sexta-feira, 17 de março de 2023

Melhor defesa contra crise bancária no Brasil é governo mostrar controle das contas públicas, diz Arminio

Para ex-presidente do BC, sistema financeiro nacional é sólido, mas empresas estão sofrendo com juros altos

O economista Arminio Fraga - Bruno Santos - 9.jun.2022/Folhapress

O economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, não vê risco de que as fragilidades que assombram instituições financeiras nos Estados Unidos e na União Europeia possam ser identificadas no sistema bancário brasileiro.

"Uma contaminação vinda de fora não é o principal fator de risco aqui", diz ele. "Blindado nunca ninguém está. Mas não acredito que esse setor possa sucumbir numa crise bancária. Os bancos aqui no Brasil são mais capitalizados. Tem-se a impressão que grandes bobeiras como a que vimos nos Estados Unidos não ocorrem aqui. Essa é a minha avaliaç

Fraga, no entanto, afirma que o ciclo econômico não é confortável no Brasil. "Várias empresas dependem de financiamento para capital de giro, e elas estão sofrendo muito. Algumas estão até se mostrando inviáveis."

Na sua avaliação, será mais fácil para o Banco Central (BC) atuar nesse ambiente mais adverso, acompanhando uma eventual redução na taxa de juros, se o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) for mais ágil em apresentar definições para o que considera o cerne do problema no Brasil: a fragilidade fiscal.

"Eu diria que aqui, apesar de não estarmos diante de uma corrida bancária —essa é a minha expectativa—, nós temos uma situação macroeconômica muito frágil, com juros já muito altos", afirma Fraga. "É claro que os juros altos são um problema, e não é de hoje. Mas a cura para essa condição é fiscal."

Arminio reforça que apesar de as atenções terem se voltados para a elaboração de novas regras fiscais, a prioridade é a divulgação dos parâmetros de resultado primário e de gasto público para os próximos anos.

"Com ou sem arcabouço, o governo tem que anunciar os principais parâmetros", afirma Fraga.

Já vínhamos sentido risco de crédito, veio perda de confiança e, na última semana, bancos com problemas. Estamos diante de um risco de crises múltiplas? Sim, mas precisamos olhar a geografia da coisa. Lá fora, temos uma situação muito delicada, e os bancos centrais já avisaram que vão entrar com artilharia pesada. Em geral, isso pelo menos dá tempo. É preciso averiguar quanto se tem de alavancagem no sistema. No setor imobiliário, que foi o problema maior em 2008, acredita-se que se tem menos alavancagem.

A novidade do banco da Califórnia [o Silicon Valley Bank, que faliu na semana passada] é que eles tinham uma posição enorme de descasamento de taxa. Ou seja, captavam depósito de curto prazo e aplicavam num prazo longo. Eles quebraram, pelo que se ouve, em função disso. Foi uma barbeiragem tremenda dos gestores do banco e dos reguladores, que também não viram isso. Não era um portfólio de empréstimos que era difícil de avaliar. Era bem fácil.

Lá fora os bancos centrais vinham correndo atrás dos prejuízos com a inflação. Foi uma aposta que fizeram. Estavam com medo e, agora, vem a conta. O aperto no crédito é incluído nos cálculos dos bancos centrais. Sempre há o risco do que a gente pode chamar de dominância financeira, ou seja, o banco central afrouxar um pouco na inflação para não apertar demais no mundo do crédito. Esse é o estado das artes lá fora.

E no Brasil? Aqui é diferente. Também há uma questão inflacionária, e não é apenas um choque de oferta —e mesmo que fosse, o BC tem que, no mínimo, cuidar dos efeitos secundários do choque. No nosso caso, a maioria dos especialistas acha que tem também um elemento de demanda.

O BC vinha trabalhando nessa área e, de repente, aqui surge também a questão do crédito. Não é uma grande surpresa, dado que os juros foram de 2% para 13%, mas é, mesmo assim, um assunto a se acompanhar.

Ao mesmo tempo, aqui também está no ar toda essa questão fiscal e sobre o que governo vai fazer.

Num primeiro momento, ele está muito focado no desenho de um arcabouço para substituir os outros que não aguentaram. Mas eu acho que, neste momento, mais importante do que redesenhar um arcabouço —que claro, é relevante— é anunciar metas bem claras para o saldo primário e, quem sabe, até para gasto, nos próximos três anos.

Esse seria o passo, ao me ver, mais contundente e claro, e não uma discussão de um arcabouço muito sofisticado, em cima de posturas do governo como um todo, inclusive do presidente da República, de que esse tema fiscal ou não é muito relevante, ou é um grande exagero. Mas certamente não se vê grande apreço por esse tema fora do Ministério da Fazenda, por enquanto.

Aqui, o que tenderia a acalmar as coisas seria justamente dar mais espaço ao BC para trabalhar —e a única forma que existe para fazer isso é resolver o fiscal. É isso, ou teria algum impacto também no crédito. O BC mais livre, ou que não tenha de carregar um piano mais pesado do que deveria, pode trabalhar um pouco melhor o tema.

O sr. avalia que o governo está demorando para apresentar as metas? Um pouco. Mas não é anormal um governo que está chegando demorar um pouquinho a engrenar. Isso não preocupa. O que preocupa é essa sensação de que um arcabouço vai resolver o assunto. Não vai. O que vai resolver é o governo apresentar o seu comprometimento. Aí a coisa se acalma.

Já se fala que o Fed, o banco central americano, pode rever os juros. Pelo que o sr. está falando, é mais difícil isso ocorrer aqui enquanto não se resolver o fiscal? Sempre existe —vamos falar assim— uma componente de aversão ao risco. Porém, no nosso caso, estamos diante de um sistema bancário —até onde se percebe, e tendo a concordar— que está sólido, e uma economia razoavelmente fechada.

Temos mais a componente de risco psicológico, geral, alimentado por questões que não são apenas psicológicas. Uma contaminação vinda de fora não é o principal fator de risco aqui.

É importante diferenciar o quadro internacional do nosso. No quadro internacional, temos governos e bancos, em sua grande maioria tidos como sólidos e com espaço de manobra razoável. Eu diria que aqui, apesar de não estarmos diante de uma corrida bancária —essa é a minha expectativa—, nós temos uma situação macroeconômica muito frágil, com juros já muito altos. É claro que os juros altos são um problema, e não é de hoje. Mas a cura para essa condição é fiscal.

O governo, então, precisa anunciar logo o arcabouço com os parâmetros? Esquece o arcabouço. O arcabouço pode até demorar. Com ou sem arcabouço, ele tem que anunciar os principais parâmetros. No fundo, eles vão dar o seguinte sinal: olhe só, nós vamos fazer uma tentativa —porque ninguém acredita muito— de ressuscitar a Lei de Responsabilidade Fiscal, o teto do gasto, de uma maneira crível, dentro de um compromisso, de um governo que agora se inicia, que tem tudo para fazer um investimento no médio e no longo prazo. Aí a situação tende a se acalmar.

Se tiver uma baita crise no mundo —não estou descartando isso, mas não é o cenário mais provável— , aí o Brasil vai sofrer, não tem como evitar. Mas como sempre, nossos maiores problemas est

O sr. mencionou a questão da barberagem. O CEO da BlackRock, Larry Fink, disse que parte do que vemos agora é fruto do excesso de dinheiro dos últimos anos. O sr. concorda que o ambiente fez com que as instituições fossem permissivas e lenientes com as regras financeiras? Com toda certeza. Isso é algo recorrente na história financeira dos povos e parte de um ciclo natural que atraiu vários estudiosos, como Irving Fisher, Hyman Minsky e o próprio Ben Bernanke. O assunto é conhecido, mas as soluções têm se mostrado difíceis, como esta.

Acho que é a hora de rever regras. Muitas coisas entendidas como dogmas podem ser revistas, como a questão do prazo. Banco capta curto e empresta longo, mas isso não pode ser interpretado com toda essa flexibilidade. O sistema precisa repensar isso. Os bancos, eles próprios, já estão sujeitos a várias obrigações em termos da liquidez. Normalmente, não carregam nos balanços créditos muitos longos. Você não vê financiamento a infraestrutura no balanço dos bancos. Isso vai para investidores com passivos adequados, como companhias de seguro e fundos de pensão. Não é que nada foi feito.

Porém, o fato é que vivemos essa crise com sintomas muito parecidos com as de outras. Existe corrida a banco desde que existe banco. Isso não é uma novidade em si. O que é incrível é que não tenha sido bem administrado. As respostas não são fáceis, mas tem muita ideia boa, e está na hora de sentar e discuti-las.

O sr. mencionou que não tem temor de crise bancária no Brasil. Imagino que seja pelo tamanho e solidez das instituições, e até pela concentração. Não há risco também para instituições menores e mais jovens. Os bancos digitais, as fintechs, estão blindados? Blindado nunca ninguém está. Mas não acredito que esse setor possa sucumbir numa crise bancária. Os bancos aqui no Brasil são mais capitalizados. Tem-se a impressão que grandes bobeiras como a que vimos nos Estados Unidos não ocorrem aqui. Essa é a minha avaliação.

E qual é o cenário para as empresas de forma geral? O que se fala é que a restrição de crédito está forte e algumas empresas, no limite. Essa é uma outra história. A economia, além do choque de oferta, aqueceu. O BC apertou. Várias empresas dependem de financiamento para capital de giro, e elas estão sofrendo muito. Algumas estão até se mostrando inviáveis. Essa é uma questão do ciclo econômico típico e não de uma grande crise sistêmica.

Qual a sua perspectiva para a reunião do Copom? Eu fujo dessa pergunta abertamente, até porque sou gestor. Eu acredito que o método de trabalho do BC é bom. Vai acertando. Pode errar aqui e ali, mas o Copom se reúne com frequência e, já já eles corrigem, se for o caso. O sistema é bom. Ele tem dificuldades quando o fiscal não é bom. Aí complica.

RAIO-X - ARMINIO FRAGA, 65

Economista pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e doutor na área pela Universidade de Princeton, é sócio-fundador da gestora Gávea Investimentos. Foi diretor-gerente do Soros Fund Management, empresa de investimentos do empresário George Soros (1993 a 1999), e presidente do Banco Central do Brasil (1999 a 2002). Participou da fundação e preside os conselhos do IEPS (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) e do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social)

Alexa Salomão, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 17.03.23

Analistas apontam desgaste de Bolsonaros entre evangélicos

Estada prolongada nos EUA, atos golpistas do 8 de Janeiro e, mais recentemente, episódio das joias da Arábia Saudita afetaram mobilização pelo ex-presidente e pela ex-primeira-dama em redes sociais.

O desgaste de imagem de Jair e Michelle Bolsonaro tem se mostrado mais perceptível entre o público evangélico, que votou em peso no ex-presidente em 2018, quando eleito, e em 2022, quando perdeu a disputa para Luiz Inácio Lula da Silva, de acordo com especialistas que fazem monitoramento de redes sociais.

Já havia sinais de desgaste gradual da figura de Bolsonaro desde 8 de janeiro de 2023, quando houve a invasão das sedes dos Três Poderes em Brasília, acentuado pela decisão do ex-presidente de permanecer fora do Brasil desde 30 de dezembro de 2022.

Agora, com o episódio das joias que ele e Michelle receberam de presente do governo da Arábia Saudita e não declararam à Receita Federal na entrada ao Brasil, ficou mais perceptível a desaprovação entre os eleitores mais religiosos.

De acordo com Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e editora-geral do Coletivo Bereia, que faz checagem de fatos publicados em mídias religiosas e em mídias sociais brasileiras com conteúdos sobre religiões, foi visível nas redes um certo silenciamento deste público em relação ao caso das joias.

"Pelo nosso monitoramento de mídias cristãs, o silêncio e o apoio reservado [do público evangélico e católico] tem um significado: a imagem está manchada. Não é simples fazer esta defesa [sobre a aquisição das joias] como em outras situações", afirma a especialista, que também é membro da Associação Internacional em Mídia, Religião e Cultura.

O Coletivo Bereia captou que houve "muitas curtidas, mas poucos compartilhamentos" do discurso montado por Michelle e Jair Bolsonaro para se defender no caso das joias. Significa, na visão dos especialistas em monitoramento, pouco engajamento e baixa disposição para defender o casal.

"A avaliação é que há um certo esgotamento da figura de Bolsonaro e da família. O público das igrejas teve um estresse grande com o discurso polarizador e de ódio das lideranças de direita. O 8 de Janeiro foi uma espécie de ápice do esgotamento. O fato de Jair Bolsonaro estar fora do Brasil e a aparente separação do casal tirou o brilho da liderança dos dois, juntamente com os escândalos da destruição do Palácio Alvorada e agora as joias, o que faz cair muito o apoio", diz Cunha.

Michelle reage

Em relação às especulações sobre a separação de Michelle e Bolsonaro, a ex-primeira-dama decidiu retornar aos Estados Unidos e na última semana fez postagens sobre a vida de casada e apareceu ao lado do marido em um evento em Orlando, Flórida, na quarta-feira (15/03), para afastar boatos de separação.

Além de fazer postagens dizendo que estava indo ver seu amor, Michelle afirmou que está "pedindo a Deus" que leve Bolsonaro "logo para a nação que ele tanto ama, para a nação que ele lutou tanto e que continuará lutando". O ex-presidente, que havia dito que retornaria ao Brasil logo após o Carnaval, afirmou que vai avaliar sobre o retorno ao final de março.

O arranhão na imagem de Michelle pelo caso das joias fez o PL adiar um evento com a participação dela, que assumirá a presidência do PL Mulher. O partido tem planos políticos para a ex-primeira-dama, sobretudo contando com a aceitação dela entre o público evangélico.

Na última aparição pública nos EUA, Bolsonaro admitiu que poderá perder os direitos políticos em julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e descartou a possibilidade de Michelle disputar um cargo para o Executivo, ou seja, de presidente. O projeto do PL é que Michelle dispute o Senado.

Arranhão na imagem de Michelle pelo caso das joias fez o PL adiar um evento com sua participação (Foto: Amanda Perobelli/REUTERS)

"A história das joias prejudica o projeto [de se cacifar para 2026], apesar de o peso maior recair sobre Jair Bolsonaro. O anúncio de morar de aluguel para reforçar que não tem bens não se sustenta, e se une a outras questões que estão sendo atreladas [ao episódio das joias], como o caso do cheque [de R$ 89 mil] que recebeu do Fabricio Queiroz", diz Cunha.

Ainda muito pode mudar no cenário político até 2026, e a pesquisadora salienta que há novas lideranças de extrema direita entre o público religioso conquistando espaços importantes. O que mais se destaca, segundo ela, é o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que foi o mais votado do país. O jovem político, diz, "conseguiu trazer de volta a moralidade sexual para o centro da disputa política e segue a estratégia da banalização da política e do deboche", a mesmas que alavancou Jair Bolsonaro.

Silêncio coletivo

Professor de estudos de mídia e antropologia na Universidade da Virgínia, David Nemer monitora redes de extrema direita no Telegram. Ele confirmou à DW que houve uma espécie de silêncio coletivo após o caso das joias.

O silêncio, explica, é uma reação comum nestes grupos radicais quando são surpreendidos por um episódio de desgaste e não sabem como reagir prontamente. Após um período de silenciamento, vem o ataque, que normalmente "não é uma resposta plausível para explicar o que está acontecendo". "Sempre atacam o Lula ou a esquerda."

Nemer enfatiza que a tática usual da extrema direita, visível também agora, é reciclar notícias velhas e argumentar que "Lula teria roubado trilhões". Seria, segundo ele, uma tentativa de estabelecer parâmetros, como se o valor das joias fosse ínfimo perto do que Lula, na visão deste público, "roubou". "Ou seja, não estão muito preocupados em defender a honestidade de Bolsonaro", conclui o professor.

Nemer pontua que a atividade dos grupos está bastante fraca nos últimos meses, sobretudo após os atos terroristas de 8 de janeiro, que estão sob investigação da Polícia Federal e Supremo Tribunal Federal (STF).

Para ele, ações do STF e também do TSE estão inibindo os extremistas. O ataque do Judiciário às fontes de financiamento do extremismo, na opinião do professor, tem surtido resultado e afetou tanto a criação quanto a distribuição de conteúdos de desinformativos ou falsos. No Telegram, por exemplo, a queda do número de usuários nestas redes chegou a 30%, aponta.

Narrativa convence mais radicais

Segundo a cientista política Camila Rocha, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a preocupação tanto de Bolsonaro quanto Michelle de se pronunciarem sobre o episódio mais recente das joias é um claro sinal de que houve prejuízos para o capital político de ambos.

A narrativa dos apoiadores é que se trata de "uma trama da grande mídia para desgastar Bolsonaro", diz ela, que monitora e faz pesquisas qualitativas com grupos de direita. "[Esse episódio das joias] teve uma repercussão muito grande e ficou muito conhecido, inclusive na mídia internacional."

No entanto, ainda que tenha ocorrido desgaste de imagem, Rocha sustenta que, para os apoiadores radicais, a narrativa montada pelo clã Bolsonaro, de que se trata de um alvoroço e de que nem ele nem Michelle tinham a intenção de ficar com as joias, deve prevalecer neste grupo.

Malu Delgado para Deutsche Welle Brasil, em 17.03.23

Juízes em Haia expedem mandado de prisão contra Putin

Tribunal Penal Internacional aponta suspeitas de que o presidente russo seria responsável pelo crime de guerra de deportação ilegal de crianças da Ucrânia.

O Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda, emitiu nesta sexta-feira (17/03) um mandado de prisão contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin, por crimes de guerra, acusando-o de ser responsável pela deportação ilegal de crianças da Ucrânia.

Por meio de um comunicado, o tribunal acusa Putin de ser "alegadamente responsável pelo crime de guerra de deportação ilegal de população (crianças) e transferência ilegal de população (crianças) de áreas ocupadas da Ucrânia para a Federação Russa". 

Por acusações semelhantes, o TPI também emitiu um mandado para a detenção de Maria Alekseyevna Lvova-Belova, comissária para os Direitos da Criança no Gabinete do Presidente da Federação Russa.

O tribunal imputa a Putin crimes de guerra cometidos "em território ucraniano ocupado pelo menos desde 24 de fevereiro de 2022", alegando existirem "motivos razoáveis para acreditar" que o presidente russo falhou "em exercer o controle adequado sobre os subordinados civis ou militares que cometeram esses atos".

Em relação a Lvova-Belova, o TPI diz ter "motivos razoáveis para acreditar" que a comissária tem "responsabilidade criminal individual" pelos crimes de guerra relacionados com a deportação ilegal de população.

O comunicado acrescenta que os mandados são sigilosos, a fim de "proteger vítimas e testemunhas", bem como para resguardar o desenvolvimento das investigações.

Moscou nega acusações

O Kremlin não respondeu imediatamente às acusações. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Maria Zakharova, no entanto, disse que os mandados de prisão do TPI "não têm significado para nosso país, inclusive do ponto de vista jurídico".

Ela acrescentou que a Rússia não integra o Estatuto de Roma, tratado que sustenta o tribunal que julga crimes de guerra de todo o mundo.

Moscou nega as acusações de que suas forças cometeram atrocidades durante a invasão ao país vizinho. Mas não esconde que tem um programa por meio do qual levou milhares de crianças ucranianas à Rússia, apresentando-o como uma campanha humanitária para proteger órfãos e crianças abandonadas nas zonas de conflito.

Rússia e Ucrânia não são Estados-membros do TPI, e Moscou tem repetidamente dito que não reconhece sua jurisdição. Mas uma decisão da Ucrânia de 2015 deu ao tribunal jurisdição sobre crimes de guerra cometidos em seu território, mesmo se protagonizados por cidadãos russos ou de outros países que não são membros.

O mandado expedido pelo TPI obriga seus Estados-membros a prender Putin ou Lvova-Belova se eles pisarem em seus territórios, mas a corte não tem uma força policial própria ou outras maneiras para executar seus mandados.

Investigação começou há um ano

O promotor do TPI, Karim Khan, abriu uma investigação sobre possíveis crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio na Ucrânia há um ano. Após quatro viagens ao país, ele destacou que estava analisando os supostos crimes contra crianças e também os alvos da infraestrutura civil atingidos por bombardeios russos.

No dia 14 de fevereiro, o Departamento de Estado dos EUA divulgou um relatório no qual aponta que a Rússia teria enviado ao menos 6 mil menores ucranianos, com idades que variam de quatro meses a 17 anos, para campos de reeducação política ou os teria inserido no sistema de adoção do país.

Pesquisadores da Universidade de Yale identificaram ao menos 43 campos ou instalações na Crimeia ou na Rússia para onde foram levadas crianças ucranianas como parte de "uma rede ampla sistemática" operada por Moscou desde o início da invasão.

Entre as crianças, estão as consideradas órfãs pela Rússia, as que estavam em instituições ucranianas antes da invasão, algumas que possuem pais ou que estavam sob a tutela de algum parente e também menores cuja tutela é incerta devido à guerra.

O relatório indica ainda que pais ucranianos são pressionados a permitir o envio dos filhos aos campos com a promessa de retorno deles. No entanto, há relatos de famílias que perderam o contato com as crianças e de menores que permanecem nesses locais por um tempo muito maior do que o prometido por agentes russos.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 17.03.23

quinta-feira, 16 de março de 2023

Dificuldades de Lula para governar têm um defeito de saída

Bronca dada em público durante reunião com ministros revela uma séria desarticulação, apesar de o presidente jogar com time experiente

O presidente Lula e o ministro da Casa Civil, Rui Costa, durante evento da Frente Nacional de Prefeitos, em Brasília Foto: Wilton Júnior/Estadão - 14/3/2023

Lula está jogando com um time velho e experiente. É o que torna maior a surpresa com as dificuldades que o presidente exibe até aqui para governar.

A recente bronca dada em público em reunião com 19 de seus 37 ministros revelou uma séria desarticulação. Que aponta um defeito de saída: a falta de conjunto e de um sentido e direção.

A mesma bronca dada nos ministros havia sido aplicada pelo presidente da Câmara no presidente da República. Aparentemente com razão, Arthur Lira se queixa da lentidão de Lula em compor os entendimentos políticos que definem a ocupação de comissões e a distribuição geral de cargos.

O problema, apontou Lira, é que sem essas definições (que ainda estão em curso) não existe a tal “base” para votações. Note-se que essa advertência foi formulada antecipando vulnerabilidades do governo para garantir no Congresso a permanência de mecanismos com impacto na arrecadação (o voto de qualidade no Carf é um entre vários exemplos).

A causa da “lentidão” pode ser vista como prudência. No caso atual de Lula, parece ser hesitação. Por sua vez, compreensível: o presidente tem sido alertado para o fato de que, mesmo distribuindo verbas e cargos, os partidos que compõem a tal “frente ampla” não garantem automaticamente maiorias no Congresso.

Mais de um interlocutor do presidente observou que ele oscila entre, por um lado, dar ouvidos a sua velha-guarda, que pensa que venceu as eleições de 1989. E, por outro, em compor um programa de governo com correntes políticas que, na maçaroca ideológica brasileira, cada vez mais se voltam para suas questões regionais.

Governo Lula usa modelo sem transparência para repasses indicados pelo Congresso

Lula abre ‘porteira’ de cargos a União Brasil e MDB para ganhar aliados e barrar CPI

Sabia-se bem antes de outubro passado que o Lula 3 jamais teria o conforto de uma lua de mel pós-eleições, aspecto agravado pela pequena margem da vitória. A “calcificação” da polarização não recuou. É significativo registrar o grau de desconfiança que perdura em relação ao atual presidente por dirigentes de vários setores da economia, especialmente finanças e agroindústria.

E vice-versa. “Não vou governar para o mercado”, tem dito o presidente. Lula considera que as percepções de agentes econômicos, sobretudo quanto a riscos fiscais, são moldadas por aspectos político-ideológicos – entre eles, um acentuado antipetismo. Que não são passíveis, portanto, de “pacificação”.

Dificuldades para escalar um governo, coordenar vários partidos, assegurar maiorias no Parlamento e atender a demandas sociais e dos agentes de mercado são da natureza da política e valem para qualquer dirigente. O problema para Lula 3 é quando ecoa em cada um desses segmentos, da política e da economia, a mesma pergunta: qual é o plano dele?

William Waack, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16;03.23

Crise populacional está encolhendo a Rússia e tornando Putin mais perigoso; leia a análise

País perdeu 3 milhões de habitantes em 30 anos; taxa de natalidade baixa e de mortalidade alta devem levar russos a declínio populacional

Crianças russas perto de propaganda de guerra em Moscou  Foto: Dmitri Lovetsky/ AP

A Rússia está em uma espiral de morte demográfica. No longo prazo, isso é má notícia para o país. Mas no curto prazo, isso é má notícia para os vizinhos, porque Vladimir Putin pode estar em busca de soluções militares para o problema populacional.

(Thomas Friedman: Putin e Netanyahu provam por que coisas ruins acontecem para líderes ruins()

O número de mortes ultrapassa o de nascimentos quase todo ano na Rússia desde o fim do comunismo. A população russa atingiu seu pico em 1993, em 148,6 milhões. No início de 2022, havia estimados 145,6 milhões de habitantes na Rússia. O declínio é de apenas 2%, mas em comparação a população dos Estados Unidos cresceu 33% de 1990 a 2020.

O Banco Mundial calcula que a expectativa de vida dos russos no instante do nascimento é de apenas 71 anos; nos EUA é de 77. A disparidade é ainda mais dramática entre homens: nos EUA, sua expectativa de vida é de 75 anos; na Rússia, é de 66 — mais baixa do que na Coreia do Norte, na Síria ou em Bangladesh. A Rússia tem a 11.ª maior economia do mundo, mas figura na 96.ª colocação em relação à expectativa de vida.

Nicholas Eberstadt, pesquisador do American Enterprise Institute, explicou essa discrepância letal em um fascinante artigo no ano passado. O principal problema é que a taxa de nascimentos na Rússia é de apenas 1,5 filho a cada mulher — bem abaixo do nível de reposição (dois filhos por mulher).

Atualmente a Rússia é o nono país mais populoso do planeta, mas deve cair para a 22.ª posição até o fim deste século

Alcoolismo, suicídio e pandemia

Esse índice não é especialmente baixo em comparação a outros países industrializados. Mas a Rússia se sobressai por sua taxa extraordinariamente alta de mortes, particularmente de homens, causadas por doenças vasculares (ataques cardíacos, AVCs, etc.) e ferimentos (homicídios, suicídios e acidentes). Dada a renda do país e os seus níveis de escolaridade, as mortes na Rússia por essas duas causas é muito maior do que o esperado. Isso pode se explicar pelo terrível sistema de saúde pública do país, sua poluição ambiental e seus altos níveis de alcoolismo extremo e vício em drogas — o que, por sua vez, são sinais de desespero.

A já elevada taxa de mortalidade na Rússia atingiu um pico recentemente. Durante a pandemia de covid-19, entre 2020 e 2023, a Rússia teve de 1,2 milhão a 1,6 milhão de mortes em excesso, segundo The Economist. Se o número for preciso, significa que a Rússia teve mais mortes por covid do que os EUA, cuja população é mais de duas vezes maior.

Então, no ano passado, a Rússia sofreu de 60 mil a 70 mil baixas em combate na Ucrânia — mais do que em todas as outras guerras que travou desde 1945 combinadas, sem resolução à vista. “O índice-médio de mortes de soldados russos mensalmente é pelo menos 25 vezes maior do que o índice de mortos mensalmente na Chechênia e 35 vezes maior do que o índice de mortos no Afeganistão”, relata o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. E desde o início da guerra, entre 500 mil e 1 milhão de russos — a maioria jovens escolarizados — fugiram do país. Em Moscou, a escassez de homens é visível.

Declínio no horizonte

O declínio populacional tende a continuar na Rússia — que deverá ter 135 milhões de habitantes até 2050 e 126 milhões até 2100. Atualmente o nono país mais populoso do planeta, projeta-se que a Rússia caia para a 22.ª posição até o fim deste século .Demografia, em certo sentido, é destino. Os dias da Rússia enquanto grande potência estão contados.

Putin é bastante consciente do problema e fala disso o tempo todo. Em setembro de 2021, ele se lamentou afirmando que a Rússia poderia ter uma população de 500 milhões não fosse a derrota do Império Russo após a Revolução de 1917 e a dissolução, em 1991, da União Soviética, que ele qualificou como “a maior catástrofe geopolítica do século”.

Putin tem tentado em vão todas as maneiras normais de reverter essa tendência, de oferecer incentivos financeiros para cidadãos terem mais filhos a tentar atrair imigrantes da Ásia Central. Sua invasão à Ucrânia pode ser considerada um estratagema para aumentar a população russa à força.

A Rússia ocupa territórios ucranianos anteriormente habitados por 8 milhões de pessoas — muitas das quais morreram, fugiram ou foram deportadas para a Rússia. O fato de os russos terem sequestrado pelo menos 11 mil crianças ucranianas parece especialmente sinistro sob a luz do déficit nos nascimentos na Rússia.

A única coisa que o “loop demográfico apocalíptico” faz com Putin é deixá-lo ainda mais desesperado e perigoso

Aumentando a população à força?

Stephen Sestanovich, ex-embaixador americano que circulou por repúblicas soviéticas e atualmente é meu colega no Council on Foreign Relations, disse-me que Putin é motivado por “um delírio febril de declínio”. O despovoamento da Rússia, afirmou ele, “alimenta o senso apocalíptico de Putin a respeito de suas responsabilidades grandiosas. Se você está preocupado com uma população em declínio, talvez conquistar 40 milhões de pessoas no país vizinho resolva o seu problema”.

É claro que, ao tentar resolver o déficit russo em recursos humanos, Putin apenas o exacerba. Mas, lamentavelmente, não há evidência de que a Rússia esteja exaurindo seu estoque de homens dispensáveis para mandar lutar na Ucrânia. Estimados 7,2 milhões de russos têm entre 18 e 26 anos. Putin conseguiu mobilizar 300 mil soldados no ano passado com pouca dificuldade, e outra conscrição pode estar prevista para o futuro próximo. Putin poderá ter mais dificuldade em manter sua promessa de expandir o Exército de 1,1 milhão para 1,5 milhão de soldados até 2026, mas não precisa de outros 400 mil combatentes para continuar infligindo grande sofrimento sobre o povo da Ucrânia.

No curto prazo, a perda de tantos emigrantes poderá na verdade ajudar Putin a consolidar seu controle. “As pessoas problemáticas foram embora, e as que ficaram são as pessoas que o regime precisa para sustentar a si mesmo e à guerra”, afirmou Alina Polyakova, presidente do Centro para Análise Política Europeia.

Portanto, há pouca esperança de que os apuros demográficos da Rússia diminuam a ameaça que ela apresenta no futuro próximo. A única coisa que o “loop demográfico apocalíptico” faz com Putin é deixá-lo ainda mais desesperado e perigoso. 

Max Boot para o The Washington Post. Publicado em português/Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 16.03.23. Tradução de Augusto Calil.

Leonor de Borbón: ex officio, rainha; por profissão, militar e emprego, capitão-general

Os três anos nas academias militares farão da princesa das Astúrias mais um membro das Forças Armadas, tal como o pai e o avô

Princesa Leonor após o seu discurso na cerimónia de entrega dos prémios da Fundação Princesa de Girona, em julho do ano passado. (Foto: GIANLUCA BATTISTA)

Ainda não se sabe que grau universitário a princesa das Astúrias irá tirar quando terminar a sua formação militar, em 2026. É certo que fará uma carreira e provavelmente uma pós-graduação. Seu pai, Felipe VI, o primeiro monarca espanhol com diploma universitário, estudou Direito na Universidade Autônoma de Madri e obteve o mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Georgetown (Washington). Mas a primeira profissão de Felipe VI, como a de seu pai, Juan Carlos I, é a de soldado. Será também o da sua filha Leonor.

A princesa das Astúrias poderia ter conhecido a fundo as Forças Armadas sem ter de passar três anos nas academias militares. Várias universidades espanholas oferecem mestrados oficiais em Segurança e Defesa, como o ministrado pelo Instituto Universitário Gutiérrez Mellado em colaboração com a UNED. A Escola Superior das Forças Armadas (Esfas), do Ministério da Defesa, também oferece cursos que incluem visitas a unidades militares.

Mas não é só que a herdeira do trono da Espanha conhece os militares, mas é um deles. Leonor de Borbón y Ortiz vai integrar, com o primeiro escalão, as promoções que saem em 2027 das academias do Exército, da Marinha e do Exército Aeroespacial. E ela subirá no mesmo ritmo que eles, pelo menos até suceder seu pai no trono, gerando laços de afeto e cumplicidade com seus companheiros de armas. Passados ​​35 anos, Felipe VI continua a frequentar o jantar anual de confraternização celebrado pelos membros da sua promoção.

Os juízes administram a justiça em nome do Rei, mas o Rei não é juiz, nem diplomata, embora assine as credenciais dos chefes de missão e se diga dele que é "o melhor embaixador da Espanha". Em vez disso, ele é um militar. A Monarquia sempre andou de mãos dadas com a milícia. O artigo 62.º da Constituição atribui a quem ocupe o cargo de Chefe de Estado o comando supremo das Forças Armadas, sendo que a Lei das Carreiras Militares, de 2007, atribui-lhe exclusivamente o cargo de capitão-general dos três exércitos; capitão-general no caso de ser mulher. A futura rainha devia ser, portanto, uma militar profissional; caso contrário, argumentam especialistas militares, ele não poderia usar o uniforme em atos protocolares

É surpreendente, porém, que o modelo de carreira desenhado para a herdeira seja o mesmo que seu pai seguiu, há mais de três décadas. O decreto publicado nesta quarta-feira no BOE reproduz textualmente o de 17 de setembro de 1999,que regulou a carreira militar de Felipe de Borbón, tanto no que diz respeito ao seu regime de promoção como à guarda da sua ficha militar na Zarzuela. As diferenças entre os dois decretos estão no preâmbulo, já que o atual destaca que a entrada de Leonor de Borbón nas academias militares “reforça o papel cada vez mais relevante das mulheres nas Forças Armadas”. E também no facto de, quando foi aprovado o decreto sobre a carreira militar de Felipe VI, por lei de 1999, já ter concluído o seu ciclo de formação em academias militares, regido por um plano de estudos e sucessivos decretos que o nomeavam tenente-cadete ou cavaleiro aspirante.

Salvando a distância entre os programas educacionais atuais e os de então, o itinerário que a filha mais velha dos Reyes seguirá será o mesmo de seu pai: um ano na Academia Geral Militar de Zaragoza, outro na Escola Naval de Marín e outro na San Javier Air Academy. Com o Exército, você aprenderá os rigores da vida militar, com saídas de campo e manobras; Ele navegará com a Marinha no navio-escola Juan Sebastián de Elcano —embora seja previsível que não faça toda a viagem—; e com a Força Aérea aprenderá a pilotar os aviões de instrução, o T-35 Pillán e o novo PC-21 Pilatus. Seu pai e seu avô também fizeram curso de piloto de helicóptero.

Leonor de Borbón terá uma equipa de apoio ao seu treino militar liderada por um tutor. Segundo diversas fontes, essa função poderia recair sobre a tenente-coronel Margarita Pardo de Santayana, filha do ex-chefe do Estado-Maior do Exército Alfonso Pardo de Santayana, estacionada na Sala Militar do Rei.

Quando em 2027 receber o cargo de tenente dos exércitos da Terra e do Ar e o de alferes de um navio da Marinha, a princesa das Astúrias não obterá, como os seus colegas, a licenciatura em engenharia do centro universitário associado à correspondente academia militar , já que seu plano se concentrará no treinamento estritamente militar. Para ter um grau civil você terá que ir para uma universidade, pública ou privada.

Margarita Robles, Ministra da Defesa: "Leonor vai frequentar treino militar durante três anos"

A Ministra da Defesa, Margarita Robles, depois de participar nos eventos do 212º aniversário da Batalha de La Barrosa, ocorrido em Chiclana de la Frontera (Cádiz).Foto: EFE/ROMÁN RÍOS 

Miguel González, o autor deste artigo, é o responsável pelas informações sobre diplomacia e política de defesa, Casa del Rey e Vox no EL PAÍS. Formou-se em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) em 1982. Trabalhou também no El Noticiero Universal, La Vanguardia e El Periódico de Cataluña. Especialista em aprender.Publicado originalmente no EL PAÍS, em 16.03.23

TCU manda Bolsonaro entregar joias dadas pela Arábia Saudita

Itens de luxo hoje no acervo privado do ex-presidente deverão ficar sob custódia da Presidência da República até decisão final sobre tema. Corte determina ainda auditoria sobre todos os presentes recebidos por Bolsonaro.

Joias dadas de presente pela Arábia Saudita e apreendidas no Aeroporto de GuarulhosFoto: Amanda Perobelli/REUTERS

O ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) decidiram nesta quarta-feira (15/03) que o ex-presidente Jair Bolsonaro deve entregar ao poder público o pacote de joias que recebeu da Arábia Saudita e está em seu acervo privado, composto por um relógio, um par de abotoaduras, uma caneta e um tipo de rosário islâmico, todos da marca de luxo suíça Chopard.

A decisão, tomada por unanimidade, estipula prazo de cinco dias úteis para que os objetos sejam entregues à Secretaria-Geral da Presidência da República. A ordem revisa uma decisão individual tomada na semana passada pelo ministro Augusto Nardes, do TCU, que havia proibido Bolsonaro de vender ou usar os bens, mas os manteve sob sua posse.

Os objetos de luxo deverão ser mantidos sob custódia até que o TCU decida o mérito da matéria. Os ministros também determinaram que seja realizada uma auditoria sobre todos os presentes recebidos por Bolsonaro durante seu período como presidente.

Acervo público da Presidência

Esse pacote de joias foi trazido ao Brasil pela comitiva do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e o próprio Bolsonaro reconheceu que elas estavam em seu acervo privado.

Contudo, uma decisão de 2016 do TCU estabeleceu que objetos de valor, como joias, recebidos pelos presidentes da República como presentes de outros países pertencem ao acervo público da Presidência da República – somente itens de menor valor e de caráter personalíssimo, como roupas ou um perfume, poderiam ser incorporados ao acervo privado do mandatário.

Um outro pacote de joias dado de presente pela Arábia Saudita a Bolsonaro, composto por um colar, um relógio e um par de brincos de diamantes e avaliado em R$ 16,5 milhões, foi apreendido pela Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos em 2021, após ser localizado na bagagem de um integrante de uma comitiva do governo brasileiro que fez uma viagem oficial ao país árabe.

O governo Bolsonaro tentou diversas vezes liberar esse pacote de joias, sem sucesso, que segue sob a custódia da Receita Federal.

O ex-ministro Albuquerque disse inicialmente que essas joias seriam um presente para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Nesta terça-feira, porém, em depoimento à Polícia Federal, ele mudou sua versão e disse que em nenhum momento foi dito a ele que as joias eram destinadas a Jair ou Michele Bolsonaro, mas seriam "presentes de Estado".

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 13.03.23

Os diamantes são os melhores amigos de uma garota

O Estado brasileiro tem que decidir até quando a família Bolsonaro terá um cheque em branco para fazer todo mundo de bobo. Será que são intocáveis?

Família Bolsonaro declarou joias sauditas como bens de caráter "personalíssimo"Foto: EVARISTO SA/AFP

Não me surpreendeu a notícia de que a família Bolsonaro recebeu as joias da Arábia Saudita como bens de caráter "personalíssimo". Nada mais normal do que o presidente e sua esposa receberem joias no valor de quase R$ 17 milhões como um presente pessoal. Ainda mais quando o remetente for o governo de um país com o qual o Brasil estava, na época, negociando acordos.

Bom, falando sério: ainda mais espantoso é ver o vídeo no qual o coronel Mauro Cid, o faz-tudo do presidente, organiza a retomada das joias aprendidas pela Receita Federal em São Paulo, poucas horas antes da fuga presidencial para a Flórida, no fim de dezembro. Havia um avião da FAB, além diárias pagas para que o sargento Jairo Moreira da Silva pudesse ir a São Paulo, onde tentou vários truques para liberar as peças.

De onde a família Bolsonaro tira esses fieis faz-tudos? Antes, era o Fabrício Queiroz, o faz-tudo do Jair e do Flávio, além da família do Adriano da Nóbrega, claro. Agora é uma turma de militares. Ainda tem Frederick Wassef, o advogado do clã, que até emprestou sua casa em Atibaia para o Queiroz se refugiar.

Falando nisso: já sabemos algo sobre os cheques no valor de R$ 89 mil depositados pelo Queiroz na conta da Michelle Bolsonaro? Nunca saberemos, penso, assim como não haverá consequências para a família Bolsonaro – nem pelo caso das rachadinhas, nem por este novo, das joias sauditas. Aparentemente, existem castas aqui no Brasil que são intocáveis.

A Justiça não atuou de forma pesada contra as falas misóginas e racistas de Bolsonaro quando ele era deputado, nem quando "dedicou" seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff a um monstro torturador. Sem falar da multa ambiental emitida pelo Ibama a Jair por pescar em local proibido em Angra dos Reis. Foi logo anulada quando o Jair virou presidente.

E tenho a sensação que nem esse novo caso fará com que Bolsonaro perca seus súditos. A percepção da realidade é subjetiva, os seguidores ferrenhos desculpam qualquer deslize do seu herói. Sabemos que isso também se aplica à esquerda, onde o PT está criando a narrativa de que a Lava Jato foi apenas uma invenção de uns juízes e promotores. E nada mais.

Segundo essa narrativa, devemos ser mais pragmáticos e menos moralistas. Afinal, "corrupção existe em todos os lugares". Conforme esse argumento, o importante é a governabilidade, pois o caos e a anarquia devem ser evitados a qualquer preço, para garantir a sobrevivência da sociedade. O governo Lula manter ministros suspeitos de corrupção e de ligações com milicianos entristece. "Mas, teremos, pelo menos, a salvação da Floresta Amazônica em troca".

P.S.: Aí me pergunto, por que o Lula não simplesmente declarou o triplex no Guarujá ou o sítio de Atibaia como presentes personalíssimos, para acabar com os problemas judiciais? Solução simples.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Thomas Milz, o autor deste artigo, é  Jornalista e fotógrafo. Publicado originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 15.03.23

quarta-feira, 15 de março de 2023

Podres de Bolsonaro dão tempo a Lula

O efeito subjacente dos sucessivos escândalos foi tirar do foco as cobranças para que o governo comece a mostrar a que veio

Bolsonaro e o príncipe Mohammed bin Salman em visita feita a Riade em 2019. Brasil e Arábia Saudita fortaleceram relações nos últimos anos — Foto: José Dias/PR

Não para de aparecer podre do governo de Jair Bolsonaro, à base de mais de um por dia, desde que começaram a cair sigilos de cem anos e outros obstáculos à transparência deixados como legado pela administração anterior.

Nos escândalos mais recentes, da devassa ilegal na Receita Federal contra adversários do ex-presidente à arapongagem da Abin com equipamento israelense, passando pelo mais faiscante, as joias sauditas, fica evidente como traço comum a tentativa de sequestrar as instituições de Estado para fins privativos do candidato a autocrata, ora para perseguir desafetos, ora para proteger parentes e apaniguados, quando não para se locupletar mesmo.

A comprovação de que o projeto de poder bolsonarista incluía o aparelhamento total dos órgãos de Estado para fins políticos permite entender melhor alguns episódios recentes, como o vale-tudo nunca antes visto para tentar a reeleição, com uso de bilhões em recursos públicos, a campanha incessante para desmoralizar a Justiça Eleitoral, a depressão quando nada disso funcionou, a fuga para os Estados Unidos e a tentativa de golpe de 8 de janeiro.

Como tudo malogrou, resta a dúvida quanto à volta de Bolsonaro, a sua capacidade de ainda liderar o que restou da extrema direita, à viabilidade do plano tabajara de fazer da mulher, que nunca foi da política, um chamariz de votos e, principalmente, ao ex-mandatário finalmente prestar contas à Justiça por tantos malfeitos, os anteriores a ocupar incidentalmente a Presidência e, sobretudo, os que cometeu durante esses quatro anos.

Com tanto BO bolsonarista aparecendo, o efeito subjacente foi tirar do foco as cobranças que vinham se avolumando para que o governo Lula efetivamente começasse a mostrar a que veio nas áreas-chave, notadamente na economia e na governabilidade legislativa — que são interdependentes.

Fernando Haddad e a equipe econômica tiveram certo sossego, longe do fogo amigo da ala política e da cobrança do mercado e da imprensa, para montar um marco fiscal que será apresentado a Lula e, se aprovado, enviado ao Congresso. Mas o prazo para que ele seja conhecido a tempo de influenciar positivamente na reunião do Copom da próxima semana e levar o Banco Central a acenar com um início próximo da redução da taxa de juros vai se tornando exíguo, quiçá inviável.

Expor, repudiar e investigar os crimes de Bolsonaro são tarefas republicanas e esperadas de um governo eleito para representar justamente o oposto do anterior. A gravidade e o volume do que era urdido nos porões do Estado mais que justificam que essa seja uma pauta prioritária para nós, jornalistas, para a Justiça e para o Executivo. Mas a economia vive de presente e de expectativa, e a popularidade de um governo se dá, num país polarizado, mais pela geração de bem-estar econômico que pelo contraponto do tipo “nós x eles”.

No Q.G. do PL, partido que está chateado com a água no chope dos seus planos de lucrar com a popularidade minguante do casal Bolsonaro, existe a avaliação de que Lula está gostando de manter o ex-presidente nos holofotes para ficar protegido de cobranças mais duras. Para a cúpula do partido, até a volta de Bolsonaro ao Brasil seria positiva a Lula, porque exacerbaria o desgaste do ex-presidente, que seria prontamente instado a depor na Polícia Federal por episódios como as joias das Arábias e o 8 de Janeiro.

Pode ser, e certamente esse temor é causa das sucessivas esticadas de Bolsonaro em seu exílio com ares de fuga. Mas para Lula o prazo de validade dessa trégua vai se extinguindo. E os fatos de os projetos não ganharem a luz do dia e de o Congresso não dizer que apito tocará, do governo ou da oposição, em breve podem se transformar numa primeira crise que nem o esgoto bolsonaresco mais fétido será capaz de esconder.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista e apresentadora do Roda Viva na TV-Cultura. Publicado originalmente n'O Globo, em 15.03.23

Governo Lula usa modelo sem transparência para repasses indicados pelo Congresso

Gestão Lula adota padrão de negociação que mantém em segredo o nome de parlamentares que definem destino de verbas federais; procuradora aponta ‘continuidade’ do orçamento secreto

Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão. Foto: Wilton Junior/Estadão

No toma lá, dá cá com o Congresso, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai começar a transferir bilhões de reais do caixa federal para aumentar a base de apoio, sem qualquer transparência. O Palácio do Planalto elaborou um modelo de negociação que mantém em segredo o nome dos parlamentares que definirão para onde vão os recursos públicos que ficam sob controle dos ministérios, retomando uma prática amplamente adotada no orçamento secreto pelo orçamento secreto pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

No começo do mês, três ministros do governo assinaram portaria para estabelecer como vai ser o processo de pagamento de emendas parlamentares – verbas indicadas por deputados e senadores para suas bases eleitorais e repassadas pelo Executivo em troca de apoio político no Legislativo.

O documento não estabelece nenhuma medida para tornar público quem serão os congressistas atendidos pelas verbas controladas pelo governo. Além disso, Lula vetou uma proposta que identificava parte dos recursos de maior interesse dos parlamentares e permitia um nível de acompanhamento dos repasses.

Parte do montante é o espólio do orçamento secreto, derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Inclui ainda outras verbas incluídas pelos parlamentares no Orçamento de 2023. No total, Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão, que pressionam Lula a liberar o dinheiro.

Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão.

São verbas para bancar, por exemplo, pavimentação de ruas, construção de rodovias, compra de tratores e manutenção de postos de saúde. Como o Estadão revelou, durante o funcionamento do orçamento secreto, parlamentares escolhidos a dedo pelo governo Bolsonaro promoveram compras com indícios de sobrepreço, contratação direcionada de empresas de amigos e familiares dos políticos e concentração de recursos em redutos do Centrão. Em dezembro, o Supremo declarou o orçamento secreto inconstitucional.

Portaria

Parte da premissa do orçamento secreto foi ressuscitada na portaria assinada pelos ministros Simone Tebet (Planejamento), Esther Dweck (Gestão) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais). O documento entregou a Padilha o poder de centralizar a negociação com o Congresso de verbas controladas diretamente pelo Executivo, sem necessidade de equidade na divisão dos recursos ou transparência na indicação.

A fonte dos recursos é o dinheiro que alimentou o esquema de Bolsonaro, mas que fora transferido para outra rubrica orçamentária, chamada de RP2 – antes era RP9.

Com Bolsonaro, a negociação sobre quem teria acesso ao dinheiro estava exclusivamente nas mãos de um grupo de parlamentares, entre eles o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Agora, a decisão terá de passar pela pasta de Padilha. O que não significa que Lira perdeu força. Como comanda a pauta da Câmara e do Centrão, as negociações passarão obrigatoriamente por ele.

Orçamento de 2023 contempla mais R$ 15 milhões para a segurança de Lula

O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, por exemplo, tem R$ 2 bilhões para obras, que vão desde a compra de tratores até a pavimentação de ruas. Os parlamentares escolhidos pelo governo Lula poderão dizer em que cidade irão aplicar os recursos como “pagamento” por votarem a favor do governo. Também foram reservados R$ 54 milhões para abastecimento de água no sertão de Alagoas, reduto de Lira.

A procuradora Élida Graziane, do Ministério Público de Contas de São Paulo, disse que a portaria do governo Lula restabelece o orçamento secreto.

‘Continuidade’

“Não vejo uma mudança de um modelo para outro, eu vejo uma continuidade, com um regime híbrido para frustrar a decisão do Supremo e manter tudo exatamente igual”, afirmou a procuradora. “Há uma fortíssima tendência de a execução repetir o que foi o orçamento secreto, que é liberar o dinheiro sem aderência ao planejamento, de forma discriminatória, sem transparência em relação aos beneficiários e escolhendo o beneficiário sem nenhum filtro”.

O Supremo declarou o orçamento secreto inconstitucional por se tratar de um esquema sem transparência, sem planejamento, que concentrou recursos em redutos eleitorais sem equilíbrio regional e envolveu desvios. Lula criticou o mecanismo durante a campanha eleitoral, classificando o modelo como uma “excrescência”.

Em resposta ao Estadão, a assessoria de Padilha afirmou que a destinação dos recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso “em conformidade com o padrão da Lei Orçamentária adotada há muitos anos”. O governo prometeu dar transparência aos atos, mas, questionado pela reportagem, não apontou onde o cidadão poderá consultar os nomes dos parlamentares beneficiados pelos recursos.

Assessoria de Padilha afirmou que a destinação dos recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso 'em conformidade com o padrão da Lei Orçamentária adotada há muitos anos'.

Assessoria de Padilha afirmou que a destinação dos recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso 'em conformidade com o padrão da Lei Orçamentária adotada há muitos anos'. Foto: Wilton Junior/Estadão

“Até o momento, ainda não houve empenho de nenhum valor nessa rubrica. No futuro, ao serem empregados, esses recursos cumprirão critérios técnicos e seguirão absolutamente todos os padrões de transparência da administração pública, com relação a proponentes, órgãos federais envolvidos e ritmo de execução e de liberação de recursos”, destacou Padilha.

O Planejamento, comandado por Tebet, disse que os ministérios não são obrigados a seguir a indicação de parlamentares para as verbas do RP2. Questionado como será dada transparência e como garantir que a negociação não repita o orçamento secreto, a pasta respondeu: “As dotações classificadas com RP2, oriundas ou não de emendas, são executadas pelos órgãos sem o requisito de observância de indicações parlamentares, recaindo sobre o órgão a gestão da execução da despesa”.

Outra medida que reduz a transparência foi a decisão de Lula de vetar uma proposta na Lei Orçamentária Anual (LOA) que separava os recursos autorizados pelo Congresso após a aprovação da PEC da Transição em uma fonte específica. Na prática, a medida colocava uma “digital” nas verbas e permitia um mínimo de acompanhamento do caminho do repasse.

Agora, a gestão petista misturou as programações às demais despesas que estão sob controle do Palácio do Planalto, tornando impossível identificar o que é recurso direto do governo e o que é liberação para atender a interesse de aliados. O Executivo argumentou que a “digital” colocada pelo Congresso não cumpria o objetivo de identificar tecnicamente a fonte do recurso para bancar as despesas.

Para entender: a distribuição de verbas para congressistas

Governo Bolsonaro

Recursos do orçamento secreto eram carimbados como emenda de relator-geral (RP9) e liberados pelos ministérios conforme pedido de parlamentares aliados

Quem definia os beneficiados e a divisão interna era cúpula do Congresso, com controle maior do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL)

Os nomes dos parlamentares contemplados foram mantidos em segredo, assim como os critérios para a distribuição dos recursos

Em 3 anos, governo Bolsonaro liberou R$ 45 bi do orçamento secreto para atender aliados em troca de apoio político no Congresso

Governo Lula

O Executivo define o pagamento da maior parte dos recursos para investimentos e manutenção dos órgãos públicos, com o carimbo das despesas discricionárias (RP2)

Foi criado um modelo de repasse da verba concentrando a negociação no gabinete do ministro Alexandre Padilha, que receberá as indicações de parlamentares

Governo não é obrigado a atender os parlamentares na hora de destinar a verba, mas é pressionado a liberar conforme a indicação de deputados e senadores

Não há nenhum instrumento para dar transparência a essas indicações

Lula terá R$ 100 bi para gastar livremente e atender aliados, incluindo espólio do orçamento secreto, recursos negociados na PEC da Transição e verba para novatos

Daniel Weterman e Felipe Frazão, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 15.03.23

Democracias precisam de escolas de governo

A Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas já é um mapa que pode ficar cada vez mais detalhado. Mas ainda depende de voluntarismo

O futuro do governo está sendo construído em escolas. No livro The Fourth Revolution, John Micklethwait e Adrian Wooldridge começam a contar a história da mudança de paradigma de governo no século 21 a partir do caso da Academia de Lideranças de Shanghai. Esse centro de formação dos futuros governantes chineses, inaugurado em 2005 por Hu Jintao, não tem objetivos tão teóricos – as academias do partido servem a esse propósito –, mas ofertam programas práticos de gestão pública. Quando um executivo assume o comando de uma estatal ou um governador de uma província é indicado, o governo central manda as novas lideranças estudarem, e se atualizarem, em Shanghai. A Academia de Lideranças de Shanghai, escrevem Micklethwait e Wooldridge, “é uma organização empenhada na dominação mundial”.

A China não é um caso isolado. Cingapura tornou-se um vale do silício de governança, atraindo lideranças de outros países para estudarem seus casos de sucesso em gestão pública. A Índia lançou, recentemente, uma plataforma de capacitação online em governo com potencial de se tornar a maior do mundo. Governos asiáticos hoje entendem que capacidade de Estado começa com capacitação de pessoas.

A liderança asiática em capacitação em governo revela questões mais profundas das democracias ocidentais. Suas instituições ainda sofrem com crise de confiança. Seus governos ainda estão atrasados em acompanhar as grandes disrupções econômicas e tecnológicas das últimas décadas. Nenhuma transformação tecnológica consegue superar uma incapacidade de transformarmos pessoas.

Em 2014, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) passou a reunir algumas dessas principais organizações, estatais ou privadas, de capacitação e desenvolvimento do serviço público em sua Rede de Escolas de Governo. Por meio da rede, instituições de diversos países podem se ajudar a superar os desafios de transformação de pessoas. Mas a rede também revela o tamanho dos desafios. Uma pesquisa feita em 2021 entre a OCDE e a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) descobriu que menos de 20% das escolas da rede ofertam programas em automação e inteligência artificial.

Os desafios também revelam a oportunidade do protagonismo do Brasil. Em 2019, enquanto as demais escolas discutiam novas versões de matrizes de competências transversais – o sistema de conhecimento, habilidades e atitudes que todos os servidores devem deter –, o Brasil ainda não tinha sequer a versão 1.

Hoje, não apenas o governo brasileiro adotou uma matriz de competências transversais, mas avançou e criou sua própria matriz de competências de liderança. A Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas, lançada em 2019, permitiu um mapeamento geral das necessidades de desenvolvimento dos diversos órgãos da administração federal.

Para satisfazer boa parte dessas necessidades, a Enap, como principal escola de governo do Brasil, desenvolveu mais de 500 cursos, incluindo doutorado profissional em gestão pública, bootcamps tecnológicos e cursos online abertos, gratuitos e acessíveis a qualquer cidadão pela plataforma Escola Virtual de Governo. Hoje, o Brasil não tem apenas a maior escola da rede da OCDE em número de alunos, mas também tornou-se uma liderança em inovação e desenvolvimento de servidores para toda a rede.

Essa inovação em desenvolvimento é necessária para que o País se antecipe ao futuro do trabalho no serviço público. Pesquisas da Enap descobriram que podemos economizar até 1 em 4 servidores que irão se aposentar até 2030. E requalificar, para funções mais inteligentes, 1 de cada 5 servidores que não devem se aposentar até 2030.

Essa revolução digital já está acontecendo. Em 2022, o Brasil saltou para a vice-liderança global do ranking de maturidade digital do Banco Mundial. E não faltam recursos. Apenas em gratificações para servidores realizarem cursos e concursos, o governo brasileiro já chegou a ultrapassar o valor de R$ 400 milhões ao ano.

O que falta é estratégia em nível do governo como um todo. A Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas já é um mapa que pode ficar cada vez mais detalhado. Mas ainda depende de voluntarismo. Faltam instrumentos para que, quando governos definem novas políticas transversais, ou novas visões de governo, as competências necessárias possam ser desenvolvidas por todo o serviço público.

O Brasil tem um grande potencial para se tornar um líder em governo inovador, mas para isso é preciso que seus programas de capacitação assumam um protagonismo na pauta de reformas administrativas. É necessário que o governo entenda que o futuro do País está sendo construído em suas escolas de governo e que é preciso tratá-las como ativo estratégico para garantir o sucesso do País no século 21. Nossas escolas poderão, assim, ser organizações empenhadas na inovação mundial.

Diogo G. R. Costa, o autor deste artigo, mestre em ciência política pela Columbia University e ex-Presidente da Escola Nacional de Administração Pública / ENAP, é CEO do Instituto Milenium. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.03.23

terça-feira, 14 de março de 2023

O Brasil voltou

Volta dos vistos responde a um anseio das elites, mas pode prejudicar os mais pobres

Brasil recebe um número baixo de turistas: em 2018, teriam entrado menos visitantes no Brasil do que no Coliseu.  Foto: Andrew Medichini/AP Photo

Os Lençóis Maranhenses estão agora concorrendo a Patrimônio Natural da Humanidade. A região é belíssima e também pobre. Em Barreirinhas, sua porta de entrada, há quatro benefícios do Bolsa Família para cada emprego. O potencial econômico do turismo não se exauriu. Mas o governo decidiu voltar a exigir vistos de visitantes dos países mais ricos.

É notório que o Brasil recebe poucos turistas. Em 2018, teriam entrado menos visitantes no Brasil do que no Coliseu. Podemos pensar em tantos lugares em que a beleza convive com pobreza, de Jijoca de Jericoacoara a Presidente Figueiredo no Amazonas. Dinheiro dos EUA, do Japão e de outros poderia ajudar essas regiões que têm poucas vocações: por um curto período os vistos deixaram de ser exigidos.

O governo tem justificativas para voltar a demandar a burocracia, e elas respondem a anseios de nossas elites. Uma é baseada no princípio da reciprocidade: se esses países exigem vistos de brasileiros, vamos exigir de volta.

Brasil recebe um número baixo de turistas: em 2018, teriam entrado menos visitantes no Brasil do que no Coliseu. 

Mas essa é uma reciprocidade formal, não efetiva. Afinal, o Brasil manda muito mais turistas do que recebe, por exemplo, dos EUA. Que tal uma política que buscasse números mais, digamos, recíprocos?

Voltaremos a cobrar vistos dos passaportes mais poderosos do mundo, que entram em boa parte do planeta. Isso sugere tanto que países emergentes não compartilham nossa avaliação sobre soberania, quanto que estamos impondo custos que a concorrência não impõe (como nossos vizinhos).

Um segundo argumento é o de que exigir vistos pode facilitar em negociações para flexibilizar as exigências de nossos viajantes. Mais do que uma revanche pelo cansativo processo para conseguir entrar nos EUA, a reciprocidade poderia trazer resultados concretos para brasileiros que vão para lá.

OK, mas quem deve ser o foco: estes, fundamentalmente uma elite, ou a população mais pobre? Há ainda outra motivação para os vistos: a recuperação de “receita consular” e poder da burocracia.

Não é o fim do mundo, mas é um case interessante de políticas públicas por esses conflitos ocultos, e também pela ausência de evidências simples para balizar as mudanças. Qual modelo de demanda é usado para justificar que turismo não será impactado? Que controles foram usados para estabelecer essa causalidade?

São várias contradições: o desprezo pelo método científico no governo que o prestigiaria, a indiferença com as oportunidades contra a pobreza por quem realça os números da fome, o insulamento diante do slogan Brazil is back.

O Brasil voltou – a exigir vistos.

Pedro Fernando Nery, o autor deste artigo, é Doutor em Economia. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 14.03.23

Brasil precisa enviar sinal claro de repúdio a Moscou, diz jornalista da Rússia

Comitiva russa inclui Nobel da Paz e chega a Brasília com demanda de posição incisiva contra a Guerra da Ucrânia

Kirill Martinov é editor-chefe do jornal Novaia Gazeta Europe, braço do veículo russo fechado por Moscou - Gints Ivuskans/ AFP

O Brasil precisa enviar sinais claros de seu posicionamento sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia após mais de um ano de conflito, afirma o jornalista russo Kirill Martinov, chefe de redação do Novaia Gazeta Europe. O jornal é o braço que restou do veículo após o fechamento determinado por Moscou na ofensiva contra a imprensa independente agravada pelo contexto bélico. Também é onde trabalhava Dmitri Muratov, que ganhou o Nobel da Paz em 2021, pouco mais de dois meses antes da invasão russa.

"Esse é o tempo que a comunidade internacional, todos os governos democráticos —como o Brasil, que é líder da América do Sul—, precisam enviar uma mensagem clara a [Vladimir] Putin: ele nunca terá nenhuma aliança se não interromper a guerra", disse Martinov à Folha, em entrevista nesta segunda (13).

Para ele, a posição política de isolamento da Rússia é mais relevante que a aplicação de sanções comerciais e, portanto, a forma como a mensagem de repúdio à guerra é entregue deve ser decidida pela diplomacia de cada país.

"[O Brasil] ainda não [deixou clara sua posição]. Eu acredito que é tempo de discutir este ponto. Foi dado um importante passo pelo presidente Lula ao aceitar o convite de [Volodimir] Zelenski para conversar. Eu acho que depois que ele olhar com seus próprios olhos, ele entenderá que há dois lados do conflito: a vítima e o agressor."

A posição de Martinov é compartilhada por Pavel Andreiev, ativista de direitos humanos e membro do Conselho de Administração da ONG Memorial —vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2022.

"Por um lado, eu entendo a posição [do Brasil] de definir estrategicamente sua diplomacia, mas, após um ano de guerra, nós não vimos nenhuma decisão do Brasil", disse. "Todo o mundo deveria dizer que é inaceitável, terrível, e que precisa se encerrar o mais rápido possível o conflito. Só Putin consegue encerrar a guerra de uma vez por todas. É uma decisão dele."

Os dois russos integram uma comitiva, organizada pela União Europeia, que realiza uma série de viagens por países da América do Sul para discutir a Guerra da Ucrânia. Os objetivos incluem entender como ocorreu o processo de redemocratização nos países da América do Sul após os regimes militares, para compartilhar experiências.

A Guerra da Ucrânia em 2022

No Brasil, o grupo deve se encontrar com integrantes do MPF (Ministério Público Federal) e com o ministro André Mendonça, do STF (Supremo Tribunal Federal). Todas as reuniões têm sido moderadas pelo jornalista russo Konstantin Eggert. Assim como Martinov, Eggert deixou o país devido aos constantes ataques a jornalistas e aos fechamentos de jornais desde o início do governo Putin.

"O principal inimigo dos autocratas é o tempo. Eventualmente, as pessoas começam a ficar cansadas, e esse é o momento em que Putin sofrerá danos", afirma.

Pavel Andreiev, da ONG Memorial, vencedora do Nobel da Paz em 2022, durante evento no Parlamento do Uruguai - 6.mar.23/Departamento de Fotografia do Parlamento do Uruguai

Na visão dos visitantes russos, diferentemente da experiência brasileira com as notícias falsas, o embate promovido na Rússia é para a ampliação do uso das mídias sociais. No país, a população é proibida de usar Facebook, Twitter e Instagram. Organizações não governamentais, porém, avaliam que até 5% dos russos usam softwares para driblar a censura de Putin e acessar as plataformas.

"Houve uma queda no acesso ao Instagram: no início do ano passado, o Instagram tinha cerca de 30 milhões de acessos por semana. Agora, eles têm somente 5 milhões —equivalente a 3% ou 5% da população da Rússia", diz Andreiev.

Para Martinov, é por meio desse mecanismo que a mídia independente na Rússia continua a reproduzir seus conteúdos —por menor que seja o alcance. O desafio atual é manter o interesse das pessoas em acompanhar o noticiário sobre a guerra e a violação aos direitos humanos após um ano de más notícias.

Manifestações a favor da Ucrânia no mundo

"Neste momento, nós estamos lutando não somente contra esse problema técnico [de acesso às reportagens], mas também contra o problema cultural. O desafio é fazer as pessoas terem interesse no que nós estamos fazendo", conta.

A repressão do governo russo contra os veículos de comunicação aumentou desde o início do conflito na Ucrânia. A Rússia, por exemplo, determinou que é crime chamar o que acontece no Leste Europeu de "guerra" —a expressão usada pelo governo de Putin é "operação militar especial".

"O último ano foi muito duro para todos na Rússia. Pessoas que lutam pelos direitos humanos viram com a guerra que seus sonhos foram destruídos. Isso desanima", alega Muratov, com a ressalva de que o Nobel da Paz dado à ONG Memorial foi importante para "motivar os ativistas a seguirem no trabalho pela paz e pelos direitos humanos".

"A estratégia da propaganda russa é tentar mostrar que o mundo inteiro está contra nós, que todos odeiam a Rússia. Essa é a narrativa deles. Por isso, é tão importante mostrar internacionalmente que os russos ainda acreditam no futuro da democracia de nosso país. Isso quebra a narrativa deles", afirma.

Cézar Feitoza, de Brasília - DF, para a Folha de S. Paulo, em 13.03.23

Dez anos com Francisco, o primeiro papa realmente global

Escolha do argentino Jorge Bergoglio como líder da Igreja, em 13/03/2013, foi uma guinada para o catolicismo mundial. Entre profecia e dúvida cautelosa, ele abre novos caminhos – mas também desperta resistência.

"Vocês sabem, era tarefa do conclave dar um bispo a Roma. Parece, meus irmãos, que os cardeais foram até quase o fim do mundo para trazê-lo..."

Apenas poucos conheciam o eclesiástico que, a partir da sacada da Basílica de São Pedro, assim se dirigia ao mundo. Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, nunca chamara especialmente a atenção da mídia. Por isso, muitos dos presentes perguntaram "Jorge quem...?", quando, naquele 13 de março de 2013, seu nome foi anunciado.

Os especialistas em Vaticano, porém, sabiam imediatamente que em 2005 o argentino de então 76 anos já concorrera à sucessão do papa João Paulo 2º, mas fora preterido em favor do alemão Joseph Ratzinger, futuro Bento 16.

Dez anos mais tarde, há quem diga não saber exatamente quem é esse pontífice e que posição ele defende. Em geral, apresenta-se extremamente próximo dos fiéis, mas em outros momentos parece distante. Um fato, pelo menos, é indiscutível: o papa Francisco é diferente de todos os seus antecessores.

No Parlamento Europeu, em novembro de 2014, Francisco apelou por uma política de imigração unificada e justaFoto: Patrick Seeger/AP Images/picture alliance

Em defesa dos marginalizados

Uma novidade adicional foi ele ser o primeiro líder do catolicismo a escolher o nome "Francisco". Apesar de louvarem com frequência o italiano Francisco de Assis (1181/82-1226) e sua doutrina da pobreza radical, ninguém se decidira até então adotar esse nome de peso programático.

"O papa Francisco é um jesuíta franciscano", define o correspondente holandês no Vaticano Hendro Munstermann. "Ele tem o caráter profético de Francisco de Assis, dá valor à pobreza, a simplicidade, ao meio ambiente, ao diálogo interreligioso. Como o santo do século 13, ele quer consertar a Igreja, porque ela está quebrada."

O teólogo observa e analisa Francisco desde o início do pontificado. Diversos pequenos sinais já apontavam para pobreza e singeleza: o eclesiástico de sapatos surrados não se instalou nas residências do Palácio Apostólico, mas na casa de hóspedes do Vaticano. Repetidamente, ele coloca no centro de suas atenções os indivíduos marginalizados pela sociedade: refugiados, migrantes. Quando viaja, é num pequeno automóvel de marca italiana.

Grandes palavras são o outro lado da moeda desses pequenos gestos. Com a enclícica Laudato si' (Louvado sejas), dedicada ao meio ambiente, ele ocupou as manchetes mundiais em 2015, ao exortar um cuidado maior com a divina criação. Ao mesmo tempo, tratou-se de uma sutil tentativa de influenciar a Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas, realizada em novembro-dezembro do mesmo ano, em Paris.

Apesar de mobilidade reduzida, pontífice permanece ativoFoto: Nathan Denette/The Canadian Press/AP/dpa/picture alliance

Muitas das 40 viagens de Francisco ao exterior o levaram até as margens extremas da comunidade mundial ou das respectivas sociedades nacionais. Quanto mais perdura seu papado, mais severas se tornam suas críticas aos países industrializados e, em especial, aos europeus.

Esse fato pode ser interpretado como uma reviravolta, se não geopolítica, pelo menos da geopolítica eclesiástica: Bergoglio não é europeu, e isso numa Igreja Católica tradicionalmente de cunho europeu e de ideologia eurocêntrica.

"Está claro que Francisco é o primeiro papa realmente global, um papa não ocidental que libertou a religião das ideias de uma classe média moralista burguesa que ainda definiam o que é catolicismo", analisa o historiador eclesiástico Massimo Faggioli.

Em busca da sinodalidade

Será que o catolicismo está se despedindo da Europa? A ideia se impõe, ao examinar as estatísticas: segundo as mais recentes, divulgadas no princípio de março, 1,378 bilhão professam a fé católica.

A cada ano, cresce a participação da África e da Ásia na cifra global, enquanto na Europa ela está estagnada. A tendência entre os eclesiásticos e membros de ordens é semelhante. Além disso, as diversas variedades da fé se distanciam entre si: a Igreja Católica universal aparentemente se tornou uma multiplicidade de Igrejas católicas.

Quando o papa argentino assumiu, escândalos de abuso sexual abalavam a Igreja em regiões totalmente diversas. Pelo menos é o que se acreditava na época: hoje, a questão da violência sexual perpetrada por homens da Igreja é, de fato, um tema global, e Francisco encara essa situação dramática de modo mais incisivo do que seus antecessores.

Abuso sexual nas Igrejas cristãs é um problema de longa dataFoto: Piotr Lapinski/NurPhoto/picture alliance

Para alguns membros do Vaticano, ele vai longe demais, ao atacar o problema na essência, prescrevendo à Igreja uma reflexão sobre si mesma. E para esse fim, aposta em muito mais diálogo, mais intercâmbio de ideias e mais tolerância a opiniões contrárias do que estão acostumados os fiéis, após tantos anos de liderança autoritária a partir da Santa Sé.

Na linguagem eclesiástica, o termo para essa consciência dialógica é sinodalidade: ele significa, aproximadamente, que a Igreja caminha em conjunto e em intercâmbio recíproco. Com os antecessores, os sínodos episcopais no Vaticano eram eventos de autoafirmação pré-fabricados; Francisco deseja debates abertos e mesmo polêmicos.

O que não significa que os impulsos sempre resultem em mudanças concretas. O historiador Faggioli exemplifica: "O que vai ser do papel das mulheres na Igreja, no diaconato, mas também nos cargos eclesiásticos em geral?" A questão também se coloca em relação a novas reformas teológicas e estruturais, sobretudo no que diz respeito à liderança da Igreja.

Papa recebeu bispos do Brasil no Vaticano em 20/10/2022Foto: Vatican Media/Catholic Press Photo/IPApicture alliance

Mistura de profecia e dúvida que intranquiliza os fiéis

O teólogo Munsterman enfatiza que "o profético e cautelosamente duvidoso se combinam no papa Francisco". Desse modo, porém, ele intranquiliza a todos, "os que querem mudanças (e têm esperanças de decisões rápidas), e os que, pelo contrário, querem deixar tudo como era; ou, quem sabe, até mesmo voltar aos bons velhos tempos da Baviera de Bento 16".

Francisco já é um dos papas mais idosos da história do catolicismo, mais do que Bento 16 (2005-2013) quando renunciou, ou do que João Paulo 2º (1978-2005) ao morrer. Agora, muitas vezes ele se locomove de cadeira de rodas, durante as viagens seu programa é mais restrito. Porém é certo que a Igreja Católica e o pontificado atuais não são mais os mesmos que em 2013.

O líder "pensa em termos de processos", afirma Munstermann: seu discurso profético coloca trajetórias em andamento e tem a intenção de desafiar. Ao mesmo tempo, o pontífice da ordem jesuíta pretende guiar espiritualmente esses processos.

Para Faggioli, o maior problema é "o resultado aberto, ainda incerto" do caminho em direção à sinodalidade: "Esta é a maior aposta." E para o significado de longo termo do papa Francisco, "os próximos dois anos serão decisivos".

Christoph Strack para Deutsche Welle Brasil. Publicado originalmente em 13.03.23

segunda-feira, 13 de março de 2023

A irritação da cúpula das Forças Armadas com o escândalo das joias do casal Bolsonaro

Integrantes da cúpula das Forças Armadas não escondem sua irritação com o caso das joias da Arábia Saudita que tinham como destino o casal Bolsonaro, mas que foram apreendidas pela Receita Federal.

Bolsonaro e as joias apreendidas pela Receita Federal (Foto do Arquivo)

A principal preocupação é referente ao número de militares envolvidos diretamente no escândalo e as possíveis consequências que as investigações podem ter para a imagem das Forças.

Só nos fatos centrais, de trazer as joias de R$ 16,5 milhões sem declarará-las ao Fisco e tentar reaver as peças de diamantes, há quatro militares envolvidos diretamente no caso: o almirante de esquadra da Marinha e ex-ministro Bento Albuquerque, o primeiro-tenente da Marinha e ex-assessor de Bento, Marcos Soeiro, o tenente-coronel do Exército e ex-ajudante de ordem de Jair Bolsonaro, Mauro Cid, e o primeiro-sargento da Marinha, Jairo Moreira da Silva.

Além disso, eles apontam o desgaste com a exposição do uso de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) na tentativa de Jair Bolsonaro de reaver as joias, assim como o transporte de fuzil e pistola nas aeronaves militares durante o governo passado.

A avaliação de integrantes da cúpula das Forças é que o escândalo envolvendo diretamente quatro militares traz prejuízos diretos à imagem da corporação, que já foi afetada pela atuação partidária de alguns de seus membros. Para eles, a situação pode se agravar ainda com o desdobramento das investigações da Polícia Federal que apura crimes como descaminho e advocacia administrativa, entre outros.

Por isso, a ordem direta dada aos militares que protagonizam o escândalo é que mantenham silêncio e evitem qualquer manifestação pública sobre o tema. O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, foi alvo de queixas do comando do Exército, por ter falado publicamente sobre o caso.

Segundo aliados de Cid, ele tentou justificar que buscava “se defender” ao falar com jornalistas sobre o tema, mas a orientação para que ele submerja foi expressa. Nesta semana, a tensão segue alta na caserna sobre as consequências que depoimentos à PF podem trazer à imagem das Forças.

Bela Megale, a autora deste artigo, é repórter d'O Globo, especializada em investigações criminais, bastidores do poder e a vida política de Brasília. Publicado originalmente em 13.03.23