terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Desafio e humilhação de Putin

Não há mensagem de maior força política ou mesmo significado militar do que a visita de Biden a Zelenski

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky (à esquerda) e seu colega americano Joe Biden diante de uma placa dedicada ao presidente dos EUA em Kiev na segunda-feira. (Foto: SERVIÇO DE IMPRENSA PRESIDENCIAL DA UCRÂNIA - EFE)

Por surpresa. Acompanhado por sirenes de alarme. Em dias importantes e altamente simbólicos, o primeiro aniversário da invasão russa e o nono aniversário do massacre dos mártires de Euromaidan, os cerca de cem manifestantes crivados de balas pelos provocadores e pela polícia especial de Victor Yanukovych, o então presidente Putinista expulso, justamente quando a invasão russa de Donbass e a anexação da Crimeia começaram sub-repticiamente. Com as imagens altamente significativas transmitidas pela televisão para todo o mundo da caminhada de ambos os presidentes pelo centro monumental da capital, as impressionantes lâmpadas douradas da Catedral de San Miguel e a parede Maidan onde é venerado o Cem Celestial, aqueles que caiu em 2014, recebeu o nome do tipo de unidade guerreira cossaca e se tornou o motivo da mais alta condecoração por coragem civil concedida pelo governo àqueles que lutam pela liberdade, democracia e direitos humanos.

Tem sido uma visita inusitada, histórica como poucas. Não há mensagem de maior contundência ou significado político, mesmo militar. Putin quer destruir a nação ucraniana com a guerra e o presidente dos Estados Unidos, comandante-em-chefe do exército mais poderoso do mundo, vai à sua capital garantir pessoalmente ao seu presidente, Volodimir Zelensky, que não permitirá o ditador russo para fazer o que quer ou lidar, com o revés que significaria a derrota da Ucrânia, uma derrota para a democracia e a ordem mundial civilizada, regida pelas regras.

A viagem de Biden a Kiev de trem da Polônia não era óbvia, sem a possibilidade de usar os pesados ​​​​e blindados meios aéreos do exército dos EUA. Foi repleto de riscos e um desafio de um presidente de 80 anos a um ditador dez anos mais novo que vive em reclusão e isolamento no Kremlin e apenas ocasionalmente se aventurou de forma extremamente cautelosa e breve na Crimeia, ocupada por seu exército.

Biden chegou a Kiev em um momento especial, no qual todas as partes colocam suas cartas na mesa. Os militares de uma extensa ofensiva russa que se anuncia especialmente na frente entre Donbass e Crimeia para o início da primavera, talvez na próxima sexta-feira, coincidindo com o aniversário exato da invasão, embora muitas fontes militares sejam céticas sobre as capacidades russas, consideram que a operação já começou e está obtendo resultados muito medíocres. Também os diplomatas, após a implantação de cargos observados no último fim de semana na Conferência de Segurança de Munique, em que o anúncio de um plano de paz por Pequim criou enormes expectativas e não poucas sensibilidades, coincidindo com os temores expressos por Washington quanto à chegada de suprimentos militares chineses a Moscou.

A identificação de Biden com as posições do governo Zelensky, expressa com extrema clareza em Munique no debate entre o secretário de Estado, Antony Blinken, e o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, constitui o quadro em que as propostas de paz vindas de Pequim, dificilmente aceitáveis ​​se se limitarem a um frágil cessar-fogo que sirva para reabastecer as tropas russas ou se não contemplarem a restauração da integridade territorial e da soberania nacional da Ucrânia garantida por todos os tratados e pactos internacionais, incluindo a Carta das Nações Unidas, à qual a Rússia está vinculado. Elas se resumem em poucas palavras de Biden com ressonâncias épicas e comprometedoras: “Um ano depois, Kiev resiste, a Ucrânia resiste, a democracia resiste”.

Luís Bassets, o autor deste artigo, escreve colunas e análises sobre política, especialmente política internacional, para o EL PAÍS. Ele escreveu, entre outros, 'O ano da Revolução' (Taurus), sobre as revoltas árabes, 'A grande vergonha. Ascensão e queda do mito de Jordi Pujol' (Península) e um diário pandêmico e confinado com o título de 'Les ciutats interiors' (Galaxia Gutemberg). Publicado originalmente em 21.02.23

Putin não quer e não irá negociar

Discurso do presidente russo deixa claro que acordos com a Rússia não são possíveis no momento – e talvez nunca mais sejam, opina Christian Trippe

Putin culpa o Ocidente pela guerra na Ucrânia (Foto: REUTERS)

A pergunta deve ser feita: vale mesmo a pena comentar o discurso sobre o estado da nação feito pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin? É mesmo necessário analisar, de novo, com quais mentiras Putin justifica sua guerra à Ucrânia?

