terça-feira, 22 de outubro de 2024

O PT atrapalha o governo, o governo atrapalha o PT ou um atrapalha o outro?

Se Lula estivesse abafando, o governo fosse excelente e o PT desse um banho nas eleições municipais, vá lá; mas, como não é isso que ocorre, os erros do partido pioram a percepção geral sobre o terceiro mandato

Lula entre Dilma Rousseff, hoje chefe do Banco dos Brics, e Gleisi Hoffmann, que preside o PT  Foto: André Dusek/Estadão

Não foi à toa, convenhamos, que o presidente Lula decidiu antecipar a troca de comando do PT. Não faz sentido o partido do presidente da República, vira e mexe, bombardear o ministro da Fazenda e a política econômica, uma das raras áreas que vêm surpreendendo positivamente e dando boas notícias para, e sobre, o governo, apesar das dúvidas quanto à inflação e ao controle de gastos.

Faz menos sentido ainda que o PT classifique como “feito histórico” mais uma reeleição de Vladimir Putin, que invadiu a Ucrânia, envie sua presidente Gleisi Hoffmann e 30 petistas para badalar o regime chinês e trate a tragédia da Venezuela como normal, reconhecendo a vitória do ditador Nicolás Maduro no primeiro instante de uma eleição fraudada e depois ratificando o aval do Foro de São Paulo a essa “vitória”.

Se Lula estivesse abafando, o governo fosse excelente, o PT desse um banho nas eleições municipais e a direita terminasse como grande derrotada, vá lá, haveria um muxoxo daqui ou dali e pronto. Mas, como não é isso que ocorre, os erros do PT pioram a percepção geral sobre o terceiro mandato e irritam setores do próprio partido.

Sem candidato no Rio e em São Paulo, comendo poeira em Belo Horizonte e baixando a guarda em quatro das nove capitais do Nordeste, o PT ficou em nono lugar no número de prefeituras no primeiro turno, atrás do PSB e até do moribundo PSDB. Pode estar no fim a velha arquitetura da esquerda, com o PT no eixo e seus aliados, seus satélites.

O PT paulista é comandado pelos irmãos Tatto, que não deram bola para Guilherme Boulos (PSOL), candidato de Lula, e o do Rio está nas mãos dos polêmicos André Siciliano, Renato Machado e Quaquá. Em BH, o problema é outro: inanição. Enquanto isso, Pernambuco lidera a renovação na esquerda, com o prefeito de Recife, João Campos (PSB), e a governadora Raquel Lyra (ainda PSDB), na centro-esquerda. De quebra, Tabata Amaral (PSB-SP), namorada de João, é outra boa novidade nacional.

Afinal, o PT atrapalha o governo, ou o governo atrapalha o PT? Típico caso em que todo mundo briga e todos têm razão. Lula é maior do que o PT, dá todas as ordens e submete o partido à necessidade de apoio no Congresso, enquanto tropeça, ou some, em política externa, meio ambiente, educação, cultura...

Com a derrota petista em cidades paulistas importantes, Lula quer na presidência do PT o prefeito Edinho Silva, que não elegeu sua candidata em Araraquara, mas Gleisi investe no líder do governo na Câmara, José Guimarães (CE). Edinho Silva é mais forte, mas não há santo que faça milagre com governo e partido fora do prumo.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 21.10.24  

Duas notícias que se neutralizam

A política municipal transformou-se num bico de pena de um quadro federal lastimável. A maioria dos agentes políticos são néscios de dar dó

Brizola,Ulisses  (com D.Mora), Tancredo, FHC nas ruas pelas Diretás Já!

A boa notícia é que a eleição municipal assumiu uma tendência centrista, desfazendo a radicalização que ameaçava o País desde 1926; a ruim, é que esse resultado se deveu principalmente ao fato de a maioria dos eleitores terem se desinteressado pela política num grau nunca visto pelo menos desde o fim da 2.ª Guerra Mundial.

Fosse facultativo o nosso sistema de votação, dificilmente o comparecimento às urnas atingiria 40%. Que motivos podemos aventar para essa abrupta queda? Afirmo sem temor de errar que o principal motivo foi a qualidade mediana dos candidatos. Para chegar a essa conclusão, não precisamos evocar o pitoresco episódio do recurso a peças de mobiliário para aquecer o debate. Basta-nos observar que, no Brasil, a teratológica centralização do poder sempre reduziu a política municipal a um quase nada. Os candidatos, sim, têm muito apreço por ela, pois sabem que é um bom negócio plenamente compatível com um quase total ócio.

O segundo motivo é que o Brasil não consegue superar a entressafra política em que se meteu desde o fim do governo Fernando Henrique. No Congresso constituinte de 1987-1988, qualquer cidadão medianamente atento podia facilmente identificar, de uma ponta a outra do espectro político, no mínimo 20 figuras públicas de alta envergadura. Não estou aqui expressando uma preferência ideológica, mas apenas ressaltando que lá estavam Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, Afonso Arinos, Fernando Henrique Cardoso, Roberto Campos, Delfim Netto e outros mais. Ora, em nenhum país a política municipal produzirá políticos desse calibre, mas devemos admitir que, havendo lideranças de tal ordem, o nível não cairá a zero. Agora, sim, caiu a zero, e o eleitor, por ingênuo que seja, percebe claramente o quadro que tem diante de si. A política municipal transformou-se num bico de pena de um quadro federal lastimável. Entre o ponto inicial e o presente – desde o início da entressafra –, a maioria dos agentes políticos são néscios de dar dó.

Nunca é demais lembrar que o vácuo que se formou desde o fim da geração de homens públicos acima mencionados cresceu numa proporção monstruosa, à medida que forças políticas antes apegadas a um rançoso esquerdismo passaram a se apresentar como um centro. O marco zero desse processo foi a campanha eleitoral de 2002, quando o PT decidiu amenizar sua tradicional carranca lançando um documento intitulado Carta ao povo brasileiro, que também poderia ser designado como carta aos banqueiros, ou aos empreiteiros. O passo seguinte, já com o iniciático Lula da Silva ocupando o Palácio do Planalto, foi recorrer à infecciosa expressão “herança maldita” a fim de inquinar a obra de governo de Fernando Henrique Cardoso, que lograra a proeza de estabilizar uma superinflação que já durava 33 anos. O episódio do “mensalão”, de 2005, podemos deixar de lado, por não merecer figurar nem nesse contexto de pura falcatrua. Nos anos seguintes, beneficiado pelo crescimento do comércio mundial e, especialmente, pelas compras da China, Lula não teve dificuldade em posar de estadista e menos ainda, with a little help from his friends, em emplacar Dilma Rousseff no Planalto, esse sim um golpe de misericórdia que traria em seu rastro um brutal retrocesso econômico e um Mr. Hyde (Jair Bolsonaro) para fazer o contraponto com o Dr. Jekyll, ou seja, Lula e o PT, configurando-se, assim, a famigerada polarização de 2016, que debilitou de vez nossa crônica anemia para enfrentar uma tragédia do tamanho da covid-19.

Voltemos, pois, à boa notícia. Vem de priscas eras o ditado de que certos males vêm para bem. A mediocridade dos candidatos e a indiferença dos eleitores na eleição municipal deste ano parecem realmente ter desfeito a polarização iniciada em 2016. Temos tempo para encontrar um ou mais candidatos de centro, dotados do mínimo indispensável de energia, lucidez e tirocínio, e para repensar a fundo nossa estratégia de crescimento econômico.

Mesmo se todos esses milagres acontecerem, outro personagem precisa ser acordado de sua letargia. Falo, evidentemente, do eleitorado. A maioria dos cidadãos precisa compreender que seu papel político não pode ser ignorante e preguiçoso como tem sido ao longo dos séculos. Em última análise, ele é o arrimo que teremos de edificar para sobrestar crises do tamanho das que já começam a bater à nossa porta. Desvistam-se de seus preconceitos e revejam a transição levada a cabo na África do Sul em 1990-1994. Ao tomar posse em 1990, o presidente Frederik Willem de Klerk, dirigindo-se aos descendentes de ingleses e aos afrikaners – as duas castas racistas que dominaram o país durante séculos –, virou o país de ponta-cabeça. Pronunciando, sem ser interpelado, um discurso de 45 minutos, firmou a posição de que a partir do dia seguinte não haveria mais apartheid nem segregação, e que todos os cidadãos adultos teriam o direito de voto, instituindo-se, assim, a democracia representativa. No Brasil, é imperativo formarmos gente desse calibre nos próximos cinco ou, no máximo, dez anos.

Bolívar Lamounier, o autor deste artigo, é sócio da Consultoria Augurium, membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Ciências. Publicado ooriginalmente n'O Estado de S,. Paulo, em 19.10.24

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O preocupante aumento da violência política

A sociedade e seus representantes precisarão encontrar meios de desarmar os ânimos, desconstruir a polarização e obliterar a infiltração do crime organizado no poder público

Um levantamento do Observatório da Violência Política e Eleitoral (OVPE), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, identificou 455 casos de violência contra lideranças políticas do Brasil de janeiro a 16 de setembro deste ano. À medida que o pleito se aproxima, os incidentes aumentam. Entre julho e 16 de setembro, foram 15 homicídios. No período eleitoral crítico, daqui até o segundo turno, a tendência é de aumento.

A violência política tem se intensificado nos últimos ciclos eleitorais. Segundo levantamento do Estadão, a média de mortes por motivações políticas nos primeiros dez ciclos da redemocratização foi de 52. Em 2020, ao menos 72 brasileiros foram assassinados por motivações políticas. Só as agressões contra lideranças computadas pelo OVPE já são maiores que em 2020 e 2022.

Duas causas parecem alavancar essa escalada. Uma é da ordem da cultura política: a intensificação da polarização e da intolerância e a naturalização da truculência como meio de ação política. A outra é um problema sistêmico de segurança pública: a expansão e complexificação do crime organizado e sua infiltração no Estado.

Divergências são naturais e desejáveis em uma democracia. Mesmo certos graus de polarização são normais. Processos deliberativos e ciclos eleitorais culminam inevitavelmente em momentos em que é preciso decidir “sim” ou “não”, “contra” ou “a favor”. O problema é quando essas polarizações – necessárias, circunstanciais e localizadas – se degeneram em polarizações estruturais, generalizadas e perniciosas, e a pluralidade de esferas sociais passa a ser determinada pela clivagem político-ideológica.

