quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Como era plano de militares para dar golpe e matar Lula, Alckmin e Moraes, segundo a PF

 A Polícia Federal realizou uma operação na manhã de terça-feira (19/11) para cumprir mandados de prisão e busca e apreensão contra suspeitos de planejar um golpe de Estado no final de 2022 para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Alckmin, Lula e Moraes são citados em documentos sobre um possível plano para golpe de Estado (Getty Images)

Cinco pessoas foram presas com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro são militares do Exército, integram forças de operações especiais e são conhecidos como "kids pretos".

Foram presos o general de brigada da reserva Mario Fernandes, o tenente-coronel Helio Ferreira Lima, o major Rodrigo Bezerra Azevedo e o major Rafael Martins de Oliveira.

O quinto indivíduo que teve a prisão decretada foi o policial federal Wladimir Matos Soares.

Dessa lista, o nome de Mario Fernandes é um dos mais conhecidos. Ele atuou como secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência no governo de Jair Bolsonaro e também exerceu a função de assessor do deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), mas foi afastado do posto por determinação do STF.

Nos documentos que embasam a decisão divulgada nas últimas horas, estão detalhadas todas as evidências — trocas de mensagens por diferentes aplicativos, documentos, fotos, áudios, entre outros — e o trabalho de investigação que relacionou esse material.

Mas alguns nomes de documentos ou operações clandestinas que foram descobertas pela PF chamaram a atenção.

Intitulados "Copa 2022" e "Punhal Verde Amarelo", os planos envolviam o monitoramento, a prisão ilegal e até uma possível execução de três personagens centrais nessa história: Alexandre de Moraes, ministro do STF e então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE); Lula, à época presidente eleito; e Geraldo Alckmin (PSB), vice-presidente eleito.

Rafael Martins de Oliveira e Hélio Ferreira Lima teriam participado de uma reunião em 12 de novembro na casa do general Braga Netto, na companhia de Mauro Cid.

Braga Netto foi candidato à vice-presidência na chapa derrotada de Jair Bolsonaro em 2022.

Já Mauro Cid foi ajudante de ordens de Jair Bolsonaro durante a presidência e atualmente é delator.

Após o encontro em novembro, Oliveira teria enviado a Cid um documento em formato Word intitulado "Copa 2022" que detalhava as necessidades logísticas e financeiras para realizar a operação planejada para 15 de dezembro.

Um documento encontrado nos arquivos de Mário Fernandes planejava também instituir um "gabinete institucional de gestão da crise" que entraria em operação em 16 de dezembro de 2022, dia seguinte à operação "Copa 2022". Este gabinete, segundo a PF, seria chefiado pelo general Augusto Heleno e teria Braga Netto como coordenador-geral.

Mauro Cid prestou novo depoimento à PF na terça-feira (19/11). Segundo a CNN Brasil, ele negou que soubesse do plano para assassinar Lula, Alckmin e Moraes.

A PF apontou inconsistências no depoimento, e caberá a Alexandre de Moraes, do STF, avaliar se os benefícios ligados ao acordo de delação devem ser anulados por isso.

A operação 'Copa 2022'

Segundo documento do STF citando a apuração da PF, os investigados tinham "a finalidade de impedir a posse do governo legitimamente eleito e restringir o livre exercício da Democracia e do Poder Judiciário brasileiro".

Para isso, eles colocaram em marcha uma operação que teve "auge a partir de novembro de 2022" e avançou até o mês de dezembro, "como parte de plano para a consumação de um golpe de Estado, em uma operação denominada pelos investigados de 'Copa 2022'".

Ainda de acordo com a investigação, tal operação tinha "elementos típicos de uma ação militar planejada detalhadamente, porém, no presente caso, de natureza clandestina e contaminada por finalidade absolutamente antidemocrática".

Em 15 de novembro de 2022, o major Rafael Martins de Oliveira encaminhou para Cid, via WhatsApp, um documento protegido por senha intitulado "Copa 2022".

"Pelo teor do diálogo, seria uma estimativa de gastos para subsidiar, possivelmente, as ações clandestinas, que seriam executadas durante os meses de novembro e dezembro de 2022", aponta a petição no STF.

Esse mesmo nome, "Copa 2022", foi usado posteriormente como título de um grupo criado no Signal, um aplicativo de mensagens.

Esse grupo era composto de seis usuários — e cada um deles recebeu um país como codinome "para não revelarem sua identidade", segundo a PF.

Os codinomes escolhidos foram: Alemanha, Áustria, Brasil, Argentina, Japão e Gana.

Vale destacar que os chips dos números de celulares que aparecem no grupo de mensagens estavam cadastrados em nomes de terceiros, os quais se encontravam em outras regiões do país.

O documento do STF aponta que "as mensagens trocadas entre os integrantes do grupo 'Copa 2022' demonstram que os investigados estavam em campo, divididos em locais específicos para, possivelmente, executar ações com o objetivo de prender o ministro Alexandre de Moraes".

Um exemplo: no dia 15 de dezembro de 2022 às 20h33, a pessoa associada ao codinome Brasil informa um dos locais em que estava atuando.

Ele diz: "Estacionamento em frente ao gibão carne de sol [um restaurante]. Estacionamento da troca da primeira vez".

Em seguida, a pessoa associada ao codinome Gana informa que já estava no local combinado: "Tô na posição".

A troca de mensagens continua até que, às 20h57min, a pessoa de codinome Áustria diz: "Tô perto da posição. Vai cancelar o jogo?".

Segundo a PF, ele possivelmente queria saber se a ação contra Moraes seria cancelada.

Cerca de dois minutos depois, Japão, o suposto líder do grupo, respondeu: "Abortar... Áustria... volta para local de desembarque... estamos aqui ainda..."

A investigação da PF cruzou as informações fornecidas pelos envolvidos e também dados de chips de celular, de aluguel de carros e outras fontes para concluir que o grupo monitorava Moraes.

"A análise [...] permite concluir que é plenamente plausível que a pessoa de codinome Gana estivesse próxima a residência funcional do ministro Alexandre de Moraes."

O uso de termos específicos do ambiente militar e o detalhamento das ações sugere, de acordo com a investigação, que os envolvidos tinham treinamento e especialização em operações especiais.

O trabalho da PF apontou que o major Rafael Martins de Oliveira seria o líder da operação "Copa 2022".

Algumas das mensagens foram enviadas por Mauro Cid (à esquerda), ajudante de ordens de Bolsonaro (Reuters)

'Punhal Verde Amarelo'

A PF aponta que um documento com o plano do "Punhal Verde Amarelo" foi impresso por Fernandes no Palácio do Planalto em 9 de novembro de 2022.

Nessa mesma ocasião, os aparelhos telefônicos de outros investigados — Rafael Martins de Oliveira e Mauro Cid — também estavam conectados à rede que cobre o Palácio do Planalto.

Depois, esses papéis teriam sido levados ao Palácio da Alvorada, residência do então presidente Bolsonaro.

"O planejamento 'Punhal Verde e Amarelo' evidencia que, no tabuleiro das intenções antidemocráticas, vidas humanas eram descartáveis, inclusive de eventuais militares envolvidos na ação", diz o documento do STF.

No relatório, a PF diz que o documento tinha "características terroristas", no qual constam "todos os dados necessários para a execução de uma operação de alto risco".

"O plano dispõe de riqueza de detalhes, com indicações acerca do que seria necessário para a sua execução, e, até mesmo, descrevendo a possibilidade da ocorrência de diversas mortes", diz a PF.

Há, por exemplo, menções ao arsenal que seria utilizado na operação — que incluiria pistolas e armas comumente usados por policiais e militares, mas também armamentos de guerra mais pesados, como metralhadoras e lança-granadas.

A investigação aponta que, no documento, o codinome "Jeca" refere-se a Lula.

"Para execução do presidente Lula, o documento descreve, considerando sua vulnerabilidade de saúde e ida frequente a hospitais, a possibilidade de utilização de envenenamento ou uso de químicos para causar um colapso orgânico", revela a PF.

Já "Joca" seria Alckmin.

"Isso porque o texto aponta que na inviabilidade do '01 eleito', ou seja, Lula, 'sua neutralização extinguiria a chapa vencedora'. Como, além do presidente, a chapa vencedora é composta, obviamente, pelo vice-presidente, é somente na hipótese de eliminação de Geraldo Alckmin que a chapa vencedora estaria extinta".

Há ainda a menção a um terceiro nome, "Juca", descrito como "iminência parda do 01 [possivelmente Lula] e das lideranças do futuro gov [governo]", mas a PF não conseguiu identificar quem seria essa pessoa.

Já para o assassinato de Moraes, "foram consideradas diversas condições de execução", "inclusive com o uso de artefato explosivo e por envenenamento em evento oficial público", diz documento do STF, mencionando investigação da PF.

Uma das reuniões de planejamento da operação teria acontecido na casa do general Braga Netto, candidato à vice-presidente na chapa de Bolsonaro (Getty Images)

Reações

Após a divulgação dos fatos, autoridades e figuras públicas deram declarações.

O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos Rodrigues, disse que comunicou Lula e Alckmin pessoalmente sobre o que havia sido encontrado — e o presidente reagiu com "surpresa e indignação".

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), classificou como "extremamente preocupante" o fato de um grupo tramar os assassinatos de Moraes, Lula e Alckmin.

"Não há espaço no Brasil para ações que atentam contra o regime democrático, e menos ainda, para quem planeja tirar a vida de quem quer que seja. Que a investigação alcance todos os envolvidos para que sejam julgados sob o rigor da lei", declarou ele.

Ainda no Senado, Flávio Bolsonaro (PL-RJ), saiu em defesa dos investigados.