É o Ocidente que é responsável por tudo, foi o Ocidente que começou a guerra na Ucrânia – é nessas acusações insolentes que Putin resume sua loucura revisionista. Mas ele as usa como ponto de partida para considerações que deixam entrever além da superfície.

Mais uma vez, Putin sustenta que sua guerra de conquista na Ucrânia é uma guerra de defesa contra o Ocidente. Essa derivação absurda é normalmente designada como mera narrativa de propaganda e, com isso, minimizada. Pois analisa de forma superficial aquele que vê nessa afirmação apenas um meio retórico de um ditador que quer cerrar fileiras, atiçar sentimentos patrióticos e mobilizar a sociedade e o setor produtivo.

Há muito que Putin se tornou prisioneiro de sua própria propaganda. O seu desvario cesarista – ou melhor, czarista – revela profundos sentimentos feridos que se refletem no povo russo. Pois, na Rússia, não é só a elite no Kremlin ou nas Forças Armadas que sente de fato a dor imaginária de uma potência mundial caída.

Cheio de complexos

É no contexto desse sentimento, tanto complexo quanto cheio de complexos, que Putin recebe aplausos por sua afirmação de que é a existência da Rússia que está em jogo.

Uma análise tão fixada no aspecto psicológico, e com isso necessariamente politicamente ilógica, não deve afastar o olhar dos enormes interesses imperialistas de uma país que promove a guerra.

Porém, depois deste discurso, no qual Putin quebrou mais algumas pontes com o Ocidente, ficou ainda mais claro como será difícil retornar àquele denominador comum que é requisito para se conversar.

Observadores esperavam que Putin fosse declarar oficialmente guerra à Ucrânia, que ele fosse anunciar uma nova onda de mobilizações, declarar a lei marcial, fechar as fronteiras da Rússia, fazer novas ameaças de guerra atômica.

Nada disso. Putin anunciou que não quer mais negociar com os Estados Unidos sobre um acordo para limitar as armas nucleares. Negociações de desarmamento, de paz ou de cessar-fogo não são, no momento, possíveis com a Rússia de Putin – esse é o triste resumo desse discurso. Talvez não sejam até impossíveis com esse regime formado por uma claque de devotos cegos que o presidente russo reuniu em torno de si.

Contraste entre Putin e Biden

Ao se referir à guerra na Ucrânia, Putin foi estranhamente vago. Mas ele deixou entrever que os combates ainda vão durar muito, e que ele, consequentemente, aposta numa guerra de desgaste. Seu cálculo geopolítico é evidente: Putin aposta que, no fim do ano que vem, os Estados Unidos vão eleger um presidente que não priorize as relações transatlânticas tanto quanto Joe Biden. Que na Casa Branca estará um republicano que não estará mais disposto a garantir a sobrevivência da Ucrânia com envios de armas e transferências de dólares.

Putin prepara seu país para um confronto longo, duradouro e, sob todas as perspectivas, custoso, e defende um isolamento contra o Ocidente.

Enquanto isso, Biden viaja pela Europa, mostra-se numa Kiev marcada pela guerra, apresenta-se em Moscou como o líder do mundo livre.

O contraste entre os discursos desses dois presidentes não poderia ser maior.

Christian Trippe, o autor deste artigo, é o Chefe do Departamento Leste Europeu da Deutsche Welle. Publicado originalmente em 21.02.23

"Ucrânia jamais será uma vitória para a Rússia", diz Biden

Em discurso na capital da Polônia após ida surpresa a Kiev, presidente americano alerta para dias "duros e difíceis" pela frente e reforça apoio dos EUA contra invasão russa.

Um dia após sua visita não anunciada a Kiev, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou nesta terça-feira (21/02) durante um discurso na capital da Polônia, que a Ucrânia "jamais será uma vitória para a Rússia".

"Um ditador determinado a reconstruir um império jamais conseguirá diminuir o amor do povo pela liberdade. A brutalidade jamais vai triturar a vontade dos livres. A Ucrânia jamais será uma vitória para a Rússia – jamais", disse Biden a uma multidão reunida diante do Castelo Real de Varsóvia.

Biden alertou que haverá "dias duros e difíceis pela frente", mas disse que os Estados Unidos e seus aliados irão "apoiar a Ucrânia" em um momento que a guerra de agressão russa entra no seu segundo ano.

"Há um ano, o mundo estava se preparando para a queda de Kiev", disse Biden. "Eu posso dizer: Kiev segue forte, Kiev segue com orgulho, de pé, e o mais importante: livre."

Um pouco antes, o presidente russo, Vladimir Putin, proferiu um discurso em que prometeu seguir com a guerra na Ucrânia, culpou o Ocidente pelo conflito e anunciou a suspensão da participação do país no tratado de desarmamento nuclear New Start.