Nas democracias esse processo de radicalização ocorre de cima para baixo. Políticos de ofício têm incentivos para promover atitudes polarizadas, forjando “batalhões” leais e permanentemente mobilizados. Em contrapartida, esses batalhões exigem de seus representantes um alinhamento cada vez mais estrito às linhas partidárias e desmoralizam os moderados. Cria-se um círculo vicioso entre elites políticas radicais e massas militantes radicalizadas, que esvazia o centro, amplia a distância entre os polos e intensifica a hostilidade entre eles.

Essa clivagem única degrada o processo democrático, impossibilitando interações, consensos e compromissos; disseminando desconfiança nas instituições e no jogo democrático; e incentivando o sensacionalismo e o tribalismo. Adversários políticos se tornam inimigos existenciais. A desumanização do “outro” propicia as condições para violências de todo tipo, desde a segregação até a eliminação.

Mas possivelmente a principal causa do aumento da violência é a infiltração do crime organizado na máquina pública. A atuação das facções e milícias passa pelo financiamento de campanhas de aliados, intimidação e extorsão de eleitores, ameaças a políticos, corrupção de agentes de Estado e captura de contratos públicos.

As forças de segurança precisam organizar núcleos específicos que investiguem permanentemente as relações promíscuas entre a política e o crime. Os partidos precisam aprimorar mecanismos de controle para identificar e afastar criminosos ou agregados do crime organizado.

Quanto à violência política “passional”, por assim dizer, a Justiça Eleitoral pode aprimorar as condições de segurança nos ciclos eleitorais, especialmente nos dias das eleições. Mas desarmar os ânimos não é tarefa de um dia, e a responsabilidade é de todos: de cada cidadão, das organizações civis, mídia, instituições públicas e, especialmente, elites políticas. Um desenho institucional de prevenção e mitigação deve considerar melhorias no sistema da Justiça Eleitoral e uma infraestrutura para a paz, incluindo pactos e códigos de conduta, comitês suprapartidários e campanhas e sistemas de alerta.

A responsabilidade final é do eleitor. A menos que puna hoje, nas urnas, os autoritários que instrumentalizam a retórica da demonização, do “vale-tudo” no “nós contra eles” e, sobretudo, os que apelam às vias de fato, amanhã não só seu voto pode ser tolhido, como a sua própria vida.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.09.24

Anatomia do amor repentino

O que separa o amor romântico do desejo e do apego é a sua natureza obsessiva. É especialmente perceptível em tempos de redes sociais.

Kristen Bell e Adam Brody em 'Ninguém Quer Isso'. (Dam Rosa, Netflix)

Helen Fisher disse que o amor é um mecanismo biológico que evoluiu em nosso cérebro para facilitar a reprodução e a sobrevivência das espécies. Que os humanos estão programados para se apaixonarem e que existem três tipos de programas, movidos por hormônios diferentes: desejo, amor romântico e apego.

O desejo sexual é ativado pela testosterona e pelo estrogênio e seu objetivo imediato é a gratificação física. É o mais fácil. O apego funciona com a oxitocina e a vasopressina, dois hormônios/neurotransmissores que são liberados com o contato físico sustentado ao longo do tempo e não necessariamente sexual. Uma serve para ter filhos e a outra para manter vínculos duradouros e garantir o cuidado compartilhado da ninhada, recompensando o carinho e a convivência. Muitas das complicações comuns nas relações humanas são que podemos sentir desejo sem apego e nos apegarmos a alguém que não queremos mais passar a cada minuto do dia e da noite. A falta de sincronização entre desejo e apego é a base de quase todas as comédias românticas. O programa mais complexo, perigoso e transformador é o amor romântico. Aquele pedaço de vibração. Aquela novela.

Fisher não acreditava que o amor romântico fosse uma construção social que reforçasse os papéis tradicionais de género. Também não é um fenómeno cultural, porque todas as culturas humanas o vivenciaram de forma muito semelhante. É uma onda de dopamina e noradrenalina no cérebro que atinge o usuário desavisado como um raio no caminho para Damasco, transformando-o no messias de uma nova religião. Um caso de submissão química, onde um grupo de neurônios escondidos em uma região do mesencéfalo chamada área tegmental ventral começa a produzir dopamina e a distribuí-la em bairros vulneráveis ​​do cérebro, como o núcleo accumbens e o córtex pré-frontal.

O que se segue é um estado alterado de euforia imprevisível, energia incontrolável e obsessão monomaníaca , que multiplica o feedback da obsessão paralela do outro e consome ambos. A reciprocidade transforma a paixão em uma alucinação compartilhada, uma seita de dois. Esta psicose opera a mesma série de circuitos neurais que o desejo, o apego e a recompensa. A dopamina e a norepinefrina não são moléculas de prazer. Eles são a droga do vício.

O que separa o amor romântico do desejo e do apego é a sua natureza obsessiva. É especialmente perceptível em tempos de rede social. Um novo oráculo invade sua vida com seus enigmas simples: “Ativo há 17 minutos”, “Ativo agora”, “X gostou da sua história”, etc. É a manifestação mais aguda da trilogia negra do enamoramento: dependência emocional, ansiedade de separação e frustração da atração; um conceito que Fisher inventou para descrever a agonia violenta de esperar por uma ligação que não chega, uma mensagem que fica sem resposta, a queixa explosiva de uma conversa intensa que termina de maneira unilateral. Nesse estado alterado de consciência, tudo tem significado. Os fios que conectam você são visíveis em plena luz. Todos os livros são sobre você. Todas as músicas eram sobre você. Todas as portas e janelas estão abertas ao mesmo tempo. Mas nem mesmo Helen Fisher poderia dizer qual das duas coisas estava diante dela: o fogo que salva ou o fogo que destrói.

Marta Peirano é colunista do EL PAÍS. Este texto de sua lavra foi publicado originalmente em 30.09.24.

México: destruição e incerteza

Esta tragédia foi chamada de Quarta Transformação. Entrevistá-la não me dá a menor satisfação. Com toda a minha alma eu gostaria de estar errado

Andrés Manuel López Obrador, durante o seu último relatório de Governo. (Crédito: Luis Antonio Rojas / Bloomberg)

Em junho de 2006, um mês antes das eleições presidenciais, escrevi um ensaio sobre Andrés Manuel López Obrador intitulado “O Messias Tropical”. Foi, acima de tudo, um retrato psicológico de um homem com vocação social mas oprimido, ao mesmo tempo, por uma ambição de poder sombria, irracional e vingativa. Registrei o seu carácter destemperado, a sua obsessão consigo mesmo, o seu total desinteresse pelo mundo exterior, a sua ignorância económica, o seu desprezo pela lei, o seu dogmatismo ideológico e o seu autoritarismo político: López Obrador nada teve a ver com o liberal, constitucional, democrático tradição do México, nem mesmo com a socialista. Claramente, ele era um personagem tirânico. No final, ele apontou a perigosa convergência de dois dos seus delírios: equiparar-se a Jesus Cristo e ostentar a natureza “tropical” transbordante do poder em Tabasco, o seu estado natal no sudeste do México. Seu triunfo me parecia iminente e por isso avisei: “O México perderá anos irrecuperáveis”.

López Obrador perdeu as eleições de 2006 e 2012, mas finalmente triunfou em 2018. Governou durante seis anos. Este é um breve relato (incompleto, é claro) de sua fúria destrutiva:

Ele cancelou o Seguro Popular , que deixou 30 milhões de mexicanos sem cobertura de serviços públicos de saúde. Cortou recursos para o Instituto Mexicano de Segurança Social, bem como para dezoito Institutos Nacionais de Saúde e hospitais altamente especializados, o que levou à escassez de medicamentos e materiais hospitalares. A sua política de austeridade deixou 500 mil pessoas sem cirurgias e 15 milhões de receitas médicas por preencher (cinco vezes mais do que o governo anterior). A população sem assistência médica aumentou de 20,1 milhões em 2018 para 50,4 milhões em 2022. 97% dos atendimentos a pacientes com câncer foram suspensos. Nos seis anos do seu governo, mais de 6 milhões de crianças ficaram não imunizadas devido à escassez de vacinas. A forma como lidou com a pandemia de COVID resultou em 800.000 mortes em excesso, das quais 300.000 são atribuíveis às suas decisões. Presidiu o mandato de seis anos mais violento da história do México , com quase 200 mil homicídios. O período registrou os maiores índices de feminicídios, desaparecimento de pessoas, extorsão, tráfico de drogas, tráfico de pessoas, deslocamentos forçados, roubo de transporte de cargas, roubo de hidrocarbonetos, estupros e violência familiar. Permitiu que o crime organizado se tornasse, de facto, um Estado paralelo em grandes áreas do território. Ele desperdiçou mais de 80 fundos e fundos públicos, incluindo aqueles destinados à recuperação de desastres como furacões, terremotos e doenças catastróficas. Esses recursos não foram suficientes: a dívida pública aumentou 6,6 mil milhões de pesos (o dólar está cotado a 20 pesos), tornando- a no prazo de seis anos mais endividado até agora neste século . Ele recebeu um déficit de 2% e elevou-o para 5,96% do PIB. O crescimento médio nestes seis anos foi de 1% do PIB, o mais baixo dos últimos cinco Governos. Suas obras de infraestrutura foram construídas com um custo extra de mais de 485 bilhões de pesos e as mais importantes são inviáveis: um aeroporto fantasma, uma refinaria que poderá um dia produzir gasolina (mais cara que a gasolina importada) e um trem que devastou as selvas do sudeste do México . Todos os três foram construídos pelo Exército, ao qual López Obrador concedeu um enorme orçamento e poder ilimitado, confiando-lhe tarefas estranhas, como a supervisão da alfândega, além de torná-lo a única força policial nacional. Foi também o pior mandato de seis anos em termos de corrupção, impunidade, transparência, desmantelamento institucional e destruição de todos os órgãos autónomos de responsabilização. A sua demolição mais recente foi a divisão de poderes e a ordem republicana em vigor durante 200 anos. López Obrador destruiu o Poder Judiciário : milhares de juízes serão demitidos e novos serão eleitos pelo voto popular. Mas talvez o seu legado mais sério seja ter semeado, dia após dia, ódio e divisão na sociedade mexicana.

Esta tragédia foi chamada de Quarta Transformação. É uma afronta à nobre tradição socialista chamá-la de “esquerdista”. Ter vislumbrado o que aconteceu não me dá a menor satisfação. Com toda a minha alma eu gostaria de estar errado.

