segunda-feira, 13 de março de 2023

A ideologia petista

Já é hora de o governo do PT revisar suas posições, sob pena de produzir intolerância, instabilidade institucional, insegurança jurídica e a radicalização política

O que seja um governo de esquerda nos novos moldes petistas, diferente, por exemplo, do primeiro governo Lula ou o do presidente Fernando Henrique, parece ser uma fonte de desorientação dos novos governantes e líderes partidários. O que mais se sobressai são palavras vagas acerca da redução da desigualdade social, o que não caracteriza algo novo, pois até os liberais compartilham dos mesmos valores.

Talvez seja mais adequado atentarmos às políticas de esquerda no mundo e seus reflexos no País. Se observamos o discurso petista atual, sobressaem-se dois aspectos que, com certa dificuldade, entram em sintonia. Ora um ganha a frente, ora o outro, com os dois grupos frequentemente se contrapondo. De um lado, o discurso tradicional, de origem marxista, anticapitalista, contra a economia de mercado e a propriedade privada; de outro, a nova narrativa identitária, centrada em questões de gênero e de costumes em geral, embora essa última não seja tampouco exclusiva da esquerda, sendo compartilhada por liberais.

No que toca ao primeiro ponto, sua expressão mais utilizada consiste na fraseologia da luta de classes, no apoio à ditadura de Ortega, na consideração da propriedade privada como uma forma de usurpação, traduzindo-se em seu desrespeito, e na percepção do mercado como uma articulação de pessoas desalmadas, como se ele não obedecesse a suas próprias regras, para além das empresas e indivíduos. Pelo menos na versão marxista, o capitalismo, em razão de seu processo intrínseco, corria para sua própria derrocada, ato inaugural do surgimento de uma sociedade socialista e comunista.

Ocorre que o capitalismo não só não se extinguiu, como propiciou novas formas de desenvolvimento econômico e social, criando o Estado de Bem-estar Social, engendrando a democracia representativa e amplas formas de liberdades, de pensamento, civis e políticas. As experiências comunistas redundaram no despotismo, na violência e no terror, com a fome atingindo amplas parcelas de suas populações, casos da Rússia e da Ucrânia – ainda unidas, naquele então, à União Soviética. A única experiência de esquerda bem-sucedida foi a da social-democracia, com o seu reconhecimento da economia de mercado, da propriedade privada, das liberdades e do Estado de Direito.

Aqui, no Brasil, a social-democracia é considerada pelos petistas como de direita, não se sabe bem por qual razão. Talvez por receio de que o seu reconhecimento equivaleria a uma mudança necessária de orientação programática e partidária. Sobraram, assim, narrativas vagas dos “ricos contra os pobres”, permeadas recentemente por ataques ao Banco Central como se fosse um centro de rentistas contra os pobres, para além da defesa do Estado enquanto instrumento de desenvolvimento econômico, inclusive com o fortalecimento de empresas estatais. Nem tal posição, no entanto, corresponderia ao pensamento marxista, mas à sua forma leninista, trotskista e stalinista. O resultado só pode ser a desorientação governamental.

No que toca ao segundo ponto, a experiência pós-queda do Muro de Berlim e de desmantelamento da União Soviética levou a esquerda mundial, atordoada, à busca de novos valores que poderiam orientar a sua ação. Sua luta passou a centrar-se nos costumes e na moral, com questões de gênero ganhando a cena. É como se os problemas sociais pudessem ser resolvidos não mais pela luta de classes, mas pela luta de gêneros em suas mais distintas figuras.

Surgem, aqui, duas facetas: uma, a da intolerância, na medida em que qualquer questionamento dessas posições leva a qualificativos depreciativos, como se a pessoa fosse portadora de alguma fobia; a outra é a de que tais transformações deveriam ser conduzidas e impostas pelo Estado, e não fruto de necessárias transformações sociais, que consideram os valores em mutação, como ocorreu com os direitos civis, a igualdade racial e a emancipação das mulheres. Quando partem da sociedade, tornam-se progressivamente consensuais, e os novos valores são por todos compartilhados. Se são meramente impostos, provocam reações dos setores conservadores, que terminam politicamente por afirmar os valores existentes.

Se o atual governo Lula, diferentemente do seu primeiro mandato, salvo no quesito de apoio à invasão de propriedades rurais, perseverar em seu espírito anticapitalista – ou, melhor, de capitalismo de compadrio – e insistir em sua concepção de Estado ancorada na irresponsabilidade fiscal e na tolerância com a inflação, só produzirá conflitos insolúveis e o enfraquecimento do mesmo Estado que diz fortalecer, prejudicando os mais pobres e os desvalidos. Se insistir numa pauta identitária, conduzida pelo Estado, e não consoante com os progressos sociais e culturais, caminhará para enfrentamentos que, no passado, já elegeram Bolsonaro.

Já é mais do que hora de o governo petista revisar suas posições, sob pena de produzir a intolerância, a instabilidade institucional, a insegurança jurídica e a radicalização política.

Denis Lerrer Rosenfield, o autot deste artigo, é Professor de Filosofia na Univrsidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS. Publicado originariamente n'O Estado de S. Paulo, em 13.03.23

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