.03.23

Gás natural, energias eólica e solar no Maranhão

Gás natural: aqui temos de falar sobre a ENEVA. É mais um dos grandes projetos instalados no Maranhão que ainda não disse a que veio, tal como a Alumar, Vale, Suzano, Polo da Soja em Balsas e adjacências, Base de Alcântara, que assombram e prometem, mas entregam pouco ou quase nada.  

São empreendimentos intensivos de capital que visam o lucro (esta é a regra básica do capital) e se lixam para a pobreza de nossa população. Claro que são importantes, porém, não obstante a implantação de todos eles, a população maranhense tem ficado mais pobre. Esse é o dado oficial de nossa realidade.

Cresce a capacidade de geração de  energia eólica instalada no Maranhão.

Há poucos dias, escrevi sobre o petróleo da margem equatorial brasileira sugerindo que o governo abra o diálogo com a sociedade sobre essa questão pelo risco de se perder a biodiversidade existente na região.

Não pode ser um assunto privativo de governo. Envolve questões que vão além de parâmetros oficiais e atacam os interesses dos povos originários. Hoje, vamos iniciar um diálogo sobre energias limpas, entre elas, o gás, a solar e a eólica. 

Energia eólica: o Maranhão precisa avançar em competividade (426MW) porque está atrás da produção do Piauí (6.490MW), do Ceará (6.279MW) e do Rio Grande do Norte (14.431MW), pelo simples fato de não ter feito até agora a regularização fundiária e o licenciamento ambiental prévio das áreas de grande potencial de geração desse tipo de energia, com o que atrairá investidores.

Energia solar: De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética o território maranhense destaca-se entre os mais promissores em relação à geração de energia fotovoltaica. Nada obstante, ainda engatinha em relação a outros estados.  A Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica aponta que a geração de energia solar no Ceará proporcionou, de 2012 para cá, a atração de R$ 1,9 bilhão em investimentos, arrecadação de ICMS de R$ 518,9 milhões e mais de 11,9 mil empregos, para ficar só neste exemplo. 

Em crescimento acelerado no Brasil, e em razão da alta incidência de insolação diária e radiação, o ideal seria pensar em projetos referenciados e como parte de políticas públicas, como, por exemplo, implantá-la em prédios públicos estaduais e estimular as fazendas solares, potencializando o desenvolvimento da carcinicultura e psicultura, claro, com utilização de tecnologia de placas solares nacionalizadas. 

Gás natural: aqui temos de falar sobre a ENEVA. É mais um dos grandes projetos instalados no Maranhão que ainda não disse a que veio, tal como a Alumar, Vale, Suzano, Polo da Soja em Balsas e adjacências, Base de Alcântara, que assombram e prometem, mas entregam pouco ou quase nada.  São empreendimentos intensivos de capital que visam o lucro (esta é a regra básica do capital) e se lixam para a pobreza de nossa população. Claro que são importantes, porém, não obstante a implantação de todos eles, a população maranhense tem ficado mais pobre. Esse é o dado oficial de nossa realidade.

A ENEVA é a maior operadora de gás natural do País e opera a Bacia do Parnaíba desde 2010 (poços em Santo Antônio dos Lopes). Não tem trazido qualquer avanço ao Maranhão pela forma como conduz as coisas, com o aval complacente do Estado. É mínima a contrapartida que oferece ao Estado, uma vez que não cumpre o objetivo principal da sua concessão, que é ofertar gás à GASMAR, para que essa possa distribuir às classes de consumo e assim criar cadeias de renda, emprego e impostos para o Estado.

Da forma que o negócio opera, cabe a empresa distribuidora apenas fazer manutenção de gasodutos, que conduzem gás pra geração de energia pela própria Eneva, energia esta que vai para outros Estados, onde a tributação do ICMS ocorre. Assim, sendo o sócio privado detentor da maioria das ações preferenciais da GASMAR tem ele a maior fatia dos dividendos, nesse cenário. Em resumo, todo o gás que produz é operado pela sua própria termelétrica, resultando em que o ICMS, cobrado no destino, passe ao largo do Tesouro Estadual. Estamos aqui falando de cifras de muitos milhões de reais.

Sabemos que o Maranhão não consome energia da Eneva porque é totalmente atendido por Tucuruí (kwh mais barato), já que o operador nacional do sistema elétrico (ONS) toma tal decisão a partir do menor preço e menor impacto ambiental.  Mas, isso não impede que outras formas de consumo sejam implementadas, como, por exemplo, o gás veicular, que autoridades do Governo do Maranhão propalaram irresponsavelmente aos 4 ventos que estaria em pleno uso até dezembro do ano passado.

A mão forte do Governo precisa exigir da ENEVA que ela produza um pouco mais de gás para atender às classes de consumo residencial, comercial, industrial e veicular. Por que a ENEVA se recusa a fazer isso? Pelo fato de que a tarifa de energia elétrica é bem superior à que ganharia com a venda do gás natural. É verdade, assim como é verdade que não paga a compensação ambiental pelos danos ao meio ambiente, tanto pela perfuração dos poços como para produzir energia elétrica a partir da sua usina termoelétrica. 

Essa decisão impactaria fortemente os recursos do Tesouro Estadual, porque aí sim teríamos direito ao ICMS a ser cobrado dos consumidores. Infelizmente a Eneva quer repetir o mesmo engodo que fez com os governos de Roseana Sarney e Flávio Dino. Não devemos permitir. Estima-se que se parte do gás da Eneva tivesse sido distribuído comercialmente pela Gasmar, habilitada juridicamente para isso, o Estado teia arrecadado cerca de bilhões de reais nesses 10 anos em que ela atua no Maranhão.

Claro que temos a alternativa do GNL (gás natural liquefeito). Soube que a Gasmar trabalha para isso. Mas, para quando e por quê? Se temos gás abundante no Maranhão?

Abdelaziz Aboud Santos, o autor deste artigo, foi Secretário de Estado do Planejamento e Orçamento do Maranhão (Governo Jackson Lago - 2007/09)