Polônia: rota de armas e refugiados

No início desta terça-feira, Biden encontrou-se com o presidente polonês, Andrzej Duda, um dos mais eloquentes defensores de um apoio do Ocidente mais forte a Kiev.

Duda disse que a visita de Biden mostrou o compromisso dos EUA em manter a segurança na Europa, e descreveu a parada de Biden em Kiev como um "gesto incrível".

A Polônia tem a mais longa fronteira da Otan com a Ucrânia e tem sido a principal rota de entrada de armas e de ajuda humanitária e de saída para os refugiados.

"Apelo a todos os Estados europeus, Estados da Otan, para que se mostrem solidários com a Ucrânia, para que deem apoio militar à Ucrânia", disse Duda.

A Polônia esteve sob o domínio comunista por quatro décadas até 1989 e foi membro da aliança de segurança do Pacto de Varsóvia, liderado por Moscou. Agora faz parte da União Europeia e da Otan.

Biden saudado por poloneses e refugiados ucranianos

A visita de Biden foi bem recebida pelos poloneses e pelos cerca de 1,5 milhão de ucranianos, em sua maioria mulheres e crianças refugiadas do conflito, que agora vivem no país.

Muitos pediram um apoio mais arrojado do Ocidente a Kiev, incluindo o fornecimento de jatos de combate, que Biden tem se negado a oferecer.

"Esperamos que eles [os EUA] aumentem o envio de armas, que as coisas na frente de batalha melhorem e que nós vençamos", disse Alina Kiiko, 32 anos, ucraniana, no centro de Varsóvia.

Na rotatória Roman Dmowski, no centro da cidade, uma gigantesca tela publicitária exibia o apelo em inglês: "Biden, give F-16 to Ukraine" (Biden, dê F-16 à Ucrânia), referindo-se aos aviões de caça americanos pedidos por Kiev.

Mais apoio e sanções

Enquanto Biden esteve em Kiev na segunda-feira, o Departamento de Estado dos EUA anunciou uma nova rodada de apoio à Ucrânia, incluindo 450 milhões de dólares em munições de artilharia, sistemas antiblindados e radares de defesa aérea, e 10 milhões de dólares para infraestrutura de energia.

No final desta semana, Washington anunciará sanções adicionais contra indivíduos e empresas que estão "tentando fugir das sanções e encher a máquina de guerra russa", disse um porta-voz da Casa Branca.

Há um ano, Biden alertou países aliados então céticos de que um acúmulo maciço de tropas russas ao longo das fronteiras da Ucrânia seria o precursor da guerra. Na época, mesmo alguns dentro de seu próprio governo questionavam a capacidade da Ucrânia de resistir a uma invasão por um inimigo muito mais poderoso.

Mas as forças ucranianas seguraram Kiev e expulsaram a Rússia de parte do território que ela tomou nas primeiras semanas da guerra, apoiada por armas, munições e equipamentos ocidentais.

Os Estados Unidos já enviaram mais de 24 bilhões de dólares em assistência de segurança à Ucrânia, mas as autoridades americanas estão se preparando para uma sangrenta ofensiva da Rússia na primavera europeia, e dizem que a guerra pode continuar por muitos meses mais ou mesmo anos.

Publicado oriiginalmente por Deutsche Welle Brasil, em 21.02.23

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Cuidado com o que se deseja

Plano petista de apresentar PEC sobre Forças Armadas, como forma de combater interpretações golpistas do artigo 142, erra no diagnóstico do problema e dá margem a graves retrocessos

O PT planeja levar adiante, depois do carnaval, uma articulação na Câmara dos Deputados para obter as 171 assinaturas necessárias para apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre as Forças Armadas, informou o Estadão. O objetivo é reformular o art. 142 da Constituição, para proibir a participação de militares da ativa em cargos públicos e excluir as chamadas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Em 2020, uma tentativa similar do partido não prosperou. Agora, depois dos atos do 8 de Janeiro, os deputados petistas Carlos Zarattini e Alencar Santana, autores da proposta, entendem que existem condições para reapresentar o tema. “Achamos que esse é o melhor momento para resolver o problema do artigo 142, porque houve uma tentativa de golpe, e a extrema direita está mais fraca”, disse Zarattini.

Não há dúvida de que o texto constitucional pode ser aprimorado; por exemplo, a proibição de militares da ativa em postos do governo representaria um aperfeiçoamento institucional. No Estado Democrático de Direito, o poder político deve ser exercido exclusivamente por civis. No entanto, é preciso advertir dois pontos importantes sobre o assunto.

