domingo, 12 de março de 2023

Política e a aprendizagem institucional nas Forças Armadas

A polarização política persiste no País e deve afetar eleições futuras. É, pois, imprescindível que as Forças Armadas solidifiquem sua identidade de instituições apolíticas

Nos últimos anos, o envolvimento das Forças Armadas com a política ocasionou episódios de flagrante ofensa aos cânones da profissão militar. Alguns desses fatos foram determinados pelo presidente Jair Bolsonaro, ao passo que outros foram iniciativas de militares envolvidos. Notórios entre os primeiros foram o engajamento das Forças Armadas na fiscalização das eleições e as demissões dos comandantes de Força em 2021. Entres os últimos, citam-se a saudação como “líder” a um político (Jair Bolsonaro) em campanha, em 2014, por jovens prestes a receber a espada de oficial na Academia Militar das Agulhas Negras; a postagem de temas políticos e de notícias inverídicas nas redes sociais por militares da ativa; e a participação de militares em manifestações com pleitos claramente ilegais. São todos casos preocupantes, notadamente aqueles que se passaram sem intervenção do comandante supremo das Forças Armadas.

Em que pese nunca ter havido unanimidade entre os militares a respeito de tais episódios, a exigência de que as Forças tenham um pensamento claro de repúdio à politização recomenda que elas aprendam a partir deles.

Organizações, ou instituições estruturadas, aprendem. Elas o fazem corriqueiramente, pela aquisição de conhecimento por seus membros. Mas existe o conhecimento coletivo, bem mais relevante. Ele é obtido, por exemplo, quando cada membro da instituição compreende que, ao desempenhar suas tarefas, deve fazê-lo de modo a contribuir para que os demais sejam o mais eficiente possível nas tarefas deles. Ou – mais bem relacionado com o presente tema – quando todos os integrantes assimilam aquilo que assegura a “identidade” da instituição, sem a qual ela não realiza seus propósitos.

Instituições aprendem por perceberem que mudanças são benéficas ou por causa de falhas que comprometem sua efetividade ou existência. Muitas vezes, tais aprendizagens requerem autocrítica e a consciência de que a instituição é mais importante que qualquer um de seus membros.

Um caso típico de aprendizagem institucional ocorreu com o Exército dos Estados Unidos da América, por ocasião da Guerra do Vietnã. Durante o conflito, políticas de pessoal levaram ao surgimento de um “carreirismo administrativo”. Capitães e tenentes iam para a guerra interessados unicamente em poupar-se e sobreviver, ou dispostos a enviar seus subordinados para missões perigosas e, à custa de seu sacrifício, obter menções para promoção. A disseminação de tal mentalidade feriu de morte o espírito de liderança dos quadros e corroeu a coesão no Exército.

A correção de rumo iniciou-se alguns anos depois da guerra, impulsionada pela publicação do livro Crisis in Command: Mismanagement in the Army, por Richard Gabriel e Paul Savage. Os autores, ambos acadêmicos e oficiais da reserva do Exército, ofereceram à sociedade uma crítica contundente da situação e sensibilizaram para a necessidade de mudança. Embora o livro tenha sido recebido com ceticismo e reticência por parte da cúpula do Exército, acabou gerando uma autocrítica responsável, indutora de transformações que recuperaram a imagem e a eficiência da instituição.

A aprendizagem das Forças Armadas pode ser conduzida pelo Ministério da Defesa. Entretanto, essa modalidade não é eficiente quando a questão é desenvolver ou fixar uma mentalidade. Exército, Marinha e Aeronáutica têm princípios, valores e cultura próprios, o que torna inconveniente a administração de tal processo pelo governo.

Por outro lado, a aprendizagem endógena, que se origina na Força e é conduzida por ela, é bastante eficiente. Ela segue métodos adequados à instituição e leva em conta suas peculiaridades e idiossincrasias, o que é essencial para o êxito. Alguns podem argumentar que, em se tratando do atual envolvimento dos militares com a política, razões corporativas e ideológicas impediriam a correção de rumos. Entretanto, tal crítica é bastante questionável, uma vez que a maior parte dos oficiais generais e significativo segmento da oficialidade já se posicionaram a favor da atitude estritamente profissional da tropa.

A academia, por meio da Sociologia, da Ciência Política e das Relações Internacionais, pode oferecer uma grande contribuição para a aprendizagem nas Forças Armadas. A polarização política e os eventos que nos últimos anos conturbaram a normalidade democrática serão, certamente, objeto de estudo nos programas de pós-graduação de universidades e institutos de alto nível. Assim, pesquisas destinadas a analisar a participação ou a influência dos militares nesses acontecimentos serão muito úteis.

A polarização política persiste no Brasil e deve afetar eleições futuras. Por conseguinte, é imprescindível que as Forças Armadas solidifiquem sua identidade de instituições apolíticas. Aliado a isso, cada militar precisa saber conciliar o direito de ter posição política própria com o requisito de ser apolítico profissionalmente. Essas são as bases da aprendizagem que se faz necessária.

Fernando Rodrigues Goulart, o autor deste artigo, General de Divisão na Reserva, é Doutor em Relações Internacionais. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.03.23

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