"Quer dizer que, segundo a imprensa, um grupo de 5 pessoas tinha um plano pra matar autoridades e, na sequência, eles criariam um 'gabinete de crise' integrado por eles mesmos para dar ordens ao Brasil e todos cumpririam?", escreveu ele no X (o antigo Twitter).

"Por mais que seja repugnante pensar em matar alguém, isso não é crime. E para haver uma tentativa é preciso que sua execução seja interrompida por alguma situação alheia à vontade dos agentes. O que não parece ter ocorrido", argumentou o senador.

Até a última atualização desta reportagem, o ex-presidente Bolsonaro e o ex-candidato a vice-presidente Braga Netto não haviam se pronunciado sobre o caso.

Editado e publicado originalmente por BBC News Brasil, em 19.11.24. Atualizado em 20.11.2024.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O cerco se fecha em torno de Bolsonaro

Apurações sobre plano para matar autoridades se aproximam um pouco mais a cada etapa de nomes do círculo mais próximo do ex-presidente, como Braga Netto e Augusto Heleno

Augusto Heleno, Mauro Cid e Braga Netto — Foto: Agência O Globo

Se, na semana passada, o ataque de um extremista à Praça dos Três Poderes foi o ato tresloucado que explodiu as conversas para uma anistia aos golpistas do 8 de Janeiro, as revelações estarrecedoras desta terça-feira sepultam qualquer tentativa de minimizar as tentativas de supressão da democracia naquele dia e nos meses que o antecederam. Os subordinados diretos de Jair Bolsonaro urdiram o assassinato de autoridades de primeiro escalão da República para manter o ex-capitão no poder.

A gravidade do que se tem até aqui é inaudita. Mas, como as investigações insistem em demonstrar, não é possível assegurar que tenhamos chegado a todos os fatos e a todos os envolvidos na trama. Os novos depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid — personagem que permitiu que se desenrolasse o fio da meada da tentativa de melar a eleição e empastelar a democracia — e também dos cinco presos ontem mostrarão quem mais estava no plano, a mando de quem e com que grau de anuência e deliberação de Bolsonaro e de seus ministros mais próximos.

Como informei em meu blog, a prisão do ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto ainda não foi pedida, mas por excesso de zelo da Polícia Federal em preencher os requisitos técnicos e jurídicos para embasá-la. Até aqui, a evolução das investigações tem se dado de fora para dentro, descrevendo círculos que vão ficando menores, até chegar ao núcleo decisório e político do golpismo.

Na operação de ontem, se chegou pela primeira vez à prisão de um general da reserva, Mário Fernandes, mas ainda com menos poder e proximidade com Bolsonaro que Braga Netto ou Augusto Heleno, de quem as apurações se aproximam um pouco mais a cada etapa. Diante do que veio à tona até aqui, com um plano impresso nas dependências do Palácio do Planalto em que se admitia a eliminação do então presidente eleito Lula, do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, é impossível dizer se haveria um limite ao que os bolsonaristas inconformados com a derrota estavam dispostos a perpetrar.

O ministro Paulo Pimenta foi feliz na escolha da palavra: foi por um detalhe que o Brasil, menos de 40 anos depois de reconquistar sua democracia, não assistiu a uma nova quartelada para suprimi-la. A extensão das tratativas e a abundância de rastros deixados explicam o nervosismo que se abateu sobre Bolsonaro, familiares e aliados nos últimos meses, desde a mobilização para o reiterado sequestro do Sete de Setembro para pregar contra o Judiciário até a campanha indecente pela injustificável anistia aos bagrinhos do 8 de Janeiro — mirando, evidentemente, não neles, mas nos fardados e em seus superiores, que estavam mergulhados até a cabeça na articulação para assassinar adversários e reinstalar o arbítrio no país.

Muito se tem discutido, também neste espaço, a respeito da extensão dos inquéritos sob a relatoria de Alexandre de Moraes. É possível encontrar argumentos jurídicos para questionar o fato de, sendo vítima dessa e de outras tramas sob investigação, ele continuar relatando os inquéritos. Nada disso, no entanto, é capaz de desviar o debate do que é central: não fosse a atuação firme e articulada da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do Judiciário, a democracia teria soçobrado.

A Justiça formou sucessivas barreiras, primeiro no TSE, depois no Supremo, às ações do ex-presidente para se perpetuar no poder, primeiro tentando evitar as eleições de 2022 , depois com as maquinações que até aqui já têm as digitais de nomes de alta patente de seu entorno para impedir a diplomação, a posse e o governo de Lula.

O inquérito da tentativa de golpe pré-8 de Janeiro será concluído até o fim do ano. Não só não haverá anistia, como parece claro que os próximos alvos estão num círculo ainda mais restrito e nuclear.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 20.11.24

Depoimento de general é visto como ‘tiro de misericórdia’ em Bolsonaro e o fim da agonia do Exército

Ao confirmar a minuta do golpe, Freire Gomes entregou à Polícia Federal informações contra o ex-presidente com o peso de terem sido fornecidas por quem comandou a Força Terrestre

O presidente da República, Jair Bolsonaro participa das comemorações do Dia do Soldado, no Quartel-General do Exército, em Brasília, ao lado dos comandantes das Forças (da esq. para dir.), general Freire Gomes, almirante Almir Garnier e brigadeiro Carlos Baptista Júnior Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

O depoimento do general Marco Antonio Freire Gomes à PF é visto como o “tiro de misericórdia” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Não só pelas informações que revela, esclarece ou confirma, mas também pelo significado que tem a palavra do ex-comandante do Exército. Ela traz parte do peso institucional da voz do Grande Mudo da República. E a expectativa de ser o fim da agonia para a Força Terrestre.

Freire Gomes confirmou não só a discussão sobre a “minuta do golpe” com Bolsonaro e a participação em reuniões no Palácio do Planalto, onde a tentativa de subverter a ordem democrática era planejada. Ele corroborou o depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, chefe da Ajudância de Ordens da Presidência da República, que assinou um acordo de delação com a Polícia Federal.

Cid atualizava o general sobre as discussões no Planalto. Às 15h30 do dia 9 de dezembro de 2022, ele contou que Bolsonaro fora pressionado “por vários atores a tomar uma medida mais radical”: as prisões dos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do STF, além do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O tenente-coronel asseverou, no entanto, que Bolsonaro permanecia “na linha do que fora discutido com os comandantes das Forças e com o ministro da Defesa (Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira)”. “Hoje, ele mexeu muito naquele decreto, né. Ele reduziu bastante. Fez algo mais direto, objetivo e curto e limitado.”

Ouvido como testemunha, o general respondeu a todas as perguntas durante mais de oito horas. Contou que não desmontou os acampamentos em frente ao Exército por causa de Jair Bolsonaro. O general vivia um drama pessoal. Sua mãe, Maria Freire Gomes, estava enferma ao mesmo tempo em que o filho enfrentava outra situação que o deixava atormentado: as pressões do governo para que embarcasse em uma aventura. Gomes sabia que a maioria ordeira e silenciosa no Exército era contrária à bagunça institucional, que levaria à divisão da instituição, tão necessária ao golpe.

Em agosto de 2022, Freire Gomes pediu aos subordinados que os contatos com jornalistas, empresários e políticos ficassem restritos. Tentava afastar o Exército do ambiente polarizado da campanha eleitoral e fechar as portas dos quartéis para as vivandeiras que rondaram os bivaques em 2018. Em novembro, viu-se enredado no movimento nascido entre bolsonaristas que tinha o objetivo de emparedar Luiz Inácio Lula da Silva: passar o comando das Forças aos indicados pela nova gestão ainda sob Bolsonaro, como forma de mostrar que ninguém prestaria continência ao “ladrão”, como então se referiam ao presidente eleito.

No Planalto, acusavam o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, então comandante da Aeronáutica, de ter deixado vazar a informação, o que fez fracassar a trama – só o comandante da Marinha, Almir Garnier, que teria se colocado à disposição do golpe, se recusaria a comparecer à posse de seu sucessor, o almirante Marcos Olsen. Houve ainda a carta dos comandantes das Forças, em 11 de novembro, na qual diziam condenar excessos nas manifestações após o voto bem como as restrições à liberdade de expressão dos manifestantes que se aglomeravam então em frente aos quartéis.

O documento parecia dar aval aos que pediam a “intrervenção militar”. Freire Gomes afirmou que os acampamentos não foram desfeitos em razão de Bolsonaro. No dia 29 de dezembro, o comandante militar do Planalto, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, mandou desmontar as barracas em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília. Não avisou Freire Gomes. Quando soube da ação do subordinado, Gomes telefonou para Dutra e o chamou de “maluco”. E cancelou a ordem.

É que o comandante tinha receio de que Bolsonaro usasse o incidente para justificar uma ruptura. Ou nomear outro general para seu lugar, que decidisse levar adiante o plano do golpe. Seus colegas de Alto Comando do Exército (ACE) sabiam que Freire Gomes não estava entre os mais decididos apoiadores da ideia de se garantir a legalidade, mas confiavam que ele se manteria com a maioria. De fato, 11 dos 16 generais do ACE não admitiam a hipótese de uma ruptura institucional para impedir a posse de Lula.

Os companheiros de Freire Gomes afirmam agora que, se ele entregasse Bolsonaro à Justiça ou denunciasse o golpe, não teria como provar a trama e seria ele mesmo destituído. Mesmo assim, há quem fale em omissão do general, que ao saber do intento urdido no Planalto, teria o dever de procurar o Ministério Público. Do ponto de vista legal, o desembargador aposentado Walter Maierovitch afirma que não. “A condição de subordinados do presidente descaracteriza o crime. A questão hierárquica se impõe. Encaminhar ou não a notícia-crime suscita apenas um debate ético ou ainda, moral, mas não o legal.”