Em primeiro lugar, o art. 142 da Constituição não representa rigorosamente nenhum problema. Resultado de negociação durante a Assembleia Constituinte, ele estabelece corretamente o papel das Forças Armadas dentro do Estado Democrático de Direito. Depois de defini-las como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República”, a Constituição explicita a sua finalidade: “Destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

A interpretação, aventada por setores da extrema direita, de que o art. 142 atribuiria um papel de poder moderador às Forças Armadas é pura invenção de quem discorda do funcionamento do Estado Democrático de Direito e, em concreto, do princípio da separação de Poderes. O texto da Constituição não autoriza essa leitura. As Forças Armadas estão submetidas ao poder civil, e não o contrário.

Pior ainda é o discurso dos que, incapazes de pôr limites a seus devaneios golpistas, pregam a possibilidade de uma intervenção militar com base no art. 142 da Constituição. Trata-se de cabal loucura, violência explícita contra toda a ordem constitucional.

Essas duas criações interpretativas, sem nenhum respaldo no texto, não constituem, portanto, motivo para alterar a Constituição. O problema não está na redação do art. 142, e sim na cabeça dos golpistas. Mais do que mudar o dispositivo constitucional – como se a desinformação sobre o art. 142 tivesse algum fundamento na realidade –, é preciso difundir, explicar e consolidar o que a Constituição já prevê para as Forças Armadas.

O segundo ponto refere-se à necessária prudência sobre tema tão sensível. Ainda que se possa vislumbrar a possibilidade de aperfeiçoamento da Constituição a respeito das Forças Armadas, não se deve ignorar o cenário atual de desinformação, com reflexos sobre o próprio Congresso. Colocar em tramitação, nos tempos atuais, uma PEC sobre as Forças Armadas é comportamento de alto risco, rigorosamente temerário, que pode suscitar não pequenos retrocessos. Com todas as ressalvas que possam ser feitas, a Constituição de 1988 assegura, em relação às Forças Armadas, os pontos essenciais para o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito.

Não raro, tem-se a ilusão de que uma alteração legislativa – no caso, uma Emenda Constitucional – pode ser a grande solução para os problemas relativos a determinado tema. De fato, muitas vezes o que faz falta é uma boa e equilibrada reforma legislativa, provendo um novo marco jurídico. No entanto, quando a origem do problema não é o texto da Constituição, alterá-lo não muda os termos da questão. Além de alimentar as falsas percepções, atiça os oportunistas de plantão. É melhor que fique como está.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.02.23

Como o maior peixe da Amazônia foi parar nos rios do interior de São Paulo

Conhecido por ser um dos maiores peixes de água doce do mundo, o pirarucu -Arapaima gigas -, popularmente conhecido como "bacalhau do Norte", pode ultrapassar os 3 metros de comprimento e pesar até 220 quilos. No interior de São Paulo, exemplares de até 150 quilos já foram pescados.

Izael com pirarucu de 113 quilos (Arquivo Pessoal)

Dizer que pescou um pirarucu nos rios do interior de São Paulo não é história exagerada de pescador. Com comprimento maior que uma pessoa adulta, a espécie típica da Bacia Amazônica é capturada com frequência no trecho do rio Grande, entre a Usina Hidrelétrica de Marimbondo e a Usina Hidrelétrica de Água Vermelha, na divisa entre São Paulo e Minas Gerais.

Acostumada a pescar peixes de até 30 quilos, Maria José Melo da Conceição, 59 anos, se assustou quando pegou pela primeira vez o maior peixe de água doce com escamas da Amazônia no rio Grande.

"Lembro que no começo achava que era sucuri pelo tamanho e força. Somente fui saber que tinha pirarucu no rio Grande quando peguei um filhote pesando 33 quilos."

O tamanho do onívoro também chamou a atenção de Izael Gonçalves de Moraes, 41 anos, que pescou um exemplar da espécie com 2,2 metros de comprimento, pesando 113 quilos, justamente no dia do seu aniversário. "Foi a primeira vez que pesquei um peixe desse tamanho. Fiquei até emocionado, pois levei quase uma hora para conseguir tirar da água."

Natural da região da Amazônia, o pirarucu pescado por Izael em outubro de 2022 foi encontrado no trecho do rio Grande, próximo do distrito de São João do Marinheiro, em Cardoso (SP). "Depois desse de 113 quilos, peguei um de 90 quilos e outro de 50 quilos. É um peixe que está se reproduzindo de maneira extremamente rápida pelo rio."

Segundo Rogerio Machado, ecólogo e analista ambiental do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Peixes Continentais (CEPTA), órgão ligado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o rompimento de tanques de piscicultura de criadouros particulares, às margens do rio Grande, possibilitou que os primeiros peixes da espécie pirarucu tivessem acesso ao rio Grande. "Foi quando a espécie encontrou ambiente favorável para se reproduzir, pois não tem predadores naturais", explicou Machado.

Lilian Casatti, pesquisadora do Laboratório de Ictiologia da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de São José do Rio Preto, é uma das cientistas brasileiras que estuda os impactos do pirarucu nos rios do interior de São Paulo.