Como você explica a popularidade de Andrés Manuel?

Por um lado, existe a captura praticamente total da informação, o monopólio da verdade, o silêncio e (no melhor dos casos) a autocensura dos meios de comunicação de massa. A propaganda oficial escondeu a natureza e a extensão da destruição. Por outro lado, existem programas sociais, especialmente distribuições em dinheiro. Mas esta distribuição necessária (que Gabriel Zaid propôs desde 1973 nas revistas Plural e Vuelta e que a revista Letras Libres sempre apoiou) tem sido distorcida pelo seu carácter discriminatório e porque é acompanhada de obediência política. Na verdade, a distribuição é realizada através de uma rede de “Servidores da Nação” que funcionam como comités revolucionários cubanos. Fazem os beneficiários acreditarem que os recursos vêm do Governo e não dos impostos. (Na verdade, incrivelmente, esta é a mesma propaganda oficial sobre remessas enviadas por migrantes dos Estados Unidos.)

Estes são os elementos centrais da servidão voluntária que aflige metade dos mexicanos. Se tudo permanecer igual, mais cedo ou mais tarde os agora crentes acordarão para a realidade, e o despertar será doloroso. Talvez então compreendam o que os povos de Cuba e da Venezuela entendem até agora: as lideranças messiânicas trazem consigo a esperança do reino de Deus na terra, mas o resultado final é sempre o mesmo: fome, desolação, prostração, exílio.

Claudia Sheinbaum será a primeira mulher a se tornar presidente do México. É um marco histórico num país sexista e sangrento, sobretudo devido aos feminicídios. Até agora Sheinbaum não deu qualquer indicação de independência em relação ao seu mentor. Mas recordemos que a cada seis anos, desde 1934, o México teve um novo presidente e um novo governo: novos e reais, não subordinados. Sheinbaum vai querer seguir essa tradição? Se ela não o fizesse, o próprio poder – ou melhor, a impotência de um poder subordinado – iria devorá-la.

Uma nuvem de incerteza obscurece as perspectivas. Mas o acaso existe. Talvez Sheinbaum canalize a sua própria vocação social para apoiar a autonomia das pessoas sem exigir obediência política que as degrada. Talvez ele busque a harmonia e não a polarização. Talvez ele tente preservar a ordem republicana. Talvez isso governe para todos. Talvez ele fale a verdade. Talvez dê início a um árduo e longo processo de reconstrução.

Não sei se isso vai acontecer. Só sei que não há outra forma de o México recuperar o lugar honroso, civilizado e íntegro que até recentemente ocupava no concerto das nações democráticas.

Enrique Krauze, o autor deste artigo, é um historiador, ensaísta e editor mexicano, diretor da editora Clío e da revista cultural Letras Libres . Publicado originalente pelo EL PAÍS, em 30.09.24


Crime organizado busca influenciar eleições e formular leis

O crime organizado busca se infiltrar nas eleições municipais e pretende formular leis. Por isso, é preciso que a Justiça apresente uma resposta imediata a essa tentativa. Quem diz isso é a presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Cármen Lúcia.

Ministra Carmen Lúcia (Crédito da foto: Alejandro Zambrana/Secom/TSE)

Em entrevista publicada neste domingo (29/9) no jornal O Globo, a ministra diz que o plano das facções é “bastante grave” e não pode ser subestimado. Nesse sentido, segundo ela, a Justiça tem feito um cruzamento de dados para acompanhar o tema.

O trabalho é feito por um grupo de especialistas do Ministério Público e da Polícia Federal para verificar se pedidos de registro de candidatura foram feitos por pessoas envolvidas em processos ligados a organizações criminosas.

Segundo a ministra, existe o risco de que a tentativa de infiltração dos criminosos na política alcance as esferas estaduais e até nacionais. “É grave esse atrevimento criminoso”, disse ela.

Ainda sobre a atuação das facções, a ministra disse que a Justiça traçou uma “estratégia robusta” para garantir a segurança das eleições. O plano envolve todas as polícias estaduais e federais e conta ainda com o reforço das Forças Armadas.

Ela acrescenta que nestas eleições, pela primeira vez, foi determinado que houvesse a presença de um juiz em todos as cidades do país no dia da eleição. “Essa estratégia foi implementada para que os eleitores se sintam seguros e protegidos, tanto física quanto legalmente, em todo o território nacional”, disse.

Pancadaria

Cármen Lúcia também criticou os recentes episódios de violência na campanha eleitoral deste ano. Para ela, candidatos que partirem para a agressão física durante os debates devem ser punidos. “Como pode alguém que se apresenta de forma agressiva ser um pacificador quando assumir o cargo?”, questionou a ministra.

Segundo ela, o ambiente violento é estimulado pelas redes sociais e por aquilo que ela já classificou de “algoritmo do ódio”. Contudo, o impacto dessa tecnologia, nestas eleições, não tem alcançado os níveis observados em pleitos anteriores.

“Tem um algoritmo perigoso. É evidente que alguém está ganhando muito com isso. Mas acho que esse impacto do algoritmo na eleição é muito menos do que se esperava. Os eleitores estão mais preocupados com questões práticas do dia a dia.”

Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 30.09.24

sábado, 28 de setembro de 2024

Comitiva de Lula na ONU expõe exagero em viagens internacionais

Presidente viajou com mais de cem pessoas. No primeiro ano de governo, saídas do Brasil custaram 28% a mais

O presidente Lula em entrevista à imprensa na ONU — Foto: ANGELA WEISS / AFP

Para demonstrar que o Brasil voltava com força à cena global depois do isolamento no governo Jair Bolsonaro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva começou a viajar pelo mundo ainda antes da posse. Depois, como presidente, adotou uma agenda internacional frenética. Nos primeiros oito meses de governo, visitou 19 países nas Américas, Europa, Ásia e África. Em cada viagem, Lula costuma seguir acompanhado de um séquito de ministros, diplomatas, assessores, seguranças e todo tipo de agregado. As viagens internacionais da administração pública federal, fundações e autarquias em 2023, primeiro ano do mandato de Lula, chegaram a 22.494 e custaram R$ 296,6 milhões aos cofres públicos. Na comparação com o último ano de Bolsonaro, tais números cresceram, respectivamente, 38% e 28%.

A comitiva levada a Nova York para a 79ª Assembleia Geral da ONU ilustra o exagero em que se transformaram as viagens ao exterior neste governo. Entre autoridades e assessores, incluindo a primeira-dama Janja Lula da Silva, mais de cem pessoas foram aos Estados Unidos acompanhar o discurso de Lula na abertura da assembleia. Não é preciso examinar com lupa a lista de viajantes para identificar o desperdício de dinheiro público em momento de grave crise fiscal.

Presente na comitiva, a ministra de Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, já aterrissara neste ano em Nova York. Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas e outra integrante da comitiva, visitou 12 países desde a posse. Esteve nos aeroportos de Amsterdã, Londres, Roma, Paris, Dubai, Vancouver, Caracas e Cartagena, entre outros. De Brasília para Manaus, só viajou cinco vezes. Wellington Dias, ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, também acompanhou Lula a Nova York. Em 21 meses à frente da pasta, foram 12 viagens ao exterior.

É perfeitamente possível que a maioria dos ministros consiga apresentar boas justificativas para participar de eventos no estrangeiro. Mas, nestes tempos de trabalho remoto e videoconferências, deveriam refletir mais antes de sair do país. Nem toda viagem é planejada com a devida antecedência. Compradas em cima da hora, as passagens são mais caras. As diárias de assessores elevam os gastos às alturas. Eles podem não ser tão altos levando em conta o tamanho do Orçamento, mas as autoridades precisam demonstrar mais parcimônia e dar exemplo de austeridade. A maneira mais eficaz de melhorar a imagem do Brasil e de alavancar projetos e investimentos externos é trabalhar dentro das fronteiras do país para que mais resultados positivos apareçam e atraiam o interesse internacional. O ímpeto de projetar o país no exterior e estreitar relações com estrangeiros merece um freio de arrumação.

Editorial de O GLOBO, em 28.09.24

Boicote do Brasil ao discurso de Netanyahu é amostra dos ressentimentos antiocidentais de Lula

A retirada dos diplomatas brasileiros antes do discurso do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, na Assembleia-Geral da ONU, foi uma amostra de subordinação do Itamaraty à ideologia que emana do Palácio do Planalto, e aos ressentimentos antiocidentais que dominam a política externa brasileira.

Lula durante conferência de imprensa à margem da Assembleia-Geral da ONU. Nesta sexta-feira, diplomatas brasileiros abandonaram discurso de Netanyahu. Foto: ANGELA WEISS/AFP

Os brasileiros imitaram o gesto de colegas do Irã, Turquia, Chile, Colômbia, Botsuana, Djibuti e Guiné-Bissau, entre outros. Numa flagrante indignação seletiva, eles não tiveram a mesma iniciativa perante os discursos ultrajantes e delirantes do embaixador russo Vasily Nebenzya, que usa a tribuna da ONU desde 2022 para repetir as distorções da história da Ucrânia, as paranoias e ameaças do ditador Vladimir Putin.

Netanyahu proferiu um discurso abusivo e arrogante, repleto de ameaças de uso da força bruta e omissões sobre as causas do conflito no Oriente Médio, ignorando o papel de Israel e principalmente dele mesmo, em fornecer combustível político para as correntes radicais do mundo árabe e muçulmano.

Mas, diferentemente de Putin, tratado com mal disfarçada complacência pelo presidente Lula e seu assessor especial Celso Amorim, Netanyahu defende seu país da ameaça real, não imaginária, de inimigos a seu redor.

A indignação seletiva é apenas o pano de fundo de incoerência que torna ainda mais espantoso o gesto dos diplomatas. A retirada do auditório da ONU assinala a ruptura das tradições da diplomacia brasileira, baseadas na sobriedade, discrição, profissionalismo e coerência.

O Brasil é uma potência regional média. Não tem o poderio militar, econômico, político e tecnológico para impor seu desejo ao mundo. Países com esse perfil compensam essas fragilidades com o chamado poder brando, construído com a fidelidade a valores universais, como o respeito à soberania, à autodeterminação, à não-intervenção em assuntos internos de outros países, à solidariedade e, acima de tudo, às leis e tratados internacionais.

