terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Golpe ou baderna?

Novo presidente da Câmara diz que não considera 8/1 uma tentativa de golpe e gera reação de governistas


Hugo Motta (Republicanos-PB), novo presidente da Câmara dos Deputados - Pedro Ladeira-5.fev.2025/Folhapress

Sempre que algum neófito assume cargo público relevante, acaba levando um susto com a força que a nova função empresta a suas palavras. Não foi diferente com o novo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta.

Depois de uma campanha em que sabiamente evitou pronunciar-se sobre questões polêmicas, Motta resolveu dizer o que pensa. Mostrou-se simpático à anistia aos condenados pelo 8 de janeiro, ao esvaziamento da Lei da Ficha Limpa, entre outras pautas que desagradam ao governo.

Ao que tudo indica, foi surpreendido pelas reações e passou os últimos dias em modo contenção de danos, tentando se explicar a interlocutores. Se for esperto, aprenderá rapidamente a calibrar suas falas.

E quanto ao mérito da mais polêmica das declarações? O 8/1 foi tentativa de golpe ou baderna?

Até acho que, se isolarmos as ações daquele dia, despindo-as de seu contexto histórico e político, daria para descrevê-las como um episódio de vandalismo. Só que fazer isso seria um erro.

As manifestações de militantes bolsonaristas diante de quartéis, que depois desaguaram na invasão da praça dos Três Poderes, eram um dos eixos do plano golpista. Se a movimentação tivesse ocorrido enquanto Bolsonaro ainda detinha a caneta presidencial, o desfecho da intentona poderia ter sido outro.

Na minha leitura, o binômio manifestações/invasão foi um pavio que os conspiradores acenderam deliberadamente em sua tentativa de golpear a democracia, mas se esqueceram de desligar (ou não puderam fazê-lo) depois que desistiram de dar continuidade à ação.

Incompetência, penso, não basta para descaracterizar a tentativa. Ao contrário até, acho que a materialização do 8/1 pode ser interpretada como um forte indício de que a tentativa de golpe entrou em fase de execução, não sendo mera cogitação, como pretendem alguns defensores dos indiciados.

Diferentemente de parte da esquerda, porém, não vejo mal em debater essa questão. Uma das razões por que vale a pena preservar a democracia é que ela permite discutir tudo sob qualquer ângulo.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…" Publicado originalmente em 11.02.25

Os novos horizontes do crime organizado

Após avançar sobre o mercado e o Estado, a hidra do crime agora manipula movimentos sociais e influencia a cultura. O mal é sistêmico e só será debelado com ampla articulação republicana

Turbinadas pelo narcotráfico, as organizações criminosas brasileiras se expandem pelo mundo com a mesma velocidade vertiginosa com que se infiltram na economia legal e no Estado nacional.

O Brasil, outrora um mercado consumidor de cocaína na América Latina, se transformou num dos principais exportadores para o mundo. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) estima um faturamento de R$ 335 bilhões, cerca de 4% do PIB nacional. Além disso, as facções exploram crimes patrimoniais, corrupção de agentes públicos, contrabando, fraudes digitais, extorsão, lavagem de dinheiro e crimes ambientais.

Com 3% dos habitantes do planeta, o Brasil responde por 10% dos homicídios. O crime organizado está na raiz do morticínio. O FBSP estima que o País tenha 72 organizações criminosas – duas delas, o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), transnacionais –, que influenciam diretamente o cotidiano de pelo menos 23 milhões de brasileiros.

As organizações nascem da ausência do Estado e prosperam infiltrando-se nele. As duas principais, o CV e o PCC, nasceram nos presídios e os transformaram em QGs. Na Amazônia, o ecossistema do crime consolida um Estado paralelo. Em metrópoles como o Rio de Janeiro elas dominam amplos pedaços do território. As milícias surgiram de bandas podres da polícia que ofereciam proteção às populações atemorizadas, diversificaram seus negócios oferecendo serviços públicos clandestinos, até começarem a explorar o narcotráfico. As facções seguem o caminho inverso. Em São Paulo, há inúmeros indícios de empresas controladas pelo PCC prestando serviços ao poder público.

Alastrando seus tentáculos sobre a economia e a política, a hidra do crime organizado se sente confortável para influenciar políticas públicas e aliciar a cultura. O Ministério Público de São Paulo recentemente denunciou uma ONG, chamada Pacto Social & Carcerário, que seria um braço do PCC para atuar supostamente em favor dos direitos dos encarcerados. Tudo indica que ela tenha participado da produção de um documentário, O Grito, sobre as condições dos presídios e que está disponível na Netflix. A presidente da tal ONG participou de reuniões nos Ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos e no Conselho Nacional de Justiça.

O caso ilustra o círculo vicioso retroalimentado por miopias à direita e à esquerda. Uma direita adepta da lei do mais forte resume a segurança pública a penas draconianas e à truculência da polícia, e se compraz em perpetuar os presídios como sucursais do inferno, precisamente o que os torna um celeiro de oportunidades para as facções. Em contraposição, tem-se uma esquerda tatibitate que reduz as causas do crime às “injustiças sociais” e toda repressão policial a uma certa opressão classista, como se bastasse substituí-la por programas sociais para eliminar o mal pela raiz. A narrativa é de que, não fossem as condições degradantes das penitenciárias, o PCC e o CV jamais teriam surgido. Mas, se o caos carcerário é condição necessária para explicar o surgimento das facções, não é suficiente nem a causa principal. Nesse vácuo de sensatez, as organizações criminosas e seus fantoches prosperam.

É preciso melhorar as condições da população carente, mas punir duramente os delinquentes. A repressão deve ser implacável, mas feita com inteligência e nos limites da lei. Para enfrentar o crime organizado, o País precisa de um Estado organizado. Mais do que endurecer penas de crimes comuns, é necessária uma legislação antimáfia. Mais do que concentrar poderes no governo federal, é preciso mais coordenação entre os entes federados.

O País pode estar longe de se tornar um narcoestado, mas está mais perto do que na geração passada, acelera o passo e em alguns territórios já o é. O mal é sistêmico, infecta a economia, a política e a cultura, e combatê-lo não é tarefa só da polícia ou da Justiça, nem de políticos, lideranças civis, muito menos dos cidadãos comuns, mas de todos. Debelar a metástase exigirá uma mobilização popular materializada numa frente tão ampla, articulada e plural quanto a que sepultou a ditadura militar e restaurou a democracia.

Editorial / Notas e Informações, O  Estado de S. Paulo, em 11.02.25

Não se transige com o golpismo

Fala de Hugo Motta, para quem o 8 de Janeiro ‘não foi uma tentativa de golpe’, compõe mosaico de atitudes que se prestam a relativizar a evidente gravidade da insurgência bolsonarista

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), afirmou que “foi grave” o assalto às sedes dos Poderes em Brasília por uma malta de bolsonaristas inconformados com a eleição do presidente Lula da Silva, no dia 8 de janeiro de 2023, mas “não uma tentativa de golpe”. A opinião do deputado sobre o que houve naquele fatídico dia foi dada durante uma entrevista à Rádio Arapuan FM, de João Pessoa (PB), na sexta-feira passada.

Segundo Motta, “o que aconteceu não pode ser admitido novamente, foi uma agressão às instituições”, mas tentativa de golpe não teria sido porque, em sua visão, “golpe tem de ter um líder, uma pessoa estimulando, tem de ter o apoio de outras instituições interessadas”. “E não houve isso”, concluiu. O presidente da Câmara também avaliou que as penas impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) aos condenados pela participação no 8 de Janeiro são “muito severas”.

Independentemente do que pense sobre o 8 de Janeiro ou, principalmente, sobre o que vai fazer como presidente da Câmara, Motta tem seus motivos para ter dito o que disse. Decerto não foram poucos os compromissos que o deputado teve de assumir para viabilizar a aclamação de seu nome como o sucessor de Arthur Lira (PP-AL). Sejam quais forem, porém, nenhum é relevante o bastante, à luz do melhor interesse público, para que se admita qualquer tipo de transigência com o golpismo. Caso contrário, a jovem democracia brasileira, prestes a completar 40 anos, restará mais fraca, e não mais vigorosa, passado seu maior teste de estresse sob a égide da Constituição de 1988.

Em que pese sua importância, sendo ele quem é, a opinião do presidente da Câmara sobre o 8 de Janeiro não pode ser tomada de forma isolada. Ela compõe um mosaico de atitudes e palavras de parlamentares, governadores, prefeitos, setores da imprensa e formadores de opinião que, ao fim e ao cabo, se prestam à relativização da gravidade do que aconteceu em Brasília.

Há quem reduza a destruição do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF a mera “baderna”, sem que por trás da razia houvesse uma intenção de subverter a vontade popular consagrada nas urnas em 2022. Fala-se com tremenda naturalidade e desfaçatez em anistiar os insurgentes, como se todos lá reunidos fossem pacatos senhoras e senhores “patriotas” preocupados, ora vejam, com o bem do Brasil.

No Congresso, há quem queira reduzir o tempo de inelegibilidade de políticos condenados pela Justiça com o descarado propósito de reabilitar Jair Bolsonaro – sem o qual não teria havido o 8 de Janeiro, é bom enfatizar – com vistas à eleição presidencial do ano que vem. Como se sabe, Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral à inelegibilidade até 2030 por abuso de poder político e econômico e uso indevido dos meios de comunicação.

A rigor, caberá exclusivamente ao Poder Judiciário dizer se a tomada violenta da capital federal pelos camisas pardas do bolsonarismo foi ou não uma tentativa de golpe de Estado, à luz da chamada Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. A Polícia Federal concluiu as investigações sobre o caso, indiciou dezenas de suspeitos de participação direta ou indireta na “agressão às instituições”, para usarmos a expressão empregada por Hugo Motta, e remeteu os autos do inquérito à Procuradoria-Geral da República (PGR), a quem cabe oferecer ou não denúncia contra os suspeitos à Justiça.

A decisão sobre a tipificação do 8 de Janeiro, portanto, está nas mãos da PGR e da Justiça. Dito isso, seria ingenuidade desconhecer que os terríveis atos havidos em 8 de janeiro de 2023 não representaram, no mínimo, uma clara ameaça à estabilidade institucional do País, mal saído de uma eleição muitíssimo acirrada. Os danos causados à democracia não estão circunscritos à destruição material dos prédios públicos, mas se estendem ao ataque frontal ao processo eleitoral, algo que Bolsonaro estimulou desde o início de seu tenebroso mandato presidencial.

O País não pode, a quaisquer pretextos, relativizar o 8 de Janeiro. É de uma Justiça equilibrada, porém implacável, que advirá a garantia de que uma violência como aquela jamais se repetirá.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 11.02.25

Donald Trump e a Nova Ordem Mundial

No melhor dos cenários para os americanos, ruptura seria apenas um desvio até que a ordem liberal fosse restabelecida. No pior, China e Rússia aproveitariam para moldar o mundo a seu favor

Donald Trump desembarca na Casa Branca. A bordo do Air Force One, presidente anunciou novas tarifas, avançando na política "America First" que abala alianças americanas.  Foto: Jose Luis Magana/Associated Pres

Quando os Houthis lançaram mais de 130 ataques com drones e mísseis contra embarcações no Mar Vermelho, em 2024, foi um pandemônio.

Mais de 80% das mercadorias comercializadas internacionalmente são transportadas por navios de carga. E o Mar Vermelho desempenha um papel fundamental nessa história.

