domingo, 14 de julho de 2024

Unidos na indecência

O PT de Lula e o PL de Bolsonaro brigam por quase tudo. Mas, quando se trata de se livrar de multas eleitorais, os dois partidos dão as mãos e ajudam a aprovar mais uma obscena anistia

Atoque de caixa e por ampla maioria, a Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que perdoa as multas impostas aos partidos políticos pelo descumprimento das cotas de repasse do fundo eleitoral a candidaturas de negros e mulheres. Não se trata de um valor trivial. As multas aplicadas pela Justiça Eleitoral entre 2018 e 2023 foram estimadas em R$ 23 bilhões, mas o valor pode ser ainda maior.

O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), até fez uma mise-en-scène ao não votar a PEC na semana passada. Não havia acordo com o Senado, e o PT havia manifestado discordância sobre alguns pontos do texto. Lira não queria que o ônus da proposta recaísse apenas sobre os deputados e disse que o texto só seria pautado quando houvesse apoio de todos os partidos e da Casa ao lado.

Não se sabe exatamente o que ocorreu nos últimos dias, mas o fato é que o cenário, aparentemente, mudou da água para o vinho. Logo após a aprovação do primeiro projeto de lei que regulamenta a reforma tributária, a tramitação da PEC ganhou velocidade e quase unanimidade.

Pudera. Nada menos que 29 partidos podem ser beneficiados pelo texto, capaz de gerar uma trégua na perniciosa polarização que domina praticamente todas as discussões legislativas, inclusive a própria reforma tributária.

Para facilitar esse tipo de acordo suprapartidário, nada como a proximidade do início do recesso legislativo. Ansiosos por se dedicar às disputas eleitorais em seus municípios no segundo semestre, os deputados apresentam uma produtividade sem igual.

A admissibilidade da PEC havia sido aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no ano passado, mas o parecer final jamais chegou a ser votado pela comissão especial criada justamente para discutir seus termos com profundidade. Mero detalhe, a ser ignorado quando convém à maioria.

Assim, Lira aproveitou para submetê-la diretamente ao plenário na quinta-feira, e a PEC foi aprovada por 344 votos a 89, em primeiro turno, e por 338 a 82, no segundo turno. Agora, o texto precisa do apoio de ao menos 49 dos 81 senadores para ser promulgado.

Com a PEC, penalidades aplicadas na eleição passada serão perdoadas. A Câmara inovou e criou um “Refis” para os partidos, permitindo que dívidas mais antigas possam ser pagas em até 15 anos, sem cobrança de juros, e as obrigações previdenciárias, em até cinco anos.

Os repasses de verba dos fundos partidário e eleitoral não apenas serão mantidos, como poderão ser usados para pagar esses débitos, inclusive os aplicados pelo uso de recursos de “origem não identificada”, vulgo caixa dois. Não é só isso. A exemplo de igrejas, partidos e federações passam a ter imunidade tributária, e sanções em fase de execução ou já transitadas em julgado serão anuladas.

Para garantir que o montante de multas não volte a crescer, a PEC facilita a vida dos partidos que descumprem a determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de alocar a verba eleitoral e tempo de propaganda eleitoral gratuita de forma proporcional entre candidatos brancos e negros.

Candidaturas de negros receberão 30% dos recursos dos fundos, mas um único candidato ou região poderá receber toda a verba. Não há qualquer garantia de que essa cota será mantida no futuro, mas quem descumpriu a norma em 2020 e 2022 poderá se livrar da punição se compensá-la nas próximas quatro disputas eleitorais.

Solenemente ignoradas, mais de 30 entidades manifestaram repúdio ao teor da PEC em nota e a classificaram como uma “inaceitável irresponsabilidade”. À exceção do PSOL e do Novo, a maioria dos integrantes das siglas, do PT ao PL, deu aval a essa farra que estimula o caráter perdulário do uso dos recursos dos fundos que, é sempre importante destacar, têm origem pública e ocupam espaço que poderia ser destinado a qualquer outra política pública.

Trata-se da quarta anistia concedida pelos partidos a si mesmos, mais um episódio a reforçar a necessidade de acabar com o indecente financiamento público para forçar as siglas e suas lideranças a trabalhar, conquistar apoiadores e se sustentar por conta própria.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.07.24

Thomas Matthew Crooks, o homem de 20 anos suspeito do ataque de Trump

 O atirador, residente na Pensilvânia e registrado como eleitor do Partido Republicano, disparou do telhado de um edifício a cerca de 120 metros de Trump



Atiradores dos serviços secretos manuseiam assuas armas este sábado em Butler, Pensilvânia, onde o antigo Presidente Donald Trump sobreviveu a um ataque. (David Maxwell (EFE)

Homem branco. 20 anos. Nasceu em Bethel Park (Pensilvânia), cidade localizada a cerca de 60 quilômetros do local do incidente. Nomeado, Thomas Matthew Crooks. O processo policial do suspeito do ataque a Donald Trump na tarde deste sábado, num comício do ex-presidente na pequena cidade de Butler, foi gradualmente concluído nas horas seguintes à tentativa de assassinato.

Entre os dados surpreendentes que surgiram está o facto de a lista de eleitores do estado o ter registado como simpatizante republicano. Nas eleições de 5 de novembro, Crooks foi chamado a participar pela primeira vez numa eleição presidencial; Nos últimos anos ele ainda era menor de idade. Após o tiroteio, no qual Trump ficou levemente ferido, ele foi morto por atiradores do Serviço Secreto. Além disso, um participante do evento eleitoral morreu imediatamente e outros dois ficaram em estado crítico.Ainda não se sabe muito sobre a sua história ou o que o motivou a subir ao telhado de um edifício e abrir fogo contra um ex-presidente que fazia campanha para regressar à Casa Branca. Surgiram certos indícios, ainda inconclusivos, de que a sua filiação republicana era recente.



Ainda não se sabe muito sobre a sua história ou o que o motivou a subir ao telhado de um edifício e abrir fogo contra um ex-presidente que fazia campanha para regressar à Casa Branca. Surgiram certos indícios, ainda inconclusivos, de que a sua filiação republicana era recente.

De acordo com os poucos factos que se conhecem sobre a sua história, Crooks tinha 17 anos quando doou 15 dólares (13,7 euros) à ActBlue, uma comissão de ação política que angaria dinheiro para políticos democratas e de esquerda, segundo registos do Eleitoral Federal. Comissão de 2021, citada pela Reuters. A doação foi destinada ao Projeto de Participação Progressista, grupo nacional que mobiliza eleitores democratas para irem às urnas

Uma captura de tela de um vídeo mostra o suspeito de ter baleado Donald Trump já morto por agentes de segurança, em 13 de julho de 2024 em Butler (Pensilvânia). (Anadolu - Getty)

Crooks se formou em 2022 na Bethel Park High School, de acordo com a mídia local Pittsburgh Tribune-Review . Ele recebeu um “prêmio estrela” de US$ 500 da Iniciativa Nacional de Matemática e Ciências, segundo o jornal citado.

A identificação de Crooks não foi imediata após a tentativa de ataque. Ele não trazia consigo nenhum documento de identificação, segundo as autoridades, e foi necessário recorrer a outros métodos. As autoridades, que realizaram uma conferência de imprensa conjunta entre o FBI e a polícia local e estadual na qual partilharam poucas informações, ainda não sabem o motivo que levou Crooks a atacar o ex-presidente. Seu pai, Matthew Crooks, 53 anos, disse à CNN que ainda estava tentando descobrir o que aconteceu e disse que esperaria até falar com as autoridades antes de dizer qualquer coisa sobre seu filho.

O atirador disparou do telhado de um edifício industrial próximo, localizado a cerca de 120 metros do palco onde o ex-presidente discursava num dos comícios que costuma realizar todos os fins de semana em qualquer canto do país. Os bandidos miravam de fora do local, para que ele não tivesse que passar pelos arcos de triagem de armas, semelhantes aos de aeroportos, rotineiramente implantados nos comícios de Trump. Uma testemunha disse à BBC que avisou a polícia da presença do suspeito durante vários minutos e que os agentes demoraram a intervir.

Nos vídeos feitos pelos participantes, membros do serviço secreto podem ser vistos estacionados em uma estrutura respondendo aos tiros do atirador. A troca começou por volta das 18h10. Foi nesse momento que o ex-presidente percebeu que os sons secos que de repente se ouviam correspondiam a uma saraivada de balas, levou a mão ao ouvido, caiu no chão para se abrigar atrás do púlpito e dos agentes encarregados de sua seguranças se jogaram em cima dele para proteger a vida de Trump com seus corpos. Em poucos segundos, que pareceram uma eternidade, conseguiram colocá-lo sob proteção no carro blindado em que costuma viajar, uma réplica daquele que usava quando era inquilino da Casa Branca.

Minutos depois, um porta-voz do ex-presidente disse que ele estava “bem”. Ele foi submetido a um exame em um hospital próximo ao local do comício. Quatro horas depois do ataque, Trump deu a sua versão através da Truth, a sua rede social: “Recebi uma bala que atravessou a parte superior da minha orelha direita. Eu soube imediatamente que algo estava errado porque ouvi um zumbido, tiros e imediatamente senti a bala rasgando a pele. “Eu estava sangrando muito e então percebi o que estava acontecendo”, escreveu ele.

Nas horas seguintes à tentativa de atentado, repletas de confusão, também circularam nas redes fotos do corpo do suspeito no telhado após ser baleado pelos agentes, que posteriormente recuperaram um fuzil semiautomático tipo AR-15, arma mais usado nos tiroteios em massa que ocorrem diariamente em todo o país.