Não é por acaso que o corpo diplomático e as Forças Armadas são dois estamentos, o que significa um status distinto do restante do funcionalismo público. Essas duas categorias devem estar ainda mais blindadas de influências políticas, porque elas representam interesses nacionais permanentes, que não podem ser contaminados por interesses eleitoreiros, obsessões narcisistas e afinidades ideológicas dos governantes de turno.

A subordinação da política externa a afinidades ideológicas e pessoais de um governante acarreta inevitavelmente prejuízos à credibilidade de um país e aos interesses nacionais. Esses danos se amplificam quando, para esconder suas incoerências, o governante distorce os fatos e fere a dignidade de outros povos, como tem feito sistematicamente o presidente Lula.

Na tentativa de normalizar seu desejo de acolher Putin no Brasil na cúpula do G-20 em novembro, desobedecendo o mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional, e com ele a própria Constituição brasileira, Lula declarou em entrevista coletiva na ONU que Netanyahu também foi condenado pela mesma corte.

Não é verdade. Um procurador pediu ao TPI o indiciamento de Netanyahu pelos crimes de guerra cometidos na Faixa de Gaza, mas o tribunal ainda não decidiu a respeito. Uma decisão contra Israel foi tomada no início do ano pela Corte Criminal Internacional, que exigiu que o país evite um genocídio na Faixa de Gaza.

Na última de uma série infindável de declarações ultrajantes contra a Ucrânia e Volodmir Zelenski, Lula declarou, na mesma coletiva para a imprensa internacional que, se o presidente ucraniano fosse “esperto”, aceitaria a proposta de “paz” do Brasil e da China.

O plano consiste em congelar as linhas do conflito e cessar toda hostilidade de ambos os lados para negociar um acordo. Ou seja, a Ucrânia renunciaria a seu direito de se defender e abriria mão de mais de um quarto de seu território atualmente ocupado pela Rússia.

Os russos seriam premiados por terem invadido o país vizinho sem provocação. Vladimir Putin teria um respiro para recuperar sua máquina de guerra e, estimulado pela impunidade, poderia invadir o restante da Ucrânia e até outros países do Leste Europeu, quando estivesse pronto de novo.

Desde que Lula assumiu pela primeira vez a presidência, há duas décadas, a longa tradição da diplomacia brasileira vem desmoronando. Lula sacrificou os interesses nacionais para agradar ditadores de esquerda.

Empenhou escassos recursos brasileiros na construção do metrô em Caracas e outras obras de infraestrutura na Venezuela, chegando a pedir voto para Hugo Chávez na cerimônia de inauguração de uma ponte construída pela Odebrecht sobre o Rio Orinoco, nas vésperas de uma das muitas reeleições do autocrata, em 2006.

Lula aceitou um aumento injustificado no valor do gás boliviano para contentar Evo Morales e a tomada do controle das operações da Petrobrás no Equador, para não contrariar Rafael Correa, ambos populistas autoritários de esquerda.

Lula ainda envolveu o Brasil em uma manobra do nacionalista iraniano Mahmud Ahmadinejad para dar uma aparência de oferta de acordo nuclear com o Ocidente, com a participação do autocrata da Turquia, Reccep Tayyip Erdogan.

Isso foi em 2010. Catorze anos depois, o Brasil passaria outro vexame em Teerã: a inexplicável presença do vice-presidente Geraldo Alckmin na posse do presidente iraniano, Masoud Pezeshkian.

Principal autoridade na cerimônia, Alckmin se sentou na primeira fileira, ao lado do líder político do Hamas, Ismail Haniyeh, morto horas depois por Israel, o líder da Jihad Islâmica, Ziyad al-Nakhalah, o vice-secretário-geral do Hezbollah, Naim Qassem, e o porta-voz dos Houthis, Mohammed Abdulsalam, que ostentava a tradicional adaga iemenita no cinturão.

A imagem, que correu o mundo, por ter sido a última de Haniyeh antes de seu assassinato, equivaleu ao enterro simbólico da diplomacia brasileira.

Lourival Sant'Anna, o autor deste artigo, é colunista do jornal O Estado de S. Paulo e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana. Publicado originalmente em 28.09.24

'Ainda estou aqui' no Oscar: por que caso de Rubens Paiva segue parado no STF

O deputado foi cassado e preso em 1971 e dado como desaparecido. Sua morte, confirmada só 40 anos mais tarde, segue até hoje sem que os culpados tenham sido responsabilizados.

À esq., foto de família com Eunice, Rubens e Babiu (filha caçula) no Rio em 1970. Divulgação/ Arquivo Pessoal Vera Paiva. (à dir., cena do filme)

Mais de meio século após o desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva na ditadura militar, um dos episódios mais emblemáticos de violação de direitos humanos da história do Brasil, o país revisita o caso em duas frentes em buscas de respostas, enquanto, em uma terceira, ele segue sem desfecho.

No cinema, Ainda Estou Aqui, novo filme de Walter Salles, retrata os impactos da perda de Rubens Paiva sobre sua esposa, Eunice, e seus cinco filhos no Rio de Janeiro dos anos 1970, durante a ditadura militar.

O longa, inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado, foi premiado como melhor roteiro no último Festival de Veneza e escolhido por unanimidade para representar o Brasil no Oscar no próximo ano.

Ao mesmo tempo, o governo federal reabriu uma investigação do caso sobre o que de fato aconteceu com Rubens Paiva.

O deputado foi cassado e preso em 1971 e dado como desaparecido. Sua morte, confirmada só 40 anos mais tarde, segue até hoje sem que os culpados tenham sido responsabilizados.

Isso porque a denúncia, feita há uma década, e o processo decorrente na Justiça brasileira está parado no Supremo Tribunal Federal (STF), nas mãos do ministro Alexandre de Moraes, sem qualquer sinal de que possa ser retomado. A demora é tal que três dos cinco militares acusados pelo crime já morreram.

Esse impasse está intimamente ligado ao debate sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia, que concedeu perdão tanto a perseguidos políticos quanto a agentes do Estado que cometeram crimes durante o governo militar.

No centro da questão, há uma discussão se os crimes daquele período podem ou não ser ainda punidos e, em última instância, a disposição da sociedade brasileira de acertar as contas com um dos períodos mais violentos de sua história recente.

Este é o cerne de Ainda Estou Aqui, diz Marcelo Rubens Paiva à BBC News Brasil, em que sua mãe, Eunice, interpretada por Fernanda Torres, é apresentada como uma mulher forçada a se reinventar diante da violência do Estado e a criar um novo futuro para sua família.

Seu livro e o longa derivado dele propõem mais do que uma reconstituição histórica. São uma reflexão sobre a impunidade e a resistência à revisão de crimes da ditadura militar, tema que permanece atual e controverso no país.

“O nosso papel como cineasta, escritor, roteirista, pessoa das artes é falar aquilo que os vencidos não conseguem falar”, diz o filho do deputado.

“Mostrar, denunciar, apontar, é muito complicado em um país que sofreu um processo de ditadura tão longo e que na redemocratização fez um pacto sinistro entre a sociedade civil e os torturadores.”

Selton Mello, que interpreta Rubens Paiva e Fernanda Torres, que interpreta Eunice, ao lado do diretor Walter Salles (Getty Images)

Por que caso Rubens Paiva está parado no STF

Rubens Beyrodt Paiva nasceu em 1929, em Santos, São Paulo. Casado com Eunice Facciolla Paiva, era pai de cinco filhos: Vera, Maria Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria Beatriz.

Formado em engenharia, Paiva foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962.

Durante seu tempo na Câmara dos Deputados, destacou-se como relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que investigava o financiamento de grupos que conspiravam contra o governo de João Goulart.

Com a instalação do regime militar, em 10 de abril de 1964, seu mandato foi cassado, levando-o ao exílio na Iugoslávia.

Após retornar ao Brasil em novembro do mesmo ano, Paiva estabeleceu-se com a família em São Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro, em uma residência na Avenida Delfim Moreira, no bairro do Leblon.

Ele atuava como diretor-gerente de uma empresa de engenharia e fundações, cultivando relações com jornalistas e políticos de oposição.

No entanto, em 1971, Rubens Paiva foi sequestrado por agentes do regime militar e, conforme denúncia do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, morreu no antigo DOI-Codi, na Tijuca, na zona norte da capital.

Foi somente durante a Comissão da Verdade que foi confirmada a morte de Rubens Paiva.

A comissão, instituída em 2012, no governo de Dilma Rousseff, tinha como objetivo investigar e documentar as violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.

Durante a comissão, foi confirmado e esclarecido que Rubens Paiva foi torturado e morto em instalações militares.

Foto de Eunice em 1971, após sair da prisão, com os cinco filhos (Arquivo Pessoal/Vera Paiva)

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou informações sobre o caso do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva.

Em um relatório parcial divulgado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, a CNV apontou o então tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho como um dos torturadores responsáveis pela morte de Paiva.

Essa revelação veio à tona com base no depoimento de uma testemunha, identificada apenas como "agente Y", que afirmou ter visto Hughes pressionar o ex-deputado contra uma parede durante uma sessão de tortura no Destacamento de Operações de Informações (DOI).

Segundo o relatório, Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas infligidas pelos militares. Apesar das novas provas, como recibos de pagamento de diárias que contradizem a versão de que José Antônio Nogueira Belham, comandante do Doi-Codi à época, estaria de férias durante a prisão e morte de Paiva, o destino final do corpo do ex-deputado ainda não foi esclarecido.

Cláudio Fonteles, ex-procurador geral da República e um dos coordenadores da Comissão Nacional da Verdade, explica que a recusa das Forças Armadas em abrir seus arquivos, mantendo a documentação sob sigilo, dificultou a investigação dos crimes.

Neste sentido, os depoimentos colhidos pela comissão tiveram um papel central.

“Nesses crimes antigos, as provas testemunhais são muito importantes”, pontua Marlon Alberto Weichert, procurador regional da República e coordenador do Grupo de Trabalho Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

“Especialmente nos casos de graves violações a direitos humanos, onde as evidências da tortura se perdem um pouco com o tempo e a documentação até hoje é mantida sob sigilo.”

Em 2014, após investigações iniciadas em 2011, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar pelo assassinato e ocultação do cadáver do deputado Rubens Paiva. As acusações incluíam homicídio doloso, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual.

Filme foi escolhido para representar o Brasil no Oscar  (Divulgação)

Os denunciados foram José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos.