Até as vésperas de seu depoimento, os bolsonaristas tinham a esperança de envolver Freire Gomes na investigação. O objetivo era um só: servir-se da figura institucional do ex-comandante para se colocar atrás do biombo da instituição, vender a imagem de que todo o Exército era o alvo da investigação da PF e, assim, poder contar com a solidariedade dos quartéis. Todo mau militar busca essa manobra: a proteção dos pares, dos quais empresta o respeito e a honra para suprir o que lhe falta.

Não é à toa que Bolsonaro nunca mais compareceu a solenidades de “seu Exército” depois que as investigações começaram a revelar a trama de deslealdades e de ofensas planejadas e executadas por antigos camaradas contra colegas, uma campanha que não poupou nem mesmo as famílias de quem zelou pelo profissionalismo e pela disciplina da tropa. De fato, o ex-presidente só é visto agora em solenidades da Polícia Militar de São Paulo, Estado governado por Tarcísio de Freitas.

Bolsonaro sumiu das cerimônias da Academia Militar da Agulhas Negras (Aman). Também não esteve no Comando Militar do Leste quando o general André Luis Novaes de Miranda passou o comando ao general Kleber Nunes de Vasconcellos – o general Walter Braga Netto, cujo teor abjeto das mensagens para o major Ailton Barros ainda era desconhecido, compareceu sozinho à cerimônia, no fim de 2023. Em situação não muito diferente está o general Augusto Heleno, o homem que falava o que não devia nas reuniões gravadas do Planalto e era repreendido por Bolsonaro.

E é melhor que seja assim, pensam os generais ouvidos pela coluna. Eles questionam: imagina depois de todas as mensagens reveladas o tamanho do constrangimento que seria ter em um mesmo palanque o ex-presidente e o comandante do Exército, Tomás Miguel Ribeiro Paiva? Como olhar na cara de Braga Netto depois que este chamou Freire Gomes de “cagão” e mandou oferecer a cabeça do comandante aos leões? O que esperar do ex-comandante diante da deslealdade em relação aos antigos companheiros?

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o governador de Sao Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos), prestaram homenagens em 16 de outubro de 2023 a policiais da Rota que participaram da Operação Escudo.

Muita gente sabia que os artífices da campanha difamatória contra os generais legalistas em novembro e dezembro de 2022 tinham informações privilegiadas do Planalto. Ou seja, as revelações da PF apenas deram nomes aos bois. Agora, todos avaliam que o depoimento de Freire Gomes deve abrir as portas da cadeia para Bolsonaro. Nenhuma surpresa. Para os generais, o próprio ex-presidente e seus subordinados demonstravam ter consciência de que cometiam ilegalidades quando diziam em mensagens saber que seriam presos ou quando questionavam se as reuniões no Palácio estavam sendo gravadas.

É cada vez mais forte na caserna o sentimento de que o depoimento do ex-comandante deve acelerar também o fim das investigações e sepultar de uma vez qualquer tipo de pensamento intervencionista nas Forças Armadas. A instituição saiu arranhada depois de ser posta à prova pela coincidência de Bolsonaro ter chegado ao poder em 2018, justamente no momento em que seus colegas de turma e contemporâneos de AMAN dos anos 1970 ocupavam o Alto Comando do Exército. Muitos sabiam quem era o “Cavalão”, mas os laços de camaradagem impediam de vê-lo como aquilo que ele sempre foi: um mau militar.

Não se verá mais a Força Terrestre envolvida com urnas eletrônicas, com cloroquina ou com os extremistas de direita. Mas, para além de afastar os militares da política por meio do reforço da profissionalização e do controle civil objetivo, seria importante, segundo analistas ouvidos pela coluna, que a quarentena estudada pelo Congresso fosse aprovada. Ela deveria também atingir outras carreiras de Estado, como a magistratura e o MInistério Público. A República precisa preservar as instituições dos interesses políticos e pessoais de alguns de seus integrantes, uns movidos pela vaidade, outros por razões financeiras ou até mesmo pela obtenção de privilégios reservados ao exercício do poder.

Marcelo Godoy, o autor desta reportagem, atua na cobertura das relações entre o Poder Civil e o Poder Militar para o O Estado de S. Paulo.  Publicado originalmente em 04/03/2024 09h30.

Militares avaliam que Braga Netto e Heleno serão próximos alvos da Polícia Federal

 Ambos aparecem em depoimentos como os grandes coordenadores do golpe que um grupo de militares queriam consumar

A lista dos militares envolvidos no suposto golpe de Estado tramado por bolsonaristas com chance de passar um tempinho na prisão só cresce. E nas apostas dos militares, os generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto estão com todo jeito de serem os próximos

Oficiais ficaram desconcertados com a operação da Polícia Federal que prendeu nas primeiras horas da manhã desta terça-feira um general reformado – ex-integrante do governo Jair Bolsonaro, três integrantes das Forças Especiais, chamados de “kids pretos”, e um policial federal por supostamente planejarem um golpe de Estado e o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.

Com as prisões de desta terça e mais as informações que o tenente coronel Mauro Cid, prestou em depoimento, aparecem dois nomes como fortes candidatos a penas mais graves ou até a prisão: Heleno e Braga Netto.

Ambos aparecem nos depoimentos como os grandes coordenadores do golpe que um grupo de militares queriam consumar, mas que não conseguiram por que o Alto Comando do Exército, em sua maioria, se posicionou contra. A decisão do ministro Alexandre de Moraes teve como base o inquérito da Polícia Federal, com mais de 200 páginas.

O documento descreve com riqueza de detalhes nomes, codinomes, celulares diálogos, ações, armamentos – tais como metralhadoras e uma espécie de bazuca que eles pretendiam usar – e celulares descartáveis, com os quais eles poriam o plano em ação. Também houve situações estranhas, como a do general reformado Mário Fernandes, que foi secretário-executivo da presidência da República no governo Bolsonaro e também ex-assessor do então ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Segundo as investigações, Fernandes imprimiu os planos no Palácio do Planalto. Já seu chefe, o ministro Luiz Eduardo Ramos, parecia desconhecer as atividades do subordinado e tão logo acabou o governo, saiu de viagem, percorrendo países europeus de moto com a mulher ou visitando estações de esqui, como mostra em fotos na redes sociais. Braga Netto, mal saiu de casa para fazer campanha para vereador e o general Heleno continua discretamente enfurnado em casa.

Por fim, se conclui da investigação que o plano só não deu certo por que o ex-presidente Jair Bolsonaro nunca teve a coragem necessária para ordenar que ação fosse posta em prática. Na prática, ele esperava que a população saísse para a rua, aclamando seu nome e pedindo que continuasse no poder, mesmo que para isso recorresse à uma eleição fraudada. A população ficou em casa.

Monica Gugliano, a autora desta reportagem, é repórter de politica d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 19.11.24, às 21,33 hs.

Traidores da Pátria

Revelação de audacioso plano para matar Lula da Silva, entre outras autoridades, mostra até onde os golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder

Para militares, Braga Netto deve estar na lista das próximas prisões relacionadas à tentativa de golpe de Estado Foto: Marcos Corrêa/PR

É de indignar todos os democratas deste país, sejam quais forem as identidades político-ideológicas que possam distingui-los, a revelação de que autoridades do governo de Jair Bolsonaro e militares das Forças Especiais do Exército, além de um policial federal, teriam conspirado para assassinar, no fim de 2022, o então presidente eleito Lula da Silva, o vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que à época acumulava o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Como se sabe, na manhã de ontem a Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Contragolpe, que culminou na prisão do general reformado Mário Fernandes, ex-secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência (2020) e atualmente assessor do deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ). Além de Fernandes, outros três militares com formação em Forças Especiais, conhecidos no Exército como “kids pretos”, foram presos por suspeita de elaborar o plano homicida com vistas “à abolição violenta do Estado Democrático de Direito”: Rafael Martins de Oliveira, Rodrigo Bezerra de Azevedo e Hélio Ferreira Lima. O quinto envolvido diretamente na trama, também preso, é o policial federal Wladimir Matos Soares.

A tentativa de golpe de Estado urdida pelos inconformados com a democracia, uma súcia de civis e militares, da ativa e da reserva, todos do entorno de Bolsonaro, já era execrável por tudo o que se sabia a respeito da sedição até agora. Por meio da desqualificação do processo eleitoral, entre outras artimanhas, pretendia-se evitar a eleição de Lula da Silva como presidente da República. Malfadado esse desiderato, partiu-se, então, para o impedimento da posse. A rigor, o que a Operação Contragolpe fez foi mostrar ao País, com impressionante riqueza de detalhes, até onde esses golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder, em afronta à vontade popular legitimamente consagrada pelas urnas em 2022.

Chamado no ninho golpista de “Punhal Verde e Amarelo”, como se patriota fosse, o plano dos militares liderados, do ponto de vista operacional, pelo general Mário Fernandes, ex-comandante de Operações Especiais do Exército (2018-2020), consistia, pasme o leitor, em envenenar Lula, “considerando a vulnerabilidade de seu atual estado de saúde e sua frequência a hospitais”. Alckmin, segundo consta, também seria envenenado. Já para matar Alexandre de Moraes, os golpistas pretendiam detonar explosivos durante uma cerimônia pública. Eis a dimensão da infâmia. Ainda segundo a PF, ao menos uma reunião para arquitetar o triplo homicídio teria sido realizada na residência do general Walter Braga Netto, então ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro pela reeleição. Este jornal apurou que a PF não tem dúvidas sobre o “envolvimento direto” de Braga Netto nessa trama mais do que antidemocrática, macabra.