Iker Seisdedos, correspondente em Washinston (DC), originalmente,  para o EL PAÍS, em 14.07.24

Por que muitos democratas continuam a apoiar Biden nos EUA

Diversos democratas continuam a apoiar publicamente Joe Biden. Para isso, citam seu histórico, seus princípios e sua vitória em 2020 contra Donald Trump (Reuters)

Enquanto Joe Biden subia ao palco para um comício em Detroit, Michigan, na noite de sexta-feira (12/7), uma das multidões mais barulhentas vistas nos últimos anos em qualquer evento do presidente dos Estados Unidos gritava: "Não desista!"

O provável candidato democrata foi saudado por aplausos ensurdecedores de centenas de apoiadores enquanto prometia: "Vou concorrer! E vou vencer!"

Ao deixar o palco, os acordes do hit de Tom Petty, I Won't Back Down ("Não vou desistir", em tradução livre), tomaram conta do ginásio escolar, uma rejeição implícita à lista crescente de membros eleitos de seu partido que pedem o afastamento do presidenciável, em meio a preocupações com a idade dele.

Mas, apesar de todas as manchetes dominadas por políticos, doadores e atores progressistas que se voltaram contra Biden, uma lista longa de democratas mantém-se ao lado dele.

Pelo menos 80 políticos democratas apoiaram publicamente o homem de 81 anos, enquanto Biden insiste que não vai deixar a disputa presidencial.

Para muitos, o histórico político do democrata, seus princípios e sua vitória sobre Donald Trump em 2020 significam mais do que os danos de um desempenho incoerente em qualquer debate ou aparição pública, ou receios de saúde durante um novo mandato de quatro anos.

Na primeira coletiva de imprensa de Biden no ano, na quinta-feira (11/7), ele deu respostas detalhadas sobre a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e seus planos para um segundo mandato, mas muitas manchetes se concentraram em sua falha ao se referir à sua vice, Kamala Harris, como "vice-presidente Trump".

Seus aliados — pelo menos por enquanto — elogiaram o desempenho do comandante-em-chefe, que foi assistido ao vivo por mais de 23 milhões de pessoas — um público maior do que o Oscar deste ano.

"Achei que ele demonstrou um verdadeiro domínio da política externa, realmente extraordinário", disse o governador da Carolina do Norte, Roy Cooper, aos repórteres na sexta-feira (12/7). "Não creio que Donald Trump consiga falar sobre política externa de forma coerente nem por um minuto."

Gavin Newsom, o governador da Califórnia apontado como um possível sucessor do atual presidente, disse à rede CBS que estava "totalmente a favor" de Biden, acrescentando que "não havia diferenças" entre eles.

O congressista Brendan Boyle, da Pensilvânia, disse que Biden "demonstrou que sabe um milhão de vezes mais sobre política" do que Trump, "o vigarista condenado" — numa referência à condenação de Trump em caso de suborno a atriz pornô, que tornou o republicano o primeiro ex-presidente dos Estados Unidos a ser considerado culpado por um crime.

Em coletiva de imprensa durante conferência da Otan, Biden se confundiu e se referiu à sua vice, Kamala Harris, como 'vice-presidente Trump' (EPA-EFE/Rex/Shutterstock)

Especialistas dizem que estes políticos têm uma série de razões para seu apoio, incluindo o histórico de Biden no cargo, sua vitória contra Trump em 2020 e a incerteza de se apresentar um novo candidato tão perto das eleições de novembro.

"O presidente deixou claro que quer continuar concorrendo e acho que as pessoas estão respeitando isso", diz Simon Rosenberg, estrategista democrata.

"E também é verdade que, no nosso sistema, substituir um candidato à presidência tão tarde é difícil e sem precedentes, e por isso há uma enorme reticência em fazer uma grande mudança."

Ele acrescenta que houve um "debate saudável" sobre quem deveria ser o indicado.

No entanto, vários grupos disseram que o candidato deveria ser Biden, incluindo o Caucus Hispânico do Congresso, que tem cerca de 40 membros, e o Caucus Negro do Congresso, de 60 membros, com o qual Biden se reuniu no início desta semana.

Ameshia Cross, ex-conselheira da campanha de Barack Obama, disse que a bancada negra, assim como muitos eleitores negros, veem Biden como um presidente comprometido com os direitos civis, ao contrário do seu rival, Trump.

"Eles entendem o que está em jogo com a presidência de Donald Trump", disse ela. "Este é um cara que se posicionou contra os DEI — os esforços de diversidade, equidade e inclusão."

Biden recebeu apoio público de vários políticos de esquerda, incluindo a congressista nova-iorquina Alexandria Ocasio-Cortez e o senador Bernie Sanders, de Vermont, que já criticaram Biden por uma agenda que consideraram demasiado moderada.

Cross disse que muitos reconhecem os riscos que uma presidência Trump traz para os direitos civis e LGBTQ e para as mudanças climáticas.

"Essas são coisas que importam para a esquerda progressista, e o presidente realmente trabalhou nessas coisas", disse ela.

Até o momento, a maior parte do apoio de Biden vem de políticos que concorrem à reeleição em distritos mais seguros, e não daqueles que temem que Biden possa prejudicar suas próprias perspectivas eleitorais em assentos mais difíceis.

Rosenberg disse que a Casa Branca "precisa respeitar as preocupações deles e lidar com elas de uma forma muito mais agressiva".

Mesmo com os apelos crescentes para que Biden saia da disputa, a pesquisa mais recente parece sugerir que ele não perdeu muito apoio dos eleitores.

A campanha de Biden elogiou uma pesquisa do Washington Post, ABC News e Ipsos publicada esta semana, que mostra ele e Trump em empate, semelhante aos resultados da pesquisa anterior ao debate. Mas a pesquisa também revelou que dois terços dos americanos desejam que Biden se afaste.

O presidente também perdeu o apoio de alguns membros da elite de Hollywood.

A atriz Ashley Judd pediu que Biden renunciasse em um artigo no USA Today na sexta-feira (12/7), dizendo que o partido precisava de um candidato "robusto".

Seu texto seguiu um artigo de opinião ainda mais contundente do ator George Clooney sobre Biden.

O doador democrata de longa data Whitney Tilson é o mais recente arrecadador de fundos a dar as costas a Biden, dizendo à BBC na sexta-feira que estava cada vez mais confiante na desistência do presidente.

Outros doadores democratas disseram a um grupo de arredação de fundos pró-Biden, Future Forward, que promessas de doação no valor de cerca de US$ 90 milhões (R$ 490 milhões) estavam suspensas até que ele saísse, relata o jornal The New York Times.

Outros doadores importantes, no entanto, mantêm-se ao lado do presidente.

A atriz Ashley Judd pediu que Biden renunciasse (Getty)

Shekar Narasimhan, que organiza arrecadações de fundos para os democratas há mais de duas décadas, disse que não houve mudança em seus planos.

"Nossos olhos podem ver o que acontece, nossos ouvidos podem ouvir o que é falado, mas mantemos nossas cabeças baixas para fazer o trabalho", disse Narsimhan, que é o fundador do Super-PAC Asian American Pacific Islander Victory Fund.

"A decisão é do presidente e nós iremos com o que ele decidir", disse ele. "Mas é melhor encerrar esta discussão o mais rápido possível."

Ele disse que seu apoio a Biden vem da crença de que o atual presidente venceria.

"Esta eleição será decidida por não mais do que um total de 50 mil votos em três Estados — Michigan, Pensilvânia e Wisconsin — e temos o terreno e a infraestrutura para vencer lá", disse ele.

Frank Islam, que faz parte do Comitê Nacional de Finanças, disse que tinha uma arrecadação de fundos planejada em sua casa em Maryland no final deste mês.

"Sigo em frente porque sei que ele [Biden] vencerá", diz ele.

Madeline Halpert e Brajesh Upadhyay, de Nova York e Washington (DC) para a BBC News, em 13.07.24

Trump deixa hospital após tentativa de assassinato; o que se sabe até agora

Donald Trump voltou para sua casa em Nova Jersey depois de ser ferido em uma tentativa de assassinato durante um comício realizado ontem, sábado (13/7).

Legenda da foto,Trump é cercado por agentes do serviço secreto americano após ser atingido por tiro durante comício (Reuters)

Em vídeos divulgados nas últimas horas, é possível ouvir uma série de disparos enquanto ele discursava num evento na Pensilvânia, o que provocou pânico na multidão.

Trump, que saiu com o rosto ensanguentado, diz que levou um tiro que rasgou a parte superior da orelha direita.

O FBI, o serviço de inteligência dos EUA, identificou o atirador como Thomas Matthew Crooks, de 20 anos — ele foi baleado e morto pelo agentes americanos.

Um espectador morreu no comício e outros dois ficaram gravemente feridos.

Uma testemunha disse à BBC que viu um homem com uma arma rastejando em um telhado antes de os tiros serem disparados e que tentou alertar a polícia.

O presidente Joe Biden condenou a tentativa de assassinato. Ele apelou que todos os americanos denunciem essa violência "doentia".

Os vídeos do momento do ataque mostram Trump, que está concorrendo à presidência novamente, cair no chão antes de se levantar novamente e erguer o punho para a multidão com o rosto ensanguentado.

Trump diz estar bem e agradece aos agentes de segurança

Agora você pode receber as notícias da BBC News Brasil no seu celular

Um comunicado publicado pelo Comitê Nacional Republicano (RNC) garantiu que Trump "está bem" e agradecido pela ação dos agentes de segurança.