A Justiça Federal do Rio de Janeiro aceitou a denúncia, que foi mantida pelo Tribunal Regional da 2ª Região.

Esse desdobramento foi considerado um marco pelos membros do MPF, pois representou a primeira ação penal contra militares por homicídios ocorridos durante a ditadura. Os acusados solicitaram um habeas corpus à 2ª turma do TRF2, mas o pedido foi negado.

A defesa dos réus, então, recorreu ao STF alegando que a anistia já havia sido discutida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que é um instrumento jurídico utilizado no Brasil para questionar atos do Poder Público que violem preceitos fundamentais da Constituição, como direitos humanos básicos.

Em 29 de setembro de 2014, apenas 19 dias após o julgamento do habeas corpus, o ministro-relator Teori Zavascki concedeu uma liminar para suspender o andamento do processo.

Zavascki faleceu em 2017 em um acidente de avião, e o processo foi paralisado. Em 2018, o caso foi encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, que sucedeu Zavascki e herdou os processos pendentes. Desde então, o caso permanece paralisado no STF, sem previsão de julgamento.

O Supremo não forneceu detalhes à BBC News Brasil sobre a razão da demora no julgamento.

O deputado federal foi cassado logo após o golpe militar e preso após voltar de um exílio (Crédito, Memorial da Resistência)

Lei da Anistia em xeque

Os rumos do caso Rubens Paiva está ligado a uma discussão sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia.

Esta legislação, decretada em 1979, durante a ditadura, ao conceder perdão geral aos crimes cometidos durante o regime, permitiu por um lado o retorno de exilados e a libertação de presos políticos.

Por outro, ressaltam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, impediu que agentes da ditadura que torturaram e mataram opositores do governo militar fossem processados.

“A transição controlada, dominada pelos militares, com as elites brasileiras, levou a esse modelo de impunidade e de esquecimento”, diz Weichert.

“Esses assuntos foram assuntos interditados, assuntos proibidos.”

Em 2010, o STF decidiu que a Lei da Anistia é constitucional, o que é questionado ainda hoje.

Para Claudio Fonteles, a Lei da Anistia é inconstitucional, porque contraria princípios fundamentais da Constituição Federal.

Ele argumenta que uma lei ordinária, como a Lei de Anistia, não pode, sob a ótica constitucional, anistiar crimes cometidos por aqueles que violaram o Estado Democrático de Direito, já que a Constituição é a base permanente da democracia e deve ser preservada acima de qualquer legislação infraconstitucional

“Manter essa lei é preservar a figura do torturador. Não colabora para a defesa da democracia e coloca uma pedra sobre esse assunto”, afirma Fonteles à BBC News Brasil.

Weichert argumenta que, apesar da decisão do STF ter declarado a Lei de Anistia constitucional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos a considerou incompatível com a convenção americana sobre direitos humanos.

Ele explica que a Corte só pode agir quando provocada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos ou por um Estado, já que pessoas físicas não têm permissão para entrar com ações diretamente.

A comissão, por sua vez, é responsável por receber denúncias de violações, apresentadas por qualquer vítima, e analisar se essas denúncias cumprem os requisitos estabelecidos pela convenção.

Caso a comissão conclua que houve, de fato, uma violação de direitos humanos, ela tenta, primeiramente, um acordo com o Estado. Se não houver sucesso nessa tentativa de conciliação, o caso é então levado à Corte.

Eunice combateu a política indigenista do regime militar até o fim da ditadura (Arquivo Pessoal/Vera Paiva).

Exemplos de processos envolvendo o Brasil incluem os casos da guerrilha do Araguaia (Gomes Lund), do jornalista Vladimir Herzog e Collen Leite, todos levados à Corte após a comissão ter realizado esse procedimento.

Em decisões importantes, a Corte Interamericana declarou que tanto crimes contra a humanidade quanto graves violações de direitos humanos são imprescritíveis e não podem ser anistiados.

O fato de os próprios militares terem decretado a lei que perdoa os crimes cometidos por agentes do regime seria uma forma de “autoanistia”, defende Sergio Suiama, procurador da República do Ministério Público do Rio de Janeiro.

“Isso é inadmissível em casos de crimes contra a humanidade”, pontua Suiama.

O procurador destaca que isso tem travado o avanço de ações penais como a de Rubens Paiva.

"O caso de Rubens Paiva está suspenso devido a essa indefinição”, diz Suiama.

Segundo Suiama, o MPF já propôs mais de 40 ações penais, mas a maioria delas foi suspensa ou derrubada justamente porque o STF não julga essas arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

“As provas reunidas durante a investigação do MPF, incluindo confissões de farsa em tentativas de fuga, permanecem sem análise de mérito, esperando por uma decisão que determine se esses crimes são ou não imprescritíveis".

Eunice e os cinco filhos em Brasília depois da posse de Rubens em 1963

O advogado Rodrigo Roca, que representa os acusados de torturar e matar Rubens Paiva, questiona a argumentação de que os crimes da ditadura podem ser enquadrados como crimes contra a humanidade.

Segundo Roca, para ser um crime contra a humanidade, a conduta precisa ter sido voltada contra uma população civil, o que, segundo ele, não seria o caso.

“Uma conduta para ser considerada crime contra a humanidade, ela precisa se voltar contra a população civil como um todo. E não contra determinados grupos insurgentes. Isso legalmente, ou seja, tecnicamente, penso até que dogmaticamente, não poderia jamais ser tipificado como crime contra a humanidade”, diz.

O advogado avalia ainda que o processo movido pelo MPF que busca um desfecho para a morte de Rubens Paiva, iniciado durante o governo Dilma e na esteira das conclusões da Comissão da Verdade, teve um "viés político".

Segundo ele, sempre que um governo de esquerda chega ao poder, há um "recrudescimento desse movimento", que ele qualifica como "delírios”.

“É preciso se perguntar antes a quem isso vai interessar, qual é a relação custo-benefício de uma nova mobilização dessas, do governo, de alguns setores do judiciário, em torno de pessoas com questões jurídicas plenamente resolvidas, quer dizer, é uma perda para todos, é uma guerra sem vencedores”, acrescenta.

“Há um revolvimento de uma matéria jurídica já bem desgastada e resolvida do ponto de vista social. Caberia ao plano jurídico apenas aderir a essa consciência popular e por um fim nessa história”, acrescenta.

Novo filme é inspirado no livro do filho de Paiva, Marcelo Rubens Paiva (EPA)

Governo reabriu investigação do caso

Em paralelo, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reabriu o caso em abril deste ano.

O objetivo é investigar e produzir mais provas que comprovem o que aconteceu com Rubens Paiva.

Em agosto de 1971, o caso foi arquivado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão antecessor do atual Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

A votação evidenciou divisões: enquanto membros ligados à ARENA (Aliança Renovadora Nacional) apoiaram o arquivamento, representantes do MDB e da OAB se posicionaram contra.

O então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, exerceu o voto de desempate, decidindo pelo arquivamento. A justificativa oficial baseou-se em informações falsas do Exército, que alegava que Rubens Paiva havia desaparecido após uma intervenção de desconhecidos durante sua detenção.

Essa versão foi desmentida posteriormente pela Comissão Nacional da Verdade. Ademais, um dos conselheiros que votou pelo arquivamento afirmou ter sido coagido a tomar essa decisão.

Segundo André Carneiro, vice-presidente do CNDH, a medida tem caráter administrativo, com possibilidades de contribuir com essa ação penal do MPF.

Carneiro afirma ainda que será produzido um relatório que conterá recomendações ao Poder Público específicas para o caso Rubens Paiva e também gerais sobre o direito à memória, à verdade e à Justiça. O documento deve ser entregue até o fim deste ano.

“Como existe um processo no STF, esse relatório será entregue ao MPF e compartilhado com o Supremo”, ressalta Carneiro.

“Esse caso é bastante simbólico.Tratava-se de um ex-deputado federal, alguém que não tinha vínculo com a luta armada. A forma como foi tratado revela a estrutura de funcionamento de espionagem e uma máquina de tortura no país.”

Marcelo Rubens Paiva reforça a importância de manter viva a memória do pai, seja por filmes, livros ou reportagens.

Para o escritor, a forma de impedir que a ditadura volte é colocar em evidência o aconteceu durante o regime — e isso inclui o assassinato de Rubens Paiva.

“Tem que mostrar o que é a ditadura, o que foi o AI-5, o que foi a tortura, o que foi o Estado autoritário”, diz Marcelo Rubens Paiva.

Priscila Carvalho, Jornalista, originalmente do Rio da Janeiro para a BBC News Brasil, em 27.09.24

“É algo que não se deve defender jamais.”

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

O umbigo de Lula

O Brasil poderia erguer pontes entre o Ocidente e o Oriente, entre ricos e pobres. Mas essas possibilidades foram pulverizadas pelo narcisismo, o cinismo e o sectarismo de Lula

"A esperteza costuma virar bicho e engolir o esperto". Tancredo Neves

Quando olha para seu umbigo, o presidente Lula da Silva imagina ver o mundo. A passagem do demiurgo pela Assembleia Geral da ONU foi um retrato penoso de sua decadência e da desmoralização para a qual ela está arrastando a política externa brasileira. No plano ideológico, tudo é reduzido a uma grande conspiração dos “ricos” contra os “pobres”. No plano pragmático, tudo se passa como se os conflitos globais pudessem ser solucionados em conversas de botequim.

É preciso dizer que, naquilo que tem de genuíno, o sonho de Lula, ainda que limitado por seu enquadramento progressista, seria pertinente e até, em certa medida, factível. Basicamente, é a ideia do Brasil protagonizando alguma liderança numa coalizão do chamado “Sul Global” para obter concessões dos países desenvolvidos.

Do ponto de vista estrutural, o Brasil é uma potência pacífica na região latino-americana, um grande exportador de alimentos, guardião de minerais e biomas críticos, e ainda conta com um quadro diplomático competente. Do ponto de vista conjuntural, Lula tem (ou ao menos teve) carisma, e sua vitória sobre Jair Bolsonaro foi vista com bons olhos pelas lideranças democráticas, a começar pelo americano Joe Biden. A conjunção do G-20, em 2024, e da COP-30, em 2025, ofereceria condições para o Brasil se projetar, erguer pontes e promover negociações.