Se você olhar com atenção para este mapa, perceberá que o ponto em destaque é um lugar no Egito chamado Canal de Suez.

É fácil entender por que o Canal de Suez é uma das rotas marítimas mais importantes do mundo: ele permite a passagem de navios entre a Europa e a Ásia sem a necessidade de navegar ao redor da África pelo Cabo da Boa Esperança.

O que acontece quando um grupo rebelde ataca embarcações no Mar Vermelho que estão a caminho do Canal de Suez? As companhias marítimas passam a evitar passar pelo local.

E nós não estamos falando de um desvio pequeno.

O redirecionamento desses navios pela África acrescenta 6.500 quilômetros e 10 dias extras às rotas marítimas, encarecendo inúmeros produtos que alcançam a casa de famílias do mundo inteiro. O que significa que mesmo um grupo minúsculo, num país miserável – como os Houthis, no Iêmen –, sem laços econômicos com os Estados Unidos, pode provocar uma imensa dor de cabeça em Washington e isso se transformar numa crise política.

Isso acontece porque os americanos dependem umbilicalmente do comércio internacional para sustentar o seu estilo de vida. Grande parte das mercadorias que alcançam os Estados Unidos são produzidas do outro lado do mundo – incluindo muitos dos produtos comercializados pelo próprio presidente americano (das suas bíblias a camisetas).

Há inúmeros motivos por que os Estados Unidos não conseguiriam se desconectar do comércio internacional sem dilapidar o estilo de vida da sua população, mas citarei apenas dois.

Em primeiro lugar, países tendem a se especializar na produção daquilo que conseguem fazer de forma relativamente mais eficiente em comparação a outros países. Na economia, nós chamamos isso de vantagem comparativa. Se os americanos resolvessem produzir absolutamente tudo o que consomem – de jatos a bananas – teriam que arcar com custos muito maiores em áreas em que não são eficientes ou não dispõem de recursos naturais adequados.

Mas há um segundo problema: os Estados Unidos são um dos maiores exportadores do mundo. Empresas americanas não apenas recorrem a uma cadeia de suprimentos com peças e componentes vindos de outros continentes, como também vendem produtos e serviços que alcançam bilhões de pessoas que nunca pisaram nos Estados Unidos – aeronaves, automóveis, eletrônicos, serviços financeiros. O que aconteceria se essas empresas deixassem de vender para outros países? Isso encareceria o custo dos seus produtos para os consumidores americanos.

Muitas indústrias americanas operam com economias de escala – ou seja: quanto maior a produção, menor o custo por unidade. Empresas que exportam para diversos mercados conseguem diluir custos e acabam oferecendo produtos a preços mais competitivos. Sem essa escala global, essas empresas teriam que produzir quantidades menores apenas para o mercado interno americano, o que elevaria consideravelmente o custo dos seus produtos.

É por isso que a economia americana depende do que acontece no resto do mundo. No fim, qualquer perturbação nas cadeias de abastecimento ou de distribuição do comércio internacional – como a realizada pelos Houthis no Mar Vermelho, em 2024 – tem capacidade de interromper a produção de itens fundamentais para a manutenção da vida americana.

Como Washington se preparou para se proteger desses riscos? Desenhando um sistema de regras previsíveis voltadas para o comércio e a cooperação entre os países; fundando instituições globais que estimulam a redução de barreiras comerciais; incentivando tratados e tribunais internacionais para substituir tanques e aviões militares; promovendo democracia, direitos humanos e liberdades individuais. Nós chamamos esse sistema de ordem internacional liberal, mas há quem prefira outro nome: ordem baseada em regras.

É verdade que, em diferentes episódios, a defesa desses valores, por parte dos americanos, foi hipócrita. Nos últimos 70 anos, não apenas os Estados Unidos desrespeitaram preceitos fundamentais da ordem internacional liberal, como apoiaram violadores desses princípios. Mas ajudar a sustentar a estabilidade global sempre foi muito mais barato para os Estados Unidos do que arriscar a instabilidade de um planeta incerto e isolado, onde mesmo grupos marginais pequenos podem arriscar encarecer o que é servido na mesa dos americanos.

Em números absolutos, ninguém gasta tanto com defesa quanto os Estados Unidos. Em 2023, Washington dedicou US$ 916 bilhões nas suas forças armadas – um valor maior que a soma dos gastos de China, Rússia, Índia, Arábia Saudita, Reino Unido, Alemanha, Ucrânia, França e Japão (os 9 países seguintes que mais gastaram com as suas forças armadas). Mas há um bom motivo por que os Estados Unidos gastam tanto com o seu complexo militar-industrial: porque vale a pena. Os ganhos que Washington alcança com as suas alianças militares não são pequenos, e é fácil justificar por quê, antes da ascensão de Trump, essa tenha sido uma causa bipartidária por tantas décadas.

Desde que foi criada, em 1949, a OTAN é a principal plataforma para os Estados Unidos projetarem o seu poder no mundo. Mas ela não é a única.

Os Estados Unidos sustentam algo próximo de 750 bases militares em 80 países. Todo esse poderio militar não caiu do céu. Ele não foi construído porque Washington deseja proteger o mundo da ação dos homens maus de forma altruísta e desinteressada. Ele foi projetado por líderes americanos, democratas e republicanos, com amplo apoio popular e uma motivação bem fácil de capturar: essa estrutura é indispensável para os Estados Unidos ocuparem o papel de nação hegemônica na Terra – dominante na economia, na política, nas artes e na ciência. E é esse domínio que sustenta o modo de vida americano. No fim, 3,4% do PIB em gastos militares não parece um preço caro perto desse retorno.

Os Estados Unidos lidam diariamente com inúmeras ameaças e cenários complexos e imprevisíveis de crises. É esse colosso militar que facilita a capacidade de Washington exercer uma imensa influência em todos os cantos do mundo, protegendo rotas de comércio e a estabilidade de um planeta com instituições desenhadas pelos próprios americanos e os seus aliados. Putin colocaria o mundo de cabeça para baixo para Moscou ter acesso a isso.

E nem dá para dizer que a presença americana nesses lugares foi imposta pela força – pelo contrário, ela veio através da diplomacia militar, cultivando aliados, num capítulo da história que o norueguês Geir Lundestad chamou de “império por convite”.

É inegável que os europeus ganham segurança e estabilidade com a proteção militar americana. Mas o que os Estados Unidos perdem sem alianças como a OTAN? Muita coisa.

Em primeiro lugar, alianças como a OTAN promovem uma política de defesa coletiva que, a bem da verdade, produz inúmeros contratos para empresas americanas de tecnologia militar. Os Estados Unidos são responsáveis por 40% das exportações do comércio global de armas, e os países aliados representam uma grande parcela do destino desses produtos.

Além disso, a OTAN desempenha um papel fundamental na dissuasão de potenciais agressões contra os Estados Unidos – e até hoje nunca foi usada para defender qualquer país da aliança que não seja os Estados Unidos.

Quando um adversário ataca os Estados Unidos, provoca a maior aliança militar da história. Esse é um excelente motivo para desistir dessa ideia. Essa segurança não só contribui para gerar um ambiente internacional mais previsível – capaz de proteger a população americana – como permite que os Estados Unidos não gastem trilhões de dólares em conflitos inesperados.

No decorrer da história, no auge de qualquer império, a guerra foi a regra, não a exceção. Entre 1500 e 1945, só a Europa experimentou mais de 200 conflitos armados significativos, com poucos períodos intercalados de paz. Os Estados Unidos gastaram 14,1% do seu PIB na Primeira Guerra Mundial e 37,5% na Segunda Guerra Mundial.

A ordem internacional liberal foi projetada para evitar que conflitos globais devastadores se repetissem, e foi extremamente bem-sucedida nessa tarefa. Desde 1945, o mundo não experimenta um conflito militar envolvendo diretamente duas grandes nações. Essa é uma anomalia conhecida como Longa Paz, e o poder de dissuasão da OTAN foi fundamental para esse resultado.

EUA levaram décadas para construir sua influência global e Trump está destruindo tudo em semanas

A política externa de Trump é a sentença de morte da ‘Pax americana’ e da hegemonia dos EUA

Se os Estados Unidos se retirassem da OTAN, poupariam, com o financiamento da aliança, algo próximo de US$ 500 milhões por ano (0,05% do seu orçamento militar). Mas o Pentágono arriscaria perder o acesso a inúmeras instalações, portos, aeródromos e bases militares em toda a Europa, vitais para as operações dos Estados Unidos não apenas para frear o expansionismo dos seus adversários, como monitorar o Oriente Médio.

A quem interessa o desmantelamento disso tudo? Aos mesmos países que sonham com um isolamento dos Estados Unidos e um enfraquecimento da sua relação com os seus aliados, envolvidos em ameaças de anexação e guerra tarifária: a Rússia e a China.

Ocupar a posição de liderança da maior aliança militar da história só reforça o papel dos Estados Unidos como a grande superpotência global – o que recebe uma natural oposição dos seus adversários, que defendem uma nova ordem mundial, multipolar, onde diferentes centros de poder são distribuídos dentro do sistema internacional.

Sim: uma nova ordem mundial. Por décadas, a direita americana recorreu a essa expressão para denunciar um plano de subversão global liderado por bilionários sedentos por poder. Seria irônico se bilionários sedentos por poder, apoiados de forma tão entusiasmada por eleitores de direita, tentassem romper com a ordem baseada em regras, ridicularizando a ideia de conservar o que os conservadores sempre se comprometeram em proteger.

E o que veríamos no caso de uma completa desintegração da ordem vigente? Provavelmente um retorno das grandes potências.

Com mais potências competindo, cada região do planeta arriscaria virar palco de tensões – de disputas por recursos energéticos a conflitos étnicos. Ninguém protegeria os países pequenos de serem engolidos e anexados pelos grandes. Nós vimos isso na primeira metade do século 20.

Com cada potência buscando se proteger, desconfiando mesmo daqueles que foram os seus aliados no passado, o investimento em forças armadas certamente aumentaria no mundo, desviando recursos de outras áreas (como educação, saúde e infraestrutura) para uma corrida armamentista. E com um menor poder de coordenação internacional, menos eficiente seria o controle de armas nucleares e outros armamentos de destruição em massa.

Com blocos econômicos distintos, cada qual seguindo regras e padrões diferentes, empresas e países enfrentariam barreiras mais complexas e custos maiores para operar em múltiplos mercados – o que deixaria o mundo mais pobre e menos inovador.

Para os americanos, no melhor cenário, a nova ordem mundial seria apenas um longo desvio: o caminho mais distante entre a destruição da ordem baseada em regras e o reestabelecimento da ordem baseada em regras. No pior cenário, potências como China e Rússia se aproveitariam do vácuo deixado por Washington e moldariam o mundo a seu favor.

No fim, ajudar a destruir a ordem vigente – atacando aliados históricos, promovendo uma onda anti-liberal no comércio internacional, ameaçando anexação de território independente, prometendo limpeza étnica, menosprezando os direitos humanos, bajulando ditadores, titubeando em defender países aliados invadidos por adversários históricos, promovendo isolacionismo, desmantelando instituições que construíram o soft power e o hard power americano, apoiando partidos políticos europeus abertamente adversários da ordem vigente, se retirando de órgãos multilaterais desenhados para projetar o poder americano no mundo, sancionando tratados e tribunais internacionais – é exatamente o tipo de movimento que um líder revolucionário anti-americano faria nos Estados Unidos.