Em um ofício de 221 páginas endereçado ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator do Inquérito 4.874, que investiga no âmbito do STF a ação das chamadas “milícias digitais antidemocráticas”, a PF detalhou como os militares sediciosos monitoraram os passos de Lula, Alckmin e do próprio Moraes para decidir como e quando agir. Resta claro que o País esteve muito próximo de ser tragado por uma convulsão política e social inaudita em sua história recente. E é lícito inferir que as consequências mais nefastas dessa extrema violência política, gravíssima por sua mera cogitação, só não se materializaram porque o Alto Comando do Exército não endossou a estupidez.

Mas que ninguém se deixe enganar. Se felizmente a intentona não foi adiante, o simples fato de frutificar entre os mais bem treinados militares do Exército esse ímpeto golpista em nada tranquiliza a Nação. O País só estará em paz quando, um por um, todos os traidores da Constituição, que, como dissera Ulysses Guimarães, também são traidores da Pátria, forem julgados por seus crimes sob a égide do mesmo Estado Democrático de Direito contra o qual se insurgiram.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 20.11.24

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Ditos e feitos de Janja

Atitudes de quem não tem cargo público podem, por vínculos familiares, atrapalhar ações de um governo


Janja no Festival Aliança Global, do G20, no Rio de Janeiro - Luis Robayo/AFP

Rosângela Lula da Silva, a Janja, soltou um f**k you para Elon Musk, criando uma dor de cabeça para o Itamaraty. O próprio Lula, que tenta driblar vários touros ao mesmo tempo nas negociações para a declaração final do G20, teve de vir a público para pedir que ninguém xingue ninguém.

Estou terminando de ler "O Mundo", de Simon Sebag Montefiori, livro ao qual ainda dedicarei uma coluna. O autor mostra com muitos exemplos que um ponto fraco dos regimes hereditários é a variação geracional. O filho de um grande monarca pode ser e frequentemente é um completo imbecil (casamentos consanguíneos ampliam essa possibilidade).Mesmo quando o contraste não é tão gritante, um bom governante pode ter como herdeiro um sujeito sem gosto ou aptidão para o poder. Sistemas políticos em que o líder é escolhido por um seletorado estão menos sujeitos aos caprichos da loteria cósmica. E quanto mais amplos o seletorado e o rol dos candidatos, menores as chances de interesses individuais, familiares ou setoriais darem as cartas.

Nesse contexto, o presidencialismo surgiu como uma melhoria em relação às monarquias hereditárias em que o soberano exerce o poder de fato. Mas presidentes ainda são em muitos aspectos tratados como reis por prazo fixo. O próprio entorno presidencial (família, amigos, conselheiros) ganha ares de corte.

O parlamentarismo aprofunda o processo de despersonalização do poder. O premiê é muito mais o gerente provisório de uma coalizão vencedora do que um indivíduo investido de poder político e simbólico em caráter pessoal. É só ver que prestamos muito mais atenção ao que diz e faz uma primeira-dama do que aos ditos e ações de consortes de premiês, que muitas vezes mal saem do anonimato.

Janja tem, como cidadã, o direito de dizer o que pensa e pode, como qualquer humano, falar mais do que deveria. Mas é ruim que atitudes de uma pessoa que não exerce função pública possam, por vínculos familiares, contaminar estratégias e ações de um governo.

O poder, a exemplo da burocracia, deveria ser tão impessoal quanto possível.

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. E autor de "Pensando Bem…". Este artigo foi publicado originariamente na Folha de S. Paulo, em 18.11.24

'Ainda estou aqui': por que caso da ditadura relatado no filme segue sem resolução no STF

Mais de meio século após o desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva na ditadura militar, um dos episódios mais emblemáticos de violação de direitos humanos da história do Brasil, o país revisita o caso em duas frentes em buscas de respostas, enquanto, em uma terceira, ele segue sem desfecho.

À esq., foto de família com Eunice, Rubens e Babiu (filha caçula) no Rio em 1970 (à dir., cena do filme / Divulgação, Arquivo Pessoal de Vera Paiva)

No cinema, Ainda Estou Aqui, novo filme de Walter Salles que estreou nesta quinta-feira (7/11) em salas pelo Brasil, retrata os impactos da perda de Rubens Paiva sobre sua esposa, Eunice, e seus cinco filhos no Rio de Janeiro dos anos 1970, durante os anos de chumbo.

O longa, inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado, foi premiado como melhor roteiro no último Festival de Veneza e escolhido por unanimidade para representar o Brasil no Oscar no próximo ano.

Ao mesmo tempo, o governo federal reabriu uma investigação do caso sobre o que de fato aconteceu com Rubens Paiva.

O deputado foi cassado e preso em 1971 e dado como desaparecido. Sua morte, confirmada só 40 anos mais tarde, segue até hoje sem que os culpados tenham sido responsabilizados.

Isso porque a denúncia do caso, feita há uma década, está no Supremo Tribunal Federal (STF). A demora é tal que três dos cinco militares acusados pelo crime já morreram.

Depois de seis anos sem qualquer movimentação, em 24 de outubro deste ano o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo caso, determinou que a Procuradoria Geral da República se manifeste sobre o mérito do tema, informou à BBC News Brasil a assessoria de imprensa da corte.

Esse impasse está intimamente ligado ao debate sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia, que concedeu perdão tanto a perseguidos políticos quanto a agentes do Estado que cometeram crimes durante o governo militar.

No centro da questão, há uma discussão se os crimes daquele período podem ou não ser ainda punidos e, em última instância, a disposição da sociedade brasileira de acertar as contas com um dos períodos mais violentos de sua história recente.

Este é o cerne de Ainda Estou Aqui, diz Marcelo Rubens Paiva à BBC News Brasil, em que sua mãe, Eunice, interpretada por Fernanda Torres, é apresentada como uma mulher forçada a se reinventar diante da violência do Estado e a criar um novo futuro para sua família.

Seu livro e o longa derivado dele propõem mais do que uma reconstituição histórica. São uma reflexão sobre a impunidade e a resistência à revisão de crimes da ditadura militar, tema que permanece atual e controverso no país.

“O nosso papel como cineasta, escritor, roteirista, pessoa das artes é falar aquilo que os vencidos não conseguem falar”, diz o filho do deputado.

“Mostrar, denunciar, apontar, é muito complicado em um país que sofreu um processo de ditadura tão longo e que na redemocratização fez um pacto sinistro entre a sociedade civil e os torturadores.”

Selton Mello, que interpreta Rubens Paiva e Fernanda Torres, que interpreta Eunice, ao lado do diretor Walter Salles (Getty Images)

Por que caso Rubens Paiva está sem resolução no STF

Rubens Beyrodt Paiva nasceu em 1929, em Santos, São Paulo. Casado com Eunice Facciolla Paiva, era pai de cinco filhos: Vera, Maria Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria Beatriz.

Formado em engenharia, Paiva foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962.

Durante seu tempo na Câmara dos Deputados, destacou-se como relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que investigava o financiamento de grupos que conspiravam contra o governo de João Goulart.

Com a instalação do regime militar, em 10 de abril de 1964, seu mandato foi cassado, levando-o ao exílio na Iugoslávia.

Após retornar ao Brasil em novembro do mesmo ano, Paiva estabeleceu-se com a família em São Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro, em uma residência na Avenida Delfim Moreira, no bairro do Leblon.

Ele atuava como diretor-gerente de uma empresa de engenharia e fundações, cultivando relações com jornalistas e políticos de oposição.

No entanto, em 1971, Rubens Paiva foi sequestrado por agentes do regime militar e, conforme denúncia do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, morreu no antigo DOI-Codi, na Tijuca, na zona norte da capital.

Foi somente durante a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que foi confirmada a morte de Rubens Paiva.

A comissão, instituída em 2012, no governo de Dilma Rousseff, tinha como objetivo investigar e documentar as violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.

Durante a comissão, foi confirmado e esclarecido que Rubens Paiva foi torturado e morto em instalações militares.

Eunice em 1971, após sair da prisão, com os cinco filhos (Arquivo Pessoal de Vera Paiva)

Em 2014, a CNV apresentou informações sobre o caso do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva.

Em um relatório parcial divulgado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, a CNV apontou o então tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho como um dos torturadores responsáveis pela morte de Paiva.

Essa revelação veio à tona com base no depoimento de uma testemunha, identificada apenas como "agente Y", que afirmou ter visto um dos militares pressionar o ex-deputado contra uma parede durante uma sessão de tortura no Destacamento de Operações de Informações (DOI).

Segundo o relatório, Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas infligidas pelos militares. Apesar das novas provas, como recibos de pagamento de diárias que contradizem a versão de que José Antônio Nogueira Belham, comandante do Doi-Codi à época, estaria de férias durante a prisão e morte de Paiva, o destino final do corpo do ex-deputado ainda não foi esclarecido.

Cláudio Fonteles, ex-procurador geral da República e um dos coordenadores da Comissão Nacional da Verdade, explica que a recusa das Forças Armadas em abrir seus arquivos, mantendo a documentação sob sigilo, dificultou a investigação dos crimes.

Neste sentido, os depoimentos colhidos pela comissão tiveram um papel central.

“Nesses crimes antigos, as provas testemunhais são muito importantes”, pontua Marlon Alberto Weichert, procurador regional da República e coordenador do Grupo de Trabalho Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

“Especialmente nos casos de graves violações a direitos humanos, onde as evidências da tortura se perdem um pouco com o tempo e a documentação até hoje é mantida sob sigilo.”