Mas para que isso funcionasse o presidente precisaria combinar de maneira crível credenciais democráticas, capacidade de articulação e humildade. Movida, porém, pela megalomania de Lula, inspirada pela ideologia perniciosa de Celso Amorim, a diplomacia presidencial se choca com a realidade da maneira mais grotesca, e dos destroços de um sonho resta apenas uma massa incôngrua de delírios.

Em questões em que o Brasil tem escassa capacidade de influência, como a governança global ou a geopolítica na Europa ou no Oriente Médio, Lula foi grandiloquente, mas oscilou entre quimeras irrealistas e o mais bruto cinismo. Onde o Brasil poderia dar exemplos de responsabilidade e liderança, como no meio ambiente ou na geopolítica latino-americana, foi omisso – e também cínico.

Que espetáculo deprimente foi ver jovens lideranças como os presidentes da Ucrânia ou do Chile passando descomposturas em Lula. Ao sugerir que, se Volodmir Zelenski fosse “esperto”, aceitaria a proposta de paz de Brasil e China, Lula se prestou a garoto de recados de um “chefe mafioso” (como disse na ONU o chanceler britânico, David Lammy, sobre Vladimir Putin). Zelenski eviscerou o plano sino-brasileiro como aquilo que é – uma proposta de capitulação da Ucrânia –, questionou o “verdadeiro interesse” do Brasil e insinuou que o de Lula é uma ambição narcisista de ser premiado com um Nobel da Paz. Bingo.

Em uma cúpula “pela democracia” e “contra o extremismo” promovida pelo Brasil, esvaziada e só com lideranças de esquerda, o chileno Gabriel Boric desmoralizou sem meias palavras a pusilanimidade de Lula em relação à Venezuela e outras ditaduras.

As lideranças democráticas talvez até tenham visto com condescendência as platitudes de Lula sobre a “reforma da ONU” e suas promessas de liderá-la, mas se frustraram com sua evasão sobre a questão mais premente na América Latina, o recrudescimento da ditadura de Maduro, e com o vácuo de ofertas do Brasil em relação ao meio ambiente que não literalmente “apagar incêndios”. E certamente estão desconfiadas de seu alinhamento com China e Rússia.

Eis a dura verdade: para China, Rússia, Irã e outras autocracias, Lula não passa de um “idiota útil”; para o Ocidente, ele é, na melhor das hipóteses, um fanfarrão inútil, e, na pior, um ressentido cínico. Não há pontes firmes a construir nem negociações sérias a encampar com tão leviana e irrelevante figura. Talvez a mais eloquente imagem do tour de Lula por Nova York tenha sido o momento em que a organização de uma cúpula ironicamente chamada “do Futuro” se viu obrigada a cortar o seu microfone por estouro de tempo, e o envelhecido líder progressista foi deixado gesticulando aos quatro ventos, falando sozinho, aos ouvidos de ninguém.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 27.09.24

Após viagem sem brilho, Lula enfrenta tensões na volta

Lista de pepinos para presidente descascar inclui cenário eleitoral incerto, incêndios sem resolução e epidemia de endividamento com apostas

Presidente Lula no Palácio do Planalto — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

O saldo da ida de Lula a Nova York para a tradicional abertura da Assembleia Geral da ONU ficou bem aquém da volta triunfal do ano passado. E, na volta, a lista de pepinos para o presidente encarar aumentou e ganhou enorme complexidade.

Do cenário eleitoral bastante desafiador para PT e esquerda à crise ainda não resolvida dos incêndios e queimadas que devastam o Brasil, passando pela demora em detectar a epidemia de endividamento em apostas esportivas que arrasta para a inadimplência os beneficiários do Bolsa Família e os jovens que deveriam ir para a universidade, o presidente se vê diante de crises capazes de mudar os rumos dos dois últimos anos de seu terceiro mandato.

Começando pela política, o quadro das disputas no primeiro turno está longe de configurar um referendo aprovatório do governo. Diante das dificuldades enfrentadas pelo partido de Lula em capitais e grandes cidades, seus aliados aderem a uma espécie de contabilidade criativa e reeditam até a frente ampla para apontar um placar favorável aos candidatos de um amplo “time do Lula”.

Nesse cômputo, até a vantagem de João Campos (PSB) no Recife e de Eduardo Paes (PSD) no Rio é lida como sinal de força do presidente contra o bolsonarismo, quando uma análise mais acurada da realidade dessas campanhas mostra que os dois prefeitos concentram seu discurso primordialmente em questões municipais, procurando se afastar da polarização. 

Em São Paulo, Guilherme Boulos (PSOL) se ressente de, na reta final, não ter contado com a presença mais constante de Lula no palanque. Mas trata-se, de longe, da disputa em que o presidente mais se envolveu, e, nesse caso sim, vitória ou derrota será creditada em grande parte a ele. Daí por que o desfecho absolutamente incerto a pouco mais de uma semana do pleito seja um fator adicional de tensão.

Nada indica que Lula poderá ficar longe de Brasília em tempo integral no finalzinho do primeiro turno e nas semanas antes do segundo. Isso porque os problemas na gestão se avolumam e não têm solução fácil.

A questão dos incêndios — que eclipsou a fala de Lula na ONU e o fez carregar nas tintas das cobranças à geopolítica internacional para tirar o foco do tema incômodo — comprometerá fortemente a economia e os dados ambientais de 2024.

As medidas até aqui anunciadas, além de insuficientes, foram tardias e, em grande parte, adotadas por cobrança do Supremo Tribunal Federal, o que enfraquece politicamente um governo eleito com discurso fortemente ancorado no reconhecimento da crise climática e na promessa de ser implacável em seu enfrentamento.

As decisões de política energética e aquelas concernentes à exploração de petróleo de agora em diante tendem a escancarar ainda mais as divisões internas, enquanto a dificuldade de prosseguir com investigações sobre o caráter criminoso das queimadas tende a diluir o impacto dessa justificativa para o cenário de terra literalmente arrasada que se vê no país todo.

Por fim, a crise das bets pegou o governo de calças curtas, e nada do que foi ventilado até aqui para enfrentá-la, como na fala claramente de improviso de Fernando Haddad propondo um confuso controle de vícios em apostas pelo CPF, não faz sequer cócegas num problema de gravíssimas proporções.

Todos os alertas sobre os riscos de regulamentar as apostas esportivas se mostraram conservadores diante dos dados que apenas começam a ser divulgados por entidades como Banco Central e Confederação Nacional do Comércio.

Se todos se chocaram diante da tentativa do governo Bolsonaro de permitir crédito consignado em benefícios sociais, que lembraria uma agiotagem estatal, que dizer de uma realidade em que esse benefício é todo canalizado para apostas e deixa de suprir as necessidades das famílias? Um rombo na principal vitrine de vida de Lula, que todos parecem tratar com uma falta de urgência alarmante.

 Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Observa e analisa os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 27.09.24

O passado brasileiro do pai de Kamala Harris

O economista Donald Jasper Harris já tinha uma carreira internacional respeitada quando chegou ao Brasil em 1990.

Donald Harris com Kamala em 1965

Nascido na Jamaica e naturalizado americano, Harris era professor da renomada Universidade Stanford, na Califórnia, e tinha entre suas publicações o livro Capital Accumulation and Income Distribution (“Acumulação de Capital e Distribuição de Renda”, em tradução livre), de 1978.

A viagem ao Brasil fazia parte de uma bolsa do programa Fulbright e incluía a participação em seminários e conferências em universidades brasileiras. Ao longo daquela década, ele passaria várias temporadas no país, e ainda é lembrado por alunos e colegas com quem conviveu.

“Ele sempre passou a impressão de ser pessoa muito receptiva com os alunos”, diz à BBC News Brasil um dos ex-estudantes, Jorge Thompson Araujo, que era mestrando em Economia quando fez um curso ministrado por Harris em 1990, na Universidade de Brasília (UnB).

O então estudante conviveu com Harris na sala de aula e em alguns eventos sociais em Brasília, dos quais contemporâneos lembram que ele frequentava bares e restaurantes perto do campus, na Asa Norte, e participava de churrascos com os colegas.

“Ele era introvertido, mas simpático”, diz Araujo, que hoje é consultor do Banco Mundial, em Washington, e pesquisador colaborador sênior da UnB.

Neste mês, a trajetória profissional do economista ganhou atenção nos Estados Unidos, depois que seu nome foi mencionado no debate presidencial. Ele é pai da vice-presidente americana, Kamala Harris, candidata democrata à Casa Branca.

Ao responder uma pergunta no debate de 10 de setembro, o ex-presidente Donald Trump, candidato republicano, citou o economista.

"Todo mundo sabe que ela é marxista. Seu pai é um professor marxista de economia. E ele a ensinou bem”, disse o republicano.

Kamala Harris, que sempre deixou claro que apoia o capitalismo, não respondeu à provocação, nem citou o pai durante o debate. Mas o episódio renovou a curiosidade sobre o trabalho de Donald Harris.

Interesse pelo Brasil

Aos 86 anos de idade, Donald Harris mantém o título de professor emérito da Universidade Stanford, de onde se aposentou em 1998

O interesse do economista pelo Brasil vem de desde, pelo menos, a década de 1960.

Em 1966, ele assinou uma resenha sobre o livro Diagnosis of the Brazilian Crisis, título da edição em inglês de Dialética do Desenvolvimento, do economista brasileiro Celso Furtado.

“É uma contribuição refrescante à literatura sobre subdesenvolvimento”, avaliou Harris, afirmando que representava “uma tentativa séria de um economista latino-americano de lidar com os problemas da região por meio do desenvolvimento crítico e aplicação de estruturas analíticas existentes.”

Em 1974, ele publicou o artigo Um Post Mortem à Parábola Neoclássica na revista Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Araujo lembra que seu orientador de mestrado, Joanílio Teixeira, foi quem organizou a ida de Harris a Brasília.

Em 2021, em entrevista ao site da UnB, Teixeira, que atualmente é professor emérito da universidade, contou que chegou a hospedar Harris em sua casa por alguns meses.

A rotina acadêmica de Harris no Distrito Federal incluía pesquisas, trabalho com professores da UnB e um curso baseado em seu livro Capital Accumulation and Income Distribution, do qual Araujo participou em 1990.

“Ele condensou o material [do livro e de suas pesquisas] e fez uma série de seminários”, recorda o ex-aluno.

“O trabalho dele é extremamente sério, rigoroso. As aulas eram muito bem dadas, muito claras, mas difíceis. Dava trabalho entender e absorver aquele material, não era nada fácil.”

As aulas eram ministradas em inglês.