A nota ainda diz que ele pretende estar de volta aos eventos públicos em breve — mais precisamente em Milwaukee, onde ocorrerá a convenção que deverá defini-lo como o candidato do partido às eleições presidenciais de 2024.

'"Como candidato do nosso partido, [ele] continuará a compartilhar sua visão para fazer a América grande novamente [em alusão ao slogan principal de Trump Make America Great Again]", diz a declaração da campanha de Trump e do RNC.

Anteriormente, Trump postou uma declaração no Truth Social, uma rede social que ele ajudou a fundar.

O político agradeceu aos agentes da lei e ao serviço secreto pela "resposta rápida".

"Mais importante ainda, quero apresentar as minhas condolências à família da pessoa que estava no comício e que foi morta, e também à família das outras pessoas que ficaram feridas. É incrível que esse ato possa ocorrer no nosso país", escreveu.

A filha de Donald Trump, Ivanka Trump, postou no X (o antigo Twitter) que reconhece "o amor e as orações" pelo pai e pelas outras vítimas da "violência sem sentido".

"Estou grata ao serviço secreto e a todos os outros agentes da lei pelas ações rápidas e decisivas."

Já Donald Trump Jr compartilhou uma imagem no X de seu pai sendo escoltado para fora do comício na Pensilvânia com o punho no ar e o sangue escorrendo pelo rosto.

Ao lado da imagem está a legenda: "Ele nunca vai parar de lutar para salvar a América."

Legenda da foto,Trump diz que sentiu a bala "rasgando a pele" ao ser atingido por disparo em comício (Reuters)

A reação de Joe Biden

O presidente Joe Biden divulgou um comunicado, em que expressa preocupação com a "doentia" tentativa de assassinato e diz estar "grato" por saber que Donald Trump está seguro.

"Fui informado sobre o tiroteio no comício de Donald Trump na Pensilvânia. Estou grato por saber que ele está seguro e bem", disse ele.

"Estou rezando por ele e sua família e por todos aqueles que estiveram no comício, enquanto aguardamos mais informações. Estamos gratos ao serviço secreto por tê-lo colocado em segurança."

"Não há lugar para este tipo de violência na América. Devemos nos unir como uma nação para condená-la."

A vice-presidente Kamala Harris também divulgou um comunicado, em que diz estar "aliviada" por Trump não ter ficado gravemente ferido.

"Estamos orando por ele, sua família e todos aqueles que foram feridos e afetados por este tiroteio sem sentido."

Há confirmações de que o presidente Biden conversou diretamente com Trump após o ataque.

Biden ligou para Trump após o ataque (Reuters)

O que se sabe sobre o suposto atirador?

O homem que fez os disparos no comício de Trump foi identificado pelo FBI como Thomas Matthew Crooks.

Sabe-se que ele tinha 20 anos e era de Bethel Park, na Pensilvânia. A cidade fica a 70 km de Butler, o local onde ocorreu a tentativa de assassinato.

O atirador foi morto a tiros por agentes do serviço secreto.

O FBI ainda acrescentou que a investigação segue "ativa e contínua".

Testemunhas oculares da tentativa de assassinato disseram que viram um homem com um rifle de assalto, que se posicionou em um telhado a menos de 200 metros do ex-presidente.

Esta versão dos acontecimentos pode ser confirmada pelos numerosos vídeos que surgiram desde o tiroteio.

Uma dessas filmagens, feita ao sul de um armazém com paredes bege, mostra o que parece ser o corpo sem vida do atirador.

O que aconteceu durante e após o ataque a Trump?

Donald Trump discursava num evento de campanha na cidade de Butler, na Pensilvânia, quando um homem armado tentou assassinar o ex-presidente.

A seguir, você confere um resumo de como tudo aconteceu. Todos os eventos horários estão no horário local:

17h00: Horário em que o discurso de Trump estava programado para começar;

18h03: Ele sobe ao palco ao som da música God Bless the USA, de Lee Hazelwood;

18:11: Apenas alguns minutos após o início do discurso, começam os tiros;

18h12: Agentes do serviço secreto cercam Trump antes que ele seja levado para fora do palco. É possível ver que ele tem sangue no rosto;

18h14: A comitiva de Trump deixa o comício;

18h42: O serviço secreto emite um comunicado, confirmando que Trump está seguro e que há uma investigação ativa sobre o incidente;

19h03: A campanha de Trump diz que ele está "bem";

19h45: A polícia confirma que o suspeito está morto, junto com um membro da audiência;

20h13: Biden condena o ataque e diz que está tentando falar com Trump por telefone o mais rápido possível

20h42: Trump compartilha o primeiro relato do que aconteceu. Ele diz que uma bala perfurou a parte superior da orelha direita.

Publicado originalmente por BBC News, em 13.07.24

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Por que Rússia condenou viúva de opositor de Putin morto em condições suspeitas

Um tribunal de Moscou emitiu um mandado de prisão para a viúva do líder da oposição russa Alexei Navalny, Yulia Navalnaya, sob a acusação de "extremismo", segundo a imprensa estatal.

Yulia Navalnaya é viúva de Alexei Navalny

O tribunal de Moscou que condenou Navalnaya determinou que ela deveria ser detida sob custódia e a declarou como procurada.

A decisão significa que ela poderá ser presa se pisar na Rússia.

As acusações podem estar ligadas a uma decisão judicial de Moscou, em junho de 2021, que proibiu três organizações ligadas a Navalny, rotulando-as de “extremistas”.

Alexei Navalny era um dos principais líderes da oposição contra o presidente Vladmir Putin até morrer, em fevereiro de 2024, em condições suspeitas em uma prisão no Círculo Polar Ártico.

Conhecido por ser o crítico mais veemente do presidente Vladimir Putin, Navalny, que tinha 47 anos, cumpria uma pena de 19 anos por condenações consideradas por boa parte da comunidade internacional como sendo por motivação política.

Agora as autoridades russas se voltam contra sua viúva Yulia Navalnaya, que vive fora da Rússia. Segundo a agência de notícias Tass, ligada ao governo, as acusações contra ela seriam uma suposta “participação numa sociedade extremista".

Após a morte do marido, Yulia Navalnaya havia acusado o governo russo de deixar Navalny passar fome, de ter torturado e matado o seu marido.

Respondendo ao mandado de prisão contra ela, Yulia Navalnaya postou na rede social X, o antigo Twitter, pedindo que não se esqueçam de escrever "o principal: Vladimir Putin é um assassino e um criminoso de guerra".

"Seu lugar é na prisão. E não em uma prisão de [acordo com as regras do Tribunal Internacional de] Haia, em uma cela aconchegante com TV, mas na Rússia — na mesma colônia e na mesma cela de dois por três metros em que ele matou Alexei", escreveu a viúva, que prometeu continuar o trabalho do marido.

Navalny morreu em fevereiro de 2024 em uma prisão no Círculo Polar Ártico. As autoridades da prisão afirmaram que a causa foi uma "morte súbita".

Navalnaya já não havia podido comparecer ao funeral do marido por receio de ser presa.

Desde então, ela se encontrou com vários líderes ocidentais, incluindo o presidente dos EUA, Joe Biden.

Este mês, ela foi eleita para presidir a Fundação dos Direitos Humanos, sediada nos EUA — uma organização sem fins lucrativos que trabalha para promover e proteger os direitos humanos em todo o mundo.

Ela disse que usaria seu papel para intensificar a luta que seu marido travou contra Putin.

Alexei Navalny era o líder da oposição mais famoso da Rússia nos últimos tempos (Reuters)

A importância de Nalvany

Navalny foi o líder da oposição mais importante da Rússia na última década.

As autoridades russas disseram que ele morreu de causas naturais – mas sua viúva disse que Navalny passou fome e foi “torturado, isolado e morto” pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Navalny cumpria pena de 19 anos por acusações de extremismo que eram amplamente vistas como tendo motivação política.

Ele ficou conhecido internacionalmente ao expor a corrupção do governo, rotulando o partido Rússia Unida, de Putin, como "o partido dos vigaristas e ladrões".

Ao longo de sua vida, ela cumpriu várias penas de prisão e tinha milhões de seguidores nas suas redes sociais.

Em 2011, ele foi detido e encarcerado por 15 dias após protestos contra suposta fraude eleitoral do partido Rússia Unida nas eleições parlamentares.

Navalny foi brevemente preso em julho de 2013 sob a acusação de peculato (apropriação de bens públicos), mas ele disse que a sentença era uma condenação política.

Ele tentou concorrer a presidente da Rússia em 2018, mas foi barrado por causa de condenações anteriores por fraude em um caso que ele novamente disse ter motivação política.

Navalny foi condenado a 30 dias de prisão em julho de 2019, após convocar protestos não autorizados.

Quando estava na prisão, ele adoeceu. Os médicos o diagnosticaram com "dermatite de contato", mas ele disse que nunca teve nenhuma reação alérgica aguda e seu próprio médico sugeriu que ele pode ter sido exposto a "algum agente tóxico".

Navalny disse na ocasião que podia ter sido envenenado.

Ele também sofreu uma grave queimadura química no olho direito em 2017, depois de ter sido atacado com uma substância nociva.

Em 2019, sua Fundação Anticorrupção foi oficialmente declarada um "agente estrangeiro", permitindo que as autoridades a submetessem a maiores controles estatais.

Em agosto de 2020, Navalny passou mal durante um voo da Sibéria para Moscou, e o avião precisou fazer um pouso de emergência na cidade de Omsk, onde foi levado às pressas para a UTI.

Depois, após negociações de alto nível com as autoridades russas, ele foi transportado de avião para Berlim e tratado lá enquanto era mantido em coma induzido.