Em 2014, após investigações iniciadas em 2011, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar pelo assassinato e ocultação do cadáver do deputado Rubens Paiva. As acusações incluíam homicídio doloso, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual.

Filme foi escolhido para representar o Brasil no Oscar (Divulgação)

Os denunciados foram José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos.

A Justiça Federal do Rio de Janeiro aceitou a denúncia, que foi mantida pelo Tribunal Regional da 2ª Região.

Esse desdobramento foi considerado um marco pelos membros do MPF, pois representou a primeira ação penal contra militares por homicídios ocorridos durante a ditadura. Os acusados solicitaram um habeas corpus à 2ª turma do TRF2, mas o pedido foi negado.

A defesa dos réus, então, recorreu ao STF alegando que a anistia já havia sido discutida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que é um instrumento jurídico utilizado no Brasil para questionar atos do Poder Público que violem preceitos fundamentais da Constituição, como direitos humanos básicos.

Em 29 de setembro de 2014, apenas 19 dias após o julgamento do habeas corpus, o ministro-relator Teori Zavascki concedeu uma liminar para suspender o andamento do processo.

Zavascki faleceu em 2017 em um acidente de avião, e o processo foi paralisado. Em 2018, o caso foi encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, que sucedeu Zavascki e herdou os processos pendentes.

O deputado federal foi cassado logo após o golpe militar e preso após voltar de um exílio (Crédito Memorial da Resistência)

Lei da Anistia em xeque

Os rumos do caso Rubens Paiva está ligado a uma discussão sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia.

Esta legislação, decretada em 1979, durante a ditadura, ao conceder perdão geral aos crimes cometidos durante o regime, permitiu por um lado o retorno de exilados e a libertação de presos políticos.

Por outro, ressaltam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, impediu que agentes da ditadura que torturaram e mataram opositores do governo militar fossem processados.

“A transição controlada, dominada pelos militares, com as elites brasileiras, levou a esse modelo de impunidade e de esquecimento”, diz Weichert.

“Esses assuntos foram assuntos interditados, assuntos proibidos.”

Em 2010, o STF decidiu que a Lei da Anistia é constitucional, o que é questionado ainda hoje.

Para Claudio Fonteles, a Lei da Anistia é inconstitucional, porque contraria princípios fundamentais da Constituição Federal.

Ele argumenta que uma lei ordinária, como a Lei de Anistia, não pode, sob a ótica constitucional, anistiar crimes cometidos por aqueles que violaram o Estado Democrático de Direito, já que a Constituição é a base permanente da democracia e deve ser preservada acima de qualquer legislação infraconstitucional

“Manter essa lei é preservar a figura do torturador. Não colabora para a defesa da democracia e coloca uma pedra sobre esse assunto”, afirma Fonteles à BBC News Brasil.

Weichert argumenta que, apesar da decisão do STF ter declarado a Lei de Anistia constitucional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a considerou incompatível com a convenção americana sobre direitos humanos.

Eunice combateu a política indigenista do regime militar até o fim da ditadura (Arquivo Pessoal de Vera Paiva)

Exemplos de processos envolvendo o Brasil na CIDH incluem os casos da guerrilha do Araguaia (Gomes Lund), do jornalista Vladimir Herzog e Collen Leite, todos levados à Corte após a comissão ter realizado esse procedimento.

E decisões importantes, a Corte Interamericana declarou que tanto crimes contra a humanidade quanto graves violações de direitos humanos são imprescritíveis e não podem ser anistiados.

O fato de os próprios militares terem decretado a lei que perdoa os crimes cometidos por agentes do regime seria uma forma de “autoanistia”, defende Sergio Suiama, procurador da República do Ministério Público do Rio de Janeiro.

“Isso é inadmissível em casos de crimes contra a humanidade”, pontua Suiama.

O procurador destaca que isso tem travado o avanço de ações penais como a de Rubens Paiva.

"O caso de Rubens Paiva está suspenso devido a essa indefinição”, diz Suiama.

Segundo Suiama, o MPF já propôs mais de 40 ações penais, mas a maioria delas foi suspensa ou derrubada justamente porque o STF não julga essas arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

“As provas reunidas durante a investigação do MPF, incluindo confissões de farsa em tentativas de fuga, permanecem sem análise de mérito, esperando por uma decisão que determine se esses crimes são ou não imprescritíveis".

Eunice e os cinco filhos em Brasília depois da posse de Rubens em 1963 (Arquivo Pessoal de Vera Paiva)

O advogado Rodrigo Roca, que representa os acusados de torturar e matar Rubens Paiva, questiona a argumentação de que os crimes da ditadura podem ser enquadrados como crimes contra a humanidade.

Segundo Roca, para ser um crime contra a humanidade, a conduta precisa ter sido voltada contra uma população civil, o que, segundo ele, não seria o caso.

“Uma conduta para ser considerada crime contra a humanidade, ela precisa se voltar contra a população civil como um todo. E não contra determinados grupos insurgentes. Isso legalmente, ou seja, tecnicamente, penso até que dogmaticamente, não poderia jamais ser tipificado como crime contra a humanidade”, diz.

O advogado avalia ainda que o processo movido pelo MPF que busca um desfecho para a morte de Rubens Paiva, iniciado durante o governo Dilma e na esteira das conclusões da Comissão da Verdade, teve um "viés político".

Segundo ele, sempre que um governo de esquerda chega ao poder, há um "recrudescimento desse movimento", que ele qualifica como "delírios”.

“É preciso se perguntar antes a quem isso vai interessar, qual é a relação custo-benefício de uma nova mobilização dessas, do governo, de alguns setores do judiciário, em torno de pessoas com questões jurídicas plenamente resolvidas, quer dizer, é uma perda para todos, é uma guerra sem vencedores”, acrescenta.

“Há um revolvimento de uma matéria jurídica já bem desgastada e resolvida do ponto de vista social. Caberia ao plano jurídico apenas aderir a essa consciência popular e por um fim nessa história”, acrescenta.

Novo filme é inspirado no livro do filho de Paiva, Marcelo Rubens Paiva

Governo reabriu investigação do caso

Em paralelo, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reabriu o caso em abril deste ano.

O objetivo é investigar e produzir mais provas que comprovem o que aconteceu com Rubens Paiva.

Em agosto de 1971, o caso foi arquivado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão antecessor do atual Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

A votação evidenciou divisões: enquanto membros ligados à ARENA (Aliança Renovadora Nacional) apoiaram o arquivamento, representantes do MDB e da OAB se posicionaram contra.

O então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, exerceu o voto de desempate, decidindo pelo arquivamento. A justificativa oficial baseou-se em informações falsas do Exército, que alegava que Rubens Paiva havia desaparecido após uma intervenção de desconhecidos durante sua detenção.

Essa versão foi desmentida posteriormente pela Comissão Nacional da Verdade. Ademais, um dos conselheiros que votou pelo arquivamento afirmou ter sido coagido a tomar essa decisão.

Segundo André Carneiro, vice-presidente do CNDH, a medida tem caráter administrativo, com possibilidades de contribuir com essa ação penal do MPF.

Carneiro afirma ainda que será produzido um relatório que conterá recomendações ao Poder Público específicas para o caso Rubens Paiva e também gerais sobre o direito à memória, à verdade e à Justiça. O documento deve ser entregue até o fim deste ano.

“Como existe um processo no STF, esse relatório será entregue ao MPF e compartilhado com o Supremo”, ressalta Carneiro.

“Esse caso é bastante simbólico.Tratava-se de um ex-deputado federal, alguém que não tinha vínculo com a luta armada. A forma como foi tratado revela a estrutura de funcionamento de espionagem e uma máquina de tortura no país.”

Marcelo Rubens Paiva reforça a importância de manter viva a memória do pai, seja por filmes, livros ou reportagens.

Para o escritor, a forma de impedir que a ditadura volte é colocar em evidência o aconteceu durante o regime — e isso inclui o assassinato de Rubens Paiva.

“Tem que mostrar o que é a ditadura, o que foi o AI-5, o que foi a tortura, o que foi o Estado autoritário”, diz Marcelo Rubens Paiva.

“É algo que não se deve defender jamais.”

Priscila Carvalho, do Rio da Janeiro para a BBC News Brasil, em 13.11.24 (Texto atualizado).

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Proclamação da República: como foi a última festa de arromba da monarquia, regada a champanhe, foie gras e música até o sol raiar

O baile da Ilha Fiscal foi o ápice da chamadas "festas chilenas". No ano de 1889, durante dois meses, as autoridades brasileiras recepcionaram oficiais do navio chileno Almirante Cochrane, que visitavam o país em viagem diplomática.

O baile da Ilha Fiscal foi o último e o maior do período imperial (Crédito Ribeiro, A. - Biblioteca Nacional)

O que estava acontecendo na política naquele momento?

Foram dias e dias de jantares, passeios turísticos às montanhas, corridas de cavalo e regatas — "um nunca acabar de festas", como descreveu um cronista — que mobilizaram a elite carioca.

O baile seria o mais opulento desses eventos. De acordo com um dos artigos do livro Festas Chilenas (EdiPUCRS, 2014), só o banquete custou 250 contos de Réis, quase 10% do orçamento da Província do Rio.

A imprensa fez uma farta cobertura, em grande parte de forma crítica, do evento. "O baile aconteceu muito nos jornais", diz Claudia Beatriz Heynemann, pesquisadora do Arquivo Nacional e organizadora do livro Festas Chilenas com Jurandir Malerba e Maria do Carmo Rainho.

"O peso do baile está nesse esgarçamento da opinião pública. Nesse sentido teve um efeito negativo", diz Malerba.