“Havia um pouco de barreira linguística. Na época, não era tão comum [os alunos] serem fluentes em inglês”, lembra Araujo. “Acho que às vezes afetava um pouco a interação dos alunos com ele.”

Jorge Thompson Araujo foi aluno de Harris em 1990, na Universidade de Brasília (UnB), e diz que o economista era simpático e receptivo com os estudantes

Harris era reconhecido por suas críticas à teoria econômica neoclássica, escola dominante em Stanford e outras universidades renomadas. Em Brasília, encontrou um ambiente com mais diversidade de linhas de pensamento.

“Ele sempre foi bem heterodoxo em economia. Crítico às teorias econômicas mainstream [dominante]”, ressalta Araujo.

“E Stanford era — e ainda é — um departamento bem mainstream, com presença de economistas heterodoxos muito reduzida.”

Segundo Araujo, economistas de diferentes correntes conviviam na UnB.

“Obviamente, sempre tinha algum tipo de discordância, mas aquilo não gerava mal-estar. Acho que esse ambiente deixou Harris mais à vontade, acho que ele se sentia bem lá.”

Nas confraternizações, Araujo diz que Harris “parecia um gentleman”, sempre sorridente e acessível, deixando os interlocutores à vontade. Mesmo assim, sua presença intimidava o então estudante.

“Eu ficava um pouco sem jeito de falar com ele. Primeiro, pela importância que ele tinha na área. E segundo, porque na época eu não dominava o inglês tão bem”, lembra.

Professor popular

Aos 86 anos de idade, Donald Harris mantém o título de professor emérito da Universidade Stanford, de onde se aposentou em 1998. Ao longo de sua carreira, ele ganhou projeção internacional e se destacou como crítico da economia ortodoxa.

Doutor em Economia pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, começou a lecionar em Stanford em 1972, após ter sido professor na Universidade de Wisconsin, em Madison, na Universidade de Illinois e na Universidade Northwestern (também em Illinois).

Harris era um professor popular em Stanford. Em reportagem de 1976, o The Stanford Daily, jornal publicado pelos estudantes da universidade, o descreveu como “um estudioso marxista”.

Segundo o jornal, ele teria sofrido resistência inicial a receber "tenure" (a estabilidade no emprego concedida a alguns professores universitários nos Estados Unidos) porque era "carismático demais, um flautista mágico que desviava os estudantes da economia neoclássica”.

Os alunos pressionavam por maior diversidade racial e intelectual no corpo docente. Donald Harris acabou se tornando o primeiro professor negro a receber “tenure” no Departamento de Economia de Stanford.

“Ele foi líder no desenvolvimento do novo programa em ‘Abordagens Alternativas à Análise Econômica’ como campo de estudo de pós-graduação”, diz sua biografia no site da universidade.

“Durante anos, ministrou o popular curso de graduação ‘Teoria do Desenvolvimento Capitalista’.”

Segundo a universidade, Harris explorava “a concepção analítica do processo de acumulação de capital e suas implicações para uma teoria de crescimento da economia” e buscava explicar “o caráter intrínseco do crescimento como um processo de desenvolvimento desigual”.

Enquanto lecionava em Stanford, Harris percorreu dezenas de países, fazendo pesquisas, consultorias, seminários e palestras como convidado.

Ele prestou consultoria a diversas agências e organizações internacionais, como a ONU e o Banco Mundial, a governos e fundações privadas.

Na Jamaica, seu país natal, ele atuou diversas vezes como consultor de política econômica para o governo e teve papel importante na elaboração de uma estratégia de crescimento.

Em 2021, foi agraciado com a Ordem do Mérito por sua contribuição ao desenvolvimento nacional.

Segundo sua página no site da universidade, Harris se aposentou para “se dedicar de forma mais ativa” ao seu “antigo interesse” no desenvolvimento de políticas públicas para promover o crescimento econômico e a equidade social.

Casamento e separação

Kamala Harris e a irmã, Maya (dir.), foram morar com a mãe após o divórcio dos pais quando eram crianças (Getty Images)

Quando começou a viajar ao Brasil, o economista já estava separado havia décadas da mãe de Kamala Harris, Shyamala Gopalan, uma cientista nascida na Índia, autora de pesquisas influentes sobre o papel dos hormônios no câncer de mama e que morreu em 2009.

A vice-presidente costuma dizer que foi criada pela mãe, e raramente menciona o pai. Uma exceção foi seu discurso na Convenção Nacional Democrata, em agosto, quando aceitou oficialmente a nomeação para concorrer à Presidência.

“No parque, minha mãe dizia: ‘Fique por perto’. Mas meu pai dizia, sorrindo: ‘Corra, Kamala, corra. Não tenha medo. Não deixe que nada a impeça’”, lembrou.

“Desde muito cedo, ele me ensinou a não ter medo.”

A plateia aplaudiu, mas Donald Harris não estava entre os presentes. A democrata repetiu, como já havia contado anteriormente, que seus pais se conheceram quando participavam do movimento pelos Direitos Civis nos anos 1960.

Donald e Shyamala faziam pós-graduação na Universidade da Califórnia, em Berkeley, na época um centro de ativismo estudantil. Eles integravam um grupo de estudos formado por alunos negros, onde se discutia história africana e a experiência afro-americana.

Apesar de não ser negra, Shyamala, sendo indiana, era considerada nos Estados Unidos uma pessoa de cor, e logo se integrou ao grupo. Donald e Shyamala casaram em 1963, um ano depois de se conhecerem.

Kamala nasceu em 1964, e sua irmã, Maya, em 1967. A vice-presidente lembra de acompanhar os pais em eventos do movimento por direitos civis quando era criança.

Entretanto, quando ela tinha cinco anos de idade, o casamento chegou ao fim.

“Eu sabia que eles se amavam muito, mas parecia que tinham se tornado como água e azeite”, escreveu a democrata em seu livro The Truths We Hold (“As Verdades que defendemos”), de 2019.

Alguns anos depois da separação, em 1972, Shyamala entrou com pedido de divórcio. Em seu livro, Kamala Harris disse que o pai continou sendo parte de sua vida, e que ela e a irmã passavam fins de semana e férias de verão com ele.

“Mas foi minha mãe quem assumiu a responsabilidade pela nossa criação. Ela foi a maior responsável por nos moldar como as mulheres que nos tornaríamos”, disse.

Relação com a Jamaica e o Brasil



Araujo ainda guarda uma carta que recebeu de Donald Harris alguns anos depois de ter estudado com ele.

Em um texto publicado em 2019 no site Jamaica Global Online, Donald Harris disse que a interação com as filhas “chegou a um fim abrupto em 1972”, após uma batalha pela custódia.

O relacionamento teria sido “colocado dentro de limites arbitrários” impostos pelo tribunal.

“Mesmo assim, persisti, nunca desistindo do meu amor pelas minhas filhas ou abandonando minhas responsabilidades como pai”, escreveu o economista, que dedicou seu livro de 1978 a Kamala e Maya.

Ele lembrou de visitas à Jamaica com as filhas ainda pequenas. Além de mostrar o lugar onde cresceu, ele queria que, quando fossem mais velhas, entendessem “as contradições econômicas e sociais num país ‘pobre’, como a impressionante justaposição de pobreza e riqueza extremas”.

Também escreveu que queria ensinar às filhas “que o céu é o limite para o que se pode alcançar com esforço e determinação” e que é importante “não perder de vista os que ficam para trás devido à negligência ou abuso social e falta de acesso a recursos ou ‘privilégios’”.

Donald Harris não costuma comentar a trajetória política da filha nem dar entrevistas, e não respondeu aos pedidos da BBC News Brasil de participação nesta reportagem.

Uma das últimas vezes em que se pronunciou publicamente sobre Kamala foi em 2019.

Na época, ao responder em uma entrevista se já havia fumado maconha, a então senadora disse: “Metade da minha família é da Jamaica, você está brincando comigo?”

Seu pai não gostou da brincadeira e publicou uma declaração em um site da Jamaica, afirmando que ele e sua “família jamaicana” gostariam de se “distanciar categoricamente” dos comentários.

Disse ainda que seus antepassados deveriam estar “se revirando no túmulo ao ver o nome de sua família, sua reputação e sua orgulhosa identidade jamaicana sendo conectados, brincando ou não, com esse estereótipo”.

Araujo acompanha a corrida presidencial americana desde Washington e lamenta ter perdido contato com o ex-professor. Ele conta que, poucos anos depois do encontro em Brasília, quando já estava na Inglaterra fazendo doutorado, usou material de Harris em sua pesquisa.

“Mandamos o trabalho para ele, e ele foi muito positivo, disse que gostou”, conta Araujo. “Ele respondeu com uma carta, que guardo até hoje.”

Araujo considera a participação de Harris na vida acadêmica em Brasília uma grande contribuição ao Departamento de Economia da universidade, mas também acha que as temporadas no Brasil tiveram impacto positivo em Harris.

“Embora não possa comprovar, penso que a passagem dele pelo Brasil o ajudou a ver a perspectiva do desenvolvimento econômico num país grande. E acho que isso ajudou a enriquecer sua visão sobre o desenvolvimento.”

“Foi uma via de mão dupla”, diz Araujo.

“Não só a UnB se beneficiou da presença dele, mas ele também se beneficiou de trabalhar com economistas brasileiros, estar no Brasil e se expor às questões socioeconômicas do Brasil.”

Alessandra Corrêa, de Washington-DC para a BBC News Brasil, em 26.09.24

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Convite à corrupção

Cada vez que se abre uma fresta da caixa-preta das emendas parlamentares, transbordam indícios de ilicitude. Mas corrupção criminal é só um aspecto da corrosão sistêmica em curso

A Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou ao Supremo Tribunal Federal (STF) três deputados do PL – Josimar Maranhãozinho (MA), Bosco Costa (SE) e Pastor Gil (MA) – por desvio de emendas parlamentares. O trio é acusado de agir para desviar uma parcela de R$ 1,6 milhão de repasses ao município maranhense de São José de Ribamar. A investigação partiu de uma denúncia de extorsão de 2020 do então prefeito do município, Eudes Sampaio. Segundo a PGR, os deputados cobrariam uma quantia de 25% dos recursos transferidos ao município por meio de emendas.

O processo corre sob sigilo e, por óbvio, é preciso esperar a sua conclusão. Mas não é o primeiro e tudo indica que não será o último. O fato é que as emendas parlamentares, tal como foram reconfiguradas, ou melhor, desfiguradas, são um campo fértil à improbidade e à corrupção.