O governo alemão disse que Navalny havia sido envenenado por uma sofisticada substância conhecida como Novichok, o que deu ainda mais atenção ao caso, ao reforçar suspeitas de que o Estado russo estivesse por trás do envenenamento. O Kremlin sempre negou essas acusações.

Conhecidas como agentes neurotóxicos, essas substâncias são usadas em pó ou em forma líquida. E são tão perigosas que só podem ser fabricadas em laboratórios avançados, que são em grande maioria de propriedade de governos, ou controlados por eles.

Inicialmente, acreditava-se que o envenenamento teria ocorrido por meio do chá que Navalny bebeu naquele dia.

No entanto, depois que se recuperou, ele rastreou os indivíduos que acreditava terem participado do atentado.

Passando-se por uma autoridade da área de segurança, Navalny conseguiu enganar um especialista em armas que teria admitido que o caso foi mesmo de envenenamento.

A maior parte do agente químico teria sido plantada na cueca dele. O governo russo negou novamente as acusações.

Ainda na Alemanha, Navalny relatou que sentiu calafrios inicialmente e nenhuma dor.

"Não dói nada, não é como um ataque de pânico ou algum tipo de transtorno. No começo você sabe que algo está errado, e em seguida seu único pensamento passa a ser: 'É isso, vou morrer.'"

Em janeiro de 2021, Navalny voltou para a Rússia, pela primeira vez desde que havia sido envenenado, e foi detido logo após desembarcar em Moscou.

O motivo é que ele teria violado condições de uma sentença de liberdade de anos atrás.

Em seguida, um tribunal de Moscou sentenciou Navalny a três anos e meio de prisão por violar as condições de uma pena suspensa, ao não se apresentar regularmente para autoridade penitenciárias.

A prisão de Navalny gerou uma onda de protestos pela sua libertação e contra o Kremlin. Milhares de pessoas protestaram em toda a Rússia, apesar da forte presença policial. Houve cenas violentas em Moscou.

A sentença foi condenada pela União Europeia, Estados Unidos e Reino Unido, que pediram que o líder da oposição fosse imediatamente libertado.

Depois de sua prisão, Navalny acusou Putin de ter usado recursos ilícitos para construir uma extravagante mansão no Mar Negro — avaliada em R$ 7,2 bilhões e 39 vezes o tamanho do principado de Mônaco.

Um vídeo produzido por Navalny sobre o suposto palacete de Putin foi visto mais de 100 milhões de vezes nas redes sociais.

Segundo Navalny, propriedade de 70.000.000 m² de Putin foi paga com 'maior suborno da história'

Tratamento duro

Depois de Navalny ter sido condenado à prisão em fevereiro de 2021, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu que ele deveria ser libertado imediatamente porque sua vida corria risco. Mas a Rússia rejeitou a decisão.

Ele entrou em greve de fome, protestando contra o fato de as autoridades da colônia penal se recusarem a dar-lhe tratamento adequado para problemas nas pernas e nas costas.

A Anistia Internacional chegou o revogar o status de prisioneiro político de Navalny.

A organização depois voltou atrás e admitiu que tinha sido sujeita a uma "campanha orquestrada".

Na época, surgiram vídeos em que Navalny fazia comentários xenófobos e que nunca chegaram a ser desmentidos.

Em vídeos de 2007, ele parecia comparar conflitos étnicos a cáries dentárias e comparar imigrantes a baratas.

Ele também disse que a Península da Crimeia "pertence à Rússia", apesar da condenação internacional da anexação do território ucraniano pela Rússia em 2014.

Enquanto isso, o governo russo continuou sua campanha contra Navalny.

Em junho de 2022, os seus apoiadores descobriram que ele já não estava na prisão original onde deveria cumprir a pena.

As autoridades prisionais federais admitiram mais tarde que ele tinha sido transferido para uma colônia penal com uma reputação difícil, a prisão IK-6, a mais de 249 quilômetros a leste de Moscou, onde ele teria sido colocado repetidamente em confinamento solitário.

A última sentença de agosto de 2023 estendeu a sua pena de prisão para 19 anos e o transferiu para uma colônia penal de segurança máxima normalmente reservada aos criminosos mais perigosos da Rússia.

Esse tratamento duro era evidência de que Putin e o seu governo temiam a influência que as campanhas de Navalny vinham ganhando, disse a professora Nina Khrushcheva, bisneta do ex-líder soviético Nikita Khrushchev.

"Putin nem sequer menciona o nome dele, ninguém no Kremlin pode mencionar o nome dele", disse ela, em entrevista para a BBC antes da morte de Navalny.

“Navalny é uma ameaça ao poder pessoal de Putin, à reputação pessoal de Putin. E Putin realmente não trata seus inimigos com mão leve.”

Apesar de estar preso, Navalny tornou-se uma das principais vozes internas contra a guerra na Ucrânia.

Durante uma audiência no tribunal em maio de 2022, ele acusou Putin de iniciar uma “guerra estúpida” sem “nenhum propósito ou significado”.

Em setembro, em artigo para o jornal americano Washington Post, acusou as elites russas de terem uma “obsessão sanguinária com a Ucrânia”.

A sua fundação também se manifestou contra a mobilização de cerca de 300 mil civis para lutar na Ucrânia.

André Rhoden-Paul, o autor deste texto, é jornalista. Publicado originalmente por BBC News, em 09.07.24

Os 8 grupos mais privilegiados do serviço público no Brasil, segundo novo livro

 No ano passado, 93% dos juízes brasileiros ganharam mais por mês do que os salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – de R$ 39,3 mil até março de 2023 e depois reajustado para R$ 41,7 mil, valor que pela Constituição deveria ser o teto do funcionalismo.

O economista e doutor em direito Bruno Carazza desvenda os caminhos da distribuição de privilégios pelo Estado brasileiro em novo trabalho

Até 2026, os fiscais da Receita Federal devem ganhar mais de R$ 11 mil por mês para além de seus salários na forma de um "bônus de eficiência", cujo pagamento independe do desempenho individual de cada auditor fiscal.

Com isso, a categoria poderá receber a partir daquele ano vencimentos de mais de R$ 40 mil, somando salário e bônus.

Os titulares de cartórios são a categoria profissional com renda mais alta do país – uma média de R$ 142 mil por mês, segundo dados do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) de 2022.

Mas, no Distrito Federal, um titular de cartório – cargo provido por concurso público – chega a ganhar em média meio milhão de reais mensais.

Como essas e outras categorias da elite do serviço público conquistaram essas remunerações exorbitantes que, em última instância, são financiadas pelo bolso de todos nós – seja através do pagamento de impostos ou do pagamento pela prestação de serviços, no caso dos cartórios?

É o que responde o mestre em economia e doutor em direito Bruno Carazza, em seu novo livro O país dos privilégios – Volume 1: Os novos e velhos donos do poder, lançado pela Companhia das Letras na terça-feira (25/6).

"Temos esse modo de funcionamento do Estado brasileiro, que permite que alguns grupos muito bem organizados, com poder de pressão, muito bem articulados com as esferas de poder – no Executivo, no Legislativo e no Judiciário –, consigam extrair do Estado uma série de benefícios", diz Carazza, em entrevista à BBC News Brasil.

"É por isso que eu concebi essa obra com três volumes, porque não é algo restrito às carreiras públicas do funcionalismo. É algo também muito bem explorado pelo setor empresarial e pelas classes mais altas – os ricos e os super ricos", diz o professor da Fundação Dom Cabral, já antecipando os temas de seus próximos volumes, previstos para serem lançados respectivamente em 2025 e 2026.

"A meu ver, isso explica muito do nosso atraso, da nossa desigualdade de renda, porque todos esses privilégios são acessíveis a um grupo restrito da sociedade e que acaba concentrando boa parte da renda. E são benefícios que se perpetuam no tempo", acrescenta Carazza.

Desigualdade no funcionalismo

No primeiro volume de sua trilogia, dedicado aos privilégios no setor público, o pesquisador deixa claro que o problema do Brasil não é de excesso de servidores.

Apesar de o país contar com 10,8 milhões de vínculos formais de trabalho no setor público em 2021, ante 4,8 milhões em 1985 (num crescimento de 124% em 36 anos), o contingente de servidores públicos brasileiros não destoa da média internacional, demonstra Carazza.

Entre os membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, os servidores públicos representavam em média 17,9% da população economicamente ativa em 2020, cita o analista.

No Brasil, considerando todos os níveis da federação e incluindo os militares, o setor público empregava 12% da força de trabalho do país naquele ano.

Ou seja, menos do que a média dos países ricos e menos até do que os Estados Unidos (14,9%), considerado um país menos estatizante.

No entanto, analisando o peso da remuneração dos servidores na economia, a história é outra.

O Brasil gastava 13% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em 2019 com a folha de pagamentos do funcionalismo, acima de países ricos como Alemanha (7,6%), Reino Unido (8,9%), Itália (9,3%) e França (11,8%) e muito acima de vizinhos latino-americanos como México (4,7%) e Chile (7,2%).

Carazza também observa que, embora o setor público pague em média salários mais altos do que o setor privado, o problema mais grave está no governo federal, onde essa diferença chega a 93,4%, comparando trabalhadores de mesmo gênero, raça, idade, escolaridade, experiência e ocupação nos dois setores.

Nos Estados, o diferencial de salários em favor dos trabalhadores do setor público é de 27,9%.