Os veículos de comunicação descreviam diariamente os eventos e os preparativos para as festas, e os republicanos questionavam e ironizavam os luxos e gastos.

Naquele momento, os movimentos que se tornaram favoráveis à República já corriam fortes, diz Angela Alonso, professora associada do Departamento de Sociologia da USP e pesquisadora do Cebrap, autora de livros e ensaios sobre a República.

Uma série de crises se acumulavam. "A questão não era se a monarquia ia cair, era quando", diz ela, e começa a listar alguns fatores: desde 1888, o Partido Republicano já tinha representação forte em vários Estados; havia um grupo considerável de pessoas da elite urbana e latifundiários que queriam mais representação política; ao mesmo tempo, os militares, que haviam vencido a Guerra do Paraguai, queriam mais espaço, e ficavam cada vez mais insubordinados. Finalmente, diz a pesquisadora, o programa do chefe do governo, o visconde de Ouro Preto não enfrentava esses problemas com eficácia.

Para piorar ainda mais a situação da monarquia, o último gabinete ministerial havia sofrido uma série de acusações de corrupção, conta Alonso. Por causa disso, opina a professora, a opulência das festas organizadas para os chilenos caiu especialmente mal na imagem pública do governo.

Enquanto a elite passeava com os chilenos, já acontecia a articulação entre militares e civis republicanos que levaria à deposição de Dom Pedro, diz o historiador Jurandir Malerba.

No livro Castelo de Papel (Rocco, 2013), Mary Del Priore diz que num jantar para os chilenos no palácio do príncipe Pedro Augusto, neto de Dom Pedro 2º, a monarquia estava "cercada por aqueles que apostavam na sua sucessão". "No cardápio, faisão trufado, foie-gras e costeletas de pombo à Pompadour."



Charge publicada na imprensa sobre o baile da Ilha Fiscal (Crédito, Reprodução, Arquivo Nacional)

Por que fizeram a festa?

Se a situação política já estava hostil, por que dedicaram tanta energia à realização da festa? Para Alonso, a celebração era, na verdade, parte de uma tentativa de legitimar a princesa Isabel, filha de Dom Pedro 2º, como futura imperatriz, perspectiva que não era nem de longe um consenso, de acordo com a professora.

Dom Pedro 2º tinha mais de 60 anos, estava doente e já havia inclusive recebido extrema-unção - ritual católico em que se aplica óleo consagrado na pessoa enferma, geralmente terminal.


Artigo de jornal sobre o baile (Crédito, Reprodução, Arquivo Nacional)

"O baile não acontece sozinho", diz Alonso. Ela conta que, pouco antes das festas chilenas, o marido da princesa Isabel, o conde d'Eu, viajara pelo país em campanha pela monarquia.

Claudia Heynneman vê nos eventos também uma tentativa mais genérica de transmitir uma imagem de força da monarquia, que estava abalada com o movimento republicano.

Para Del Priore, a monarquia estava alienada naquele momento. "Os monarquistas olhavam para o trono como se ele fosse sustentado por forças invencíveis."

Ela escreve que as festas inclusive mascararam as movimentações republicanas. "A multiplicidade de festas maquilou a insatisfação em curso, empurrando os chilenos para os salões onde se misturavam militares, civis, monarquistas e republicanos. As valsas e hinos nacionais abafavam as tensões. Mas elas estavam presentes. A agenda camuflava o jogo de interesses dos adversários da monarquia", escreve a historiadora.

Desenho da sala de baile no Gazeta de Notícias (Crédito, Reprodução, Arquivo Nacional). 

Como foi o baile da Ilha Fiscal

A última festa da monarquia foi também a maior que aconteceu nos 67 anos do Brasil Império.

"Depois de alguns anos festeiros, Dom Pedro 2º passou 30 anos sem dar festas, quando de repente concedeu aquele baile nababesco. Isso teve um valor simbólico. Alguns interpretam como 'o canto do cisne', o último suspiro do seu reinado", diz Malerba.

O baile aconteceu na Ilha Fiscal, pequena ilha na Baía de Guanabara pertencente à Marinha. A construção na ilha também é chamada por alguns de "castelinho" devido ao seu estilo arquitetônico.

Os preparativos ocuparam as páginas dos jornais por semanas. Foram convidadas cerca de 3 mil pessoas, mas somaram-se a elas mais uns mil penetras, escreve o jornalista Laurentino Gomes no livro 1889 (Globo Livros, 2013).


Retrato de Dom Pedro 2º quando jovem (Crédito, Museu Nacional de Belas Artes)

Na lista estava toda a elite econômica e política, mas, segundo Alonso, alguns militares importantes não foram convidados.

A festa começava no cais, onde uma banda entretinha os convidados que esperavam para embarcar no barco que os levaria à ilha. Ali também se concentraram os excluídos da festa, curiosos por ver os convidados e assistir às queimas de fogos.

As milhares de lâmpadas e velas que iluminavam a ilha formavam um espetáculo descrito pelo narrador do romance Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, como uma "cesta de luzes no meio da escuridão tranquila do mar".

No início da noite, foi servido um banquete com uma enorme lista de pratos de ingredientes sofisticados e diversos tipos de vinho.

Aqui alguns números registrados no livro Festas Chilenas:

"Entre copeiros, trinchadores, cozinheiros e ajudantes foram mobilizados 300 funcionários. Registram-se 12 mil garrafas de vinho, champanhe e outras bebidas; 12 mil sorvetes; a mesma quantidade de taças de ponche, 500 pratos de doces variados. Serviram-se ainda 18 pavões, 80 perus, 300 galinhas, 350 frangos, 30 fiambres, 10 mil sandwiches, 18 mil frituras, mil peças de caça, 50 peixes, 100 línguas, 50 mayoneses e 25 cabeças de porco recheadas."

Algumas horas depois do jantar, começou a dança. Cada salão ofereceria um tipo de música diferente. Seis bandas tocaram.

A festa acabou com o sol raiando. Para o deleite dos jornais dos dias seguintes, dizem os livros, durante a limpeza foram achados todo tipo de objetos, como peças íntimas de mulheres.

A família imperial chegou por volta das 21h. Dom Pedro 2º teria dançado uma só vez. Foram embora às 3h.

Como narraria o escritor Rodrigo Otávio, que na época tinha 23 anos, Dom Pedro 2º, "embevecido na maravilha daquela noite e no deslumbramento daquela festa (...), não imaginava que naquela mesma hora se estava concertando num pequeno sobrado (...) o trambolhão do Império e que os dias de seu reinado estavam contados".

Charge na Gazeta da Tarde publicada dois dias depois do baile da Ilha Fiscal (Crédito, Reprodução, Arquivo Nacional)

Líder da Proclamação da República assistiu ao baile de fora

Alguns livros, como o de Laurentino Gomes, contam uma história curiosa sobre aquela noite, narrada com base nos diários de uma das filhas de Benjamin Constant, um dos militares que arquitetaram a deposição de Dom Pedro.

Segundo o relato de Bernardina, então uma adolescente, Benjamin chegou em casa após uma reunião com militares e não encontrou sua família lá. Eles estavam no cais, assistindo ao embarque dos convidados do baile. Constant, então, contratou um pequeno barquinho e assistiu do mar, ao lado da família, aos acontecimentos daquela noite.

Qual foi o impacto do baile?

"Articular o baile em si, algo que faz parte da história factual, com a Proclamação da República, algo muito complexo, é complicado, mas ele teve um peso simbólico e está na crônica da época, registrado por Machado de Assis, Coelho Netto", diz Malerba.

"Mais importante do que o baile em si foi o dia seguinte", diz Claudia Heynneman. A pesquisadora conta que os jornais dedicaram várias edições a criticar o excesso de luxo.

Os gastos reforçaram a imagem da monarquia como uma instituição distante da sociedade.

"Até o fato de ele ter sido feito numa ilha, ou seja, longe da população, reforçava essa ideia", diz Alonso.

Mas, para ela, "o fato de o baile ter acontecido logo antes do fim da monarquia foi uma casualidade" — os fatores que levaram à Proclamação da República já estavam postos.

"Ainda assim, ele é muito significativo porque foi uma representação da alienação da monarquia. Enquanto eles festejavam o país estava fervilhando", diz Alonso.

"Depois do baile da ilha Fiscal", escreve Del Priore, "um relógio invisível bateu as horas. Os últimos acordes da festa marcaram alegremente o enterro de um mundo do qual muitos não queriam mais ouvir falar. Os ponteiros da história empurraram o fim do império brasileiro. E anunciaram o início do que, se acreditou, fosse o 'progresso'".

Luiza Franco, da BBC News Brasil em São Paulo, em 14.11.24. /  *Esta reportagem foi publicada originalmente em 14 de novembro de 2019

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Declaração Universal de Direitos do Bilionário

Queremos ser admirados e respeitados, não tributados

Elon Musk faz saudação em reunião organizada pela juventude do partido de ultradireita Irmãos da Itália, em Roma - Andreas Solaro - 16.dez.2023/AFP

Preâmbulo

Considerando a esperança de que a cúpula do G20 no Rio de Janeiro inclua em seu texto a reivindicação de taxação dos super-ricos;

Considerando a cisão elementar da humanidade entre bilionários e não-bilionários, entre 1% e outros 99% da população global, ou entre oito homens e a metade de baixo da população global, polos detentores da mesma riqueza nesse mundo polarizado;

Considerando que bilionários precisam aliviar sua condição crônica da justicite, alergia à justiça que lhes acomete cefaleias tratadas à base de espumantes;

Considerando que bilionários buscam melhores condições de seu bem-viver e necessitam de instrumentos para perseguir valores pós-humanitários;

Considerando que bilionários, senhores brancos do próprio destino, não precisam de direitos nem de babás, mas preferem se expressar na linguagem que todos entendem;

Essa Assembleia Geral proclama a Declaração Universal de Direitos do Bilionário e expressa normativamente o que empiricamente muitos teimam ignorar.