Considere-se o caso das “transferências especiais”, normatizadas em 2019. Por essa modalidade, apelidada “emenda Pix”, os parlamentares doam recursos da União diretamente aos Estados e municípios, sem a necessidade de indicar a sua destinação ou celebrar convênio. Uma vez transferido, o dinheiro passa a pertencer ao ente federado, que pode gastá-lo praticamente como bem entender e não está obrigado a prestar contas ao governo federal. Como disse a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo em uma ação protocolada no STF que questiona a constitucionalidade dessas emendas, elas criam um verdadeiro “apagão fiscalizador contábil no Estado brasileiro”.

Não surpreende que as emendas Pix tenham se tornado o recurso mais usado por parlamentares para mandar dinheiro para seus redutos. No ano passado, dos R$ 25,6 bilhões liberados pelo governo federal para esse fim, R$ 6,4 bilhões foram direcionados por meio das emendas Pix.

No ano eleitoral de 2022, elas foram usadas, por exemplo, para bancar shows sertanejos em cidades sem infraestrutura. Entre 2020 e 2023, a cidade que mais recebeu esses recursos, Carapicuíba (SP), pagou mais caro por asfalto e reformas de praça, enquanto obras em escolas ficavam paralisadas ou atrasadas. No ano passado, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo alertou que 80% dos municípios não têm prestado contas de como essas verbas foram executadas.

Uma auditoria da Controladoria-Geral da União sobre os 10 municípios que mais receberam emendas conforme a proporção da população, entre 2020 e 2023, mostrou que todos são pequenos, sem órgãos de fiscalização adequados e que boa parte dos recursos foi destinada a obras que nem sequer começaram e não servem às principais demandas municipais. O Estadão apurou que, das 30 cidades que lideram o ranking de emendas per capita naquele período, 80% têm zero transparência sobre sua execução.

A cada vez que a imprensa ou órgãos de fiscalização conseguem abrir uma fresta da caixa-preta das emendas, os indícios de irregularidades transbordam. Só o deputado Josimar Maranhãozinho é alvo de mais duas investigações envolvendo malversação de emendas. Uma delas pode ter desviado R$ 15 milhões de verbas destinadas à Saúde no Maranhão.

A corrupção no sentido estritamente criminal é só o aspecto mais ultrajante da corrupção sistêmica em curso através das emendas. Mesmo quando não há desvio de recursos públicos para enriquecimento privado, as emendas corrompem as políticas públicas, porque são repassadas sem critérios técnicos e conformes aos objetivos da União e às necessidades de Estados e municípios; corrompem a governabilidade, porque podem ser utilizadas pelos parlamentares para satisfazer seus interesses paroquiais negligenciando a disciplina partidária; corrompem a competição democrática, porque são utilizadas para abastecer redutos eleitorais dos congressistas como um Fundo Eleitoral complementar.

Para dar só uma ideia das consequências dessa pulverização do Orçamento, dos R$ 194 bilhões em emendas ao Orçamento feitas desde 2019, os congressistas destinaram apenas 0,02% para ações de combate a incêndios. É emblemático: enquanto o “feirão de emendas” corre solto em Brasília, o fogo corre solto no Brasil.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.09.24

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Quanto ganha um vereador?

Em todo o Brasil há 58,2 mil vereadores, segundo o levantamento mais recente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), realizado em 2020, quando foi realizada a última eleição municipal.

Em São Paulo, o salário bruto dos 55 vereadores é de R$ 18.991,68  (Crédito,Richard Lourenço/Rede Câmara)

Mas o valor que eles ganham varia muito.

Um vereador de uma capital brasileira pode ganhar, por exemplo, salário bruto de mais de R$ 20 mil.

Enquanto isso, em um município pequeno, um vereador pode receber menos de R$ 2 mil.

Esse abismo salarial existe devido às regras estabelecidas pela legislação brasileira para a remuneração de parlamentares.

O quanto os vereadores de uma determinada cidade ganham depende de dois fatores principais:

A quantidade de habitantes do município;

O salário de deputado estadual no Estado desta cidade.

Isso porque a legislação estabelece um limite para a remuneração dos vereadores em relação ao que ganha um deputado estadual.

Esse teto varia de 20% a 75% do salário do deputado, e o percentual aumenta de acordo com o número de habitantes de uma cidade.

Mas o valor pago é definido na prática pelas Câmaras Municipais — ou seja, são os próprios vereadores que batem o martelo sobre quanto eles próprios ganham.

Em São Paulo, a maior cidade do país, com 11,4 milhões de habitantes, o salário bruto de cada dos seus 55 vereadores é de R$ 18.991,68, conforme o Portal da Transparência do município.

Em Salvador, que tem 2,4 milhões de habitantes, 43 vereadores e o maior salário do Brasil para este cargo, são R$ 24.759,74 mensais, segundo o Portal da Transparência.

Já em Delfim Moreira, cidade de 8 mil habitantes no interior de Minas Gerais, um vereador recebe um salário mínimo, segundo dados do Tribunal de Contas de Minas Gerais.

Como os salários de vereadores são definidos

Em Delfim Moreira (MG), vereadores recebem um salário mínimo

A Constituição Federal estabelece que os salários de ocupantes de cargos, funções e empregos públicos, como os políticos, não podem ultrapassar o ganho mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que atualmente corresponde a R$ 44 mil.

É o chamado teto constitucional, que também vale para ministros de Estado, vice-presidente e presidente.

A Constituição estabelece ainda uma proporcionalidade entre os valores que são pagos a políticos com mandatos ativos de cada nível em cascata, do mais alto para o mais baixo.

Assim, o salário dos parlamentares do Congresso — senadores e deputados federais — pode chegar no máximo ao teto constitucional.

No nível imediatamente seguinte, nos Legislativos estaduais, os deputados podem receber no máximo 75% do valor pago a deputados federais.

Por sua vez, o salário de um deputado estadual determina o mínimo e o máximo que um vereador pode receber.

O piso é de 3% do valor pago a um deputado estadual. Já o valor máximo varia conforme o tamanho da população da cidade:

20% do salário de deputado estadual em cidades com até 10 mil habitantes;

30% em cidades com mais de 10 mil e até 50 mil habitantes;

40% em cidades com mais de 50 mil e até 100 mil habitantes;

50% em cidades com mais de 100 mil e até 300 mil habitantes;

60% em cidades com mais de 300 mil e até 500 mil habitantes;

75% em cidades com mais de 500 mil habitantes.

Para se ter uma ideia do que isso significa na prática, no Estado de São Paulo, o mais populoso do país, onde os deputados estaduais recebem R$ 33.006,39 atualmente, um vereador pode receber:

Em cidade de até 10 mil habitantes: até R$ 6.601,28;

Em cidades de mais de 10 mil e até 50 mil habitantes: até R$ 9.901,92;

Em cidades de mais de 50 mil e até 100 mil habitantes: até R$ 13.202,56;

Em cidades de mais de 100 mil e até 300 mil habitantes: até R$ 16.503,20;

Em cidades de mais de 300 mil e até 500 mil habitantes: até R$ 19.803,83;

Em cidades de mais de 500 mil habitantes: até R$ 24.754,79.

“Dentro desses critérios [de tamanho do município e proporção do salário de um deputado estadual], a legislação estabelece que as Câmaras podem definir os salários, ou seja, os próprios vereadores definem seus salários”, resume Sérgio Simoni, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP).

O advogado André y Castro Camillo, consultor jurídico da União dos Vereadores do Brasil (UVB), frisa que municípios com tamanhos semelhantes podem ter salários distintos, porque os municípios têm "autonomia legislativa, econômica e administrativa concedida constitucionalmente."

O valor final precisa seguir as normas estabelecidas para os subsídios dos vereadores, com base no tamanho da cidade e dos salários dos deputados estaduais.

A Constituição Federal também estabelece que o total de recursos usados com os salários dos vereadores não pode ultrapassar 5% da receita municipal do ano anterior.

Além disso, cada Câmara Municipal não pode usar mais de 70% da sua receita com salários, o que inclui neste caso todos os servidores e os parlamentares.

O número de habitantes determina ainda o número de vereadores de cada cidade.

A legislação permite até 9 vereadores em cidades com menos de 15 mil habitantes.

Já o número máximo é de 55 vereadores em cidades com mais de 8 milhões de habitantes.

É possível, segundo a Constituição, que um vereador acumule uma função privada com o cargo público.

Mas essa outra atividade precisa ser compatível para que a função pública não seja prejudicada. Ou seja, o vereador não pode deixar de cumprir suas funções como parlamentar em detrimento da outra ocupação.

Cada caso precisa ser avaliado, porque as funções de um vereador podem variar conforme o Regimento Interno de cada Câmara Municipal, aponta o Tribunal de Contas de Minas Gerais.



Vereadores de Salvador têm o maior salário entre legisladores municipais no país (Getty Images)

Como saber o salário do vereador de sua cidade

A legislação diz que todas as cidades têm a obrigatoriedade de tornar os gastos públicos transparentes, o que incluem os salários dos parlamentares locais.

Isso precisa ser feito principalmente por meio do Portal da Transparência de cada município.

Portanto, é possível acessar o site da Câmara Municipal e procurar pelas informações que incluem os subsídios dos parlamentares locais.

Mas não é bem assim que ocorre na prática em todos os municípios.

Em diversas cidades, o eleitor tem dificuldades para localizar o salário pago ao legislador municipal no portal.

“A Lei de Acesso à Informação determina que o acesso a informações, como os salários, precisa ser fácil e amplo aos eleitores. Mas, na prática, há dificuldades e descumprimento dessas normas”, diz o advogado André y Castro Camillo, da UVB.

“Publicizar esses valores é um dispositivo constitucional”, acrescenta.

O advogado afirma que o eleitor pode buscar a ouvidoria da Câmara Municipal, por meio de telefone e e-mail disponibilizados nos sites, caso encontre dificuldades com o site, e questionar o valor bruto do salário dos parlamentares, por se tratar de um gasto público.

Se não receber a informação adequada ou perceber alguma irregularidade, diz o advogado, o eleitor pode registrar denúncia em órgãos de fiscalização, como o Tribunal de Contas do Estado (TCE), e relatar a falta de transparência em atender ao pedido de informação.

Publicado originalmente pela  BBC News, em 19.09.24