Já nos municípios – que empregam uma maioria de professores, assistentes sociais, médicos e enfermeiros da saúde pública, atendentes de repartição pública e outros profissionais que atuam no atendimento direto à população – o diferencial chega a ser negativo em -2,46%, conforme estudo dos pesquisadores Gabriel Tenoury e Naercio Menezes Filho, do Insper, citado no livro.

Essas desigualdades internas ao funcionalismo também ficam evidentes quando se analisa a mediana de rendimentos mensais no setor público, nos diferentes poderes e níveis federativos.

Funcionalismo brasileiro é desigual. Mediana de rendimentos mensais no setor público brasileiro, por poder da República e nível federativo, em 2019, em R$ mil.  .

Qual reforma administrativa

Carazza destaca que reconhecer essas diferenças entre os servidores públicos é fundamental para pensar qual é a reforma administrativa necessária para o país.

Discussões sobre essa reforma existem desde a Constituinte, lembra o pesquisador.

Depois disso, houve uma reforma no governo Fernando Henrique Cardoso, que foi aprovada, porém, muitos pontos não foram regulamentados. Desde então, não houve nenhuma proposta robusta aprovada pelo Congresso, diz o professor.

Segundo ele, a proposta de reforma apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro (PEC 32/2020), ainda que volta e meia seja lembrada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é considerada por especialistas como uma reforma muito ruim.

"Temos um 'não debate' no Brasil a respeito da reforma administrativa", avalia o professor da Fundação Dom Cabral.

"É um tema discutido de uma forma muito rasa no país. De um lado, temos aqueles radicais de direita, que entendem que o Estado deve ser o mínimo possível – o que não faz sentido, pois, pelos desafios que temos no Brasil, o Estado é muito necessário", avalia o pesquisador.

"De outro, temos várias pessoas na esquerda que têm uma visão de que não se deve mudar nada na forma como o Estado está estruturado hoje. Como se o Estado não tivesse todas essas distorções, que geram uma má prestação de serviços públicos e uma concentração de renda, agenda que a esquerda se posiciona corretamente contra."

Protesto contra a PEC 32, proposta de reforma administrativa apresentada pelo Governo Bolsonaro em 2020

Carazza avalia que, apesar das visões radicais de ambos os lados, que interditam um debate necessário, é possível encontrar pontos comuns para uma reforma administrativa.

No livro, ele analisa duas propostas de reforma, uma elaborada por Armínio Fraga, Ana Carla Abrão e Carlos Ari Sundfeld, especialistas considerados mais ligados ao mercado financeiro; e outra publicada pelo Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), organização formada por 37 associações e sindicatos, que representam mais de 200 mil servidores públicos.

"Quando você vê as propostas apresentadas por esses dois grupos, você vê que há muito mais pontos em comum, do que discordâncias", observa o pesquisador.

Entre esses pontos em comum, que podem servir de norte para uma reforma consensual, ele cita:

A necessidade de uma redução na quantidade atual de carreiras do serviço público;

A estruturação das carreiras no serviço público para que elas passem a ter uma remuneração inicial mais baixa e uma carreira longa, em que os profissionais progridam mediante avaliações individuais de desempenho;

A regulamentação de uma avaliação de desempenho no serviço público;

E a recuperação da autoridade do teto de remuneração no serviço público, acabando com penduricalhos que geram os super salários do Judiciário, Legislativo e Executivo.

Além de pesquisador e professor universitário, Carazza é também ele mesmo funcionário público de carreira, com passagem pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e por diversos órgãos do Ministério da Fazenda.

No entanto, está atualmente licenciado – o que ele também considera uma forma de privilégio.

"Por um bom tempo, eu acreditei que muitos dos privilégios que eu tenho, eram fruto do meu mérito", observa o pesquisador.

Ele cita, entre o que considera como privilégios, as universidades públicas onde fez graduação e pós-graduação de forma gratuita; os alto salários que recebeu como servidor público; estar licenciado do setor público, mas com a vaga assegurada se desejar voltar, um benefício que não existe no setor privado; além do fato de receber a maior parte de seus rendimentos atualmente como pessoa jurídica, não estando sujeito à tributação de lucros e dividendos.

"Ao longo da minha trajetória, não só no serviço público, mas desde que me licenciei para atuar com pesquisa, para mim fica cada vez mais claro que, para termos um país mais próspero, justo e sustentável, precisamos repensar esse modelo de distribuição de privilégios para grupos isolados da sociedade", diz Carazza.

"Meu propósito neste livro não foi atacar as pessoas ou as empresas que se beneficiam dessa rede de privilégios, mas convidar as pessoas a repensarem esse modelo."

Para repensar nosso modelo de distribuição de benesses, confira oito grupos privilegiados no Brasil, de acordo com o novo livro de Bruno Carazza.

1. Magistrados

"Talvez o Poder Judiciário seja a categoria em que essa questão dos privilégios esteja mais visível hoje em dia", observa o economista.

Ele lembra que o Judiciário tem autonomia funcional e administrativa e que, por isso, não está sujeito a todos os rigores do ajuste fiscal, como está sujeito o Poder Executivo, por exemplo.

Além disso, por se tratarem de juízes, muitas vezes eles arbitram sobre os próprios benefícios.

Estátua da Justiça na Praça dos Três Poderes, em Brasília  (CRÉDITO,FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL)

Legenda da foto,Pelo menos 1 mil juízes ganharam mais de R$ 1 milhão no acumulado do ano em 2023, equivalente a uma renda de R$ 83 mil por mês

Isso ajuda a explicar como 93% dos juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores brasileiros tiveram rendimento médio mensal superior aos ministros do STF em 2023, já contabilizados todos os descontos legais.

E por que pelo menos 1.002 magistrados ganharam mais de R$ 1 milhão no acumulado daquele ano, equivalente a uma renda de R$ 83 mil por mês.

A explicação é simples: os salários do Judiciário são inflados pelos chamados "penduricalhos", uma série de adicionais, auxílios, bonificações e outros pagamentos que turbinam os contracheques dos magistrados Brasil afora.

No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, em 2023, um magistrado tinha direito a:

Auxílio-creche, para reembolsar as mensalidade pagas pela educação infantil de filhos ou enteados de seis meses a sete anos de idade;

Auxílio-educação, para cobrir as despesas com educação de dependentes legais até 24 anos, além de cursos de pós-graduação dos próprios magistrado – o valor de cada um desses auxílios era de R$ 1,5 mil por dependente, limitado a três benefícios por servidor;

Auxílio-alimentação de R$ 1,6 mil mensais;

Indenização de transporte de até R$ 1,5 mil mensais.

Outro exemplo de benefício da categoria são as férias de 60 dias anuais a que os magistrados têm direito, para compensar sua carga de trabalho supostamente exaustiva – o dobro do previsto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Acontece que boa parte dos juízes prefere não tirar essas férias adicionais, optando por converter os dias extras de férias em dinheiro.

Um único desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, chegou a receber R$ 649 mil referentes a férias não usufruídas entre 2017 e 2024, isso para além de seus vencimentos básicos, de R$ 37,6 mil.

"Por causa desses benefícios que são criados pelo próprio Judiciário, sem controle dos outros poderes, esses juízes, às vezes de primeira instância, acabam ganhando muito mais do que um ministro do Supremo, o que não faz sentido", conclui Carazza.

2. Membros do Ministério Público

Segundo o pesquisador, membros do Judiciário e do Ministério Público (MP), as duas carreiras jurídicas de elite do Brasil, competem entre si para ver quem turbina mais seus contracheques.

Assim, sempre que uma categoria conquista um "penduricalho", a outra recorre ao STF para pedir a equiparação.

Com isso, os vencimentos das duas carreiras vão se afastando cada vez mais do teto do serviço público e do padrão salarial da sociedade brasileira.

Mas o Ministério Público é ainda mais opaco do que a Justiça quanto à publicação dos rendimentos de seus membros, destaca o analista.

92% dos membros do Ministério Público recebiam acima do teto do funcionalismo em 2023

"É até uma incoerência, porque o Ministério Público é o órgão que deveria fiscalizar a transparência dos outros [órgãos do poder público]", aponta Carazza. "Ele fiscaliza a transparência dos outros, mas ele próprio não publica amplamente seus dados."

Mesmo com essa falta de transparência, o pesquisador conseguiu estimar, com base nos dados disponíveis de quatro MPs da União e de 13 MPs estaduais, que 92% dos membros do Ministério Público recebiam acima do teto do funcionalismo em 2023.

E pelo menos 1,2 mil membros do MP ganharam, em média, mais de R$ 50 mil por mês naquele ano, com os salários turbinados por indenizações, auxílios, gratificações, pagamentos retroativos e aditivos de todo tipo.

3. 'Carreiras típicas de Estado'

Na verdade, essa é uma categoria que não existe formalmente, esclarece Carazza.

Foi uma nomenclatura que surgiu na época da reforma do Estado proposta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

Seriam algumas carreiras que teriam estabilidade contra demissões e uma série de proteções, frente à perspectiva de que funções mais operacionais do serviço público pudessem ser exercidas por empregados celetistas, sem garantia de estabilidade.

Nesse grupo informal estão diplomatas, auditores fiscais da Receita Federal e do Trabalho, advogados da União, procuradores da Fazenda Nacional e policiais federais, assim como analistas do Banco Central, do Tesouro Nacional, do Orçamento e da CGU, além de gestores governamentais e analistas de comércio exterior – para citar apenas as carreiras principais.

