domingo, 12 de março de 2023

O salvacionismo lulopetista

Dino diz que, se Lula falhar, ‘abre espaço para a emergência do golpismo’, como se houvesse o imperativo moral de apoiar o governo. Mas a oposição não é feita só de golpistas

O governo Lula da Silva escolheu o tipo de oposição que mais lhe apraz. É essa direita radical, ignorante e golpista que, há cerca de dez anos, deixou de ser uma franja no mosaico político-ideológico da sociedade brasileira para se tornar uma força política capaz de mobilizar parcela considerável dos eleitores, culminando na eleição de um inimigo declarado da Constituição de 1988 para a Presidência da República no ano em que a Carta “cidadã” completou três décadas de vigência.

Não é novidade para ninguém que tanto o presidente Lula como seus partidários cultivaram a polarização política com Jair Bolsonaro com profundo esmero, para desventura do Brasil. As razões para esse mutualismo e seus efeitos deletérios, em que pesem as muitas diferenças que há entre o petista e sua nêmesis, já foram escrutinadas muitas vezes por este jornal, nesta mesma página.

A novidade é a tentativa do governo de reavivar o discurso da polarização com a direita radical no momento em que os fatos – notadamente a derrota de Bolsonaro em sua campanha pela reeleição e o assalto às sedes dos Três Poderes no fatídico 8 de Janeiro – começam a empurrar os extremistas de volta para o nicho da irrelevância ao qual eles sempre pertenceram. Tamanhos foram os reveses sofridos pela direita radical que alguns de seus notórios representantes já começam a dar passos públicos no sentido de uma certa moderação.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, resumiu esse movimento do governo em entrevista ao Estadão, publicada no dia 25 passado. Perguntado se o Planalto temia a reorganização dos grupos extremistas a partir do retorno de Bolsonaro ao País, Dino respondeu, com razão, que “esse ethos golpista, terrorista, do vale-tudo, continua aí, em um estado de latência”. Entretanto, o seu reavivamento, disse o ministro, dependerá das respostas dadas pelo próprio governo às prementes necessidades do País. “A pergunta é: o governo Lula vai melhorar a vida do povo brasileiro? Se a resposta for sim, o golpismo tende a ser uma força declinante. Se o governo enfrentar dificuldades no resultado, aí abre espaço para a emergência do golpismo.”

O busílis está nessa formulação marota segundo a qual o golpismo será mais ou menos forte no País a depender das eventuais “dificuldades” que o governo Lula terá de “enfrentar” para levar a cabo seus planos e, assim, produzir o “resultado” que dele se espera. Subjaz nesse discurso do ministro da Justiça um imperativo quase moral de a sociedade brasileira abraçar incondicionalmente a agenda do governo Lula e do PT, nos seus termos, ou a democracia morre no País. Era só o que faltava.

As críticas que porventura a sociedade brasileira possa fazer ao governo Lula – e as quais este jornal não se furtará a fazer quando julgar que é o caso – fazem parte de qualquer democracia digna do nome. Um eventual fracasso do governo Lula não resultará no fim da democracia – convém lembrar que outros governos fracassaram e não houve ruptura. Ademais, se o governo Lula não entregar o que prometeu, será por sua inteira responsabilidade, e não em razão das críticas que receber.

Para neutralizar a retórica salvacionista do lulopetismo, no entanto, é dever cívico da direita civilizada e democrática se recompor. Se, como força política representativa, essa direita será capaz de gerar uma liderança que conquiste corações e mentes da maioria dos eleitores, o tempo vai dizer. Para a democracia liberal, no entanto, importa apenas que ela seja capaz de formular soluções responsáveis para os problemas do País e que tenha voz. Os valores da democracia devem estar constantemente presentes no debate público.

A enorme dificuldade que Lula teve para derrotar Bolsonaro no segundo turno da eleição passada autoriza a inferência de que, fosse outro o adversário do petista – um representante da direita responsável, liberal e democrática –, talvez Lula não tivesse saído vitorioso daquele pleito. O presidente decerto sabe disso, daí seu estímulo à sobrevivência política do golpismo bolsonarista como espécie de fantasma a assombrar a democracia brasileira – que só Lula, evidentemente, se julga capaz de salvaguardar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em  12.03.23

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