Título I – Direitos civis e políticos

1º Todo bilionário tem direito de não se curvar a quaisquer limites comunitários.

2º Todo bilionário tem direito de não se subordinar ao Estado, à lei, à soberania popular ou a qualquer outra soberania.

3º Todo bilionário tem direito de financiar a ruptura democrática quando a democracia violar seus direitos naturais e de planejar a vida pós-civil e pós-política.

4º Todo bilionário tem direito de crer no seu dom de "problem-solver" e alocar livremente fração de sua riqueza, com isenções da filantropia, nos temas que entenda de interesse público ou privado (dicotomia superada pelo bilionário).

5º Todo bilionário tem direito ao entretenimento, incluindo a liberdade de navegar por ares e oceanos, apropriar-se de seu espaço aéreo, gozar de terminal aéreo próprio e investir em exploração interplanetária.

6º Todo bilionário tem direito de promover sua imagem, não sofrer preconceito, lavar sua biografia e exibir magnanimidade.

Título II - Direitos econômicos

7º Todo bilionário tem direito ao enriquecimento infinito e de pulverizar sua riqueza por meio de arranjos jurídico-societários livres da luz do sol.

8º Todo bilionário tem direito de multiplicar riqueza pela financeirização desregulada.

9º Todo bilionário tem direito de transformar vida humana em commodity da sua corporation e de explorar os limites físicos e psicológicos do trabalho humano.

10º Todo bilionário tem direito de corroer financiamento de programas de combate à pobreza e outras "ditas" vulnerabilidades.

11º Todo bilionário tem direito de não ser tributado e de ser respeitado por seu mérito.

Título III – Direitos de autodefesa vital

12º Todo bilionário tem direito de construir sua ilha, exercer sua soberania e ali fundar seu próprio país para a livre determinação de si mesmo.

13º Todo bilionário tem direito de sobreviver ao apocalipse nuclear e ao colapso climático escondido em bunker construído na profundidade do manto terrestre ou em planeta alternativo ao que ajudou a destruir. Tem liberdade de escapar.

14º Todo bilionário tem direito de investir na pesquisa científica que viabilize seu "immortality project", pois a duração da vida humana não faz justiça à sua superior vocação para o bem-viver e bem-possuir.

Conrado Hübner Mendes, o autor deste artigo, é Professor de direito constitucional da USP; doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC. Publicado originalmente na Folha de São Paulo (edição impressa), em 14.11.24

É hora de acabar com a farra das emendas e chamar a polícia

Fiscalização da CGU puxou só um fiapo miúdo da distribuição descontrolada do dinheiro

A Controladoria-Geral da União puxou um fiapo miúdo da farra das emendas parlamentares. Em três auditorias, o órgão colheu amostras de desperdício de dinheiro, direcionamento de verba pública, descontrole de gastos e suspeitas de desvios. Uma parte dos recursos foi para a conta de ONGs sem estrutura ou obras que não começam nunca.

A fiscalização nem começa a arranhar a superfície do problema. Por ordem do Supremo, a CGU analisou uma amostra de repasses de emendas para 30 municípios (R$ 787 milhões) e 20 ONGs (R$ 515 milhões) em anos recentes. É um rio de dinheiro, mas o valor representa menos de 0,8% da fortuna de R$ 167 bilhões empenhados de 2020 a 2024.

Os relatórios servem para oferecer alguns exemplos de como uma parte do dinheiro vai parar onde não devia ou escorre pelo ralo. Há casos de ONGs que usam a verba para outros fins, compram equipamentos que não são usados ou subcontratam empresas de seus próprios controladores. Algumas prefeituras recebem os recursos, mas não têm condições de começar as obras.

Há vários motivos para acreditar que o descalabro é muito maior do que isso. A CGU fez um sobrevoo e analisou fluxos de gastos sem um mergulho profundo nas suspeitas de irregularidades ou quebras de sigilo que poderiam revelar casos de corrupção, por exemplo. O descontrole é tão grande que só será resolvido quando alguém reduzir o tamanho da festa e chamar a polícia.

Em suas investigações, a PF já afirmou que o deputado Josimar Maranhãozinho (PL-MA) participou de uma fraude de obras de pavimentação bancadas por emendas, que Juscelino Filho (União-MA) usou a verba para construir estradas que chegam à sua fazenda e que um assessor de Arthur Lira (PP-AL) recebeu dinheiro de um esquema envolvendo a compra de kits de robótica.

A indicação de verba para bases políticas poderia ser um mecanismo saudável, mas o modelo brasileiro é uma anomalia que os parlamentares conseguiram agravar. Além de aumentar o volume, deputados e senadores fizeram questão de autorizar o fluxo desenfreado de dinheiro, dificultar a fiscalização e deixar as portas abertas para a corrupção.

Bruno Boghossian, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicadooriginalmente na Folha de S. Paulo (edição impressa), em 13.11.24

'Ainda estou aqui': por que caso da ditadura relatado no filme segue sem resolução no STF

Mais de meio século após o desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva na ditadura militar, um dos episódios mais emblemáticos de violação de direitos humanos da história do Brasil, o país revisita o caso em duas frentes em buscas de respostas, enquanto, em uma terceira, ele segue sem desfecho.

À esq., foto de família com Eunice, Rubens e Babiu (filha caçula) no Rio em 1970 (à dir., cena do filme) - Arquivo Pessoal

No cinema, Ainda Estou Aqui, novo filme de Walter Salles que estreou nesta quinta-feira (7/11) em salas pelo Brasil, retrata os impactos da perda de Rubens Paiva sobre sua esposa, Eunice, e seus cinco filhos no Rio de Janeiro dos anos 1970, durante os anos de chumbo.

O longa, inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado, foi premiado como melhor roteiro no último Festival de Veneza e escolhido por unanimidade para representar o Brasil no Oscar no próximo ano.

Ao mesmo tempo, o governo federal reabriu uma investigação do caso sobre o que de fato aconteceu com Rubens Paiva.

O deputado foi cassado e preso em 1971 e dado como desaparecido. Sua morte, confirmada só 40 anos mais tarde, segue até hoje sem que os culpados tenham sido responsabilizados.

Isso porque a denúncia do caso, feita há uma década, está no Supremo Tribunal Federal (STF). A demora é tal que três dos cinco militares acusados pelo crime já morreram.

Depois de seis anos sem qualquer movimentação, em 24 de outubro deste ano o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo caso, determinou que a Procuradoria Geral da República se manifeste sobre o mérito do tema, informou à BBC News Brasil a assessoria de imprensa da corte.

Esse impasse está intimamente ligado ao debate sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia, que concedeu perdão tanto a perseguidos políticos quanto a agentes do Estado que cometeram crimes durante o governo militar.

No centro da questão, há uma discussão se os crimes daquele período podem ou não ser ainda punidos e, em última instância, a disposição da sociedade brasileira de acertar as contas com um dos períodos mais violentos de sua história recente.

Este é o cerne de Ainda Estou Aqui, diz Marcelo Rubens Paiva à BBC News Brasil, em que sua mãe, Eunice, interpretada por Fernanda Torres, é apresentada como uma mulher forçada a se reinventar diante da violência do Estado e a criar um novo futuro para sua família.

Seu livro e o longa derivado dele propõem mais do que uma reconstituição histórica. São uma reflexão sobre a impunidade e a resistência à revisão de crimes da ditadura militar, tema que permanece atual e controverso no país.

“O nosso papel como cineasta, escritor, roteirista, pessoa das artes é falar aquilo que os vencidos não conseguem falar”, diz o filho do deputado.

“Mostrar, denunciar, apontar, é muito complicado em um país que sofreu um processo de ditadura tão longo e que na redemocratização fez um pacto sinistro entre a sociedade civil e os torturadores.            

Selton Mello, que interpreta Rubens Paiva e Fernanda Torres, que interpreta Eunice, ao lado do diretor Walter Salles (Getty Images)

Por que caso Rubens Paiva está sem resolução no STF

Rubens Beyrodt Paiva nasceu em 1929, em Santos, São Paulo. Casado com Eunice Facciolla Paiva, era pai de cinco filhos: Vera, Maria Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria Beatriz.

Formado em engenharia, Paiva foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962.

Durante seu tempo na Câmara dos Deputados, destacou-se como relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que investigava o financiamento de grupos que conspiravam contra o governo de João Goulart.

Com a instalação do regime militar, em 10 de abril de 1964, seu mandato foi cassado, levando-o ao exílio na Iugoslávia.

Após retornar ao Brasil em novembro do mesmo ano, Paiva estabeleceu-se com a família em São Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro, em uma residência na Avenida Delfim Moreira, no bairro do Leblon.

Ele atuava como diretor-gerente de uma empresa de engenharia e fundações, cultivando relações com jornalistas e políticos de oposição.

No entanto, em 1971, Rubens Paiva foi sequestrado por agentes do regime militar e, conforme denúncia do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, morreu no antigo DOI-Codi, na Tijuca, na zona norte da capital.

Foi somente durante a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que foi confirmada a morte de Rubens Paiva.

A comissão, instituída em 2012, no governo de Dilma Rousseff, tinha como objetivo investigar e documentar as violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.

Durante a comissão, foi confirmado e esclarecido que Rubens Paiva foi torturado e morto em instalações militares.