 

Carreiras típicas de Estado', como a Polícia Federal, têm feito de tudo para ganhar cada vez mais, com salários já muito maiores do que a média geral do serviço público e se aproximando cada vez mais do teto do funcionalismo, diz Carazza (CRÉDITO, DIVULGAÇÃO/POLÍCIA FEDERAL)

"Essa ideia não foi para frente, não foi aprovada. Mas essas carreiras meio que se auto intitulam assim, 'carreiras típicas de Estado', que são carreiras muito poderosas, porque são muito articuladas dentro dos ministérios, e exercem funções muito relevantes para o funcionamento do Estado."

Como estas são carreiras do Executivo, elas estão de fato sujeitas ao teto do funcionalismo – diferentemente do Judiciário e de algumas carreiras do Legislativo que conseguiram contornar a limitação constitucional.

No entanto, essas carreiras têm feito de tudo para ganhar cada vez mais, com salários já muito maiores do que a média geral do serviço público e se aproximando cada vez mais do teto.

"Temos observado isso acontecer e é uma situação que, inclusive, tem criado muitos constrangimentos para o próprio governo", observa Carazza.

"Por exemplo, a recente greve nas universidades federais e a greve dos gestores ambientais do Ibama expõem essa desigualdade dentro do Poder Executivo."

Essas carreiras costumam ter salários iniciais acima de R$ 20 mil e topos de carreira que se aproximam ou ultrapassam os R$ 30 mil – com a possibilidade se chegar ao rendimento máximo em cerca de dez anos, com avaliações de desempenho que são mera formalidade.

4. Advogados públicos

Em qualquer ação no Judiciário em que há uma parte ganhadora, o juiz decide um valor que deve ser pago pela parte que perdeu para compensar custos da disputa judicial. São os chamados "honorários de sucumbência".

Tradicionalmente, esses valores eram destinados à parte vencedora da ação – a pessoa física, empresa ou União que foi acionada na Justiça e provou que estava correta.

Na advocacia privada, no entanto, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) conseguiu junto ao Congresso a aprovação de uma lei, que determinou que essa verba passasse a ser destinada ao advogado, e não mais à parte vencedora.

Os advogados da União, procuradores da Fazenda e de autarquias federais, e seus colegas nos Estados e municípios, foram então em busca da mesma vantagem, lembra Carazza.

Milhões de reais em honorários de sucumbência deixaram de ser pagos ao Tesouro, engordando os contracheques de advogados e procuradores públicos. (CRÉDITO, RAFA NEDDERMEYER/AGÊNCIA BRASIL)

Após algumas tentativas frustradas, a categoria conquistou essa benesse com a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 2015.

"Desde então, em qualquer ação que a União, Estados ou municípios vençam na Justiça, uma parte do valor que antes ia para os cofres públicos, hoje em dia é distribuído para os advogados públicos federais, estaduais ou municipais", explica o pesquisador.

Isso tem feito com que um advogado público da União, que já tem rendimentos na casa dos R$ 30 mil, receba todo mês, a título de honorários, um pagamento adicional de cerca de R$ 12 mil.

"Então, hoje em dia, apesar do teto ser respeitado dentro do Poder Executivo, praticamente todos os advogados públicos, procuradores da Fazenda Nacional e procuradores do Banco Central recebem o teto do ministro do Supremo, o que também não faz muito sentido", aponta o professor.

5. Fiscais da Receita

Os fiscais da Receita Federal adotaram estratégia parecida à dos advogados públicos.

Desde 2016, os auditores fiscais conseguiram, em negociação com o governo, que uma parte da receita das multas tributárias arrecadadas e da venda de mercadorias apreendidas fosse destinada a eles mesmos, na forma de um "bônus de eficiência e produtividade".

Mas o recebimento desse bônus independe do desempenho individual de cada fiscal e o valor do benefício, que era inicialmente de R$ 3 mil por mês, deve chegar a R$ 5 mil no segundo semestre de 2024, R$ 7 mil em 2025, atingindo finalmente R$ 11,5 mil mensais por servidor em 2026.

O pesquisador observa que, desde o tempo do Império, os militares têm um ramo próprio da Justiça, originalmente criado para tratar de assuntos ligados à guerra.

"Isso vai fazer com que, novamente, praticamente todo fiscal da Receita Federal ganhe o equivalente ao ministro do Supremo", observa Carazza.

"Tudo bem incorporar na remuneração uma parcela variável atrelada ao desempenho. Isso, inclusive, é uma boa prática que várias empresas já adotam", pondera o especialista.

"Mas não faz sentido ter essa estrutura em que se ganha um salário básico já altíssimo, em torno dos R$ 30 mil, e mais uma parcela variável que não está atrelada ao desempenho individual de cada um dos setores. Como elas não estão atreladas a uma avaliação efetiva de entrega, de mérito, acabam virando mero penduricalho para turbinar o salário dessas carreiras, que já é bem alto."

6. Militares

Os militares são um exemplo de como os privilégios nem sempre estão restritos à remuneração, observa Carazza.

Ele destaca duas vantagens principais da categoria: a Justiça Militar e o fato de os militares contarem com um regime especial de Previdência – tema que voltou ao debate público recentemente, após a ministra do Planejamento, Simone Tebet, defender uma reforma no benefício dos militares.

Previdência dos militares representa 13% do déficit previdenciário do governo federal, atendendo a apenas 1,6% do total de aposentados e pensionistas (Crédito: Marcelo Casal Jr / Ag. Brasil)

O pesquisador observa que, desde o tempo do Império, os militares têm um ramo próprio da Justiça, originalmente criado para tratar de assuntos ligados à guerra.

Mas, após a redemocratização da América latina, o Brasil é um dos poucos países democráticos da região a manter até hoje um foro militar – o que Carazza avalia como uma "excrescência".

"Quando os vários países da América Latina encerraram suas ditaduras militares, essas justiças militares foram extintas e causas militares agora são julgadas pela Justiça comum", diz o pesquisador.

"Mas, no Brasil, permanecemos com essa estrutura que, com o passar do tempo, foi expandindo suas competências. Então a Justiça Militar deixa de julgar apenas casos relacionados à disciplina militar e começa a julgar casos de crimes envolvendo militares, inclusive em operações com civis."

Carazza destaca ainda que, além de a Justiça Militar ter o costume de absolver ou aplicar penas drasticamente reduzidas aos militares que vão a julgamento por crimes, ela também tem custos completamente desproporcionais ao número de processos que movimenta.

Enquanto o funcionamento do Supremo Tribunal Militar (STM) consumiu cerca de R$ 600 milhões em 2022, tendo cerca de 3,7 mil processos pendentes, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) custa quase o triplo (R$ 1,6 bilhão), mas tem quase 70 vezes mais processos em andamento (256 mil).

Na Previdência militar o fenômeno é parecido. Embora o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tivesse o maior peso no déficit previdenciário do governo federal em 2022 (representando 73,3% do déficit total), ele atende a mais de 30 milhões de aposentados e pensionistas (95,9% do total).

Já o regime de previdência dos militares representava então 13% do déficit, para apenas 519 mil aposentados militares e seus pensionistas (ou 1,6% do total de beneficiários).

"Essa é uma briga que nenhum presidente quis comprar ainda", observa Carraza.

"Mas vamos ver se o governo Lula vai ter coragem de colocar a mão nesse vespeiro que é atacar os privilégios que os militares têm na questão previdenciária."

7. Políticos

A lista de privilégios da classe política é extensa, enumera o professor da Fundação Dom Cabral.

Começa com as cotas parlamentares para custear passagens aéreas, aluguel de veículos, publicidade, pesquisa e consultorias e a manutenção de escritórios em redutos eleitorais.

Passa pelos cargos comissionados, as verbas do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, as emendas parlamentares do Orçamento, e a proteção contra punições gerada pelo sistema de indicações dos tribunais de contas e pela instituição do foro privilegiado.

Privilégios desequilibram o jogo político e aumentam as chances de reeleição de um parlamentar que já exerce o cargo, destaca o pesquisador (CRÉDITO, FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL)

O resultado de tudo isso é uma condição de concorrência diferente entre o parlamentar eleito e seus adversários num processo eleitoral, considera o pesquisador.

"Isso desequilibra o jogo e aumenta as chances de reeleição de um parlamentar que já exerce o cargo. Há um combo de benefícios eleitorais, remuneratórios, de proteção judicial, orçamentários e de cargos, que acabam beneficiando muito a classe política estabelecida."

8. Cartórios

Por fim, chegamos aos cartórios, incluídas por Carazza à lista por prestarem um serviço por delegação pública, terem a titularidade auferida por concurso público de provas e títulos, mas gerarem lucros (gigantescos) privados.

Aqui a coisa já foi pior, é verdade. No passado, a titularidade dos cartórios passava de pai para filho, com indicações por critérios políticos. Desde a Constituição de 1988, passaram a valer as regras atuais, pondo fim à hereditariedade.

O pesquisador observa, porém, que os titulares de cartórios seguem desfrutando de uma série de privilégios, como o fato de não haver limites para a remuneração, o que leva, por exemplo, ao rendimento de R$ 500 mil dos donos de cartórios do Distrito Federal, citados no início desse texto.

Pessoas sendo atendidas em cartório de registro civil (CRÉDITO, PEDRO FRANÇA/AGÊNCIA SENADO)

Legenda da foto,Não há nenhum Estado da federação onde a remuneração média de um titular de cartório seja inferior a R$ 40 mil, segundo dados da Receita Federal

Embora esse seja um valor fora da curva, não há nenhum Estado da federação onde a remuneração média de um titular de cartório seja inferior a R$ 40 mil mensais, segundo os dados da Receita Federal.

Além disso, há pouca fiscalização quanto à qualidade dos serviços prestados.

"É um serviço que impõe um ônus muito grande para as transações econômicas no Brasil, desde a compra e venda de imóveis, transferências de veículos, abertura de uma empresa, até atos corriqueiros de firmas e contratos."

"Então é uma atividade com uma remuneração altíssima, pouco regulada e que onera em termos de tempo e de custo, de uma forma muito significativa, a população brasileira em geral."

Carazza avalia que algumas soluções possíveis aqui incluiriam a limitação dos rendimentos de cartórios; eliminação de exclusividades territoriais nos registros de imóveis; a padronização da qualidade do atendimento; e a digitalização da escrituração.

"Há um amplo caminho para baratear e elevar a eficiência das trocas na economia brasileira."

Thais Carrança, a autora deste texto, é jornalista. Publicado originalmente pela BBC News Brasil, em 28.06.24.

terça-feira, 9 de julho de 2024

A direita democrática precisa negar Bolsonaro

Evento da extrema direita no Brasil mostra a força de um movimento que reafirma caráter autoritário ao jurar lealdade absoluta não à lei ou aos valores republicanos, e sim a Bolsonaro

A Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC Brasil), realizada no fim de semana passado em Santa Catarina, exibiu tudo aquilo que se espera de uma versão tropical da cúpula da extrema direita global: ofensas a figuras da esquerda e a jornalistas, denúncias sobre a suposta perseguição judicial enfrentada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e defesa da liberdade de expressão para desacreditar o “sistema”. O mais relevante, contudo, é a confirmação da liderança inconteste de Bolsonaro. Apesar da inelegibilidade, Bolsonaro continua a ser a maior força política e, portanto, o maior cabo eleitoral dos extremistas da direita.

Aos bolsonaristas importa menos a condenação por irregularidades cometidas em 2022 e mais sua capacidade de mobilizar aliados e atrair eleitores. Como Lula da Silva em 2018 – à época preso pela Lava Jato e impedido de concorrer –, chega-se a apostar na candidatura de Bolsonaro já em 2026, ainda que esteja proibido até 2030, como forma de puxar a corda em favor das hostes extremistas. Pelo que se viu na CPAC, essa extrema direita está preparada para fazer barulho, tentar gerar instabilidade institucional ou ganhar as eleições. Ou as três coisas somadas.

Reconhecida a musculatura política do ex-presidente, é o momento de separar o joio do trigo: há Bolsonaro e o bolsonarismo, num lado, e há a direita democrática, no outro. São água e óleo. O bolsonarismo é a mais perfeita tradução de um extremismo destrutivo, só capaz de prosperar num ambiente de conflagração permanente e de negação dos padrões civilizados de convivência entre interesses sociais divergentes. A direita tradicional é democrática, sustenta-se nas ideias liberais e republicanas e sabe respeitar as instituições e as regras da democracia. Os extremistas bolsonaristas só querem delinquir sem serem incomodados. As reais forças de direita, porém, rejeitam o vale-tudo, a intolerância e o golpismo.

Não são apenas nuances, e sim visões radicalmente opostas sobre o exercício da política. Separá-las ajuda cidadãos e eleitores a escapar da armadilha fabricada pela esquerda. Para esta, sobretudo para o lulopetismo, “extrema direita” cumpre hoje o papel que a expressão “neoliberalismo” cumpria anos atrás, isto é, a possibilidade de rotular tudo o que a esquerda considera ruim – da austeridade fiscal à segurança pública, do conservadorismo nos costumes ao populismo de direita. Reconhecer tais diferenças é útil quando se observam Bolsonaro e seu orgulho liberticida, que joga aos tubarões quem ousa ao mesmo tempo reivindicar o apoio dos seus devotos e respeitar instituições e adversários.

Eis aí a enorme missão a ser cumprida por outros nomes da direita brasileira, como os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), e do Paraná, Ratinho Júnior (PSD) – os três principais candidatos a herdar o capital político de Bolsonaro. É esse o desafio especialmente imposto ao governador de São Paulo, o favorito: decidir se deseja apresentar-se como uma liderança da direita – democrática, liberal e republicana, insista-se – ou se quer se juntar aos delinquentes. É um dilema similar ao do Partido Republicano nos Estados Unidos. Em tese, um partido existe para diluir ambições pessoais e valorizar causas. Hoje, os republicanos só têm uma causa: a que Donald Trump definir. O presidente do partido de Bolsonaro, Valdemar Costa Neto, disse o mesmo sobre Bolsonaro e o PL. Nada mais antidemocrático.

Se não quiser ser vista como parte do gangsterismo disfarçado de movimento político chamado “bolsonarismo”, a direita precisa negar Bolsonaro. É uma equação eleitoralmente difícil, mas ou é isto ou então é mergulhar no abismo moral e político que o bolsonarismo representa. Para tanto, a direita democrática pode e deve galvanizar o espírito do antipetismo ou do desencanto de quem está farto dos rumos tomados pelo lulopetismo e sua promessa não cumprida de pacificar o Brasil. Mas, antes de mirar o PT, convém se descontaminar do que há de mais antidemocrático e incivilizado que este país produziu em sua história.

Editorial / Notas & Informações,  O Estado de S.Paulo, em 09.07.24

Bolsonaro desviou mais de R$ 6,8 milhões em presentes

Polícia Federal afirma ter encontrado indícios de que valores obtidos de vendas de joias e outros objetos iam para o patrimônio pessoal do ex-presidente e eram usados para custear despesas suas e de sua família nos EUA.

Venda ilícita das joias retornariam ao patrimônio de Bolsonaro através de lavagem de dinheiro, diz PF (Foto: Amanda Perobelli/REUTERS)

A Polícia Federal (PF) concluiu em investigação que o ex-presidente Jair Bolsonaro teve participação no desvio ou na tentativa de desvio de pouco mais de 6,8 milhões de reais em presentes como esculturas, joias e relógios, recebidos de países estrangeiros em razão de sua condição de mandatário do Brasil. 

O valor que consta na conclusão do relatório é R$ 25 milhões, mas a PF informou horas depois de o documento vir a público que houve erro material na redação das conclusões, e que o valor correto é R$ 6,8 milhões, conforme consta em outros trechos do relatório.

A investigação da PF apontou a existência de uma associação criminosa cujo objetivo seria especificamente desviar e vender objetos de valor recebidos por Bolsonaro como presente oficial.

"Identificou-se ainda que os valores obtidos dessas vendas eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-presidente da República, por meio de pessoas interpostas e sem utilizar o sistema bancário formal, com o objetivo de ocultar a origem localização e propriedade dos valores”, aponta o relatório da PF.

Bolsonaro e mais 11 pessoas foram indiciadas na semana passada pelos crimes de peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro. O relatório sobre a investigação foi entregue impresso, em um envelope, no protocolo do Supremo Tribunal Federal (STF), na sexta-feira.

O sigilo do relatório da PF, que tem 476 páginas, foi derrubado nesta segunda-feira (8) pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso no Supremo. O magistrado encaminhou o processo para análise da Procuradoria-Geral da República (PGR), a quem cabe agora analisar se arquiva o caso ou denuncia os indiciados. É possível também que o órgão solicite nova coleta de provas. 

Associação criminosa

Assinado pelo delegado responsável Fábio Shor, o relatório conclui que "os elementos acostados nos autos evidenciaram a atuação de uma associação criminosa voltada para a prática de desvio de presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais, entregues por autoridades estrangeiras, para posteriormente serem vendidos no exterior”. 

Ainda segundo o documento, a "atuação ilícita teve a finalidade de desviar bens”. Parte desse dinheiro, segundo a PF, pode ter sido utilizado para custear a estadia de Bolsonaro nos Estados Unidos, para onde foi um dia antes de deixar a Presidência da República e onde permaneceu por mais de três meses. 

Em março de 2023, quando a venda de presentes oficiais foi primeiro noticiada por veículos de imprensa, foi organizada uma nova operação, dessa vez com o objetivo de recuperar itens já vendidos no mercado. O objetivo seria "escamotear a localização e movimentação dos bens desviados do acervo público brasileiro e tornar seguro, mediante ocultação da localização e propriedade, os proventos obtidos com a venda de parte dos bens desviados”, concluiu a PF. 

"Tal fato indica a possibilidade de que os proventos obtidos por meio da venda ilícita das joias desviadas do acervo público brasileiro, que, após os atos de lavagem especificados, retornaram, em espécie, para o patrimônio do ex-presidente, possam ter sido utilizados para custear as despesas em dólar de Jair Bolsonaro e sua família, enquanto permaneceram em solo norte-americano”, aponta o relatório da PF. 

Lavagem de dinheiro

Segundo a PF, foram encontrados indícios de que "os proventos obtidos por meio da venda ilícita das joias desviadas do acervo público brasileiro" retornaram para o patrimônio de Bolsonaro e de sua família, por meio de lavagem de dinheiro, enquanto ele estava nos Estados Unidos.

"A utilização de dinheiro em espécie para pagamento de despesas cotidianas é uma das formas mais usuais para reintegrar o 'dinheiro sujo' à economia formal, com aparência lícita", afirmou a PF.

As investigações contaram com a colaboração do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que fechou acordo de colaboração premiada. As investigações apontam, por exemplo, o envolvimento do pai de Mauro Cid, general do Exército Mauro Lorena Cid, que teria intermediado o repasse de US$ 68 mil em espécie ao ex-presidente. 

O general Cid recebeu o dinheiro em sua própria conta bancária, depois da venda de um relógio Patek Phillip e de um Rolex. O militar trabalhava no escritório da Apex, em Miami.

Nos autos, foram anexados também outros tipos de prova, como comprovantes de saques bancários no Brasil e nos EUA e planilhas mantidas pelo assessor Marcelo Câmara, que era responsável por fazer a contabilidade pessoal de Bolsonaro. 

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 09.07.24

sexta-feira, 5 de julho de 2024

A memória conspurcada

O País sem memória não está apenas no passado, mas também no presente. E, talvez contraditoriamente, está presente para jamais ser esquecido

O Brasil é um país sem memória. E o trágico é que os equívocos do passado podem nos levar a não errar no presente e, igualmente, a nos fazer acertar no futuro.

Aqui, tudo (ou quase tudo) nos leva a esquecer. Indago: quem se recorda da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República em 1961, aos sete meses de governo, mesmo tendo sido eleito por avassaladora maioria? Ou quem se recorda do veto dos três ministros militares à posse do vicepresidente João Goulart ou da Campanha da Legalidade, iniciada no Sul pelo então governador gaúcho Leonel Brizola e que logo se estendeu a todo o País?

Ou quem se lembra do golpe militar de 1.º de abril de 1964, que durou 21 anos, nos quais os governantes eram “eleitos” pelos donos do poder, desde o ditador de turno até os governadores e prefeitos das capitais estaduais? O voto popular foi suprimido ou incinerado, os partidos políticos foram abolidos. Instituiuse a censura à imprensa e demais meios de comunicação. A tortura aos presos políticos transformou-se em método de interrogatório.

Poderá dizer-se que “tudo aconteceu em outro século” e que, por isso, pertence a “um passado remoto”, fácil de esquecer. Resquícios do golpe (que há pouco completou 60 anos) só foram abolidos, no entanto, com a campanha das “diretas já”. Mesmo assim deixaram marcas que perduram até hoje, tais quais a atual enxurrada de mais de 30 partidos que nada (ou quase nada) representam e que mais parecem meros aglomerados de gente em busca de poder pessoal.

Nos tempos do governo Bolsonaro, um de seus filhos-parlamentar chegou a sugerir a reimplantação do Ato Institucional n.º 5, que, nos tempos da ditadura, suprimiu o habeas corpus e outros direitos constitucionais, levando ainda à cassação de direitos políticos de centenas de brasileiros e à destituição de integrantes do Supremo Tribunal Federal. As restrições à livre imprensa tornaram-se ainda mais férreas e absurdas quando censores ocuparam as redações dos jornais (inclusive do Estadão), ditando aquilo que poderia ser ou não ser publicado.

Mais ainda: os jornais foram proibidos de publicar “espaços em branco” que mostrassem o que havia sido cortado pelo censor. Para deixar clara a insânia dos cortes da censura, este jornal publicava trechos do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões, num desafio à ferocidade da censura, para que os leitores entendessem que naqueles espaços deviam estar as notícias censuradas.

Os censores chegaram ao absurdo de proibir que se publicassem informações sobre uma epidemia que assolou São Paulo naquela época… A falsa justificativa inventada pela censura era de que a divulgação da epidemia poderia “criar pânico” na população.

Essa e outras perigosas tolices inventadas pela censura generalizada faziam parte, porém, da forma de governar o País nos tempos da ditadura… Seria isso aquilo que o filhoparlamentar do ex-presidente Jair Bolsonaro acreditava ser útil à democracia? Ou teria a memória conspurcada ou que só cultivava o horror, tal qual erva daninha?

Esse país sem memória, porém, não está apenas no passado, mas também no presente. E, talvez contraditoriamente, está presente para jamais ser esquecido.

Três fatos recentes levam a pensar assim. Primeiro, uma ação que tramita no Supremo Tribunal Federal e que leva ao pagamento de quase R$ 1 bilhão a juízes, procuradores e promotores federais. O “penduricalho” irá render a cada beneficiado cerca de R$ 2 milhões.

O absurdo, porém, é que o caso tramita há anos no Supremo Tribunal Federal sob a justificativa (ou pretexto) de que os juízes, procuradores e promotores federais têm “acúmulo de trabalho” ou trabalham em mais de uma comarca. Até aqui, pela regra em vigor, nenhum funcionário federal poderia receber mais do que um ministro do Supremo.

O ponto de partida para a criação dos “penduricalhos” de agora foi uma lei do Congresso Nacional, sancionada em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff, que beneficiava juízes com “excesso de trabalho”. Posteriormente, a lei foi estendida aos juízes estaduais.

A soma de absurdos estendeu-se agora ao Projeto de Lei n.º 1.904 de 2024, em tramitação na Câmara dos Deputados, que equipara o aborto ao crime de homicídio. No entanto, em termos de Direito, o mais negativo é que, de fato, punese a vítima e se isenta o “criminoso”. Talvez mais grave ainda é que, de um modo geral, não se impõe ao homem nenhuma responsabilidade pela gravidez, recaindo tudo somente na mulher.

O terceiro ponto a não esquecer se origina na decisão do Supremo Tribunal Federal de liberar o uso da maconha para “uso pessoal”. Até 40 gramas, qualquer pessoa, jovem, adulta ou idosa, pode portar e consumir a perigosa cannabis, que, por sua vez, abre portas ao consumo de drogas ainda mais perversas.

A Suprema Corte esqueceu-se de que a relação entre consumidores e narcotraficantes é biunívoca. Um não existe sem o outro. O narcotraficante existe porque há quem consuma. E vice-versa.

Outra vez, vale dizer que somos um país sem memória. •

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor,  Prêmio Jabuti 2000 e 2005,  Prêmio APCA 2004. Professor aposentado da Universidade de Brasília. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.07.24.

Suprema Corte embala o sonho de Trump

Trump sempre quis exercer o poder como bem entender, sem freio. Obviamente, digam o que disserem os republicanos da Corte, não foi com isso que os fundadores dos EUA sonharam

ASuprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por 6 votos a 3, que ex-presidentes da República não podem ser investigados e julgados criminalmente por seus atos no exercício do cargo. A decisão diz respeito ao caso que envolve o ex-presidente Donald Trump, acusado de ter tentado reverter o resultado da eleição de 2020, na qual foi derrotado por Joe Biden.

Os seis votos vencedores foram dos ministros indicados por presidentes republicanos (três deles por Trump), enquanto os três votos derrotados foram dos ministros indicados por presidentes democratas, o que explicita a dimensão política do debate: para os republicanos, a decisão da Suprema Corte respeita a Constituição e a separação de Poderes; para os democratas, a decisão viola a Constituição e cria um Poder – o Executivo – acima dos demais.

Essa divisão evidente mostra que não houve debate, e sim uma disputa politicamente motivada, cujo desfecho refletiu apenas e tão somente a aritmética – aparentemente há seis juízes dispostos a defender Trump a qualquer custo e há apenas três dispostos a condená-lo de modo implacável. Eis a miséria do debate público atual, nos Estados Unidos e em praticamente todo o mundo: não parece haver mais a possibilidade de um consenso sobre aspectos basilares da vida em sociedade e sobre o funcionamento do Estado – inclusive, ou principalmente, sobre a própria Constituição, espécie de contrato fundamental da relação entre indivíduos, sociedade e Estado.

O fato incontornável, contudo, é que a questão da imunidade presidencial é decisiva para as eleições presidenciais deste ano nos Estados Unidos, razão pela qual seu componente político é central. Um revés para Trump na Suprema Corte possivelmente o alijaria da disputa eleitoral, e não é de hoje que aquele tribunal evita tomar decisões que possam resultar na inelegibilidade de quem quer que seja.

Recentemente, por exemplo, a Suprema Corte rejeitou uma decisão judicial que havia retirado Trump da cédula eleitoral das primárias republicanas no Estado do Colorado por seu envolvimento na invasão do Capitólio em janeiro de 2021, em que seus seguidores pretendiam impedir a certificação da vitória de Biden. É interessante observar que essa decisão foi unânime – ou seja, todos os ministros da Suprema Corte, sejam republicanos ou democratas, entenderam que nenhum Estado, individualmente, pode impedir candidaturas presidenciais.

Mas o caso da imunidade presidencial reivindicada por Trump está em outro patamar. Sua intenção evidente é escapar de punição por seus crimes, a começar pela tentativa de destruir a democracia dos Estados Unidos, sobre a qual há inúmeras e inquestionáveis evidências.

Quando os formuladores da Constituição americana imaginaram o instituto da imunidade presidencial, não o fizeram para impedir que os presidentes, uma vez fora do cargo, fossem imunes a processos por crimes, sobretudo crimes contra a democracia, e sim para dar ao presidente da República conforto jurídico para tomar suas decisões de Estado, muitas das quais impopulares, duras e eventualmente violentas, sem se preocupar com eventuais processos no futuro.

Tentar reverter o resultado de uma eleição por meio de fraude e uso da força, como fez Trump, não está, ou não deveria estar, entre as atribuições oficiais de um presidente, mas, na prática, foi isso o que a Suprema Corte decidiu. Doravante, portanto, presidentes americanos são considerados formalmente inimputáveis, mesmo que atentem contra a democracia.

Era exatamente o que os pais da República americana queriam impedir. Pois não há nada mais contrário ao espírito da República que ter um chefe de Estado acima da lei, algo próprio da monarquia – em que o rei encarna a soberania e a lei, razão pela qual não pode ser sancionado de nenhuma maneira.

É com isso que Trump sempre sonhou: cometer crimes sem ser punido e, na condição de presidente, exercer o poder como bem entender, sem qualquer tipo de freio. Obviamente, digam o que disserem os republicanos da Suprema Corte e sejam quais forem as nuances jurídicas da decisão, não foi com isso que os fundadores dos Estados Unidos sonharam.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.07.24