É o que Vladimir Putin faria se tivesse o poder americano por um dia.

Rodrigo da Silva, o autor deste artigo, é jornalista e criador do canal Spotniks, do YouTube. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 11.02.25

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

À falta de governança, resta o ‘gogó’

Antes da hora, Lula resolveu subir em palanques Brasil afora como se não houvesse um país acossado por problemas de toda ordem que demanda a atenção e o tempo do chefe de governo


O presidente Lula da Silva rasgou de vez a fantasia de chefe de Estado e de governo e resolveu vestir o figurino que mais o deixa confortável: o de eterno candidato em campanha eleitoral. Premido pela queda de popularidade, além dos sucessivos desgastes causados, direta ou indiretamente, pelo vazio programático que marca seu terceiro mandato, Lula se lançou numa turnê Brasil afora com o objetivo, segundo disse, de “disputar no gogó” com a oposição. À guisa de divulgar realizações do governo, Lula quer ampliar o campo da batalha discursiva contra seus adversários políticos para além das redes sociais, um ambiente dominado pela direita, como é notório.

Por ora, é vistoso o ânimo do petista para subir no palanque com cada vez mais frequência, malgrado daqui até 2026 Lula ter sob sua responsabilidade direta um país acossado por problemas de toda ordem que demanda a atenção e o tempo do presidente da República. Lula decerto não pedirá votos para não afrontar tão acintosamente a Lei Eleitoral, mas, na prática, seu giro pelo País, iniciado na quinta-feira passada, no Rio de Janeiro, não é outra coisa senão uma campanha eleitoral antecipada – afinal, como o próprio petista admitiu, “2026 já começou”. Tanto é assim que essa estratégia para tirar o governo das cordas, segundo reportagens publicadas pela imprensa, foi concebida pelo marqueteiro Sidônio Palmeira, ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom), responsável pela vitoriosa campanha do petista na eleição de 2022.

Além das viagens de Lula, Sidônio programou roteiros para a primeira-dama Rosângela da Silva, conhecida como Janja, o vice-presidente Geraldo Alckmin e ministros de Estado. Mas não há tour de force publicitária que dê conta de engambelar os brasileiros quando o próprio Lula se ressente publicamente de não conseguir imprimir uma “marca” em seu governo, como o fez nos outros dois mandatos presidenciais. O fato de um marqueteiro ser o condutor dos passos de Lula daqui até as próximas eleições gerais – pois foi com essa missão que Sidônio foi alçado ao cargo de chefe da Secom – diz muito sobre a real preocupação do presidente, qual seja, a reeleição, e não a construção de uma agenda virtuosa para o País, claramente identificada como tal e negociada com a sociedade por meio de seus representantes no Congresso. Se assim o fizesse, os resultados viriam como desdobramentos naturais e, muito provavelmente, tamanho esforço de propaganda seria ocioso.

A estratégia publicitária não é nova e deu certo no passado, o que seguramente é um fator motivador para que Lula desça do Palácio do Planalto e suba no palanque antes da hora. Na esteira do escândalo do mensalão, há cerca de 20 anos, Lula também decidiu sair de Brasília e rodar pelo País para escapar da crise política que se abateu sobre seu governo na capital federal. Como se sabe, o movimento foi bem-sucedido, haja vista que o petista foi reeleito em 2006. A diferença, porém, era o estado da economia brasileira à época, muito mais favorável ao então incumbente do que agora. Somadas à violência urbana que apavora os brasileiros, a carestia e a estagnação econômica estarão no centro do debate político com vistas à sucessão de Lula em 2026, ano em que a defesa da democracia contra a ameaça golpista encarnada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, inelegível até 2030, certamente terá papel muito menos determinante do que teve em 2022.

Além de apreensão, em que pese o fato de mal ter iniciado a metade final de seu mandato, o recurso ao “gogó” revela que Lula claramente fez a escolha de sobrepor a política de imagem à governança responsável capaz de responder aos desafios econômicos e sociais que o Brasil enfrenta neste momento.

Não se sabe exatamente como Lula e o País chegarão a 2026, mas é certo que o eleitorado estará cansado de uma retórica vazia, que não encontra respaldo na vida cotidiana de milhões de brasileiros ansiosos pela concretização de um futuro mais auspicioso para todos – há muito prometido, mas nunca plenamente realizado.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.  Paulo, em 10.02.25

Hannah Arendt nos lembra que verdade e política nunca tiveram boa relação

Para a filósofa, diferente de mentiras tradicionais que ocultavam segredos, as modernas distorcem fatos conhecidos

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, durante discurso no Capitólio - Ting Shen - 6.fev.25/AFP

Quando, pela primeira vez, Donald Trump assumiu a presidência dos Estados Unidos, muitos recorreram à leitura de Hannah Arendt para tentar compreender o que estava acontecendo na política americana.

Foi assim que "Origens do Totalitarismo" passou a figurar nas listas de livros mais vendidos de lá, e que trechos dessa obra passaram a ser compartilhados nas redes sociais, motivando debates sobre as consequências políticas da solidão.

Outro texto de Arendt que também despertou o interesse dos leitores, e que merece ser relido no contexto do retorno de Trump à Casa Branca, foi o ensaio "Verdade e Política".

Inspirado na controvérsia desencadeada pela publicação de "Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal", quando o testemunho de Arendt sobre o caso Eichmann foi distorcido, "Verdade e Política" propõe uma reflexão sobre o lugar da verdade —principalmente do que a autora chama de verdade factual— no âmbito público, frisando tanto a sua relevância para a preservação da realidade que compartilhamos com outros seres humanos, como a sua fragilidade ante o poder político.

No ensaio, Arendt comenta que verdade e política nunca mantiveram uma boa relação. Assim, ela ressalta, não é de se surpreender que sempre tenhamos visto as mentiras como "ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista".

Segundo Arendt, as verdades factuais estão sempre relacionadas a outras pessoas e fazem referência a eventos dos quais muitos participaram. Consequentemente, para que tomemos conhecimento delas, precisamos dos relatos das testemunhas e da sua comprovação. Isso, por sua vez, faz com que as verdades factuais sejam caracterizadas por um elemento de contingência. É esse elemento que faz com que tais verdades sejam especialmente frágeis, pois quando a maioria das pessoas desacredita de um fato, ele corre o risco de perder a sua relevância política.

Arendt também destaca a diferença entre as mentiras políticas tradicionais e as suas equivalentes modernas. Para ela, as mentiras tradicionais tinham por alvo um inimigo específico e costumavam se referir tanto a segredos que jamais deveriam vir a público quanto a intenções que talvez nunca viessem a se realizar. Já as mentiras modernas lidam com fatos conhecidos, tendo por objetivo iludir a todos, incluindo os próprios mentirosos.

"Isso é óbvio no caso em que a história é reescrita sob os olhos daqueles que a testemunharam, mas é igualmente verdadeiro na criação de imagens de toda espécie, em que todo fato conhecido e estabelecido pode do mesmo modo ser negado ou negligenciado caso possa vir a prejudicar a imagem."

Arendt exemplifica esse tipo de mentira ao mencionar a ausência proposital do nome de Trotsky nos antigos compêndios soviéticos sobre a história da Revolução Russa: "Quando Trotsky escutou que nunca desempenhara nenhum papel na Revolução Russa, deve ter tomado consciência de que sua sentença de morte fora assinada (...) Em outras palavras, a diferença entre a mentira tradicional e a moderna acarretará, na maior parte das vezes, a diferença entre ocultar e destruir".

Mas, como questiona a própria Arendt, será mesmo que a verdade é essencialmente impotente diante do poder? Não exatamente, pois aqui vale a pena enfatizar que, embora o poder atente contra a verdade, ainda assim, precisa dela para se manter. Afinal, segundo Arendt, nada se sustenta por muito tempo na ausência da verdade: "Ela é o solo sobre o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós".

Juliana de Albuquerque, a autora deste artigo, é escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 09.02.25

Tribunal de precedentes com números sem precedentes

Abarrotamento do STJ não encontra similar em democracias respeitadas do mundo; chegou a hora de tomar providências e afastar o risco de implosão


O presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Herman Benjamin, em seu gabinete, em Brasília - Pedro Ladeira - 28.out.24/Folhapress

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou 2024 com cifras que impressionam pelo gigantismo e preocupam pelos impactos negativos no desempenho satisfatório de suas funções. Marco inédito, os seus 33 ministros receberam mais de 500 mil processos e proferiram quase 700 mil decisões, aproximadamente uma em quatro minutos e meio.

Cálculo que computa oito horas de todos os dias úteis e não subtrai a duração de sessões presenciais de julgamento, atendimento a advogados, reuniões e outras atividades institucionais. Uma quantidade que supera a soma dos 11 anos iniciais da corte e mostra-se absolutamente incompatível com a capacidade humana de gestão de demanda recursal.

O abarrotamento do STJ não encontra similar em democracias respeitadas do mundo. Ao compará-lo com organismos análogos, a disparidade anual é gritante. Na França, com uma população de 68 milhões e dois tribunais nacionais que, juntos, correspondem ao STJ, as estatísticas são assaz distintas. A Corte de Cassação e o Conselho de Estado, cada qual com algo em torno de 200 ministros ("conseillers"), decidem, em média, de 10 a 20 mil processos. Na Índia, com 1,4 bilhão de habitantes, a Corte Suprema de 34 ministros prolata em torno de mil decisões.

De pronto, já se diga não ser correto atribuir a explosão de feitos no STJ ao recente reconhecimento de novos direitos, em particular a sujeitos antes preteridos. Muito menos advém de uma certa patologia social de litigiosidade compulsiva da grande massa. Saliente-se, ademais, que, ao oposto de outros países, não decorre de carência de pessoal ou meios financeiros, atraso tecnológico, deficiência administrativa, apatia ou baixa operosidade dos seus membros.

A fonte principal da avalanche de recursos acha-se em outro lugar: a transmutação da corte em terceira instância universal, aberta à revisão de toda e qualquer decisão dos 27 Tribunais de Justiça e seis Tribunais Regionais Federais do Brasil.

No presente debate, portanto, impõe-se começar pela reafirmação da "raison d’être" precípua do STJ, ou seja, a uniformização da interpretação da legislação federal nos quatro cantos do Brasil. Dele se espera que cumpra o seu ofício pela fixação de teses —precedentes pacificadores de entendimentos divergentes—, com o objetivo de garantir previsibilidade, isonomia e segurança jurídica à população e às empresas, simplificando a atuação do juiz, estimulando o empreendedorismo e reforçando a coerência do ordenamento jurídico nacional.

Um caos numérico de 500 mil novos recursos nunca foi, nem será, caminho para assegurar justiça, pois, não obstante a maior atenção possível dos julgadores, zelo extremado algum conseguirá evitar a morosidade, imprevisibilidade e discrepância de decisões. E, sabemos, o direito definha em clima de acaso e de jogo de azar. Logo, não fechemos os olhos à inexequibilidade total —pura ficção ou delírio— de ministros do STJ proferirem uma decisão em quatro minutos e meio.

O ato de julgar, por natureza, abomina a precipitação e a superficialidade, exige estudo e ponderação. Numa palavra, oportunidade para pensar. O juiz não é um burocrata a mais, com um carimbo padronizado à mão, nem carrega varinha de condão para, do éter, colher uma decisão adequada.

Que soluções se apresentam para o Superior Tribunal de Justiça? Problemas estruturais reclamam soluções estruturais. Desdenham paliativos, expedientes engenhosos e fórmulas transitórias. Daí que só uma medida vai à raiz da emergência do (anti)sistema recursal do STJ: repor o tribunal às fronteiras de sua gênese, uma instituição destinada a julgar casos de relevância nacional, na linha da emenda constitucional 125/2022.

Confiar em milagres da revolução tecnológica e da automação? Ora, se o ato de julgar resiste ao mecanicismo, nenhuma ferramenta substituirá completamente o julgador. Aumentar o número de ministros? Duplicar? Sairíamos de uma decisão a cada quatro minutos e meio para uma em nove minutos. Decuplicar? Teríamos 333 ministros, com uma decisão a cada 45 minutos.

A crise recursal do STJ prejudica o Brasil. Enfraquece a legitimidade do direito, desampara os cidadãos, afeta a economia e o ambiente dos negócios, corrói as contas públicas. Chegou a hora de acordar e tomar providências imediatas para afastar o risco de implosão do Tribunal da Cidadania.

 Antonio Herman Benjamin, o autor deste artigo, é o Presidente do Superior Tribunal de Justiça. Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo, em 09.02.25

Reforma política deveria evitar mudanças radicais

Rediscutir normas eleitorais cria risco de retrocesso; caminho seguro é o de melhoria incremental, como voto facultativo

Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira/Folhapress

Ano ímpar, no calendário político, é período de tratar das regras das eleições subsequentes. Isso porque a Constituição impõe, nesse tema, o mínimo de 365 dias de carência desde a promulgação para que uma nova lei seja aplicada.

O recém-empossado presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), não perdeu tempo e já anunciou a criação de uma comissão especial para analisar projetos de reforma dos regimentos eleitorais.

A portentosa imaginação dos parlamentares é o limite quando se abre o certame bianual de debates sobre modificações nas regras de acesso ao poder político.

Do ponto de vista do interesse público, há três categorias de intervenção que deveriam ser monitoradas, principalmente para não piorar o que já não é bom e impedir retrocessos em pontos em que houve progressos.

O primeiro risco a evitar é o das reformas radicais, que se propõem a derrubar de chofre pilares do sistema que opera mais ou menos da mesma forma há 40 anos para substituí-los por instituições novíssimas. Representam promessas de maravilhas futuras que, de mais certo mesmo, produzem instabilidade e incertezas.

Nesse gênero de projetos, fala-se novamente em implantar o sistema de eleição distrital misto para vereadores e deputados. Em vez do regime proporcional vigente, em que os partidos têm tantos representantes quanto a sua votação, o distrital misto reserva tipicamente metade das vagas para ser decidida por embates majoritários em circunscrições territoriais. Nesse ponto, de desenhar os distritos, reside um de vários problemas do modelo.

Já o chamado semipresidencialismo, tese que também começa a ser requentada, significaria mudança ainda mais profunda, afetando a divisão dos Poderes. Nada permite cogitar que o eleitorado brasileiro, que rejeitou explicitamente o parlamentarismo em 1993, esteja de acordo com a implantação de uma versão atenuada desse sistema de governo.

O segundo conjunto de intenções a rechaçar são aquelas que fortaleceriam as oligarquias partidárias, já deveras privilegiadas por regras e verbas, dificultando assim a competição eleitoral e a renovação dos representantes.

Cogita-se restabelecer as doações empresariais para campanhas, o que pode ser positivo se limitado a um valor nominal. Não há, porém, a necessária contrapartida de reduzir o nababesco financiamento público.

Já um terceiro caminho de projetos, os que implicam melhorias pontuais e incrementais no sistema, deveria ser incentivado. Por essa via paulatina o Brasil logrou combater a proliferação de legendas nos últimos anos, processo que não deveria ser ameaçado na atual rodada de reformas.

Adotar o voto facultativo, como o fazem as democracias maduras, e limitar a reeleição no Executivo a duas passagens, sejam elas alternadas ou consecutivas, seriam exemplos de mexidas de sentido focal, evolutivo e seguro.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 09.02.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Trump brinca com fogo no Oriente Médio

Sua proposta para Gaza é moralmente ultrajante e impraticável operacionalmente. Ainda que concebida como cortina de fumaça ou tática de negociação, pode desencadear uma catástrofe.

Donald Trump chocou o mundo, de novo, mas desta vez um ponto acima na escala Richter geopolítica. A ideia de varrer 2 milhões de palestinos, apropriar-se de Gaza e transformá-la na “Riviera do Oriente Médio” foi moralmente a mais ultrajante de seu catálogo de ideias moralmente ultrajantes. Ao mesmo tempo, é tão impraticável que faz a anexação do Canadá, da Groenlândia e do Canal do Panamá parecer um negócio trivial. É uma bomba, mas uma bomba de efeito moral.

Os palestinos estão horrorizados; os israelenses estão confusos; os árabes, indignados; os analistas, atônitos. “Todo mundo com quem eu falei ama a ideia dos EUA possuindo aquele pedaço de terra”, disse Trump. Quem? Egito e Jordânia disseram que jamais receberão os palestinos. Junto a três países árabes aliados dos EUA, eles assinaram uma declaração alertando que a deportação “empurrará a região para mais tensão, conflito e instabilidade”. A Arábia Saudita reafirmou seu compromisso com um Estado palestino. Mesmo os fundamentalistas israelenses, eufóricos com a possibilidade de uma limpeza étnica, jamais aceitarão um resort americano, por exemplo, numa terra que consideram sua por mandato divino.

O mais estupefaciente na proposta – além de ser um crime contra a humanidade – é que parece minar os objetivos que Trump diz ter para o Oriente Médio, a começar pela manutenção dos Acordos de Abraão entre Israel e aliados árabes, a primeira conquista de Trump na região; a normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita; os tratados de paz entre Israel e Egito e Jordânia; a consequente dissuasão do Irã; e a consumação do cessar-fogo com o Hamas. E o que dizer dos americanos que sufragaram seu voto pela promessa de que as aventuras americanas no exterior seriam sepultadas?

Qual pode ser a intenção de Trump? Será uma manobra diversionista ou uma tática de negociação? As duas possibilidades não se excluem.

A provocação pode ser uma distração da opinião pública doméstica ao assalto à burocracia federal. Pode ser também uma boia de salvação para o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, e uma cortina de fumaça para ele manobrar o cessar-fogo com o Hamas conforme seu interesse.

Trump pode ter concebido seus planos maximalistas como uma alavanca de negociação. Entre preservar seu controle de Gaza e manter a população palestina lá, o Hamas poderia abdicar da primeira opção. A Arábia Saudita poderia amolecer a sua posição e ceder sua pretensão a um território soberano dos palestinos em troca de sua mera permanência. “Trump está demonstrando pressão máxima contra o Hamas para assustá-los, para que façam concessões reais”, sugeriu o analista político palestino Mkhaimar Abusada ao The New York Times. “Ele também está impondo pressão máxima sobre a região, para que pactuem por menos em troca da normalização com Israel.”

Estas táticas disruptivas podem funcionar, mas também produzir resultados catastróficos. O Hamas está entocado, mas não está morto e detém dezenas de reféns. Diante de uma situação desesperada, pode mandar o cessar-fogo pelos ares. O ultraje dos árabes pode superar o pragmatismo e desencadear retrocessos nas tratativas com Israel. Seja como for, a credibilidade dos EUA com seus parceiros europeus e com o chamado Sul Global se deteriorará alguns graus a mais. Rússia e China terão novas justificativas para tomar territórios como acharem que lhes convêm.

O suposto sonho de Trump é um pesadelo para os palestinos. Após décadas sob o jugo dos terroristas do Hamas, após meses de destruição sob a artilharia de Israel, o deslocamento seria uma nova nakba (“catástrofe”), mais terrível do que aquela experimentada em 1948, quando os palestinos foram forçados a fugir de suas casas nas guerras em torno da criação do Estado judeu. Ainda que Trump realmente queira isso – o que é improvável –, não acontecerá, porque nem os países árabes, nem o povo americano, nem os palestinos o tolerarão. Mas, desde já, sua retórica inflamará mais antissemitismo e antiamericanismo pelo mundo. E, se a reação dos fanáticos do Hamas for ainda mais irracional e truculenta que a sua “proposta”, o sangue estará também nas suas mãos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.02.25

Cesarismo

Donald Trump quer ser não apenas o rei da América, mas o seu César. Reduzirá a América a um nome de golfo. Isolado.

Em sua coluna dominical em O Globo, a jornalista Dorrit Harazim vem ajudando a gente a escrutinar o inconcebível. Os artigos que ela escreveu sobre a pulverização de Gaza compõem uma antologia definitiva. Logo mais, alguém se lembrará de publicá-la em livro. Agora, Dorrit tem decifrado a vulgar esfinge de Donald Trump. No domingo passado, num texto intitulado Com método, ela demonstrou que, por trás do caos performático do presidente dos Estados Unidos, com mentiras intercontinentais e factoides histriônicos, há uma lógica ferina e fria. Nas palavras da colunista do Globo, o “objetivo maior e final de Trump” é “assumir controle pleno, sistemático e duradouro da máquina federal”. E mais: “o conjunto de ordens executivas e medidas adotadas nesse sentido nada tem de caótico – são eficazes, precisas e reveladoras de um planejamento de anos para o desmonte da burocracia qualificada”.

Aí está. Dorrit não usou a palavra, mas o nome disso é cesarismo. Ao que você pergunta: “Mas o que é o cesarismo?”. Peço permissão para responder a sua gentil pergunta com o auxílio de uma reminiscência ligeira.

No início de 1988, eu e o sociólogo Eder Sader entrevistamos o professor Antonio Candido para a Teoria e Debate. Eu era o editor da revista, que tínhamos lançado no finzinho de 1987. Eder integrava o nosso conselho de redação. Ele morreria poucos meses depois, em maio de 1988, aos 46 anos. Hemofílico, tinha contraído o vírus da aids numa transfusão de sangue, provavelmente em 1985, e não conseguiu vencer a doença (naquele tempo, ninguém conseguia). Guardo dele a imagem luminosa de um homem bem-humorado, leve, inteligente e, acima de tudo, generoso com os mais jovens. Cabelos embranquecidos, sobrancelhas negras, sorriso desprendido.

Nossa conversa com Antonio Candido também foi iluminadora: transcorreu com leveza, inteligência e generosidade. Quando lhe perguntamos sobre a revista Clima, que ele e Paulo Emílio Salles Gomes editaram na década de 1940, ele nos contou uma história e tanto. Foi nessa resposta que ele falou sobre o cesarismo. Eu nunca mais esqueci. Eis o que ele disse:

“No começo (a revista) era deliberadamente apolítica, tendo inclusive colaboradores integralistas. A virada foi em 1942, quando o Brasil entrou na guerra. Nós assinamos um manifesto redigido por Paulo Emílio assinalando a nossa posição antifascista e dizendo que agora tinha acabado a isenção e começava a luta, atacando inclusive os integralistas. Alguns dos nossos colaboradores deste naipe brigaram conosco. O nosso manifesto causou certo barulho e foi comentado, entre outros, por Astrojildo Pereira, que assinalou o seu caráter puramente negativo. Então resolvemos tentar uma definição positiva, que foi obra de Paulo Emílio, sob a forma de um ‘Comentário’ publicado no número 12, já em 1942. Este documento ainda tem interesse, e para mim foi o fixador de ideias, o definidor da posição política. Foi certamente ele que me levou a não ficar nem stalinista nem trotskista, mas aceitar a posição preconizada por Paulo, de um socialismo democrático desinteressado das Internacionais, procurando soluções adequadas ao País, empenhado na luta contra o fascismo, porque esta era a manifestação contemporânea do cesarismo oposto à tradição humanista, que provinha do cristianismo por meio das revoluções dos séculos XVIII, XIX e XX. (...) Este documento foi decisivo para mim e outros. A partir dele entrei para valer na militância.”

Antonio Candido virou militante para combater o fascismo. Bom motivo. Foi ele quem primeiro me ensinou sobre cesarismo: um tipo de arbítrio que é o oposto da “tradição humanista, que provinha do cristianismo”. Há quem diga que o cesarismo constitua um autoritarismo estatal, mas essa conceituação é falha, pois perde de vista a chaga escura que Paulo Emílio denunciou. O César romano (de onde descendem as palavras “Kaiser” e “Czar”) exercia seu mando em permanente prontidão guerreira, como um chefe de gangue. O cesarismo, portanto, não se tece por meio do Estado, mas por cima do Estado e contra a institucionalidade de um Estado não selvagem. O cesarismo é o “desmonte da burocracia qualificada” (cito Dorrit outra vez), aquela mesma burocracia na qual Max Weber identificou um ponto positivo do Estado moderno. O cesarismo funda a genealogia do fascismo e do trumpismo.

Agora, Donald Trump anunciou que vai intervir em Gaza. Em outra frente, já começou a mandar imigrantes deportados para as masmorras de Guantánamo, onde já se documentaram sessões de tortura. Guantánamo será a versão trumpista dos campos de concentração.

O que ele quer com tudo isso? Desorientar os aliados? Sim, mas não só. Quer atemorizar a comunidade internacional? Também. E para quê? Ora, para dizer que nada mais será limite para os abusos que inventar. Ele quer ser não apenas o rei da América, mas o seu César. Reduzirá a América a um nome de golfo. Isolado. Incrível como ainda existe gente que olha com naturalidade (fake) para investidas tão acintosas.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP - Universidade de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 07.02.25 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O que sai da boca de um não economista

Trump e muitas pessoas acreditam que entendem a economia melhor que economistas


Na seção de uísques norte-americanos de supermercado em Vancouver, placa sugere a consumidores que comprem produtos canadenses - Chris Helgren/Reuters

Eu já disse a vocês várias vezes por que não devem acreditar em tudo o que sai da boca de um economista. Frequentemente é um erro do ponto de vista científico —ou ético, ou ambos. Ele apresenta seus erros com grande confiança e demonstra alta competência técnica.

A maioria dos economistas que fazem estudos estatísticos usa testes técnicos de "significância". Mas esses testes são conhecidos há um século como bobagens. A maioria dos economistas que lidam com inflação, desemprego e coisas assim acredita que o banco central dos EUA controla as taxas de juros.

Mas o Fed está num grande mundo de oferta e demanda por fundos, e o controle que ele supostamente tem é exercido por meio de um instrumento extremamente pequeno e fraco chamado taxa de fundos federal. A maioria dos economistas que lidam com mercados e indústrias acredita que a economia desenvolve monopólios importantes e externalidades e consumidores ignorantes e que, portanto, o Estado deve intervir. Mas essencialmente não há evidências disso e das soluções estatais.

O que o leitor deve fazer? Ah, escute-me.

O que sai da boca de um não economista geralmente está mais errado em termos científicos ou éticos. Donald Trump, como muitas pessoas, de esquerda ou de direita, acredita que entende a economia melhor que os economistas. Por exemplo: ele acredita que o comércio é uma questão de poder e que o lado que vender mais é o vencedor. Portanto, vê o comércio como um instrumento de coerção que países poderosos podem usar contra os menos poderosos.

Trump impôs uma tarifa de "emergência" de 25% sobre as importações do México para coagir o governo mexicano a impedir uma inundação imaginária de imigrantes nos EUA. O México é o segundo maior parceiro comercial dos EUA. Trump quer que o Canadá se torne um estado dos EUA. Talvez não saiba que os EUA tentaram isso em 1812, e que, de todo modo, os canadenses não querem ser estadunidenses. Por alguma razão, ele não propôs que o México também se torne um estado. Pode-se perguntar por quê.

A maioria dos economistas sabe que o comércio entre você e Pedro, ou entre Brasil e EUA, beneficia ambos os lados. Sim, alguns economistas de esquerda, e muitos dos marxistas ou companheiros de viagem em departamentos de economia no Brasil, ainda aderem à linha do argentino Raul Prebisch (1901-1986). Ele argumentou que países em desenvolvimento precisam ter cuidado para não cair na "dependência" de acordos comerciais ruins com países ricos e industrializados. Mas nem mesmo seus seguidores negam que o comércio pode ser bom.

Eles dizem que às vezes as importações são "supérfluas" para a industrialização que o Estado deve incentivar. Mas não adotam a visão mercantilista seguida por Trump e pela maioria dos não economistas de que exportar é o que há de bom no comércio.

Eles não afirmam que todas as importações são ruins, ou que o comércio é só um exercício de poder de um único homem. Dizem que às vezes é um resultado triste, mas não intencional, das "estruturas".

O que fazer? Ah, escute um economista. Qual? Adivinhe.

Deirdre Nansen McCloskey, a autora deste artigo, economista, é professora emérita de economia e história na Universidade de Illinois, em Chicago. Publicado em tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves para a Folha de S. Paulo, em 05.02.25

Sobrevivente de Auschwitz, Albrecht Weinberg: “Tudo pode voltar a ser como era na década de 1930”

Aos 99 anos, e depois de ter sobrevivido a três campos de concentração, este cidadão decidiu devolver a Cruz Federal do Mérito da Alemanha após a convulsão política causada pela união da direita e da extrema direita da AfD contra a migração.

Albrecht Weinberg posa no memorial da escola judaica em Leer, Alemanha, em 20 de janeiro. (Focke Strangmann - Getty Images)

Albrecht Weinberg tinha 18 anos quando os nazistas o deportaram para Auschwitz em 1943 . Ele sobreviveu a três campos de concentração e foi finalmente libertado no campo de Bergen-Belsen. Seus pais e quase toda sua família foram assassinados no Holocausto. Em 2012, ela retornou com sua irmã dos Estados Unidos para Leer, uma pequena cidade no norte da Alemanha, e desde então continuou a educar estudantes alemães sobre o que aconteceu no passado, o que lhe rendeu a Cruz de Mérito Federal Alemã em 2017 . Agora, prestes a completar 100 anos, ele admite estar chocado com a decisão do líder democrata-cristão, Friedrich Merz , de aceitar o apoio da extrema direita para tentar aprovar um pacote de medidas contra a imigração. Em conversa telefônica com o EL PAÍS de sua casa, ele alertou sobre o perigo de dar espaço à extrema direita.

Pergunta. Como você se sentiu quando soube que a União Democrata Cristã (CDU) votou a favor dos ultras no parlamento alemão na semana passada?

Resposta. Eu nasci na Alemanha. E eu tive dificuldade em lidar com o que os nazistas fizeram conosco, judeus. Não consigo esquecer o passado. Minha família foi assassinada. Como posso esquecer isso? E agora os políticos uniram forças com os direitistas, como são chamados, com os nazistas e os extremistas de direita . É terrível. Eu vivi aquela época, minha família inteira foi morta por motivos políticos ou religiosos, e é incrível que estejamos de volta a isso. Faz apenas um pouco mais de 10 anos que voltei para a Alemanha e converso com estudantes, com crianças em idade escolar, sobre o que pode acontecer se eles não tomarem cuidado quando fizerem 18 anos e puderem votar. O que seria deles? O que poderia acontecer? Se você apertar a mão dessas pessoas, elas vão segurar seu braço e tudo pode voltar a ser como era na década de 1930.

P. E o que você pensou quando o projeto de lei anti-imigração foi finalmente rejeitado na sexta-feira, apesar do apoio do AfD?

R. Eu achava que ainda havia esperança, sim. Olha, não é que eles vão me colocar na cadeia, mas é uma democracia à beira do colapso. E no meu livre arbítrio me perguntei se queria continuar tendo a Cruz do Mérito Federal. Recebi em 2017 porque falo com jovens em escolas. Mas agora acho que não conseguiria carregá-lo na minha jaqueta depois que eles se comportaram daquele jeito e cooperaram.

P. Depois que você anunciou que quer devolver a Cruz Federal do Mérito, você foi contatado pelo gabinete do presidente federal alemão Frank-Walter Steinmeier. Você sabe quando vocês se encontrarão?

R: Não sei como funciona. Nunca me ocorreu querer devolvê-lo. O Presidente Federal está fora do país em viagem de trabalho e estou aguardando uma ligação. Ele queria me avisar que gostaria de falar comigo pessoalmente. Embora eu não saiba oficialmente quando a conversa acontecerá. Além disso, você tem que levar em conta que estou em uma idade em que não estou tão em forma quanto costumava estar. Eu não poderia ir para Berlim, senão não gostaria de ir.

P. E você acha que depois dessa conversa ele ainda vai querer devolvê-lo?

R. Sim, eu decidi. Devolverei a Cruz Federal do Mérito, porque os políticos uniram forças com os extremistas de direita. E então será como com os nacional-socialistas e Hitler. Não neste momento, mas se eles conseguirem colocar o pé na porta, poderão trazer o corpo todo mais tarde.

P. Milhares de pessoas foram às ruas na semana passada para protestar contra o que aconteceu no Bundestag. Como você vivenciou essas manifestações?

A. Continuo saindo e conversando com estudantes e adultos. Atualmente há muitas manifestações na Alemanha contra tudo o que aconteceu. Agora vou ver o que o presidente federal Steinmeier tem a dizer.

P. De acordo com pesquisas, a AfD está em segundo lugar na intenção de voto nas eleições de 23 de fevereiro. Como você explica que tantas pessoas te apoiam?

R. Não acompanhei isso de perto, porque não estou interessado em questões políticas. Mas quando essas coisas vêm à tona, como aconteceu no Bundestag, você tem que se manifestar se não concorda. Eu também acho que se houvesse eleições na Alemanha hoje, as pessoas acordariam e não votariam em extremistas de direita, como dizem as pesquisas. Claro que eu não votaria neles. Eu sei como era a Alemanha em 1945, sei como é quando um ditador assume o comando. É uma coisa terrível. Muita fome e assassinatos, e assim por diante. E o mundo de hoje está cheio de guerra, dificuldades e pobreza. Essas pessoas não têm nem um pedaço de pão ou um copo de água para beber. Mas o material de guerra continua a ser fabricado.

P. Ele sobreviveu aos campos de concentração de Auschwitz, Mittelbau-Dora e Bergen-Belsen. Ela então emigrou para os Estados Unidos com sua irmã em 1947 e retornou em 2012. Como foi para você retornar à Alemanha?

R. Voltei por causa de uma doença. Eu tinha conhecidos na Alemanha que estavam bem financeiramente e eles me disseram para voltar, que eles nos ajudariam. E foi isso que fizemos. Mas minha irmã morreu três meses depois.

P. E o que você sentiu quando voltou para a Alemanha?

R. Eu vi que o país tinha uma mentalidade completamente diferente e que era um mundo completamente diferente. A Alemanha não é mais apenas alemã. Aqui, novamente, todos os tipos de países diferentes, todos os tipos de pessoas e todos os tipos de línguas estão representados. É uma democracia. Mas embora os nazistas fanáticos não estejam mais neste mundo, ainda há muito antissemitismo e ódio.

P. Você fala em escolas e compartilha suas memórias para que algo assim não aconteça novamente. O que os alunos pensam?

A. Eles são maravilhosos. Eles não conseguem entender por si mesmos o que seus avós fizeram na década de 1930.

P. Mas você viu alguma mudança na sociedade alemã nos últimos anos?

R. Sim, e é por isso que digo aos estudantes, aos jovens de 18 anos, que não devem ficar calados, que não devem ser tímidos e que devem fazer a coisa certa. Caso contrário, seu futuro não será particularmente bom.

P. Você se lembra de velhas memórias quando vê como alguns políticos falam sobre refugiados?

R. Sim, mas no meu caso sou muito exigente com política, minha experiência é muito especial. Não estou interessado em políticos específicos.

P. E como você se sentiu na primeira vez que ouviu a palavra “remigração”, um conceito que a AfD agora incluiu oficialmente em seu programa eleitoral , para se referir a uma repatriação em larga escala?

R. Isso foi tudo. É isso que querem aqueles que seguem extremistas de direita. E é claro que estou preocupado, mas o que posso fazer como indivíduo? Nada. Apenas dando minha opinião.

P. Você se sente ameaçado na Alemanha?

R. Sim, ainda há uma certa porcentagem que é muito hostil.

P. Nesse contexto, como você vê o futuro da Alemanha?

R. Vou fazer 100 anos em três semanas. Não penso mais nessas coisas.

Almudena de Cabo, de Berlim, originalmente, para O El País, em 06.02.25

A América é grande novamente... com o dinheiro dos outros

Trump não é Hitler, mas é assustador o quanto seus slogans, paranoias e objetivos se assemelham

Ilustração do Sr. García para a coluna 'América grande novamente... com o dinheiro dos outros', por Siegmund Ginzberg, 6 de fevereiro de 2025.

Então foi “Tornar a Alemanha Grande”. Hoje é “Make America Great Again”. Mas com o dinheiro dos outros. Acima de tudo, com aliados e amigos. As tarifas de Donald Trump têm objetivos mais ambiciosos do que equilibrar o comércio ou aumentar a produção doméstica às custas das importações. Eles visam compensar os bilhões em cortes de impostos prometidos aos contribuintes, especialmente os mais ricos. É uma mudança de paradigma. Durante décadas, os Estados Unidos financiaram seu crescimento espetacular e sua prosperidade transferindo sua dívida astronômica para outros, que — começando pela China — estavam felizes em encher seus cofres com títulos do Tesouro dos EUA. Agora Trump quer que outros paguem os impostos. Resta saber se ele conseguirá fazer isso sem dar um tiro no próprio pé, ser arrastado para baixo pela inflação ou alienar o resto do mundo.

“A guerra é a continuação da política por outros meios”, disse Von Clausewitz. Também sempre foi a continuação da economia por outros meios. Sabemos como as guerras comerciais e tarifárias começam, mas, assim como as guerras convencionais, não sabemos quando ou como elas terminam. Na verdade, as guerras comerciais sempre precederam todas as outras. Esperemos que isso não aconteça desta vez. Seja como for, as analogias nos permitem refletir sobre o que acontece, mesmo que nada aconteça exatamente da mesma forma. Em Síndrome 1933 apresento algumas analogias. Para estimular a reflexão, não para afirmar que o que está acontecendo é idêntico ao que aconteceu no ano em que Hitler foi nomeado chanceler. Agora temos Trump. E Trump não é Hitler. Embora eu esteja impressionado, ou melhor, aterrorizado, com o quanto tudo – as palavras, a raiva, os slogans, os alvos, os bodes expiatórios (naquela época os judeus, hoje os imigrantes), a paranoia, as conspirações, a falta de compreensão e a maneira como muitos o subestimam – se assemelha, quase como uma cópia carbono, ao que aconteceu então. Deixe o leitor julgar se estou exagerando.

“Eles não compram nossos carros, nem nossos produtos agrícolas. Eles quase não compram nada de nós, e nós compramos tudo deles.” É assim que Trump explica sua guerra tarifária. Sua raiva é dirigida, acima de tudo, contra amigos e aliados. A Europa também é seu principal aliado militar. Mas Trump foi claro: “A Europa nos tratou terrivelmente, vou tomar medidas em relação ao nosso déficit comercial com a UE”. A novidade é que ele é mais hostil com seus amigos e aliados do que com seus inimigos. O paradoxo é que um acordo poderia ser alcançado com a China antes de um com o Canadá, o México ou a Europa.

É ingênuo se esconder atrás do fato de que Trump usa ameaças grandiloquentes para negociar melhor. Acreditar que sairemos dos problemas apelando para a amizade, bons relacionamentos pessoais ou afinidades eletivas é ainda pior. O “Espero poder ser salvo porque ele gosta mais de mim, sou alguém de quem ele gosta e ele me considera um amigo” não funciona. Isso nunca funciona. No final, teremos que escolher a quem nos opor, Trump ou nossos parceiros europeus. Correndo o risco de chatear todo mundo. Para justificar seu alinhamento com a Alemanha nazista, Benito Mussolini recorreu a Dante: “Neste ponto, é apropriado dar uma boa cara ao jogo alemão.” Os italianos não podem permitir-se ser “desagradáveis ​​a Deus e aos seus inimigos” ( Inferno, terceiro canto , verso 63). Sabemos como isso terminou. A afirmação de que Giorgia Meloni pode atuar como uma “ponte” , mediadora ou pacificadora entre Trump e a Europa é tão absurda (e ridícula) quanto aquela que levou ao apaziguamento do Acordo de Munique.

A ambição de Trump é assustadora, pois tudo o que ele mais deseja é acabar com a união da Europa. “ Make Europe Great Again” (Tornar a Europa Grande Novamente) , o novo slogan de Elon Musk , pode ser traduzido como “Vamos eliminar a Europa”. Musk financiou ou apoiou todas as forças e movimentos antieuropeus: Vox na Espanha, Meloni na Itália, Le Pen na França, Orbán na Hungria, o FPÖ austríaco e o AfD, o partido que herdou os nazistas. Não sabemos o que acontecerá nas eleições, nem se será possível formar um governo com a ala conservadora da CDU, mas não é segredo que, além da “remigração” (leia-se: expulsão) dos migrantes, a Alternativa para a Alemanha quer tirar a Alemanha da UE. Sua líder, Alice Weidel, confirma isso. Como ele explicará isso aos trabalhadores da Volkswagen, ameaçados pelas tarifas de Trump ?

Deixe-me fazer uma analogia. Na década de 1930, a Alemanha tinha um problema: sua balança comercial. As exportações estavam definhando e as importações estavam se esgotando. Kurt Schmitt, jurista e economista, referiu-se ao reequilíbrio da balança comercial como um “dever nacional”. Com a mesma convicção, Carl Schmitt teorizou que “é o Führer [como representante da vontade da nação] que cria a lei”. Os poucos juízes que se opuseram foram eliminados. O advogado que o defendeu, Hans Frank, acabou como procônsul da Polônia ocupada, onde foi apelidado de “o açougueiro”. Antes de Hitler chegar ao poder, a direita alemã já era protecionista. Os industriais, em sua maioria, eram internacionalistas. “Globalistas”, diríamos hoje. Foi assim que Trump chamou o Wall Street Journal por ousar descrever sua política como "a guerra comercial mais estúpida da história". No final, os líderes empresariais se alinharam ao novo poder. O socialista Hilferding, autor de um estudo clássico sobre o capital financeiro, estava convencido de que Hitler duraria apenas “alguns meses” como chanceler. Os comunistas não sabiam muito sobre economia, além de atacar o “capitalismo” (nisso eles concordavam com boa parte do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães). Com a Espanha perdida e o ouro da República no bolso, Stalin se aliou a Hitler para dividir a Polônia e o que restava da Europa Oriental. O resultado foi uma conclusão precipitada.

É assustador ler A Sombra de Hitler: O Império Econômico Nazista e a Guerra Civil Espanhola , o excelente livro de Pierpaolo Barbieri, professor de História Econômica no Trinity College. Barbieri explica em detalhes como a Espanha não foi apenas o ensaio geral para a Segunda Guerra Mundial, mas também o campo de testes com o qual a Alemanha nazista iria se impor ao resto da Europa. Não apenas para “inimigos”, mas também para amigos e aliados. A Itália assumiu grande parte dos custos, sem obter o menor benefício em troca. A Espanha se tornou seu principal fornecedor de matérias-primas extrativas e alimentícias (pouco antes da Segunda Guerra Mundial, três quartos de suas exportações iam para a Alemanha). Em troca, a Alemanha, cuja produção de armas contribuiu para seu crescimento econômico, forneceu armas a Franco. Tudo graças aos mecanismos financeiros e comerciais idealizados por Hjalmar Schacht, o banqueiro diabólico de Hitler. Para a Itália, foi uma intervenção com prejuízo total: Mussolini assumiu os custos sem ganhar nada mais do que um lampejo fugaz de glória, em troca de amarrar as mãos e os pés do aliado.

Na Alemanha nazista, escolas, facções e ambições pessoais entraram em conflito. Assim como no governo Trump. Para tornar a Alemanha grande novamente, Schacht buscou uma hegemonia econômica suave. Por sua vez, Hermann Göring apostava em pilhagem e pilhagem. “Antigamente as coisas eram mais simples. Depois houve saques. Quem conquistava um país ficava com tudo. Hoje as coisas são feitas de uma forma mais humana. Mas eu sou a favor da pilhagem, da pilhagem total", comentaria Göring, que não mediu palavras. Schacht e Göring eram como um gato e um cachorro, eles se odiavam até a morte. Schacht perdeu porque Hitler pensava como Göring. A Neo-Weltpolitik de Schacht perdeu e o Lebensraum , dominação e pilhagem, prevaleceu. Entre outros saqueados estava o aliado italiano, que anteriormente os havia ajudado a saquear a Espanha.

Siegmund Ginzberg, o autor deste artigo, é jornalista e historiador. E autor do livro "Síndrome 1933" (Gatopardo). Publicado  originalmente no El País, em 06.02.25

Como plano de Trump de ocupar Gaza viola a lei internacional

Presidente americano sugere realocar palestinos e assumir controle da Faixa de Gaza. Tratados internacionais proíbem ações como deslocamento forçado e tomada de território à força.

Cerca de 2 milhões de palestinos vivem em Gaza e foram deslocados de suas cidades de origem após o início da guerra entre Hamas e Israel (Foto: Mohammed Salem/REUTERS)

O plano do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de deslocar palestinos, demolir edifícios e transformar a Faixa de Gaza em uma "Riviera" sob "propriedade" americana pode ter sérias implicações legais sob o direito internacional.

O presidente americano não descarta o envio de tropas para "assumir" o território devastado por mais de um ano de guerra e coordenar uma reconstrução forçada. Ao anunciar a proposta, Trump foi questionado diretamente se falava em controlar um território soberano. Ele foi taxativo ao responder que propõe um "controle de longo prazo" sobre Gaza.

Obrigar pessoas a deixarem suas terras e tomar territórios à força são ações proibidas por tratados internacionais. Estes acordos incidem inclusive sobre Gaza, mesmo o território palestino possuindo apenas status de "Estado Observador Permanente" na ONU.

Entenda como a proposta pode violar o direito internacional.

"Assumir o controle da Faixa de Gaza"

"Os EUA assumirão o controle da Faixa de Gaza e faremos um bom trabalho com ela", disse Trump na última terça-feira (04/02). "Eu vejo uma posição de propriedade de longo prazo."

A Faixa de Gaza é reconhecida pelas Nações Unidas e sua mais alta corte, a Corte Internacional de Justiça, como parte dos territórios palestinos sob ocupação militar israelense. Isto cria uma série de obrigações perante tratados internacionais como a Quarta Convenção de Genebra. 

O direito internacional proíbe a tomada de território pela força, o que é definido como um ato de agressão. "Todos os membros devem abster-se, em suas relações internacionais, da ameaça ou do uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado", diz a Carta da ONU.

"Em última análise, a proposta do presidente Trump equivale a uma rejeição flagrante dos princípios fundamentais do direito internacional que vigoram desde, pelo menos, o fim da Segunda Guerra Mundial e a adoção da Carta da ONU", disse o professor assistente de Direito Internacional dos Direitos Humanos Michael Becker, do Trinity College, em Dublin.

Se os Estados Unidos reivindicassem a Faixa de Gaza, "isso equivaleria à anexação ilegal de um território. Israel também não tem o direito de ceder território palestino aos Estados Unidos", disse Becker.

Janina Dill, diretora do Instituto Oxford de Ética, Direito e Conflitos Armados e especialista em direito internacional humanitário, defende que não há circunstâncias que autorizem o uso da força para "assumir" ou "tomar" um território, conforme os termos usados por Trump.

"O argumento de que isso beneficia as populações no local ou em outro lugar é juridicamente sem sentido, mesmo que fosse factualmente correto."

De acordo com a Carta da ONU, a responsabilidade de identificar atos de agressão e responder a eles cabe ao Conselho de Segurança, no qual os Estados Unidos são membros permanentes e com direito a veto.

A agressão também é um dos crimes que podem ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Os Estados Unidos e Israel não são membros do TPI, mas o tribunal tem jurisdição sobre os territórios palestinos, inclusive sobre atos cometidos em Gaza por países que não são membros.

É com base nessa prerrogativa que o Tribunal emitiu um mandado de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.

Comunidade internacional vê necessidade de reconstrução de Gaza sem deslocamento forçado (Foto: Dawoud Abu Alkas/REUTERS)

O diretor do curso de Direito Internacional e Estudos Constitucionais Internacionais da Universidade de Cambridge, Marc Weller, também defende que Trump não tem autoridade legal para realizar tais planos. "[Ele fala apenas como] um magnata do setor imobiliário que pode assumir o controle de um terreno baldio abandonado e transformá-lo em um oásis como a Flórida", disse em entrevista à DW.

Para Weller, a população de Gaza tem "direito à autodeterminação e, em última instância, à condição de Estado".

"Mas aqui, é claro, não se trata de um território vazio. Esse é um território que pertence aos palestinos, seja como um Estado, se você acha que já é um Estado, ou como uma entidade autodeterminada, que tem o direito de formar um Estado em todos os territórios palestinos, o que inclui Gaza", continuou o professor.

"Israel não tem o direito de se desfazer deles. E Trump não tem absolutamente nenhum direito de dizer, como ele disse, que somos donos, ou que seremos donos, ou que vamos tomá-los", completou.

O princípio de autodeterminação

O princípio de autodeterminação dos povos, citado por Weller, é uma norma consolidada no direito internacional. Ele confere aos povos o direito de decidirem sua situação política e assegurar sua independência, existência e liberdade.

Em 1970, uma declaração da ONU ampliou o escopo deste princípio, expandindo-o também aos palestinos, ainda que sua aplicabilidade seja controversa na doutrina internacional. A resolução da Assembleia Geral daquele ano reconheceu que os palestinos "têm direito à igualdade de direitos e à autodeterminação, de acordo com a Carta das Nações Unidas".

Esta definição embasa a chamada "solução de dois Estados", proposta por diversos países para a resolução do conflito na região. Nela, Israel e os territórios palestinos seriam tomados como Estados, mutuamente reconhecidos.

Na prática, porém, a crise na região se acentua desde a resolução da ONU. Em 1987, a chamada Primeira Intifada reacendeu os embates entre israelenses e palestinos.

Com alguns intervalos, ocupação militar israelense em Gaza perdura há décadas, como nesta imagem de 2009 (Foto: EPA IDF HO/dpa/picture-alliance)

Deslocar palestinos da Faixa de Gaza

Trump afirmou que os residentes de Gaza gostariam de sair de lá porque a região se tornou perigosa. Ele sugere que os palestinos migrem para outros locais e permitam a reconstrução do território. Mas, até o momento, não há indícios de que os 2,3 milhões de residentes queiram sair.

Além disso, os países citados pelo americano como receptores de um possível fluxo migratório, Egito e Jordânia, recusaram a solução.

A proposta reacendeu temores de uma nova "Nakba" – termo pelo qual ficou conhecido o êxodo palestino ocorrido após a criação do Estado de Israel, em 1948, e durante e após a guerra entre israelenses e árabes que começou naquele mesmo ano.

"O deslocamento forçado dos palestinos de Gaza constituiria crime contra a humanidade de deportação ou transferência forçada", defende Dill, do Instituto Oxford de Ética, Direito e Conflitos Armados.

A Quarta Convenção de Genebra de 1949, relativa à proteção de civis em tempos de guerra, proíbe a transferência forçada ou a deportação de pessoas protegidas em um território ocupado.

Já o documento de fundação do Tribunal Penal Internacional, o Estatuto de Roma, define um conceito amplo para o deslocamento forçado. "O termo 'à força' não se restringe à força física, mas pode incluir ameaça de força ou coerção, como a causada por medo de violência, coação, detenção, opressão psicológica ou abuso de poder" contra uma pessoa ou grupo, diz o texto.

Dill ainda acredita que uma remoção dos palestinos de Gaza levaria ao cometimento de outros crimes em grande escala.

" escala de tal empreendimento, o nível de coerção e força necessárias indicam que isso muito provavelmente atingiria o limiar de um ataque sistemático e em grande escala contra uma população civil."

Guerra que durou mais de um ano deixou território arrasado na Faixa de Gaza (Foto: Jim Hollander/UPI Photo/IMAGO)

Weller concorda que, sem a vontade explícita dos palestinos, o plano de Trump seria tomado como "deslocamento forçado".

"Realocação é uma palavra gentil para o que seria o deslocamento forçado dos habitantes de Gaza e dos palestinos. No momento, Israel é uma potência ocupante naquele território e, de acordo com as leis de conflito armado, é absolutamente proibido remover permanentemente uma população inteira do território que historicamente habitou", disse o professor de Cambridge, acrescentando que alguns sugerem que isso poderia até mesmo equivaler a uma "limpeza étnica".

Impedir o retorno de moradores deslocados

Trump também defendeu que, depois que os residentes de Gaza saírem, ele não prevê que eles retornem.


Impedir que eles façam isso também seria uma violação dos princípios legais internacionais, segundo os quais as populações deslocadas têm o direito de retornar às terras das quais fugiram, ou foram forçadas a sair.

Até mesmo uma evacuação legal — quando a retirada da população é feita por segurança — por uma potência ocupante "não pode envolver o envio de pessoas para um terceiro país e não pode ser um pretexto para a limpeza étnica ou a remoção da população do território indefinidamente ou de forma permanente", explicou Michael Becker, do Trinity College. 

O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse à Al Arabiya TV que deslocar a população de Gaza "criaria um alto risco de inviabilizar o Estado palestino para sempre".

Já o chefe de direitos humanos da ONU, Volker Turk, defendeu que a deportação de habitantes de territórios ocupados é estritamente proibida. Para ele, a lei internacional é clara. "O direito à autodeterminação é um princípio fundamental do direito internacional e deve ser protegido por todos os Estados, como a Corte Internacional de Justiça recentemente enfatizou", disse ele. "Qualquer transferência forçada ou deportação de pessoas do território ocupado é estritamente proibida."

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 06.02.25

gq/cn (Reuters, AFP, DW, ots) 

'Apenas o porrete': os resultados do 'método Trump' de negociar

 Em 15 dias de mandato, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chegou a impor — pra mais tarde reverter — tarifas em três dos mais longevos aliados do país: México, Canadá e Colômbia. E assegurou que avalia taxar outros parceiros: União Europeia, Índia, e até o Brasil, com ameaças ao grupo Brics.

"Trump não entende o soft power - a habilidade de conseguir o que quer por meio de atração em vez de coerção ou pagamento", diz o cientista político Joseph Nye (Crédito da foto: Getty Images)

Não escondeu que quer tomar o Canal do Panamá dos panamenhos e propôs à Dinamarca incorporar a Groenlândia ao território americano. Tudo em nome, segundo ele, de priorizar os interesses dos Estados Unidos.

Em um lance comandado por seu principal doador e conselheiro político, o bilionário Elon Musk, Trump desmantelou a USAID, a agência de ajuda internacional dos EUA cujo orçamento chegava a US$ 40 bilhões e que era usada desde os anos 1960 como uma forma de projetar valores e influência americanos em mais de cem países pelo mundo.

"Quantos países cobram impostos de seus cidadãos e depois enviam o dinheiro aos EUA?", questionou Musk em um post na sua rede social X, antigo Twitter, ao justificar a extinção da agência.

"Até agora não vimos nenhum sinal de cenouras, apenas porrete. A ênfase pessoal de Trump nas relações internacionais é o porrete", afirmou à BBC News Brasil Will Freeman, pesquisador do Council on Foreign Relations, mencionando um binômio que historicamente define a diplomacia e as relações internacionais.

De um lado, o uso do porrete, ou a força militar ou das sanções econômicas para coagir outras nações a cederem em uma mesa de negociação. De outro, a cenoura, ou a recompensa, o incentivo positivo — como investimentos, auxílios humanitários, acordos bilaterais ou assentos em organismos multilaterais — , para convencer aliados a cooperar e tomar uma determinada direção. Na ciência política internacional, convencionou-se chamar a dupla de "hard power" e "soft power".

Nenhum desses conceitos é uma novidade na política externa americana. Mas, segundo Freeman, a maneira como Trump maneja o porrete, especialmente tendo como alvo aliados, é sem precedentes na história do país. "Claro que os EUA já pressionaram aliados de muitas maneiras antes. Vimos isso nos anos 1990, na América Latina. Mas sempre de maneira muito mais silenciosa do que Trump, cujas ameaças são muito pesadas e muito explícitas", diz Freeman.

Em um artigo publicado pelo diário The Washington Post, o colunista de segurança nacional Max Boot creditou ao soft power o fato de que os EUA detêm hoje bases militares em ao menos 80 países. Embora os EUA tenham levado décadas para acumular seu soft power, o presidente Donald Trump parece determinado a destruí-lo numa questão de semanas", escreveu Boot, enfileirando as recentes contendas de Trump com países aliados.

"Trump não entende o soft power — a habilidade de conseguir o que quer por meio de atração em vez de coerção ou pagamento", afirmou o cientista político Joseph Nye, um dos maiores disseminadores do conceito, ao jornal americano The New York Times, na semana passada.

"No curto prazo, o hard power geralmente supera o soft power, mas os efeitos a longo prazo podem ser o oposto", seguiu Nye, que concluiu: "mesmo a curto prazo, ainda que o hard power se faça necessário, se pudermos contar com o soft power também, podemos economizar nos custos totais de porretes e cenouras. Trump está desperdiçando este recurso. Pode funcionar no curto prazo, mas terá custos para os EUA no longo prazo."

Funciona?

Ao menos até agora, o saldo de Trump em suas duras negociações parece ser positivo, avaliam os analistas.

Seu primeiro grande embate aconteceu com a Colômbia, quando o presidente daquele país, Gustavo Petro, impediu o pouso de duas aeronaves militares americanas com deportados colombianos. Trump aproveitou o momento para expor seu arsenal de porretes: impôs tarifas de 25% aos produtos colombianos (prometendo dobrar a taxa em uma semana), cancelou vistos de autoridades colombianas e correligionários de Petro, adotou as mais duras inspeções sanitárias, além de sanções bancárias, entre outras medidas.

E embora Petro tenha tentado usar a ocasião para reafirmar a identidade latino-americana em uma carta dirigida pessoalmente a Trump nas redes sociais, nas quais dizia "não gostar de viajar aos EUA" e prometia reciprocidade nas taxas, o presidente colombiano recuou cerca de 12 horas mais tarde, diante do custo econômico que a punição geraria à Colômbia. Em troca da suspensão das tarifas, Petro aceitou o uso de aviões militares para deportação — embora também tenha enviado aeronaves da força aérea colombiana para buscar ao menos parte dos repatriados.

Trump endureceu negociação com Colômbia sobre deportacão de imigrantes ilegais (Crédito: Gov. USA)

Em relação ao Panamá, cujo canal Trump anunciou textualmente que "vamos tomar de volta" durante seu discurso de posse, os americanos podem ter conseguido concessões significativas: na quarta-feira (05/02), o Departamento de Estado dos EUA anunciou um acordo com os panamenhos no qual as embarcações americanas não mais pagarão taxas pelo uso do entreposto. Apesar disso, a administração do Canal do Panamá negou ter implementado qualquer mudança em suas tarifas.

A notícia vem poucos dias depois da visita do secretário de Estado de Trump, Marco Rubio, ao país. Na ocasião, Rubio repetiu ao presidente José Raúl Mulino as percepções de Trump de que os chineses estariam efetivamente controlando o canal, o que seria visto como ameaça aos EUA. E se antes da visita, Mulino chamou de "nonsense" as palavras de Trump, diante de Rubio ele anunciou uma auditoria das atividades de ao menos dois portos sob direção de Pequim.

Na mesma viagem, sua primeira internacional, Rubio afirmou ter obtido do líder de El Salvador Nayib Bukele a oferta para que os EUA enviem ao país deportados de outras nações e até mesmo criminosos americanos.

Em que pesem as dúvidas sobre a legalidade de um acordo desses, a possibilidade foi celebrada por Trump. "São pessoas doentes. Se pudéssemos retirá-los do país, tiraríamos. Não é diferente de um sistema prisional, exceto que seria muito menos caro. E seria um grande fator de dissuasão (para crimes) — enviá-los para outros países. Teremos que descobrir isso legalmente. Só estou dizendo que se tivéssemos o direito legal de fazer isso, eu o faria em um piscar de olhos", disse.

Já México e Canadá, que possuem um acordo de livre comércio com os EUA, foram alvos de tarifas de 25%, assinadas por Trump em 01/02.

Trump as justificou dizendo que os vizinhos, com quem os americanos fazem fronteira, fizeram muito pouco para conter o fluxo de imigrantes irregulares e de fentanil de seus países para o território dos EUA. As taxas incidiriam sobre produtos mexicanos e canadenses 48 horas após a assinatura de Trump, período em que as negociações entre ele e os líderes do Canadá, Justin Trudeau, e do México, Claudia Sheinbaum, se desenrolaram.

Sheinbaum prometeu a Trump o envio de dez mil homens da Guarda Nacional à fronteira entre os dois países para coibir o tráfico de drogas e pessoas. Trata-se de um contingente menor que os 15 mil policiais e soldados mexicanos remetidos à fronteira em 2019, durante um pico imigratório na área.

Presidente do México, Claudia Sheinbaum, prometeu a Trump o envio de dez mil homens da Guarda Nacional à fronteira entre os dois países (Getty Images)

Já Trudeau entregou a Trump um plano de manejo de fronteira que prevê investimento de mais de 1,3 bilhão de dólares canadenses. Entre as ações estão o combate ao fentanil, que se tornou um grave problema de saúde pública nos dois países. O plano, porém, não é novo. Já havia sido anunciado e iniciado em dezembro passado, antes da posse de Trump.

Nenhum dos poréns das aparentes concessões dos vizinhos pareceu incomodar Trump, que anunciou a vitória de seus interesses e a suspensão das tarifas por 30 dias, quando ele provavelmente forçará Canadá e México a sentarem-se à mesa mais uma vez.

"Começando a ver um padrão: Trump faz algumas ameaças estúpidas, e os outros oferecem concessões triviais; Trump declara vitória (falsa) e os problemas permanecem sem solução. Próxima fase: alguns começam a fazer arranjos alternativos ou a enrolar, sabendo que o tempo de atenção de Trump é curto. Outros percebem o blefe e o desafiam", afirmou Stephen Walt, professor de Relações Internacionais da Universidade de Harvard, em um post na rede Bluesky.

Aos inimigos tudo?

Enquanto trata aliados históricos com ameaças — ou aplicação — de medidas duras, o comportamento de Trump com líderes antagônicos aos americanos tem chamado a atenção. Na semana passada, ele mandou um de seus negociadores, o conselheiro Ric Grenell, à Venezuela, para se encontrar com o líder venezuelano Nicolás Maduro, recentemente empossado para novo mandato após se autoproclamar vencedor de uma eleição cujo resultado nem Brasil nem EUA reconhecem.

Grenell se deixou fotografar em um amistoso aperto de mãos com Maduro e retornou aos EUA com 6 cidadãos americanos que estavam presos na Venezuela e o compromisso de Caracas de que o país receberá os deportados enviados dos EUA. Ao menos 400 mil venezuelanos tiveram sua permissão de permanência em solo americano revogada pela gestão Trump. Não houve, porém, o anúncio de qualquer medida dura contra o regime Maduro, como as tarifas impostas a Canadá, Colômbia e México.

Algo semelhante tem acontecido com o russo Vladimir Putin, que iniciou uma guerra contra a vizinha Ucrânia e é acusado de interferências políticas nos EUA. Trump tem dito que ele e o líder russo terão anúncios a fazer em breve.

E se é verdade que Trump impôs tarifa de 10% sobre produtos chineses, e estas entraram em vigor, sua atitude em relação ao presidente do país, Xi Jinping, tem sido deferente. Trump chegou a convidá-lo para a posse em Washington e tem pessoalmente tentado maneiras de garantir a plena operação da rede chinesa Tiktok no país. Ele chegou a aventar a possibilidade de assinar um acordo comercial com a China.

Para Freeman, a atitude de Trump menos bélica em relação a não aliados se explica por dois motivos. "O primeiro é uma identificação, uma admiração pessoal que ele tem por autocratas", diz o analista, que segue: "No caso de Maduro, além de uma possível admiração, Trump tinha uma urgência em garantir a viabilidade de seu plano prioritário de governo, a deportação em massa".

Já o segundo motivo é o argumento constante de Trump de que aliados fazem pelos EUA menos do que os EUA entregam a eles. Exemplo disso é sua insistência para que os demais integrantes da Otan (Aliança do Tratado do Atlântico Norte) aumentem seus repasses à organização.

"Acho que isso vem do sentimento de Trump de que muitos dos nossos aliados e parceiros estão enganando os Estados Unidos, que estamos dando-lhes mais do que recebemos de volta. E obviamente, com inimigos ou adversários, a mesma tensão não acontece, porque não estamos dando-lhes qualquer coisa. Então não há o mesmo sentimento de frustração e injustiça que parece levar a um tratamento melhor a não aliados", diz Freeman.

Trump convidou Xi Jinping para sua posse em Washington e tem pessoalmente tentado maneiras de garantir a plena operação do Tiktok no país (Getty Images)

Em um evento do Woodrow Wilson Center sobre a nova política migratória de Trump, o ex-vice diretor de Segurança Doméstica do primeiro mandato de Trump, Chad Wolf, defendeu as medidas tomadas pelo presidente no segundo mandato em relação a aliados como "formas de levá-los a fazer coisas que muitas vezes eles não querem".

"Foi só quando congelamos repasses de auxílio internacional para alguns países, como a Guatemala, que os vimos realmente tomar medidas (anti-imigração)", afirmou Wolf, atualmente diretor do America First Policy Institute, a respeito da experiência com Trump entre 2017 e 2021.

Segundo ele, as medidas duras de Trump eram mais do que esperadas neste começo de mandato, e financiamentos ou auxílios financeiros devem aparecer como política subsequente, conforme coincidam com as prioridades dos EUA sob Trump. "É uma relação transacional", afirmou.

Custos de médio e longo prazo

Embora seja difícil prever os impactos da estratégia de Trump no curto prazo — e garantir que ele sustente esse mesmo estilo por todo seu mandato, alguns efeitos negativos já se fazem sentir.

Históricos aliados dos americanos, os canadenses têm demonstrado profunda insatisfação com o tratamento recebido. O hino dos Estados Unidos chegou a ser vaiado em grandes eventos esportivos nos últimos dias no país. E uma onda patriótica surgiu, com mais de 80% dos canadenses rechaçando a ideia de Trump de convertê-los no 51º Estado dos EUA.

O fim da USAID também foi celebrado por não aliados. "Decisão inteligente", comentou ironicamente o ex-presidente russo Dmitri A. Medvedev.

"China e Rússia também são poderosas militarmente, e a China é uma superpotência econômica, mas não chegam nem perto da influência global que os EUA exercem. Isto porque os Estados Unidos têm sido uma superpotência excepcionalmente benéfica", escreveu Max Boot ao Washington Post, antevendo o fim da vantagem competitiva americana com a extinção da USAID, que, entre outras coisas, bancava programas de combate ao HIV na África.

Mas para Will Freeman, apesar do desconforto de uma possível impopularidade global, o maior risco para os EUA está em perder a capacidade de atrair e sustentar redes de aliados, em um momento em que a China se impõe cada vez mais como uma antagonista disposta a disputar zonas de influência com os americanos.

"O comportamento de Trump vai ensinar aos nossos aliados e parceiros que não somos totalmente confiáveis. Ainda que um Democrata ganhe a presidência, mesmo daqui a muitos anos, os outros países vão estar sempre preocupados com a possibilidade do retorno de um megapopulista à Casa Branca. E isso pode fazer com que deixem de investir na relação com os EUA ou em parcerias de longo prazo", diz Freeman.

Mariana Sanches, de Washington - DC para a BBC News Brasil, em 06.02.25