Foto de Eunice em 1971, após sair da prisão, com os cinco filhos  (Arquivo pessoal de Vera Paiva)

Em 2014, a CNV apresentou informações sobre o caso do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva.

m um relatório parcial divulgado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, a CNV apontou o então tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho como um dos torturadores responsáveis pela morte de Paiva.

Essa revelação veio à tona com base no depoimento de uma testemunha, identificada apenas como "agente Y", que afirmou ter visto um dos militares pressionar o ex-deputado contra uma parede durante uma sessão de tortura no Destacamento de Operações de Informações (DOI).

Segundo o relatório, Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas infligidas pelos militares. Apesar das novas provas, como recibos de pagamento de diárias que contradizem a versão de que José Antônio Nogueira Belham, comandante do Doi-Codi à época, estaria de férias durante a prisão e morte de Paiva, o destino final do corpo do ex-deputado ainda não foi esclarecido.

Cláudio Fonteles, ex-procurador geral da República e um dos coordenadores da Comissão Nacional da Verdade, explica que a recusa das Forças Armadas em abrir seus arquivos, mantendo a documentação sob sigilo, dificultou a investigação dos crimes.

Neste sentido, os depoimentos colhidos pela comissão tiveram um papel central.

“Nesses crimes antigos, as provas testemunhais são muito importantes”, pontua Marlon Alberto Weichert, procurador regional da República e coordenador do Grupo de Trabalho Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

“Especialmente nos casos de graves violações a direitos humanos, onde as evidências da tortura se perdem um pouco com o tempo e a documentação até hoje é mantida sob sigilo.”

Em 2014, após investigações iniciadas em 2011, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar pelo assassinato e ocultação do cadáver do deputado Rubens Paiva. As acusações incluíam homicídio doloso, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual.

Filme foi escolhido para representar o Brasil no Oscar (Divulgação)

Os denunciados foram José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos.

A Justiça Federal do Rio de Janeiro aceitou a denúncia, que foi mantida pelo Tribunal Regional da 2ª Região.

Esse desdobramento foi considerado um marco pelos membros do MPF, pois representou a primeira ação penal contra militares por homicídios ocorridos durante a ditadura. Os acusados solicitaram um habeas corpus à 2ª turma do TRF2, mas o pedido foi negado.

A defesa dos réus, então, recorreu ao STF alegando que a anistia já havia sido discutida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que é um instrumento jurídico utilizado no Brasil para questionar atos do Poder Público que violem preceitos fundamentais da Constituição, como direitos humanos básicos.

Em 29 de setembro de 2014, apenas 19 dias após o julgamento do habeas corpus, o ministro-relator Teori Zavascki concedeu uma liminar para suspender o andamento do processo.

Zavascki faleceu em 2017 em um acidente de avião, e o processo foi paralisado. Em 2018, o caso foi encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, que sucedeu Zavascki e herdou os processos pendentes.

 Deputado federal foi cassado logo após o golpe militar e preso após voltar de um exílio (Memorial da Resistencia)

Lei da Anistia em xeque

Os rumos do caso Rubens Paiva está ligado a uma discussão sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia.

Esta legislação, decretada em 1979, durante a ditadura, ao conceder perdão geral aos crimes cometidos durante o regime, permitiu por um lado o retorno de exilados e a libertação de presos políticos.

Por outro, ressaltam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, impediu que agentes da ditadura que torturaram e mataram opositores do governo militar fossem processados.

“A transição controlada, dominada pelos militares, com as elites brasileiras, levou a esse modelo de impunidade e de esquecimento”, diz Weichert.

“Esses assuntos foram assuntos interditados, assuntos proibidos.”

Em 2010, o STF decidiu que a Lei da Anistia é constitucional, o que é questionado ainda hoje.

Para Claudio Fonteles, a Lei da Anistia é inconstitucional, porque contraria princípios fundamentais da Constituição Federal.

Ele argumenta que uma lei ordinária, como a Lei de Anistia, não pode, sob a ótica constitucional, anistiar crimes cometidos por aqueles que violaram o Estado Democrático de Direito, já que a Constituição é a base permanente da democracia e deve ser preservada acima de qualquer legislação infraconstitucional

“Manter essa lei é preservar a figura do torturador. Não colabora para a defesa da democracia e coloca uma pedra sobre esse assunto”, afirma Fonteles à BBC News Brasil.

Weichert argumenta que, apesar da decisão do STF ter declarado a Lei de Anistia constitucional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a considerou incompatível com a convenção americana sobre direitos humanos.

Eunice combateu a política indigenista do regime militar até o fim da ditadura

Exemplos de processos envolvendo o Brasil na CIDH incluem os casos da guerrilha do Araguaia (Gomes Lund), do jornalista Vladimir Herzog e Collen Leite, todos levados à Corte após a comissão ter realizado esse procedimento.

Em decisões importantes, a Corte Interamericana declarou que tanto crimes contra a humanidade quanto graves violações de direitos humanos são imprescritíveis e não podem ser anistiados.

O fato de os próprios militares terem decretado a lei que perdoa os crimes cometidos por agentes do regime seria uma forma de “autoanistia”, defende Sergio Suiama, procurador da República do Ministério Público do Rio de Janeiro.

“Isso é inadmissível em casos de crimes contra a humanidade”, pontua Suiama.

O procurador destaca que isso tem travado o avanço de ações penais como a de Rubens Paiva.

"O caso de Rubens Paiva está suspenso devido a essa indefinição”, diz Suiama.

Segundo Suiama, o MPF já propôs mais de 40 ações penais, mas a maioria delas foi suspensa ou derrubada justamente porque o STF não julga essas arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

“As provas reunidas durante a investigação do MPF, incluindo confissões de farsa em tentativas de fuga, permanecem sem análise de mérito, esperando por uma decisão que determine se esses crimes são ou não imprescritíveis".

Eunice e os cinco filhos em Brasília depois da posse de Rubens em 1963 (Arquivo Pessoal)

O advogado Rodrigo Roca, que representa os acusados de torturar e matar Rubens Paiva, questiona a argumentação de que os crimes da ditadura podem ser enquadrados como crimes contra a humanidade.

Segundo Roca, para ser um crime contra a humanidade, a conduta precisa ter sido voltada contra uma população civil, o que, segundo ele, não seria o caso.

“Uma conduta para ser considerada crime contra a humanidade, ela precisa se voltar contra a população civil como um todo. E não contra determinados grupos insurgentes. Isso legalmente, ou seja, tecnicamente, penso até que dogmaticamente, não poderia jamais ser tipificado como crime contra a humanidade”, diz.

O advogado avalia ainda que o processo movido pelo MPF que busca um desfecho para a morte de Rubens Paiva, iniciado durante o governo Dilma e na esteira das conclusões da Comissão da Verdade, teve um "viés político".

Segundo ele, sempre que um governo de esquerda chega ao poder, há um "recrudescimento desse movimento", que ele qualifica como "delírios”.

“É preciso se perguntar antes a quem isso vai interessar, qual é a relação custo-benefício de uma nova mobilização dessas, do governo, de alguns setores do judiciário, em torno de pessoas com questões jurídicas plenamente resolvidas, quer dizer, é uma perda para todos, é uma guerra sem vencedores”, acrescenta.

“Há um revolvimento de uma matéria jurídica já bem desgastada e resolvida do ponto de vista social. Caberia ao plano jurídico apenas aderir a essa consciência popular e por um fim nessa história”, acrescenta.

Novo filme é inspirado no livro do filho de Paiva, Marcelo Rubens Paiva

Governo reabriu investigação do caso

Em paralelo, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reabriu o caso em abril deste ano.

O objetivo é investigar e produzir mais provas que comprovem o que aconteceu com Rubens Paiva.

Em agosto de 1971, o caso foi arquivado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão antecessor do atual Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

A votação evidenciou divisões: enquanto membros ligados à ARENA (Aliança Renovadora Nacional) apoiaram o arquivamento, representantes do MDB e da OAB se posicionaram contra.

O então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, exerceu o voto de desempate, decidindo pelo arquivamento. A justificativa oficial baseou-se em informações falsas do Exército, que alegava que Rubens Paiva havia desaparecido após uma intervenção de desconhecidos durante sua detenção.

Essa versão foi desmentida posteriormente pela Comissão Nacional da Verdade. Ademais, um dos conselheiros que votou pelo arquivamento afirmou ter sido coagido a tomar essa decisão.

Segundo André Carneiro, vice-presidente do CNDH, a medida tem caráter administrativo, com possibilidades de contribuir com essa ação penal do MPF.

Carneiro afirma ainda que será produzido um relatório que conterá recomendações ao Poder Público específicas para o caso Rubens Paiva e também gerais sobre o direito à memória, à verdade e à Justiça. O documento deve ser entregue até o fim deste ano.

“Como existe um processo no STF, esse relatório será entregue ao MPF e compartilhado com o Supremo”, ressalta Carneiro.

“Esse caso é bastante simbólico.Tratava-se de um ex-deputado federal, alguém que não tinha vínculo com a luta armada. A forma como foi tratado revela a estrutura de funcionamento de espionagem e uma máquina de tortura no país.”

Marcelo Rubens Paiva reforça a importância de manter viva a memória do pai, seja por filmes, livros ou reportagens.

Para o escritor, a forma de impedir que a ditadura volte é colocar em evidência o aconteceu durante o regime — e isso inclui o assassinato de Rubens Paiva.

“Tem que mostrar o que é a ditadura, o que foi o AI-5, o que foi a tortura, o que foi o Estado autoritário”, diz Marcelo Rubens Paiva.

“É algo que não se deve defender jamais.”

Priscila Carvalho, do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil