sexta-feira, 26 de abril de 2024

A nova batalha da reforma tributária

Com a alíquota de referência do novo imposto sobre bens e serviços enfim divulgada, parlamentares terão de ter ainda mais cuidado para impedir um aumento da carga tributária

O governo finalmente enviou ao Congresso o primeiro dos três projetos de lei que regulamentarão a reforma tributária sobre o consumo, promulgada no ano passado. Com a apresentação das regras gerais sobre o funcionamento dos impostos que incidirão sobre bens e serviços, o contribuinte finalmente saberá quanto, efetivamente, paga em impostos por cada item que adquire, tarefa impossível dado o cipoal de normas que caracterizam o atual sistema tributário.

Muitas das críticas que a iniciativa tem recebido são descabidas, a começar pela alíquota final do novo Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Da forma como o governo elaborou a proposta, ela ficará entre 25,7% e 27,3%, com média de 26,5%, o que renderia ao Brasil uma das alíquotas mais altas entre os países que adotam o modelo do IVA.

Ora, em primeiro lugar, a carga tributária sobre bens e serviços atual já é, em média, de 34,4%, considerando impostos federais, estaduais e municipais. A diferença é que o novo sistema vai proporcionar a recuperação de créditos ao longo da cadeia, o fim das cobranças “por dentro” e a não cumulatividade de impostos, fundamental para garantir competitividade à indústria nacional.

Tampouco são justas as reclamações sobre o tamanho do texto, que soma 360 páginas e 499 artigos. Uma mudança tão profunda quanto a proposta da reforma tributária aprovada pelo Congresso no ano passado não poderia ter um resultado diferente, considerando a necessidade de regulamentar os novos tributos e os regimes específicos para diversos setores econômicos.

Algo a ser elogiado é a reduzida lista de itens da cesta básica que terão direito à isenção de impostos federais. Pela proposta do governo, serão apenas 15 produtos – arroz, feijão, leite, café e açúcar, entre outros – que refletem o consumo dos mais pobres. Outros itens terão desconto de 60% no valor dos tributos, como carnes, peixes, massas e sucos.

Fato é que não há motivo razoável para manter a isenção da lista atual, com mais 700 produtos, entre eles bacalhau, salmão e nozes. A forma de devolução dos impostos pagos pelas famílias de baixa renda, por meio de descontos automáticos nas faturas de água, esgoto e energia elétrica, é uma medida acertada, que coloca o foco nos mais necessitados e desestimula furtos e ligações clandestinas.

Há, no entanto, muitos temas com potencial de gerar controvérsias e travar as discussões no Congresso. Um dos principais é o Imposto Seletivo, que incidirá sobre itens supostamente danosos à saúde e emissores de poluentes. Segundo propôs o governo, o tributo incidirá sobre cigarros, bebidas alcoólicas, refrigerantes, embarcações, aeronaves, veículos e bens minerais extraídos. O Executivo terá trabalho para manter a lista intacta, uma vez que muitos desses setores são conhecidos pelas excelentes relações que mantêm com os parlamentares.

Há pouco tempo para discutir a reforma no Congresso, e o governo terá de reforçar sua articulação política para garantir sua aprovação ainda neste ano, encurtado em razão das eleições municipais. Embora a proposta entre em vigor apenas em 2033, o período de transição será iniciado em 2026. Em 2025, no entanto, será preciso estabelecer normas infralegais que dependem deste e de outros dois projetos, ainda a serem enviados, que tratarão dos fundos regionais e do comitê gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a ser administrado por Estados e municípios.

Agora que a alíquota de referência do novo imposto foi finalmente divulgada, deputados e senadores terão de ter ainda mais cuidado na análise do texto. Como a reforma é neutra sob o ponto de vista arrecadatório, qualquer benesse adicional para um segmento específico, como a inclusão de novos alimentos na lista de itens isentos da cesta básica, aumentará o imposto pago pelos demais.

A diferença é que, na fase atual, o custo político dessas decisões recairá sobre os parlamentares, e não mais sobre o governo. Será um verdadeiro teste de fogo ao discurso oficial do Legislativo, que se diz contrário a qualquer medida de aumento de impostos.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.04.26

Mulheres reconhecem a velhice mais tarde que homens

De acordo com pesquisa liderada por cientista alemão, mulheres têm a percepção de que a velhice começa, em média, dois anos depois que os homens. Diferença na expectativa de vida e estigmas podem ser a explicação.

Estudo analisa como o sexo e o estado de saúde influenciam as diferenças na percepção da velhice (Foto: Neundorf/Kirchner-Media/picture alliance)

Um estudo publicado pela Psychology and Aging, revista da Associação Americana de Psicologia, traz uma outra percepção sobre a velhice. Segundo a pesquisa, para os adultos de meia-idade (40 a 60 anos) e mais velhos, ter 70 anos já não tem o mesmo significado que antigamente. Para eles, a velhice agora começa mais tarde. O aumento da expectativa de vida e o atraso no ato de se aposentar podem explicar essa mudança na percepção do público sobre a chamada terceira idade.

Em relação à forma como o gênero influencia, o estudo constatou que as mulheres consideram que a velhice começa dois anos mais tarde do que os homens – e esta percepção tem aumentado ao longo do tempo.

Isso pode estar relacionado ao fato de as mulheres geralmente viverem mais tempo e também enfrentarem mais estigmas à medida que envelhecem. Markus Wettstein, da Universidade Humboldt de Berlim, que liderou a investigação, diz que as mulheres podem definir a velhice mais tarde para se distanciarem das conotações negativas associadas a ela.

Em geral, de acordo com Wettstein e sua equipe, os adultos de hoje sentem que a velhice começa mais tarde do que as pessoas nascidas nas décadas anteriores.

"A expectativa de vida aumentou, o que pode contribuir para uma percepção mais tardia do início da velhice. Além disso, alguns aspectos da saúde melhoraram ao longo do tempo, de modo que pessoas de uma determinada idade que eram consideradas velhas no passado podem não ser mais hoje", diz Wettstein.

Duas décadas e meia de pesquisa

A equipe, composta por investigadores das universidades de Luxemburgo, Stanford (Estados Unidos) e Greifswald (Alemanha), examinou dados de 14.056 participantes no Inquérito Alemão sobre o Envelhecimento, um estudo que inclui pessoas residentes na Alemanha nascidas entre 1911 e 1974.

Os participantes responderam perguntas até oito vezes ao longo de 25 anos (1996-2021), enquanto tinham entre 40 e 100 anos. À medida que as primeiras gerações da pesquisa entravam na velhice, a equipe recrutava novos participantes (com idades entre 40 e 85 anos).

Por que jovens de antigamente pareciam mais velhos?

Embora os participantes tivessem que responder muitas perguntas, a principal era: "com que idade você descreveria alguém como velho?"

Assim, os pesquisadores descobriram que, em comparação com os participantes nascidos mais no cedo, os que nasceram mais tarde percebiam a velhice mais tardiamente.

Por exemplo, quando os participantes nascidos em 1911 tinham 65 anos, definiram o início da velhice aos 71 anos. Em contrapartida, quando os participantes nascidos em 1956 tinham os mesmos 65 anos, diziam que a velhice começava, em média, aos 74.

Os investigadores também descobriram que a tendência para perceber o início da velhice mais tarde diminuiu nos últimos anos.

"A tendência para adiar a velhice não é linear e pode não continuar necessariamente no futuro", conclui Wettstein.

Quanto mais velho você for, mais longe estará a velhice

Os pesquisadores também analisaram como a percepção dos participantes sobre a velhice mudava à medida que eles envelheciam

Segundo o estudo, a resposta dos participantes com 64 anos era, em média, a de que a velhice começava aos 74,7 anos. Mas, quando esses mesmos participantes chegaram aos 74 anos, eles passaram a dizer que a velhice começava aos 76,8 anos. Em média, a percepção do início da velhice aumentou aproximadamente um ano para cada quatro ou cinco anos de envelhecimento real.

Foi descoberto também que as pessoas que se sentiam mais solitárias e tinham pior saúde e acabavam se sentindo mais velhas. Elas afirmaram que a velhice começava mais cedo, em média, do que aquelas que se sentiam menos solitárias, que tinham a saúde melhor e, portanto, se sentiam mais jovens.

Para os pesquisadores, os resultados podem ter implicações sobre quando e como as pessoas se preparam para o seu próprio envelhecimento e como encaram os idosos em geral.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 24.04.24

Quando o estresse constante leva à depressão

Ao contrário do que ocorre na síndrome de burnout, ao invés de colapsarem, as pessoas com burnon continuam a correr em suas "rodas de hamster", o que pode causar depressão crônica por exaustão.

Trabalho, família, amigos são importantes, mas o estresse constante pode fazer mal á saúde (Foto: Ursula Deja / Fotolia)

Muitas pessoas parecem estar constantemente eletrificadas. Elas são apaixonadas por suas profissões; seus celulares são suas companhias constantes e elas sempre podem ser encontradas, à noite ou nos finais de semana. Elas gostam do trabalho, embora seus afazeres continuem acumulando cada vez mais. De um lado, os prazos; de outro, os problemas. Isso tudo além da família, crianças e amigos: eles querem tratar todos da maneira correta. Apesar desse ritmo frenético, ainda querem praticar esportes e comparecer a eventos.

Mas, permanecer o tempo todo "aceso" pode ser perigoso. O estresse constante, sem pausas reais, pode adoecer as pessoas. Essa sobrecarga crônica é descrita como um termo relativamente novo: burnon.

Diferenças entre burnon e burnout:

O termo burnon foi criado pelos psicólogos Timo Schiele e Bert te Wildt, da clínica psicossomática em Kloster Dießen, próximo a Munique, que oferece tratamento a pacientes com síndrome de burnout.

Os sintomas de burnout incluem exaustão, performance reduzida e cinismo – uma distância mental do trabalho.

No caso do burnon, os sintomas são diferentes, explica Timo Schiele à DW. "Ao contrário, as pessoas afetadas descrevem uma conexão demasiadamente próxima e entusiástica com seu trabalho, às vezes mais como uma super excitação. Isso fez com que surgisse a descrição da síndrome de burnon."

Sintomas de burnon

As pessoas afetadas possuem paixão pelo trabalho, mas o estresse constante gera tensões constantes. Muitos sofrem inicialmente de dores no pescoço, nas costas, dores de cabeça e bruxismo (ato de ranger os dentes).

A vida exaustiva em suas rodas de hamster os leva ao desespero. Eles perdem a esperança de melhorar suas condições, não conseguem mais se sentir felizes e questionam o sentido das coisas.

"Além das comorbidades psicológicas e doenças secundárias, como depressão, ansiedade ou vícios, também acreditamos que os afetados podem sofrer cada vez mais de fenômenos psicossomáticos, como pressão alta, e suas possíveis consequências", diz, Schiele. A pressão sanguínea alta aumenta significativamente o risco de ataques cardíacos e derrames. 

Causas mais comuns de burnon

Nossas vidas cotidianas estão cada vez mais frenéticas. O sucesso profissional e o reconhecimento social têm importância central. A competição intensa, as crises econômicas e os preços altos podem aumentar o estresse.

Até agora, existem mais dados sobre o burnout. A empresa alemã de seguros de saúde Provona registrou um aumento de 20% nos casos em 2023, em comparação com o ano anterior, sendo que um quinto dos trabalhadores teme adquirir a síndrome.

Qualquer pessoa que queira não apenas concluir vários afazeres em seu cotidiano frenético, mas também completá-los da melhor maneira possível, está especialmente propensa à síndrome de burnon. "Acreditamos que multas das pessoas afetadas possuem alto nível de motivação para realizar funções e se sentem mal ao cometer erros ou não fazer as coisas de maneira perfeita".

Segundo Schiele, essas pessoas pensam ter uma capacidade de ação reduzida devido a determinadas restrições. "Com frequência, vemos pessoas que impõem muitas restrições a si mesmas, por exemplo, através do perfeccionismo."

Como tratar o burnon

Para conseguir escapar da roda de hamster e da tensão crônica constante, é necessário, primeiramente, reconhecer o problema, diz o especialista.

"O primeiro passo no tratamento, como costuma ser o caso, é se tornar consciente do problema. As pessoas com síndrome de burnon com frequência aparentam estar funcionais, motivo pelo qual costumamos nos basear em relatos de familiares ou pessoas próximas. É também importante refletirmos sobre nossos próprios valores pessoais."

O estresse constante sem pausas reais pode levar pessoas ao desespero e à perda de esperança  (Foto: Pond5 Images/IMAGO)

Em particular quando as pessoas são apaixonadas pelo trabalho, elas tendem a negligenciar suas necessidades pessoais em meio ao cotidiano estressante.

"Se isso se torna uma condição permanente, ficamos cada vez mais insatisfeitos. Por isso, é importante parar para perguntar a si mesmo: 'O quão importante para mim são as coisas com as quais preencho minha vida diária? Estou usando minha energia nas áreas adequadas para mim?' Se a resposta for negativa, é porque está na hora de mudar algo e tentar ver quais espaços pequenos somos capazes de criar, interna e externamente. Este é, com frequência, um grande passo", diz Schiele.

Como reduzir o estresse constante

O tipo de relaxamento que é bom para cada pessoa depende das preferências individuais. Podem ser caminhadas, meditação ou ioga. O fundamental é desacelerar a vida diária e se acalmar.

Também faz sentido buscar ajuda profissional, como cuidados terapêuticos ou médicos.

A importância de se dar nome à doença

O burnout é considerado já há algum tempo como uma doença da moda. Até hoje, nem o burnout ou o burnon foram definidos como doenças mentais autônomas, mesmo que seus graves impactos à saúde sejam reconhecidos.

Os sintomas possuem grande variação, o que dificulta classificar as síndromes de maneira uniformizada, como na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), que também relaciona problemas mentais.

Ainda assim, a existência do termo burnon é de extrema importância para as pessoas afetadas para descrever seus sintomas, diz Schiele.

"Encontrar a si mesmo em um fenômeno definido é um alívio bastante grande para muitas das pessoas atingidas, e um primeiro passo rumo a uma mudança. Essas pessoas sentem que não estão mais sozinhas. Eles podem ganhar esperança ao verem que há outras pessoas que também sofrem do mesmo mal."

Alexander Freund, o autor deste artigo, é Jornalista especializado em  Ciência. Publicado originalmente por Deustche Welle Brasil, em 25.04.24

O que deve mudar com a regulamentação da reforma tributária

Projeto detalha como será a simplificação dos impostos sobre o consumo e define desonerações, como a da cesta básica e da atividade de 18 profissões.

Proposta que regulamenta reforma tributária segue para votação na Câmara dos Deputados, presidida por Arthur Lira (Foto: Ueslei Marcelino / Reuters)

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, enviou ao Congresso Nacional nessa quarta-feira (24/04) a primeira proposta de regulamentação da reforma tributária.O projeto de lei complementar trata das regras para os impostos criados pela reforma, aprovada em 2023 e que pretende simplificar o regime de tributação sobre o consumo no país.

No lugar do antigo arranjo de tributos federais, estaduais e municipais, que tinham uma alíquota média total de 34%, o governo propõe um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) de 26,5%.

A regulamentação total da reforma tributária deve ocorrer entre 2024 e 2025, a depender da aprovação de deputados e senadores. A transição para o novo modelo está prevista para começar em 2026.

Confira os principais pontos da proposta do governo:

Novos impostos

O texto define que o IVA será composto por dois tributos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), gerido pela União; e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), gerido por Estados e municípios.

O IVA entrará no lugar de três tributos federais (PIS, Cofins e IPI), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS).  A proposta prevê uma alíquota média de 26,5%, podendo variar entre 25,7% e 27,3%, segundo informou o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy.

Foi criado ainda o Imposto Seletivo (IS), de natureza regulatória, para desestimular o consumo de bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Essa taxa será cobrada sobre veículos, embarcações e aeronaves, produtos fumígenos (cigarros, cigarrilhas, charutos, tabaco, entre outros), bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas e bens minerais extraídos.

A lista não incluiu alimentos ultraprocessados, apesar da indicação de especialistas da área da saúde em defesa da cobrança sobre esses produtos.

Devolução de impostos

O projeto cria também um sistema de devolução personalizada de impostos, popularizado pelo termo em inglês "cashback", para a população mais pobre. 

Famílias com renda per capita de até meio salário mínimo (o equivalente a R$ 706 atualmente) inscritas no Cadastro Único dos programas sociais do governo terão direito a receber de volta até 50% dos tributos na conta de luz, água, esgoto e gás natural, e de até 100% na aquisição do gás de botijão.

Cesta básica e higiene

O governo listou 18 categorias de produtos da cesta básica nacional que serão integralmente desonerados. A seleção considerou a diversidade regional e cultural da alimentação do país e quais alimentos são mais consumidos pela população de baixa renda.

Os produtos com a alíquota zero previstos são: arroz, leite, manteiga, margarina, feijões, raízes e tubérculos, cocos, café, óleo de soja, farinhas em geral, açúcar, massas alimentícias, pão do tipo comum, ovos, produtos hortícolas e frutas.

Já os produtos que terão redução de 60% das alíquotas de IBS e CBS incluem: carnes bovina, suína, ovina, caprina e de aves e produtos de origem animal, peixes (exceto salmonídeos, atuns; bacalhaus, hadoque, saithe e ovas e outros subprodutos), crustáceos (exceto lagostas e lagostim) e moluscos, leite fermentado, bebidas e compostos lácteos, queijos, mel, mate, tapioca, sal, sucos e polpas de fruta.

Também terão desoneração de 60% produtos de higiene pessoal e limpeza, entre eles sabonete, pasta de dente, papel higiênico, água sanitária e sabões em barra.

Desoneração para profissionais

Foi proposta ainda a redução em 30% das alíquotas da CBS e do IBS sobre a prestação de serviços de 18 profissões regulamentadas de natureza científica, literária ou artística. Considerando a alíquota média de 26,5% para os novos tributos, os serviços desses profissionais seriam de 18,6%.

As profissões com desoneração são: administradores, advogados, arquitetos e urbanistas, assistentes sociais, bibliotecários, biólogos, contabilistas, economistas, economistas domésticos, profissionais de educação física, engenheiros e agrônomos, estatísticos, médicos veterinários e zootecnistas, museólogos, químicos, profissionais de relações públicas e técnicos industriais e agrícolas.

Serviços de educação

A proposta ainda reduz em 60% a CBS e o IBS de serviços de educação, como ensino infantil, fundamental, médio, técnico, superior, ensino para jovens e adultos, ensino de sistemas linguísticos, de natureza visual-motora e de escrita tátil, ensino de línguas nativas de povos originários e educação especial destinada a portadores de deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 25.04.24

quinta-feira, 25 de abril de 2024

'Meu pai se matou, e hoje sou padre e especialista em suicídio'

No Brasil, o número absoluto de suicídios vem crescendo ano após ano desde 2016, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Padre Licio Vale conduzindo missa, observado por fiéis de costas

*Esse texto é o primeiro da série "Suicídio & Fé" da BBC News Brasil, que abordará nas próximas semanas o tabu religioso com o suicídio, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil. Acompanhe as publicações no nosso site e redes sociais.

O padre Licio Vale, de 66 anos, viveu na pele a marcante e relativamente recente mudança na posição da Igreja Católica Apostólica Romana em relação ao suicídio.

Quando Licio tinha 13 anos, seu pai se matou aos 43, no ano de 1970. Como era a norma naquele momento para suicidas, não foram feitos os rituais funerários que uma pessoa que morria em outras condições podia receber.

"Minha família, apesar de muito católica, não teve direito de celebrar a missa de corpo presente, nem a missa de sétimo dia, nem missa de mês, nem missa de ano", lembra Licio, que comanda a paróquia Sagrada Família, no bairro da Ponte Rasa, em São Paulo (SP).

"Porque a Igreja Católica dizia naquela época que as almas das pessoas que se matavam iam direto para o inferno. [Segundo a doutrina antiga] Quem se mata peca contra o Quinto Mandamento da lei de Deus, que é não matar. Então, na minha família, nós vivemos isso na carne."

Quando adolescente, a perspectiva do pai "não ter a salvação eterna" era "profundamente angustiante", ele diz.

Essa posição do catolicismo apostólico romano — a religião mais popular do Brasil, com mais de 123 milhões de fiéis (64,6% da população), segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — só mudou após a revisão do Código de Direito Canônico em 1983.

"Hoje, como padre, graças a Deus, nossa doutrina católica evoluiu", diz, garantindo que a rejeição a esses ritos não acontece mais, nem na teoria nem na prática.

A história de padre Lício e as mudanças da doutrina da Igreja Católica sobre suicídio é a primeira da série de reportagens "Suicídio & Fé", que a BBC News Brasil publica nas próximas semanas.

Licio conta que realizou um sonho de infância — anterior à morte do pai — de se tornar padre há 40 anos.

Também é formado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), especializado em prevenção ao suicídio pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), palestrante e autor de vários livros sobre o tema, como E foram deixados para trás: uma reflexão sobre o fenômeno do suicídio.

No Brasil, o tema ganha cada vez relevância apesar do tabu persistente que o envolve, porque, como mostram estudos recentes, o número de suicídios vem aumentando.

Licio avalia que a Igreja Católica atualizou sua doutrina porque "dialoga com a Ciência".

"Estudos mostram que a grande maioria das pessoas que se mata não tem a intenção de tirar sua vida, portanto não tem a intenção de pecar contra o Quinto Mandamento", diz o padre.

"Porque, para que haja pecado, tem que haver intenção. E quem sabe a intenção? Só Deus."

'Eu me tornei especialista em prevenção ao suicídio por causa da morte do meu pai'

Licio é filho único e cresceu na capital paulista em "berço católico", nas suas palavras. A avó materna ia à missa todos os dias, e ele a acompanhava.

Enquanto isso, seu pai lutava com a depressão e o alcoolismo. Licio conta que o pai aceitava receber cuidados, mas acredita que, da forma que eram feitos os tratamentos na época, isso pode ter atrapalhado.

"Ele foi internado no hospital psiquiátrico, que nos anos 1960 era uma prisão. Ele tomou eletrochoque, porque os medicamentos antidepressivos vão surgir no Brasil na metade dos anos 1970. Então, ele sofreu muito, inclusive com as internações", lembra.

Atualmente, o chamado eletrochoque foi adaptado e ganhou novo nome, a eletroconvulsoterapia (ECT).

Alguns especialistas e instituições defendem o seu uso para algumas condições de saúde mental, como a depressão grave, e somente com o uso de anestesia e com correntes elétricas mais baixas do que as usadas antigamente.

Mas, segundo o Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) não preconiza e nem financia esse tipo tratamento.

Licio conta que, para lidar com a perda do pai, fez 30 anos de terapia com psicanálise tradicional.

"Estava na no início da adolescência, aquela fase em que o filho homem se identifica com a figura do pai. Eu me senti abandonado", conta.

"Foram 30 anos, uma vez por semana, no divã para elaborar o estrago emocional que o suicídio dele provocou na minha vida pessoal."

Além da ajuda da psicanálise, Licio se debruçou sobre o trauma na chamada direção espiritual, um acompanhamento que seminaristas recebem em sua preparação para serem padres — ele começou essa formação em 1978.

"Essa morte hoje ressoa como uma grande graça. Tem um texto da Bíblia em que São Paulo diz: 'Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus'. Eu me tornei especialista em suicídio por causa da morte dele", afirma o padre.

"Graças ao cuidado da minha saúde mental por um lado e ao cuidado da saúde espiritual por outro, pude transformar esta morte em vida. E claro que ele está vivo aqui, dentro de mim."

Em uma segunda-feira nublada de novembro do ano passado, o padre Licio chegou à entrevista com a BBC News Brasil com os minutos contados, depois de uma reunião em outro bairro e antes de rezar sua missa semanal na paróquia Sagrada Família.

Na celebração daquele dia, havia mais assentos do que fiéis. Mas o que se via era um grupo unido, que parecia se encontrar ali com frequência e demonstrava uma relação próxima com Licio.

É também ali que o padre dedica três dias na semana para receber pessoas que estejam precisando de ajuda na prevenção de suicídio ou no acolhimento após terem perdido alguém que se matou, a chamada posvenção.

Na verdade, nesses encontros, Licio diz que aciona mais o "lado especialista" do que o "lado padre".

Ele conta que sacerdotes de vários bairros de São Paulo encaminham pessoas — não necessariamente católicas — para lá.

Após cerca de três encontros, caso veja necessidade, Licio recomenda auxílio com psicólogos ou psiquiatras.

"A grande maioria não é ali do bairro", diz o padre, que estima encontrar de cinco a sete pessoas por semana nessa situação.

"Muita gente procura os padres para conversar mesmo não sendo católicos. Estão desesperadas, estão em ideação suicida e procuram um padre. E aí os padres normalmente encaminham para mim."

Como a rígida doutrina católica mudou

O que aconteceu com o pai de Licio, de não ter tido as missas funerárias tradicionais, era parte de uma longa tradição doutrinária na Igreja Católica.

Do século 6 ao final do século 20, a orientação formal da Igreja Católica era não fazer os rituais funerários normais para um fiel que morresse por suicídio, segundo a pesquisadora americana Ranana Dine — nem o funeral cristão, nem enterro em espaços sagrados ou missas.

Dine, que é judia e faz doutorado em Ética Religiosa na Universidade de Chicago, estuda desde a faculdade questões religiosas com o olhar da filosofia.

No mestrado na Universidade de Cambridge, ela analisou as doutrinas católica e judaica sobre o suicídio.

Uma das origens da histórica posição católica sobre o suicídio está nos Dez Mandamentos, cuja base está no Antigo Testamento.

Um destes mandamentos afirma: "Não matarás". A interpretação que vingou por muito tempo é que se matar é uma violação desse princípio.

"Grande parte do problema com o suicídio é que ele era visto como alguém querendo agir intencionalmente contra Deus e o domínio de Deus sobre a vida", explica Dine.

Especialistas apontam também que contribui para a aversão ao assunto no cristianismo o relato de que, segundo os evangelhos canônicos (aqueles reconhecidos como autênticos pela Igreja Católica), Judas Iscariotes, traidor de Jesus Cristo, se suicidou.

As primeiras discussões acerca do suicídio surgiram nos sínodos, reuniões convocadas por uma autoridade da Igreja Católica, do século 5.

A formalização de uma postura punitiva quanto ao ato não demorou a aparecer.

No século 6, durante o Conselho de Braga de 563, um grupo de bispos promulgou alguns decretos, entre eles a proibição de que suicidas recebessem grandes cerimônias ou fossem enterrados dentro de igrejas.

Ao longo da Idade Média, outros documentos reafirmaram essa posição.

Na Europa, isso se combinou com costumes da época. No artigo Christianity and Suicide, os pesquisadores Nils Retterstøl e Øivind Ekeberg afirmam que, em muitas partes do continente, "o corpo [de um suicida] era arrastado pelas ruas e enterrado em uma encruzilhada, com uma estaca cravada e uma pedra colocada sobre o rosto".

O artigo aponta que o Iluminismo, movimento marcado pelo valorização da racionalidade, trouxe no século 18 uma visão menos condenatória do suicídio e mais crítica ao catolicismo — que, no entanto, ainda demoraria alguns séculos para mudar sua posição sobre o assunto.

O Código de Direito Canônico de 1917 reforçou mais uma vez o caráter pecaminoso do suicídio.

Uma das normas desse código afirmava que "a menos que tenham dado sinal de arrependimento antes da morte", aqueles que "se mataram de maneira deliberada" estavam entre aqueles "privados de um sepultamento eclesiástico" — assim como excomungados e pecadores manifestos.

Esse trecho foi retirado na revisão do código em 1983.

"O contexto externo [da mudança] era o desenvolvimento da ideia da depressão e de outras doenças mentais como patologias tais quais a doenças físicas, que não eram culpa do indivíduo", explica a pesquisadora Ranana Dine.

O Código de Direito Canônico, na avaliação de Dine, é o "documento mais importante" de normas da Igreja Católica.

Mas há outros documentos relevantes que também demonstram mudanças na conduta católica sobre o suicídio, como o Catecismo de 1992 — que tem um caráter mais de orientação e educação do que uma função normativa como o código.

Um trecho do Catecismo afirma que o "suicídio contraria a inclinação natural do ser humano para conservar e perpetuar a sua vida" e é "contrário ao amor do Deus vivo".

"Ofende igualmente o amor do próximo, porque quebra injustamente os laços de solidariedade com as sociedades familiar, nacional e humana [...]", diz o documento.

Mas um trecho seguinte reconhece que "perturbações psíquicas graves, a angústia ou o temor grave duma provação, dum sofrimento, da tortura, são circunstâncias que podem diminuir a responsabilidade do suicida".

Por isso, o documento conclui: "Não se deve desesperar da salvação eterna das pessoas que se suicidaram. Deus pode, por caminhos que só Ele conhece, oferecer-lhes a ocasião de um arrependimento salutar. A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida".

Em um discurso de outubro de 2021, no Dia Mundial da Saúde Mental, o papa Francisco defendeu o acolhimento a pessoas que se suicidaram e às suas famílias.

"Gostaria de lembrar dos nossos irmãos e irmãs afetados por distúrbios mentais e também as vítimas, frequentemente jovens, do suicídio", disse o papa.

"Vamos rezar por eles e por suas famílias, para que eles não sejam deixados sozinhos ou sejam discriminados, mas sim bem recebidos e apoiados."

Dine avalia que a doutrina sobre o suicídio não é algo que divida diferentes alas da Igreja Católica tal qual outras questões controversas como, por exemplo, o casamento gay e o aborto.

A pesquisadora vê de forma positiva as mudanças recentes na abordagem católica ao assunto, mas diz compreender o posicionamento anterior.

"Fico satisfeita que a Igreja tenha mudado sua posição sobre o enterro de suicidas, mas acho que as normas anteriores vinham de uma abordagem teológica sincera", afirma.

Dine argumenta que, por haver razões teológicas para a Igreja Católica ser contra o suicídio, faz sentido dentro do catolicismo o suicídio ser visto como um pecado.

"Acho que alguém como [Santo] Agostinho e outras pessoas realmente acreditavam que Deus tem o domínio do mundo, dos nossos corpos, e negar isso a Deus realmente vai contra grandes princípios do cristianismo."

Na sua avaliação, a Igreja Católica ainda considera o suicídio um pecado — mas não um "pecado mortal", aquele em que não há qualquer esperança de salvação da alma.

"Ainda há o sentido de pecado, de falha, mas envolto nessa postura de compaixão, com a ideia de que a pessoa não sabia o que estava fazendo. Então, é um pecado de natureza diferente", avalia Dine.

O padre Licio Vale também não firma uma definição.

"O suicídio continua sendo pecado nesse sentido de que ninguém pode matar a si mesmo, ter a intenção de se matar. Porque a vida pertence unicamente a Deus, então, nesse sentido, a gente diz que é um mal moral", afirma o padre.

"Mas o conceito de pecado tem a ver com intenção. A maioria dos estudos diz que a maioria das pessoas que se mata não tem essa intenção. Por isso, a gente evita dizer hoje que é pecado."

Licio reconhece que o tabu com o suicídio de fundo religioso ainda é "muito presente" na cultura popular.

Durante a apuração dessa reportagem, por exemplo, uma fonte deu um relato que não pôde ser confirmado pela BBC News Brasil de que vizinhos faziam o sinal da cruz toda vez que passavam na frente da casa de uma mãe que perdeu a filha para o suicídio.

"Ainda existe essa cultura errônea de que quem se mata vai para o inferno. Por isso, é importante que a gente fale que não é mais assim, que a Igreja não pensa mais assim", diz o padre.

"A doutrina continua a mesma, ninguém pode se matar, mas ela evoluiu no sentido de que o suicida não quer, não tem a intenção, segundo a ciência, de pecar. Ele quer matar a dor emocional."

Por isso, o padre afirma que a decisão pela salvação da alma de um suicida ficaria a cargo de um "Deus misericordioso".

Perguntado se a Igreja Católica tem responsabilidade nesse tabu persistente, o padre consente.

"Claro, uma doutrina que foi ensinada durante mais de 900 anos, quase mil anos, é óbvio que vai levar muito tempo para que essa doutrina possa ser definitivamente esclarecida", avalia Licio.

"Mas a Igreja Católica, institucionalmente, está aprendendo a lidar com o fenômeno."

Apesar de ainda ser o maior, o segmento católico está diminuindo seu percentual na população desde o primeiro Censo, de 1872.

Por outro lado, no período mais recente, de 2000 para 2010, houve aumento do percentual de espíritas, evangélicos e pessoas sem religião.

Suicídios de padres

Desde 2016, Licio voltou a conviver mais de perto com notícias de mortes por suicídio: ele tem se dedicado a fazer um levantamento detalhado de padres que tiraram a própria vida.

Licio afirma que os dados de mortes entre sacerdotes são ainda mais alarmantes do que na população geral.

Para isso, o especialista compara a média de mortes de padres que ele registrou em relação ao total de padres no Brasil com a taxa de mortes por suicídio na população brasileira — embora esses números não resultem de uma mesma metodologia.

De acordo com os dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, houve 8 suicídios para cada 100 mil habitantes no Brasil.

Em 2022, Licio registrou 5 suicídios de padres. Considerando que o país tinha naquele ano cerca de 21,8 mil padres, segundo a Comissão Nacional de Presbíteros, isso daria aproximadamente 23 suicídios a cada 100 mil padres.

De 2016 a 2022, o pesquisador contabilizou um total de 33 mortes de padres por suicídio, com média de 4,7 por ano.

Os anos em que mais mortes foram registradas foram 2017 e 2021, com 10 suicídios de padres cada um.

Licio reúne esses dados a partir de informações divulgadas por dioceses, pela imprensa ou por fontes da internet.

As dioceses, segundo ele, estão cada vez mais publicando a causa da morte quando há um suicídio comprovado, embora ainda haja muito "mistério" em torno desses dados.

O pesquisador conta que nunca passou pela situação de conhecer pessoalmente algum padre que tenha se matado, mas diz que já foi procurado por dois amigos padres que pediram ajuda por questões de saúde mental, a quem Licio recomendou tratamento psicológico e psiquiátrico.

Mesmo não conhecendo pessoalmente os padres que se mataram, Licio diz que se sente abatido ao documentar as mortes de colegas.

"Por exemplo, um caso de um padre jovem. Isso me impacta porque é alguém que tem uma vida pessoal e uma vida no sacerdote inteira pela frente. Sempre me impacta", desabafa.

Licio afirma que a escolha do sacerdócio "não imuniza" os padres de lutas internas e desafios pessoais.

Há particularidades dessa ocupação que afetam a saúde mental, aponta Licio, como o excesso de trabalho, a solidão e a cobrança excessiva.

"A vida do padre é muito mais complicada do que a gente imagina", ele diz.

"Vou te fazer uma pergunta: onde você vai passar o Natal de 2030? Se eu estiver aqui na paróquia em 2030, às 18h vou ter uma missa numa comunidade e às 20 horas eu tenho missa aqui. Eu já tenho compromisso assumido para daqui a sete anos."

O padre afirma que a solidão é outro fator de risco grande para o suicídio no clero, principalmente os diocesanos — que estão vinculados a uma diocese e não a uma ordem religiosa, como os franciscanos e beneditinos.

"Um padre às vezes mora sozinho na casa paroquial, fica longe da família, tem poucos amigos verdadeiros que gostem da pessoa e não do padre", diz Licio.

"E a gente se cobra em termos de sermos coerentes com aquilo que pregamos, com aquilo que vivemos. O povo nos cobra posturas, comportamentos. A própria Igreja nos cobra posturas e comportamentos."

Licio alerta que o número de suicídios entre padres pode ser muito maior por conta da subnotificação — a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que, para cada morte por suicídio confirmada, há provavelmente mais de 20 tentativas.

A reportagem também buscou dados sobre suicídios entre líderes religiosos — não só católicos — a partir do DataSUS, sistema mantido pelo Ministério da Saúde, mas especialistas consultados afirmaram não ser possível obter informações confiáveis com esse recorte.

A BBC News Brasil procurou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para obter um posicionamento oficial da Igreja Católica no Brasil sobre o cuidado com a saúde mental de padres e a doutrina acerca do suicídio de forma geral.

A CNBB respondeu que não foi encontrado bispo "com disponibilidade para atender à demanda".

'Fala de culpabilização ligada à religião pode causar muita dor'

Segundo a OMS, mais de 700 mil pessoas morrem a cada ano por suicídio no mundo.

De acordo com a organização, a ligação entre suicídio e distúrbios mentais — notadamente a depressão e o alcoolismo — já foi bem demonstrada, mas esse tipo de morte também ocorre após crises pontuais, como términos de relacionamentos e problemas financeiros.

Taxas de suicídio tendem a ser maiores também em cenários de abuso, violência, desastres e vulnerabilidade social — como entre refugiados e migrantes, priosioneiros e pessoas LGBTQIA+.

No Brasil, o número absoluto de suicídios vem crescendo ano após ano desde 2016, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Um outro estudo, publicado na revista científica The Lancet Regional Health Americas, calculou que, entre 2011 e 2022, a taxa de suicídios a cada 100 mil habitantes cresceu em média 3,7% ao ano no Brasil.

Em 2011, a taxa era de 5 por 100 mil, chegando a 7,3 por 100 mil em 2022.

Todas as regiões brasileiras tiveram aumento nas taxas. Entre jovens (10 a 24 anos), o crescimento foi de 6%, significativamente maior do que na população geral.

No mundo, considerando dados da OMS de 2019, a taxa média de suicídios foi de 9 por 100 mil habitan habitantes.

Neste relatório, o Brasil aparece abaixo da média global, com 6,4 suicídios por 100 mil habitantes.

A psicóloga Karen Scavacini, fundadora e diretora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, afirma que as religiões — não apenas o catolicismo — podem ter um papel ambíguo na prevenção e na posvenção do suicídio.

"Os estudos mostram que [a religião] é um fator de proteção, e é, na maioria das vezes", diz Scavacini.

"Até o medo de ir para o inferno, de ir para o umbral, embora muitas religiões não falem mais sobre isso, pode fazer com que a pessoa não se mate. Então, acaba protegendo.”

A sensação de pertencimento a uma comunidade religiosa é outro fator protetor contra o suicídio, aponta a psicóloga.

"Quando a gente põe na balança, a espiritualidade tem um fator mais de proteção do que de risco, porém — e esse é o grande porém —, quando ela se torna um fator de risco, pode ser um risco importante."

Scavacini, que é doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o tabu religioso pode ser danoso em vários estágios relacionados ao suicídio.

"Começando pela prevenção, o que a gente escuta de mais comum é a relação de vergonha quando uma pessoa está pensando em se matar", diz.

"Isso piora toda a situação, porque a pessoa pensa: 'Puxa, além de tudo, eu sou um pecador, porque eu estou pensando em me matar."

A psicóloga cita também casos de pessoas cuja sexualidade não é bem aceita em sua religião, o que agrava o quadro de saúde mental.

Também há aquelas que deixam de procurar ajuda especializada depois que "foram falar com o pastor, com o padre, e a resposta foi de que estava faltando Deus, que estava faltando oração, que psicólogo não resolvia nada, que o que resolve é a igreja".

"Há ainda o caso das pessoas que tentaram [se suicidar]. Então, entram as questões de pecado, de culpabilização, de falta de reza, de estar possuído, e isso de novo vai ser um fator de risco", diz Scavacini.

"Pode ser um gatilho, pode ocasionar um isolamento dessa pessoa da comunidade religiosa, que no geral é um fator de proteção."

A psicóloga lembra também dos enlutados, cenário em que a questão religiosa talvez se torne ainda mais "delicada".

Ela diz ser comum estas pessoas ouvirem, inclusive em velórios, que alguém que elas perderam para o suicídio vai para um lugar de sofrimento após a morte.

"O impacto da fala de um religioso para uma família enlutada é muito grande. O tabu religioso não está só na figura religiosa, ele está em toda uma sociedade."

"Para quem está de luto, que está buscando uma resposta, muitas vezes em choque, que pode estar naquela culpa que é própria do luto por suicídio, uma fala de culpabilização ligada a religião tem um peso muito grande e pode causar muita dor."

*Caso seja ou conheça alguém que apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio, confira alguns locais para pedir ajuda:

- O Centro de Valorização à Vida (CVV), por meio do telefone 188, oferece atendimento gratuito 24h por dia; há também a opção de conversa por chat, e-mail e busca por postos de atendimento ao redor do Brasil;

- Para jovens de 13 a 24 anos, a Unicef oferece também o chat Pode Falar;

- Em casos de emergência, outra recomendação de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);

- Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone 192;

- Na rede pública local, é possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) 24h;

- Confira também o Mapa da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento em saúde mental gratuito em todo o Brasil.

Mariana Alvim, jornalista, originalmente, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 28.02.24

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Populismo judicial

A Nação precisa de juízes serenos, moderados e discretos, que só manifestem suas opiniões nos autos e sejam capazes de fazer cumprir a lei para frear jacobinismo de esquerda e de direita

A democracia brasileira vem sendo dilacerada por governos populistas há 20 anos. O populismo é a dengue que debilita o funcionamento da democracia, a credibilidade das instituições e a confiança no Estado de Direito. Sua proliferação demanda a alimentação da polarização política, o fomento do ressentimento popular e o cultivo do mito do “salvador da Pátria”, um líder carismático que atua como o protetor do povo contra os interesses da elite corrupta. Por isso, populistas fomentam o antagonismo cívico para dividir o País; atacam a liberdade de expressão para silenciar a crítica e a oposição e rotulá-las de “fascistas” e “comunistas”; e usam o poder para deturpar o espírito das leis e debilitar os freios e contrapesos institucionais, capazes de conter o voluntarismo do presidente da República.

O populismo tem várias facetas. A mais conhecida é a do populismo presidencial, mas existem também o populismo legislativo e o populismo judicial. Quando o Poder Judiciário é capturado pelo populismo, a rápida degeneração do Estado Democrático de Direito torna-se iminente. A Venezuela de Hugo Chávez e a Rússia de Vladimir Putin, por exemplo, abandonaram os vestígios de democracia e se tornaram Estados autoritários quando o Judiciário sucumbiu aos desígnios dos líderes populistas. O Judiciário se transformou num meio para revestir de legalidade os atos autoritários do governo. Felizmente, o Brasil ainda está distante desse perigoso percurso. Mas o populismo judicial já disparou o sinal de alerta no País.

O populismo judicial emana do sentimento messiânico de que os togados são os salvadores da democracia. Nos devaneios de alguns membros da Suprema Corte, a urgência do momento demanda medidas excepcionais, decisões arbitrárias e resoluções monocráticas que violam a Constituição. Este é o caso emblemático de inquéritos genéricos e sem prazo determinado que transformaram a Suprema Corte num tribunal de Inquisição. Cidadãos são presos, coagidos e tolhidos de seus direitos fundamentais sem o devido processo legal e o amplo direto à defesa. Esses abusos se estendem do morador de rua preso sob suspeita de ser um perigoso conspirador contra o Estado democrático (o que provou ser infundado) ao indiciamento do bilionário sul-africano que teve a ousadia de criticar as atitudes de um ministro do Supremo. No Brasil do populismo judicial, qualquer crítica endereçada ao ungido de toga torna-se imediatamente um ataque ao Estado Democrático de Direito. Trata-se de um disparate, digno de regime autoritário.

Outro sintoma preocupante do populismo judicial é a invasão do Poder Judiciário sobre as competências do Poder Legislativo. O protagonismo legislativo da Suprema Corte conflita com a autonomia do Congresso Nacional e o entendimento da maioria dos parlamentares em torno de temas importantes, como marco temporal, drogas e aborto. Enquanto o Congresso debate a regulamentação das mídias digitais, a Justiça avança perigosamente para cercear a liberdade de expressão, como retratam as decisões da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), órgão ligado ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Expressões genéricas como “discurso de ódio” ou “condutas, informações e atos antidemocráticos” permitem a atuação ampla e arbitrária de juízes para censurar conteúdos, em nome da “defesa da democracia”. A insegurança jurídica fomenta a imprevisibilidade, a judicialização e a desconfiança em relação ao cumprimento das leis e da Constituição.

Neste momento de polarização política e de descrença nas instituições, o Brasil necessita de uma Suprema Corte que zele pela Constituição e pelos princípios basilares do Estado Democrático de Direito. Se exercesse de maneira exemplar essa função, contribuiria para diminuir a polarização política e a insegurança jurídica – dois atributos vitais para os partidos recriarem alternativas político-eleitorais capazes de vencer o populismo nas urnas.

A Nação precisa de juízes serenos, moderados e discretos, que manifestem suas opiniões apenas nos autos e que sejam capazes de fazer cumprir a lei para frear jacobinismo de esquerda e de direita que afronta a ordem democrática, intoxica a política com sua intolerância e incivilidade e debilita a confiança na liberdade com a sua ignorância e radicalismo.

Após 20 anos de desastrosos governos populistas, a última coisa que o Brasil precisa é de populismo judicial. Não precisamos de tribunal de Inquisição, tampouco necessitamos de Robespierres que guilhotinam a liberdade de expressão e desrespeitam os direitos individuais garantidos pela Constituição para “salvar” a democracia. As recentes manifestações do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, parecem estar alinhadas com esse propósito. Resta saber se terá força e firmeza para enquadrar os Robespierres da Suprema Corte, que parecem ter mais vocação para a política partidária do que a serenidade e a discrição necessárias para o exercício de guardião da Constituição.

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é cientista político, também autor do livro ‘10 Mandamentos – Do Brasil que Somos para o País de Queremos’. Foi candidato à Presidência da República, na última eleição. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.04.24

O custo político da falta de rumo

De nada adianta Lula da Silva repreender seus ministros por falhas na articulação política se o presidente não tem um plano de governo digno do nome, em torno do qual se possa negociar

O presidente Lula da Silva deu uma demonstração pública de que não é capaz de suportar sozinho, na condição de chefe de governo, as pressões políticas exercidas pelos líderes do Congresso. Sua irritação ficou particularmente visível diante da ameaça fiscal representada pela “pauta-bomba” encampada neste ano eleitoral pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco.

No dia 22 passado, no ato de lançamento do programa Acredita, Lula desandou a repreender alguns de seus ministros mais próximos pela claudicante articulação política do governo nas Casas Legislativas. Ora, seus auxiliares diretos talvez até pudessem ser mais engajados na defesa dos interesses do Executivo, mas é de Lula, em primeiro lugar, a responsabilidade de ditar o tom do diálogo institucional com o Legislativo.

Lula foi preciso ao diagnosticar uma das causas das agruras por que passa o governo no Congresso, malgrado a obviedade: seu partido, o PT, é minoria entre os 513 deputados e 81 senadores. Entretanto, ao presidente faltou a grandeza de se assumir como o maestro dessa orquestra desafinada. Mais confortável lhe pareceu distribuir pitos para todos os lados, até para o pacato vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin.

Para Lula, “Alckmin tem de ser mais ágil, tem de conversar mais” com os parlamentares. Já o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome no Brasil, Wellington Dias, e o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, “têm de passar uma parte do tempo conversando”, afirmou o presidente.

Nenhuma das admoestações de Lula, no entanto, foi mais injusta do que a direcionada ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad – logo ele, que tem sido talvez o único articulador político do governo minimamente hábil junto ao Congresso. Segundo Lula, Haddad, “ao invés de ler um livro”, tem de “perder algumas horas conversando no Senado e na Câmara”. Além de reafirmar seu conhecido anti-intelectualismo, Lula sugeriu que Haddad fica lendo em vez de trabalhar. Diante da cobrança absolutamente disparatada, Haddad não conteve seu desconforto ao ser questionado por jornalistas. “Eu só faço isso da vida”, disse o ministro, a respeito de suas frequentes conversas com deputados e senadores.

Esse descompasso político entre governo e Congresso é decorrência de dois problemas fundamentais. O primeiro, de contornos mais nítidos, é a absoluta falta de um projeto de governo digno do nome, por meio do qual Lula pudesse engajar a sociedade e seus representantes no Legislativo para negociar termos e prioridades. Quando o presidente cobra de seus ministros mais participação na articulação política com os parlamentares, a que, exatamente, se prestaria essa articulação? Aonde Lula pretende levar o Brasil? Que país deseja legar ao sucessor? Não se sabe, provavelmente porque nem Lula saiba, preocupado que está em apenas chegar em 2026 em condições de concorrer à reeleição.

O segundo problema, não menos preocupante, é a recalcitrância de Lula em enxergar as transformações pelas quais passaram o Brasil e o mundo desde a sua primeira eleição para a Presidência da República. Talvez acreditando que neste terceiro mandato estaria liberado para brincar de grande estadista mundo afora após “salvar a democracia” no Brasil, Lula terceirizou a tarefa de governar a um punhado de ministros. Não surpreende, nesse sentido, que, quando os problemas começam a bater à sua porta com mais força, o presidente saia dando broncas nesses auxiliares – que, como tais, dependem diretamente do envolvimento do chefe para ter sucesso em suas atribuições.

Nesse afã de posar como um líder capaz de influenciar questões globais sobre as quais tem pouca ou nenhuma influência, ao mesmo tempo que, no plano interno, quer ser visto como o presidente que recolocou o Brasil nos trilhos do desenvolvimento, usando para isso modelos que já se provaram equivocados no passado, Lula corre o sério risco de não conseguir nem uma coisa nem outra. Irritar-se com seus ministros não vai mudar essa realidade.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.04.23

Maranhão continua campeão da pobreza no Brasil

Pobreza cai em 25 estados e no DF em 2023; veja ranking. Média nacional recua a 27,5%; Acre foi o único estado com aumento do índice

Vista aérea da favela de Paraisópolis, em São Paulo (SP) - Eduardo Knapp - 15.set.2021/Folhapress

As taxas de pobreza e extrema pobreza do Brasil caíram em 2023 para os menores patamares de uma série histórica iniciada em 2012 (27,5% e 4,4%, respectivamente), aponta estudo do IJSN (Instituto Jones dos Santos Neves).

Segundo o órgão, vinculado ao Governo do Espírito Santo, a redução dos indicadores foi disseminada nas diferentes regiões do país.

Enquanto a taxa de pobreza recuou em 26 das 27 unidades da Federação no ano passado, a de extrema pobreza diminuiu em 25 estados, indica o levantamento.

A análise do IJSN foi produzida a partir de dados da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua): Rendimento de Todas as Fontes 2023. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou a Pnad na sexta-feira (19).

Na média do Brasil, a taxa de pobreza caiu de 31,6% em 2022 para 27,5% em 2023, o menor patamar da série iniciada em 2012. A redução foi de cerca de 4,2 pontos percentuais.

Em termos absolutos, a população considerada pobre diminuiu de 67,8 milhões em 2022 para 59,2 milhões em 2023. A baixa foi de 8,6 milhões, número semelhante à população inteira de um estado como o Ceará (8,8 milhões).

Entre as 26 unidades da Federação com queda na taxa de pobreza, o Amapá registrou a maior redução. O indicador local recuou 14,8 pontos percentuais, ao sair de 47,8% em 2022 para 33% em 2023.

Roraima (-9,5 pontos percentuais) e Amazonas (-9,3 pontos percentuais) vieram na sequência das maiores baixas em pontos percentuais.

Conforme o IJSN, o único estado com variação positiva da taxa de pobreza foi o Acre (0,4 ponto percentual). O indicador local passou de 51,1% em 2022 para 51,5% em 2023. Isso significa que mais da metade da população do Acre era considerada pobre.

O outro estado com taxa superior a 50% foi o Maranhão. O indicador baixou de 56,8% em 2022 para 51,6% em 2023, uma redução aproximada de 5,1 pontos percentuais.

Apesar da queda, o Maranhão seguiu com a maior taxa de pobreza do Brasil (51,6%), seguido pelo Acre (51,5%).

Por outro lado, os menores percentuais de 2023 foram registrados em Santa Catarina (11,6%) e Rio Grande do Sul (14,4%). Em São Paulo, o estado mais populoso do país, o indicador foi de 16,5%.

O diretor-presidente do IJSN, Pablo Lira, associa a redução da pobreza no país a uma combinação de fatores.

Geração de empregos, melhora da renda do trabalho, ampliação do programa Bolsa Família e concessão de outros benefícios sociais pelos estados fazem parte dessa lista, conforme o pesquisador.

"Por mais que a gente esteja reduzindo a pobreza no país, ainda há o desafio de conseguir diminuir as desigualdades regionais", afirma Lira, citando as dificuldades maiores em estados do Norte e do Nordeste.

O estudo usa linhas de pobreza e extrema pobreza do Banco Mundial. As referências são de US$ 6,85 per capita (por pessoa) ao dia e US$ 2,15 per capita ao dia, respectivamente.

Os dados foram convertidos por meio de critérios de PPC (Paridade de Poder de Compra). Assim, os valores mensais das linhas de pobreza e extrema pobreza ficaram em R$ 664,02 e R$ 208,42.

Pessoas que viviam com quantias inferiores a essas foram consideradas pobres ou extremamente pobres.

No Brasil, a taxa de extrema pobreza caiu de 5,9% em 2022 para 4,4% em 2023, o menor nível da série iniciada em 2012. A redução foi de 1,5 ponto percentual.

Em termos absolutos, a população considerada extremamente pobre diminuiu de 12,7 milhões em 2022 para 9,5 milhões em 2023. A baixa foi de 3,1 milhões, número semelhante à população inteira de Alagoas (3,1 milhões).

Em pontos percentuais, o estado nordestino teve a maior queda da taxa de extrema pobreza entre os 25 do país com redução em 2023. O indicador alagoano recuou 4,3 pontos percentuais, ao sair de 13,2% para 8,8%.

Amapá (-3,9 pontos percentuais) e Paraíba (-3,7 pontos percentuais) vieram na sequência das maiores baixas no ano passado.

De acordo com o IJSN, os únicos locais com variações positivas nas taxas de extrema pobreza foram Rondônia (0,3 ponto percentual) e Distrito Federal (0,2 ponto percentual).

Os maiores indicadores foram registrados pelo estudo no Acre (13,2%), no Maranhão (12,2%) e no Ceará (9,4%).

Por outro lado, Rio Grande do Sul (1,3%), Goiás (1,3%) e Santa Catarina (1,4%) registraram as menores taxas de extrema pobreza em 2023. Em São Paulo, o percentual foi de 2,2%.

Leonardo Vieceli, Jornalista, originalmente, do Rio de Janeiro para a Folha de S. Paulo, edição impressa, em 23.04.24 (NR. O título principal desta publicação foi aposto pelo editor do blog.  O titulo original da publicação da Folha de S. Paulo é a primeira frase do substitulo que encima o texto).

Democracia avaliada

Em 11 de 19 países, minoria acha eleições justas; Brasil não está entre eles

Manifestantes invadem o Capitólio após derrota de Donald Trump nas eleições de 2022, em Washington (EUA) - Leah Millis/Reuters

De modo paradoxal, a democracia pode ser vítima de seu próprio sucesso. Avanços econômicos, dos direitos humanos, científicos e culturais nos países que primeiro a adotaram fazem com que se espere muito desse sistema político —que, na sua definição mais simples, se restringe à realização de eleições livres e justas.

Exemplo de ampliação da concepção de democracia está na pesquisa "Perceptions of Democracy", que avaliou o prestígio desse modelo em 19 países.

Menos de 50% dos cidadãos estão satisfeitos com seus governos em 17 deles, Brasil incluso, o que os torna mais vulneráveis a líderes populistas e/ou autoritários.

Mas, provavelmente, é exigir demais da democracia que ela assegure prosperidade. Ela pode ou não fazê-lo. Mesmo democracias consolidadas enfrentam problemas sociais, seja por intempéries ou por más escolhas do eleitorado.

Ademais, nações que primeiro aderiram ao sistema abrigaram outras instituições, como a liberdade de expressão e o amplo acesso à Justiça, que tendem a gerar efeitos sociais positivos e também foram avaliados pelo levantamento.

Só 12% dos brasileiros confiam na Justiça e 50% sentem ter liberdade para se expressar publicamente.

Tais elementos constituem um bônus além das eleições. Em teoria, um déspota esclarecido poderia assegurá-los sem votos.

Fato é que o regime democrático funciona porque previne a violência política. Ou seja, vale mais a pena para o grupo derrotado nas urnas esperar nova chance de assumir o poder do que tentar impor-se pela força, com risco de perder e ver-se eliminado do jogo.

O fator básico e inafastável da democracia, portanto, é a realização de pleitos tidos como livres e justos. E aí a pesquisa acende um sinal de alerta, que vai além de ampliações da definição do termo.

Em 11 dos 19 países, menos de 50% dos cidadãos consideram que as eleições são livres e justas; em 8, há mais pessoas favoráveis do que contrárias a um líder "forte que não tem de se preocupar com o Parlamento ou eleições". É a receita para o desastre —felizmente, o Brasil não está nesses grupos.

Editorial d Folha de S. Paulo, em 23.04.24. (Edção impressa). / editoriais@grupofolha.com.br

Promotor acusa Trump de “orquestrar uma conspiração criminosa para corromper” as eleições de 2016

A acusação afirma na sua declaração inicial que o agora ex-presidente dos Estados Unidos cometeu um crime “para influenciar as eleições presidenciais”.

Donald Trump, esta segunda-feira, antes do início da sessão de julgamento. (Yuki Iwamura - Via Reuters)

O primeiro julgamento de um ex-presidente dos Estados Unidos já está em curso. Numa audiência para sempre, Matthew Colangelo, promotor público assistente, ficou encarregado de apresentar a acusação contra Donald Trump enquanto balançava a cabeça. “Este caso é sobre uma conspiração criminosa e um encobrimento”, disse Colangelo. “O acusado Donald Trump orquestrou uma conspiração criminosa para interferir nas eleições presidenciais de 2016. Ele então encobriu essa conspiração criminosa mentindo repetidamente em seus registros comerciais de Nova York”, afirmou ele no início de sua declaração de abertura. uma espécie de introdução ao julgamento. O advogado de Trump, Todd Blanche, começou o seu argumento dizendo: “O presidente Trump é inocente. “O presidente Trump não cometeu nenhum crime.”

No caso O Povo do Estado de Nova York contra Donald Trump, o ex-presidente é acusado de falsidades comerciais em pagamentos para esconder escândalos na campanha presidencial de 2016. O mais conhecido deles é o pagamento de US$ 130 mil à atriz pornô Stormy Daniels. feita por Michael Cohen, ex-advogado de Trump, para silenciar um suposto caso extraconjugal na reta final da campanha.

Colangelo afirmou em sua declaração inicial que Cohen fez o pagamento para silenciar a atriz pornô “sob a direção do réu” e “para influenciar a eleição presidencial”. Trump então o reembolsou e “eles disfarçaram a finalidade dos pagamentos”, segundo o promotor. O réu “disse nos registros comerciais que estava pagando a Cohen por serviços jurídicos sob um contrato de retenção [minutos]”. Mas eles eram mentiras. Não houve acordo de retenção”, acrescentou, conforme noticiado pelos meios de comunicação presentes em tribunal.

“Nem Trump nem a Organização Trump poderiam simplesmente preencher um cheque para Cohen com um memorando que dizia ‘reembolso por pagamento a uma estrela pornô’. “Então concordaram em manipular os livros e fazer parecer que o pagamento era na verdade uma compensação, um pagamento por serviços prestados”, argumentou.

Sem “dúvida razoável”

Cohen é agora a principal testemunha da acusação, cuja credibilidade a defesa tentará minar. O promotor alertou o júri sobre isso: “Suspeito que a defesa fará todo o possível para que o seu depoimento seja rejeitado, justamente por ser tão devastador”, disse Colangelo. Pouco depois, o advogado de defesa disse que Cohen está “obcecado” por Trump e que guarda rancor dele porque não lhe deu um cargo no seu governo “Toda a sua subsistência financeira depende da destruição do Presidente Trump”, disse. argumentou. “Não se pode tomar uma decisão séria sobre o presidente Trump com base nas palavras de Michael Cohen”, acrescentou Blanche.

Por se tratar de um caso criminal, opera a presunção de inocência. Para ser condenada, os jurados devem concluir que ela cometeu os crimes de que é acusada, sem sombra de dúvida razoável. A acusação e a defesa têm posições opostas: “No final do caso, estamos confiantes de que não terão dúvidas razoáveis ​​de que Donald Trump é culpado de falsificar registos comerciais com a intenção de ocultar uma conspiração ilegal para minar a integridade de uma eleição presidencial”. ”, disse o promotor. Exatamente o oposto foi sustentado pelo advogado de Trump. Blanche disse que os promotores contaram “uma história muito clara e bonita”, mas que “não é tão simples” e que o júri encontrará “muitas dúvidas razoáveis”.

Trump se declarou inocente dos 34 crimes de falsificação de registros comerciais pelos quais está sendo julgado. O ex-presidente sempre negou ter tido relações sexuais com Stormy Daniels e, mais relevante para o caso, os seus advogados argumentam que os pagamentos a Cohen foram despesas legais válidas. O próprio Trump, ao sair do tribunal, referiu-se a isto, afirmando que figuravam como despesas legais porque se tratavam de pagamento a um advogado. Cohen representa muitas pessoas, disse ele, e resumiu o caso à sua maneira: “Ele apresenta uma fatura ou conta e eles pagam e chamam isso de despesas legais e me cobram por isso”, disse ele. Onde se refletiu que se tratava de despesas judiciais, “é uma fila muito pequena”, acrescentou, onde mal havia espaço para algumas palavras, não bastava contar “a história da sua vida”.

O seu advogado disse esta segunda-feira na sessão que o escândalo Daniels “foi uma tentativa de constranger o Presidente Trump, de envergonhar a sua família” e que “antes das eleições de 2016, ela viu a sua oportunidade”. Sobre as acusações de que os pagamentos tentaram influenciar ilicitamente as eleições de 2016, a defesa respondeu: “Tenho um spoiler : não há nada de errado em tentar influenciar uma eleição. Isso se chama democracia." Trump não é cobrado pelos pagamentos em si, mas pelas supostas falsidades para ocultá-los.

Todd tentou simpatizar com os 12 jurados (sete homens e cinco mulheres) e os seis suplentes, que tomaram posse na última sexta-feira, após quatro dias de seleção. “Usem o bom senso”, disse-lhes ele. “Se o fizerem, haverá um veredicto de inocência muito rapidamente”, acrescentou.

Na sessão desta segunda-feira, antes dos argumentos iniciais e do júri entrar na sala, o juiz Juan Merchan disse que permitirá que seja mostrada uma transcrição do que Trump diz num vídeo em que se referiu às mulheres em termos profanos e sexistas, embora não permitirá que seja reproduzido na sala. “Quando você é uma estrela, eles deixam você fazer qualquer coisa com eles. Agarre-os pela boceta”, disse Trump naquela gravação. A tese da acusação é que após a divulgação daquele vídeo na campanha de 2016, era vital que Trump silenciasse Stormy Daniels.

Ao entrar no edifício do tribunal, Trump repetiu a sua habitual série de desqualificações infundadas do processo, que considera “interferência eleitoral” na campanha presidencial de novembro. “Estou aqui em vez de poder estar na Pensilvânia, na Geórgia e em muitos outros lugares fazendo campanha e isso é muito injusto”, disse ele. Ele havia planejado um comício na Carolina do Norte no sábado, mas teve que cancelá-lo devido a uma tempestade.

Também sem fundamento, Trump afirmou à sua chegada à sede do tribunal que tudo é uma “caça às bruxas” e uma “vergonha” que está “coordenada com Washington” para favorecer Joe Biden, o “pior presidente do mundo”, no história das eleições”, posição que os historiadores na verdade atribuem a ele. Na saída, repetiu o mesmo discurso, sem aceitar perguntas.

Miguel Jiménez e Maria Antonia Sánchez-Vallejo, de Washington / Nova York  para o EL PAÍS, em 22.04.24

Jon Bon Jovi: “O retorno de Trump é assustador”

A lendária banda lança um documentário que conta sua história e mostra sua roupa suja. O cantor conta como perdeu a voz e a cirurgia e reabilitação que fez

Jon Bon Jovi, em imagem recente cedida por sua gravadora.

Se um garoto de 17 anos começa a tocar a música The Promised Land com sua banda em um bar de motoqueiros em Nova Jersey e o próprio autor da música, Bruce Springsteen, sobe no palco para cantá-la em dueto, não há dúvida que aquele garoto foi tocado pela varinha da fortuna. Aos 62 anos, John Francis Bongiovi, universalmente conhecido como Jon Bon Jovi, não tem escrúpulos em admitir que a vida lhe sorriu de uma forma pelo menos tão brilhante quanto o seu próprio sorriso.

Ele recebe o EL PAÍS em um quarto do Corinthia Hotel, no bairro londrino de Whitehall. Ele imediatamente se levanta para cumprimentá-lo, e a camisa preta impossivelmente justa revela o mesmo corpo atlético com que o líder do Bon Jovi percorreu incansavelmente o palco durante os shows espetaculares daquela lendária banda. Hoje em dia eles estão lançando um documentário, Thank You, Goodnight, The Bon Jovi Story, no dia 26 de abril na Disney +, bem como um novo álbum com seu grupo, Forever, que será lançado no dia 7 de junho, embora você já possa ouvir. uma prévia, Lendário.

Compositor, cantor, ator e estrela do rock, filho de uma segunda geração de imigrantes nos Estados Unidos – pai italiano e eslovaco, militar; Mãe alemã e russa, dona de uma floricultura – é especialista na arte de se reinventar e ter sucesso a cada nova versão. Mas os últimos anos foram difíceis. Diagnosticado com atrofia das cordas vocais, ele precisou passar por uma cirurgia, e já faz dois anos que faz reabilitação vocal intensiva. “Tive que passar por uma cirurgia e ainda estou em processo de recuperação, mas consigo cantar sem problemas. Estou numa altura em que tenho de ter condições para poder cantar duas horas e meia seguidas, quatro noites por semana. Só assim poderei dizer que vou sair em turnê novamente”, explica.

E se ele não conseguir chegar nesse nível, adeus ao Bon Jovi? Os concertos são tão importantes? “Não, não é que a estrada seja o que mais me motiva. Na verdade, sempre foi a terceira das minhas prioridades. Para mim, escrever músicas sempre foi a coisa mais importante. Percebi há muito tempo que uma música que sobrevive a você é o que pode aproximá-lo da imortalidade. Aí, quando você achar que uma música está boa o suficiente, você a grava. E se, no final, você puder tocá-la diante de um público e fazer com que eles compartilhem essa diversão com você, você é um cara de sorte", explica Bon Jovi com uma voz que não parece quebrada e que transmite isso. tom de optimismo e vitalidade que a banda, e o seu líder, souberam projectar várias gerações durante décadas. “Sou muito bom nisso há anos. Mas posso te dizer, com toda sinceridade, que não sentiria mais falta. A ideia de outro quarto de hotel, outro avião, outro sanduíche de serviço de quarto... Já fiz tudo isso. Embora eu não me importasse de poder continuar fazendo isso”, admite.

A banda vendeu, ao longo de quatro décadas, 120 milhões de discos. Mas é muito mais interessante e surpreendente que atualmente tenham mais de 30 milhões de visitas mensais no Spotify. “O documentário vai nos apresentar novamente a toda uma geração. Já aconteceu comigo em outros momentos da minha vida. Runaway [música de estreia do Bon Jovi em 1983] foi a primeira fase. Depois nos reinventamos com Keep the Faith [o quinto álbum, de 1992], quando o boom da música grunge chegou . Fizemos isso de novo em 2000 com It's My Life , quando as pessoas pensavam que éramos mais velhos. E nos Estados Unidos eu tinha uma música que ocupava o primeiro lugar na lista de música country [Who Says You Can't Go Home, dueto com Jennifer Nettles]. Sempre abrimos novos territórios e sei que isso vai acontecer novamente com esse documentário”, afirma. Sua segurança não é ilusória. Vem de um esforço contínuo e da intuição de que a boa música pode saltar sem problemas de geração em geração.

“Quando éramos crianças, os álbuns eram importantes”, explica ao correspondente, em busca de uma cumplicidade que, por que negar, foi conquistada desde o primeiro minuto. “Mas qualquer jovem hoje, graças ao streaming , pode não ter acesso à arte daquelas capas de discos que a gente curtia. Mas quando você ouve uma música, você a julga pelo que ela é, uma música nova. Para eles é algo atemporal. Se um garoto de 14 anos ouve Livin' On A Prayer hoje , no início de sua jornada musical, para eles é uma música de 2024. Eles não entendem toda a história de fundo que tivemos com o aparecimento de um novo álbum”, argumenta.

Sem panos quentes

Em 2013, com mais de oitenta shows antes de mais uma turnê mundial de sucesso, o guitarrista da banda, Richie Sambora, anunciou que não tocaria naquela noite em Calgary, no Canadá. A desculpa era que ele queria passar mais tempo com a filha, mas Jon deixou claro que o abuso de substâncias viciantes e as tensões internas haviam cobrado seu preço. Sambora não voltou. A banda seguiu em frente. O documentário, que pretende ser contundente, expõe as luzes e sombras de uma das maiores histórias de sucesso do rock. Os quatro adolescentes que começaram juntos falam separadamente diante das câmeras.

“Não achei que fosse simplesmente uma demonstração de vaidade, que faria muita gente perder tempo. Se vamos fazer isso, eu disse, vamos dizer a verdade. Isso de cada um de nós”, diz Jon. “Posso não concordar com algo em particular, mas não vou discutir isso. “Cada um contribuiu à sua maneira para esta jornada que nos trouxe até aqui.”

Uma consciência social

Sua jornada foi feita de mãos dadas com sua namorada do ensino médio, Dorothea Hurley, com quem divide mais de quarenta anos de casamento e quatro filhos. Os pais de Jon eram trabalhadores incansáveis, mas distantes da política. Foi Dorothea quem apresentou ao cantor, aos poucos, um mundo de compromisso social, de preocupação com a deriva do seu país e de plena consciência de que tanto sucesso exige retribuir aos outros. Juntos lançaram a fundação JBJ Soul Kitchen , quatro restaurantes onde metade dos clientes paga o menu ou ajuda lavando a louça ou limpando o local, para que a outra metade, moradores de rua, possam desfrutar de uma boa refeição quente. “Fizemos a diferença na vida de muitas pessoas. Não temos o mesmo sentido de comunidade que imagino que tenhas em Espanha. Se alguém estiver com fome, deve ir a esses lugares chamados Soup Kitchens . Não temos essas diferentes gerações familiares que se ajudam”, afirma, enquanto se deixa levar pelo entusiasmo ao descrever o projeto.

Richie Sambora e Bon Jovi em um show coletivo no Japão em 1984.

“Eu sei, é assustador, não poderia concordar mais com você”, diz ele quando menciona a perspectiva de Donald Trump se tornar presidente dos Estados Unidos novamente. Mas ele recusa-se a pensar que o seu país é uma causa perdida ou que o melhor ficou para trás. “Certa ocasião perguntei a John Lewis [ex-congressista negro dos Estados Unidos, intimamente ligado a Martin Luther King e figura de destaque na luta pelos direitos civis] se ele achava que o mundo estava chegando ao fim quando sofremos os assassinatos do Dr. King, o presidente Kennedy ou seu irmão Bobby Kennedy. E ele me disse que não, que ainda havia oportunidades para otimismo”, Jon Bon Jovi relata seus desejos políticos. "Eu também acho isso. As crianças de hoje são mais inteligentes do que nós em muitos aspectos e terão uma forma de encontrar as suas próprias soluções. Nós dois ainda somos dois velhos brancos que vão acabar morrendo. E talvez isso não seja uma coisa ruim. Saímos do caminho e abrimos caminho para uma geração mais compreensiva e compassiva que a nossa”, afirma, com um sorriso capaz de convencer qualquer um.

Rafael de Miguel, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS para o Reino Unido e Irlanda. Ele foi o primeiro correspondente da CNN+ nos EUA, onde cobriu o 11 de setembro. Dirigiu os Serviços de Informação do SER, foi Editor-Chefe da Espanha e Diretor Adjunto do EL PAÍS. Graduado em Direito e Mestre em Jornalismo pela Faculdade EL PAÍS/UNAM. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 24.04.24

O conselho de uma neurocientista para 'desabituar' o cérebro e evitar situações que nos fazem mal

Se você mora perto dos trilhos do trem e eles passam no mesmo horário todas as manhãs, é muito provável que você nem ouça o barulho que pode incomodar ouvidos desacostumados.

Tali Sharot é professora de neurociência cognitiva da University College London (Crédito: Tali Sharot)

O mesmo acontece se você entrar, por exemplo, em uma cafeteria: por mais agradável que seja o aroma do café moído na hora, quanto mais tempo você passar ali, aquele determinado perfume vai desaparecendo até ficar imperceptível ao seu olfato.

Essa tendência do nosso cérebro de deixar de prestar atenção às coisas que estão presentes o tempo todo ou que mudam de maneira gradual é conhecida como habituação.

"Há uma razão evolutiva adaptativa para isso. É a de que precisamos conservar nossos recursos", explica Tali Sharot, professora de neurociência cognitiva da University College London, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).

"Responder a algo novo que vemos, cheiramos ou sentimos pela primeira vez faz sentido. Mas, quando depois de um tempo você percebe que ainda está vivo e que está tudo bem, você não precisa mais responder tanto quanto antes."

"É melhor poupar esses recursos e preparar-nos para a próxima situação que teremos de enfrentar", acrescenta Sharot, coautora do livro Look Again: The Power of Noticing What Was Always There… ("Olhe novamente: o poder de perceber o que sempre esteve lá…", em tradução livre).

Superação

Este mecanismo ajuda, por um lado, a nos motivar, a seguir em frente.

Sharot dá como exemplo uma situação de trabalho.

"Pense no seu primeiro emprego, no nível inicial. Você provavelmente estava animado e feliz. Mas, se você ainda estivesse tão animado 10 anos depois, não estaria tão motivado em busca de uma promoção."

A habituação também nos permite superar situações difíceis, como perder um emprego ou um ente querido.

"É bom que com o tempo nos acostumemos, porque isso nos permitirá continuar funcionando", afirma o neurocientista.

"Seria muito difícil se você se sentisse tão irritado e triste como no início."

A habituação permite-nos avançar, por exemplo, no mundo do trabalho (Getty Images)

Mas, assim como nos ajuda a seguir em frente, essa tendência de habituar-se, de deixar de responder a situações que se tornam estáveis, pode se voltar contra nós.

Ficamos tão acostumados que, mesmo que uma situação ou relacionamento nos machuque, deixamos de considerá-lo tóxico porque se tornou um hábito e nos falta perspectiva.

Isso também acontece conosco em situações prazerosas: com o tempo, damos como certo o que nos acontece e isso diminui a intensidade da emoção que costumavam provocar em nós.

No entanto, aponta Sharot, é possível enganar seu cérebro para que ele supere essa tendência natural de se habituar às coisas e ignorá-las.

Tomar distância

O truque é simplesmente fazer uma pausa, distanciar-se da situação para poder vê-la com novos olhos.

A ideia é fazer com que "as coisas se destaquem, sejam elas boas ou ruins", explica Sharot.

Para isso, a especialista diz que há dois caminhos a serem tomados, relacionados entre si.

"Um deles é fazer pausas. Ou seja, se você se afastar de uma situação, mesmo que por um curto período de tempo — pode ser um final de semana, alguns dias ou mais —, você vai se desabituar até certo ponto e vai ser capaz de perceber melhor as coisas que te rodeiam."

Um exemplo que Sharot utiliza no seu livro é a nossa ligação às redes sociais, onde sentimos que elas têm um impacto negativo sobre nós.

"As pessoas sabem que [as redes] causam algum estresse, mas não sabem exatamente por que e não conseguem medir a magnitude e ter certeza porque estão sempre presentes nelas."

“O que foi descoberto é que quando as pessoas fazem uma pausa — digamos, de um mês —, o estresse é reduzido e as pessoas sentem-se mais felizes."

"Se você fizer uma pausa em sua vida cotidiana — pode ser no trabalho, fazendo um rodízio em departamentos diferentes ou trabalhando em projetos distintos —, quando você voltar, poderá ver as coisas com mais clareza, tanto as ruins quanto as boas", diz Sharot.

O bom, quando é breve, é ​​melhor ainda

A habituação afeta até as nossas férias (Getty Images)

Manter distância ou fazer uma pausa quando estamos em um bom momento pode parecer uma medida totalmente contraintuitiva mas, segundo pesquisas, isso aumenta o prazer.

Durante uma de suas pesquisas, a cientista descobriu, por exemplo, que o momento mais feliz das férias chegava às 43 horas.

Isto é, assim que as pessoas tivessem algum tempo para desfazer as malas e se instalar. Depois, com o passar dos dias, o prazer diminuía.

“Não é que não estivessem felizes no dia 7 ou 8, mas os momentos mais felizes vieram após 43 horas e depois diminuíram.”

O mesmo aconteceu quando os participantes do estudo foram questionados sobre os melhores momentos das suas férias: a palavra que se repetiu inúmeras vezes foi “primeiro”.

A primeira vez que viram o mar, o primeiro coquetel, o primeiro castelo de areia que construíram na praia e assim por diante.

Por esse motivo, embora normalmente aspiremos ao contrário — pensar que férias prolongadas são a melhor forma de descansar, porque nos desconectam completamente do trabalho —, tirar uma série de férias curtas produziu melhores resultados.

Isso porque também existem as expectativas que as férias geram.

Quando Sharot mediu o grau de felicidade antes da viagem, descobriu que o dia anterior foi o mais feliz, “porque você está imaginando como serão as férias".

E quando ocorrem, são boas, "mas não tão boas quanto na imaginação".

Resumindo, o truque é simples: distanciar-nos das situações a que estamos habituados, quebrar a rotina e introduzir mudanças.

Laura Plitt, jornalista, originalmente, para a BBC News Mundo,em 23.04.24

terça-feira, 23 de abril de 2024

Não, o Brasil não está sob uma ditadura

No Rio, Bolsonaro insiste na falácia de que estamos sob ‘ditadura do Judiciário’. Mas o País sabe o que é uma ditadura: é justamente aquela que os bolsonaristas tanto querem restabelecer

A manifestação bolsonarista ocorrida no domingo passado, na orla de Copacabana, esteve alicerçada em uma grande mentira, qual seja: o País estaria submetido a uma “ditadura”, em particular uma “ditadura do Judiciário”, materializada por uma série de decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Alexandre de Moraes.

Em que pesem as legítimas críticas que possam ser feitas aos métodos de Moraes, nada poderia estar mais distante da realidade. O Brasil não está sob “ditadura do Judiciário” nem sob qualquer outra forma de ditadura. Essa falácia, que de resto banaliza o horror de um estado de violência política real, mal consegue esconder seus desígnios antidemocráticos.

Os simpatizantes que atenderam ao chamado de Jair Bolsonaro para sair de suas casas para defendê-lo naquele dia ensolarado ouviram o ex-presidente questionar em alto e bom som a higidez da democracia no País. Na visão maliciosa de Bolsonaro, só sob uma “ditadura”, afinal, ele poderia ter sido julgado e condenado à inelegibilidade pelo TSE – e não como consequência de seu envolvimento pessoal e direto, na condição de presidente da República, em uma aberta campanha de desinformação sobre a lisura das eleições brasileiras, com o intuito de deslegitimar uma vitória da oposição.

Naquele seu idioma peculiar, Bolsonaro deixou claro à plateia reunida em Copacabana que a democracia, ora vejam, teria sido golpeada no País com sua derrota na eleição de 2022. Como corolário natural dessa “ditadura” inventada, a liberdade de expressão teria sido cassada por nada menos que o Supremo Tribunal Federal, malgrado se tratar de um dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição de 1988 como cláusula pétrea.

Não é de hoje que Bolsonaro tem recorrido à turvação do conceito de liberdade de expressão como subterfúgio para expor o que é a sua natureza liberticida. Nesse sentido, pregar o fechamento do Congresso, tecer loas à ditadura militar, exaltar torturadores e defender publicamente o fuzilamento de opositores, entre outras barbaridades, são exemplos típicos do que Bolsonaro entende ser nada mais do que a livre manifestação de opinião e pensamento.

É disso, e apenas disso, que se trata quando o ex-presidente e seus apoiadores sobem em um carro de som para denunciar a “ditadura” a que estariam submetidos os brasileiros. Ora, aqui se sabe muito bem o que é uma ditadura. Sabe-se muito bem o que é ter a voz cassada. Sabe-se muito bem o que é não poder manifestar críticas ao governo ou às instituições. Sabe-se muito bem o que é viver com medo do poder estatal. Tudo isso acontecia sob a ditadura militar, aquela que os bolsonaristas tanto querem restabelecer, inconformados que são com o restabelecimento da democracia em 1985.

O que se descortina diante dos olhos não obnubilados pelas paixões ideológicas é a usurpação do conceito de liberdade de expressão como esteio de uma campanha desavergonhada que nem remotamente passa por uma genuína defesa da democracia – ao contrário, é uma campanha que visa à desmoralização das instituições e da própria Constituição, com vista ao estabelecimento de um regime autoritário.

Os que se apresentam ao País e ao mundo como orgulhosos campeões da liberdade de expressão – como se viu no constrangedor pedido de Bolsonaro para que o público em Copacabana desse “uma salva de palmas” para um oportunista como Elon Musk, chamado de “mito da liberdade” – são os mesmos que não cansam de emitir sinais de que ainda não se resignaram com o fim da ditadura militar. Para esses democratas de fancaria, liberdade de expressão é a liberdade para que eles, e apenas eles, possam dizer o que bem entendem.

A esse respeito, não causam estranheza os apelos recorrentes dos bolsonaristas a uma certa mística religiosa, divisionista e identitária por definição. Tratado como uma espécie de instrumento da Providência Divina, Bolsonaro se considera, nessa condição, acima do bem e do mal. Se prestará contas por isso no Reino dos Céus, não se sabe. Aqui na Terra, o juízo está próximo.

Editorial / Notas & Informações, O  Estado de S. Paulo, em 23.04.24