Ela aponta que a espécie encontrou no trecho do rio Grande, entre a Usina Hidrelétrica de Água Vermelha e a Usina Hidrelétrica de Marimbondo, um ecossistema muito parecido com seu habitat natural na Amazônia, principalmente por conta das águas sem correnteza.

"Os rios dessa região estão muito modificados e para pior. Assim, enquanto as espécies nativas demonstram ser mais sensíveis a essas alterações e por isso estão em declínio; as espécies não nativas, como o pirarucu, são mais resistentes, não demonstram muitas exigências e conseguem aproveitar os poucos recursos que ainda existem", elencou Casatti.

Os primeiros pirarucus foram avistados no trecho do rio Grande, entre a Usina Hidrelétrica de Marimbondo e a Usina Hidrelétrica de Água Vermelha, na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, em 2010. Porém, foi apenas em 2015 que pesquisadores conseguiram fazer o primeiro registro científico da introdução da espécie no local.

"Mesmo sendo um peixe da Bacia Amazônica, o pirarucu se adaptou bem a Bacia Paraná, consequentemente a cada ano que passa estão sendo mais comuns de serem pescados. Inclusive, temos relatos de pescadores que já estão encontrando exemplares pesando até 150 quilos", disse Emerson Mioransi, capitão da Polícia Ambiental da região de São José do Rio Preto.

Izael Gonçaves e a esposa Cintia Moraes com o pirarucu pescado no rio Grande (Arquivo Pessoal)

Impactos ambientais

A introdução de uma espécie não nativa que se alimenta de outros animais aquáticos é a grande preocupação dos pesquisadores que estudam os impactos da reprodução do pirarucu no rio Grande.

"Estamos falando de uma espécie predadora de topo de cadeia alimentar, e um animal de grande porte, que consome outras espécies de peixes de menor porte", apontou Igor Paiva Ramos, pesquisador da Unesp de Ilha Solteira.

Para Lidiane Franceschini, pesquisadora colaboradora do Laboratório de Ecologia de Peixes da Unesp de Ilha Solteira, a reprodução rápida da espécie pode desestruturar as comunidades aquáticas. "O pirarucu no rio Grande pode causar a diminuição de espécies nativas importantes da pesca regional."

Estudos apontam que, até o momento, o pirarucu apenas habita o trecho entre a Usina Hidrelétrica de Marimbondo e da Usina Hidrelétrica de Água Vermelha – duas barragens construídas na década de 1970 para a produção de eletricidade - que corresponde a uma distância de aproximadamente 120 quilômetros em que o rio Grande divide os territórios de São Paulo e Minas Gerais.

Contudo, o receio é que nos próximos anos a espécie ganhe os afluentes do rio Grande e comprometa as relações ecológicas de outros rios do interior de São Paulo.

"A introdução do pirarucu, além de poder causar a extinção local de espécies de peixes e invertebrados que são utilizados como alimento por meio da predação, também pode ajudar na introdução de parasitas que podem parasitar as próprias espécies de peixes nativas", apontou Lidiane.


Lucio Omar Pereira com pirarucu de 110 quilos pescado no rio Grande em 2019 (Arquivo Pessoal)

Pirarucu aquece turismo

Ao mesmo tempo que o pirarucu representa um perigo para o ecossistema aquático do rio Grande, também impulsiona o turismo de pesca de cidades do interior de São Paulo.

Desde que pescou o primeiro pirarucu, em 2018, o guia de pesca Odair Camargo viu crescer a procura de pescadores interessados em pescar no trecho do rio Grande entre Cardoso (SP) e Mira Estrela (SP). "Muita gente vê os vídeos na internet e vem tentar pescar. Além disso, quando você consegue pegar um pirarucu, consegue garantir o sustento da família. Recentemente, peguei um de 107 quilos que me rendeu R$ 2,5 mil. Mas é difícil tirar ele da água."

Dificuldade que não impediu o pescador Lucio Omar Pereira, 49 anos, de pescar três exemplares nos últimos meses. "O primeiro que pesquei pesou 110 quilos. Estava em um barranco, ele puxava o anzol tão forte que digo que foi Deus me ajudou a tirar ele do rio."

O termo pirarucu advém da sua coloração, sendo "pira" de peixe e "urucu" em referência a sua coloração vermelha. O gigante da Amazônia também é conhecido por suas grossas escamas que são capazes de impedir a penetração de mordidas de piranha.

Segundo Levi Francisco dos Santos, diretor do departamento do meio ambiente de Cardoso (SP), o município projeta nos próximos meses realizar um campeonato para incentivar a pesca da espécie. "É uma forma de conseguirmos diminuir a incidência de pirarucu no rio e incentivar o turismo local."

Em Mira Estrela, município do interior de São Paulo que também é banhado pelo rio Grande, o diretor do departamento de meio ambiente, Antônio Cesar Zanzarin, diz que pescadores já relatam o desaparecimento de algumas espécies de peixes a partir da reprodução massiva do pirarucu. "É um peixe carnívoro que está causando a diminuição do número de peixes nativos e consequentemente o ganho de pescadores."

Izael Gonçalves com pirarucu pescado no rio Grande (Arquivo Pessoal)

Possíveis soluções

Estímulo à pesca, manejo da espécie e novas pesquisas científicas são apontados por especialistas como possíveis soluções para remediar os problemas que o pirarucu pode gerar no rio Grande nos próximos anos.

Para o ecólogo Rogerio Machado, dificilmente será possível acabar com a espécie na região. "O que pode ser feito é o manejo da espécie e estimular a pesca esportiva para tentar diminuir o número de peixes. É uma forma de ter controle do pirarucu no rio Grande e evitar mais impactos ambientais."

Já Igor Paiva Ramos, pesquisador da Unesp de Ilha Solteira, defende uma maior mobilização sobre a importância da educação ambiental no Brasil. "Depende de educarmos ambientalmente e sensibilizarmos a sociedade e políticos, sobre os riscos e prejuízos ambientais e econômicos que a introdução de espécies não-nativas pode causar."

A pesquisadora Lidiane Franceschini ressalta a importância da fiscalização e do monitoramento das comunidades aquáticas, para rápida detecção de espécies não-nativas, como forma de evitar novas invasões nos rios brasileiros. "Contudo, o que temos atualmente são leis que protegem essas espécies, como por exemplo a limitação da quantidade de animais não-nativos que podem ser capturados e limitação do tamanho. Do ponto de vista de controle dessas espécies não-nativas, essas medidas são equivocadas."

Por ser uma espécie não-nativa, mesmo durante o período da piracema o pirarucu pode ser pescador no rio Grande. "Por ser um peixe invasor, a pesca dele é liberada, mas o pescador precisa ficar atento se não está descumprindo outras normas", afirmou Emerson Mioransi, capitão da Polícia Ambiental da região de São José do Rio Preto.

Além do pirarucu, outros peixes como a tilápia também foram introduzidos nos rios do interior de São Paulo por meio do escape de tanques de psicultura. A tilápia - Oreochromis niloticus -, por exemplo, chegou ao Brasil para ser criada em cativeiro, mas atualmente é frequentemente encontrada em rios brasileiros.

"Mas com o pirarucu o problema é maior, pois é um peixe que consome a maioria dos peixes. Talvez daqui 15 anos, as próprias espécies nativas mostrem os primeiros sinais de adaptação de vivência com o pirarucu no rio Grande, mas até lá é necessário um manejo e controle do número de exemplares", afirmou Rogerio.

Rone Carvalho, de  São José do Rio Preto (SP) para a BBC News Brasil, em 18,02.23. (Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckmd4pd4d6ko)

Como China superou Brasil e virou grande produtora de peixes amazônicos

Uma rápida pesquisa no site de comércio online chinês AliBaba permite encontrar algumas ofertas de "red pacu", um peixe cinza de barriga vermelha, vendido por US$ 0,80 a 1,23 (R$ 4,35 a 6,68) o quilo.

O tal "red pacu" nada mais é que a pirapitinga, um peixe típico da região amazônica e da bacia dos rios Araguaia-Tocantins. Hoje em dia, a China produz mais pirapitinga que o Brasil (Getty Images)

Dados oficiais da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) revelam que a China é hoje a maior fonte deste peixe no mundo.

Em 2020, foram produzidas 59,4 mil toneladas de pirapitinga no país asiático. Na sequência, aparecem Colômbia (33 mil toneladas), Vietnã (23 mil), Peru (2,1 mil) e Brasil (1,8 mil) — vale destacar que esse peixe não é muito apreciado entre os habitantes da região amazônica brasileira, que preferem outras opções locais, como o tambaqui, o matrinxã e o jaraqui, sobre os quais falaremos mais adiante.

Além da produção de pescados para consumo humano, a China e outras nações asiáticas viraram referência na criação de peixes ornamentais amazônicos. Hoje, há variações de uma espécie chamada acará-disco que só são encontradas na Ásia, segundo pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil.

Durante o encontro, o emissário da China recebeu de presente casais vivos de tambaquis, que foram levados de volta ao país asiático — e teriam dado início ao interesse pelas espécies aquáticas amazônicas por lá.

O fato é que existem poucas evidências ou registros oficiais dessa reunião entre emissários chineses e amazonenses, e os principais nomes supostamente envolvidos no episódio (Li Peng e Gilberto Mestrinho) já morreram.

A BBC News Brasil entrou em contato com o Governo do Estado do Amazonas e com a Embaixada da China no país para confirmar ou descartar o tal episódio de 1992, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.

Os especialistas em piscicultura consideram que é muito mais provável que essa introdução de espécies amazônicas em outros países tenha acontecido aos poucos e por meio de várias fontes diferentes.

Francisco Medeiros, presidente da Associação Brasileira da Piscicultura (Peixe BR), lembra de um convênio firmado nos anos 1980 entre Brasil e China.

"Houve uma troca, em que nosso país recebeu carpas e tecnologias para a produção desses peixes e, em troca, ofereceu materiais sobre algumas espécies nativas", diz. "E cada parte aproveitou as informações do jeito que quis."

Um artigo publicado em 2018 destaca que o tambaqui e espécies híbridas já foram observadas em diversos países onde eles não são nativos, como Estados Unidos, China, Indonésia, Mianmar, Vietnã, Tailândia e Singapura.

Ainda segundo os autores, essa introdução ocorreu de forma acidental ou deliberada, nesse caso, com o objetivo de iniciar criações desses peixes em outros lugares.

Outra possível fonte do espalhamento é o aquarismo, a prática de manter espécies aquáticas em tanques para decoração e apreciação.

Um estudo de 2011 feito na Universidade de Zagreb, na Croácia, tentou desvendar como duas pirapitingas foram parar em rios da Europa Central.

A principal hipótese levantada é a de que aquaristas jogaram, por algum motivo, esses seres em reservatórios de água locais, que reuniam as condições básicas para que eles pudessem sobreviver e se reproduzir.

Que fique claro: essa troca de espécies entre países era bem menos regulada há três ou quatro décadas. Só mais recentemente que surgiram leis rígidas que impedem ou dificultam a saída e a entrada de vegetais, animais, fungos e outros seres vivos entre fronteiras.

"É só lembrar que a soja, um dos principais produtos de exportação do Brasil nas últimas décadas, é originária da China", ilustra Medeiros.

"Ou seja, falamos de um processo legal. A diferença, no caso dos peixes, é que a China resolveu transformá-los num produto comercial e ganhar dinheiro com isso."

Mais beleza nos aquários

Além das espécies criadas para consumo (como o tambaqui e a pirapitinga), também chama a atenção o que aconteceu com os peixes ornamentais amazônicos.

"O acará-disco, nativo da Amazônia, é vendido no exterior com novas colorações e características que não existem no próprio Brasil", aponta Giovanni Vitti Moro, pesquisador da Embrapa Pesca e Aquicultura.

Essas novas linhagens da espécie foram desenvolvidas a partir de cruzamentos ou pela seleção de características desejadas por meio da manipulação genética e são apreciados por aquaristas do mundo inteiro.

"Hoje em dia, nós temos que importar essas matrizes diferentes do acará de China, Índia e Tailândia", complementa Moro.

O biólogo Adalberto Luis Val, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, aponta que o Brasil também está ficando para trás nesse mercado do aquarismo.

Isso porque os produtores locais ainda dependem do extrativismo, que se baseia em coletar esses peixes diretamente na natureza, em vez de criá-los e reproduzi-los em tanques.

"Nós precisamos desenvolver tecnologias para a produção desses animais em cativeiro. A China já faz isso, e o mercado de aquarismo sinalizou que, entre 2025 e 2030, vai reduzir aos poucos a importação de peixes ornamentais oriundos do extrativismo", conta o pesquisador e professor.

"Isso porque, de cada dez peixes que são coletados do ambiente natural para exportação, nove morrem no caminho."

Nativo da Amazônia, o acará-disco ganhou variações na Ásua (Getty Images)

O que dizem os números

Não há dúvidas de que a China é de longe a líder global no mercado de pescados. Segundo os registros da FAO, o país asiático produziu 83,9 milhões de toneladas métricas de peixe com captura e aquicultura só em 2020.

Para se ter uma ideia, o segundo lugar é da Indonésia, com 21,8 milhões, um valor quase quatro vezes menor. Na sequência, aparecem Índia (14 milhões), Vietnã (8 milhões) e Peru (5,8 milhões).

Dentro desse cenário, os peixes amazônicos ainda representam uma fatia muito pequena, quase insignificante, do mercado piscicultor chinês.

"Por lá, a pirapitinga atende a alguns nichos específicos. Ela é vendida pequena, grande, inteira, em filé… Conforme o tamanho, o preço muda", descreve Moro.

Medeiros acrescenta que "a China vê a pirapitinga como um produto de combate (de margem reduzida de lucro para chamar atenção do mercado), vendido para públicos com baixo poder aquisitivo de África e Índia". "O preço é menor, mas eles ganham no volume", diz.

E o Brasil?

Apesar de possuir uma costa litorânea extensa e a maior quantidade de recursos hídricos do planeta, o país está bem longe da liderança do mercado de pescados.

A FAO calcula que o Brasil produziu 1,3 milhões de toneladas de peixes para consumo em 2020. Isso faz com que o país ocupe a 21ª posição no ranking mundial, atrás de nações com menos território, como Equador, Marrocos, Japão e Peru.

Também é curioso pensar que o peixe mais consumido pelos brasileiros é "estrangeiro": a tilápia, originária do Rio Nilo, no continente africano, reina absoluto nas cozinhas do país.

O anuário de 2022 da Peixe BR aponta que a tilápia já representa 63,5% da produção brasileira (486,2 mil toneladas), e a tendência é que esse número suba para 80% até o final da década.

Na sequência, aparecem os peixes nativos do país, que representam hoje 31,2% do total (262,3 mil toneladas). E o principal representante do grupo é justamente o tambaqui.

O grande problema, apontam os pesquisadores, é que esse consumo dos peixes nativos está concentrado principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, e as carnes de tambaqui, matrinxã, pirarucu e companhia são muito menos frequentes nos lares no Nordeste, Sudeste e Sul, onde a densidade populacional é maior.

Para Moro, há pelo menos três entraves para a popularização desses pescados.

"Vamos pegar a tilápia como exemplo. Ela tem uma proteína de alta qualidade, um preço competitivo e é fácil de preparar", diz.

"O tambaqui e outros peixes amazônicos são vendidos inteiros e têm espinhas entre os músculos, o que dificulta o preparo e o consumo."

Nativa do Rio Nilo, a tilápia é o peixe mais consumido do Brasil (Getty Images)

O desafio está, então, em desenvolver linhagens com menos espinhas e mais carne, capazes de crescer rapidamente e que tenham um tamanho padrão.

Esse é mais ou menos o caminho que levou a tilápia e o salmão ao sucesso de vendas em mercados e peixarias: nos últimos 40 anos, foram feitos vários estudos com o objetivo de desenvolver um produto que reunisse uma série de características desejáveis, como maciez, gosto, facilidade de preparo…

E o mesmo processo já começou a ser feito com o próprio tambaqui mais recentemente. Além dos trabalhos realizados na China e no resto da Ásia, os pesquisadores brasileiros também pensam em como desenvolver esse setor por aqui.

"Nos últimos cinco ou seis anos, temos trabalhado na Embrapa formas de garantir a rastreabilidade dos tambaquis, para garantirmos que aquele produto não foi retirado da natureza de forma indevida", destaca Giovanni Moro, da Embrapa.

"Isso é algo que certamente fará a diferença, especialmente na hora de exportar o pescado para mercados cada vez mais preocupados com o manejo sustentável dos recursos."

Cientistas brasileiros também descobriram linhagens do tambaqui que possuem pouca ou nenhuma espinha entre os músculos, o que futuramente pode render cortes maiores e mais fáceis de preparar ou consumir.

Um potencial enorme

Entre os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, não há dúvidas de que peixes como o tambaqui podem turbinar o mercado nacional e até as exportações.

"Trata-se de uma carne de excelente qualidade, muito apreciada pelo público, com a qual é possível fazer diferentes cortes e pratos, como o lombo, a costelinha, a moqueca, as iscas fritas ou os filés assados", diz Antonio Leonardo, do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento do Pescado Continental, do Instituto de Pesca de São Paulo.

Outro ponto positivo do tambaqui está na facilidade de produção. Afinal, trata-se de uma espécie resistente e que cresce com velocidade — na natureza, ele pode chegar a até 30 ou 40 quilos.

"Além disso, o tambaqui se alimenta principalmente de frutos. Isso significa que, para se desenvolver, ele não depende de farinhas de peixe usadas em outras criações", afirma o zootecnista Alexandre Hilsdorf, pesquisador do Núcleo Integrado de Biotecnologia da Universidade de Mogi das Cruzes, em São Paulo.

"Essas farinhas estão se tornando um problema de sustentabilidade, pois as empresas precisam capturar peixes para processar e transformar em ração para os outros peixes."

"Reunindo todas essas características, para mim não há dúvidas de que peixes como o tambaqui podem se transformar em uma commodityno futuro", opina Hilsdorf, que publicou um artigo no ano passado sobre a produção sustentável desse pescado.

Carne do tambaqui é muito apreciada e pode ser consumida de várias maneiras Getty Images)

A economia da floresta em pé

Mas aumentar a produção de pescados nativos não pode representar uma ameaça à biodiversidade?

"A piscicultura depende do meio ambiente. Sem o equilíbrio dos recursos naturais, nosso negócio fracassa", responde Antonio Leonardo, do Instituto de Pesca de São Paulo.

Para Val, é possível incentivar esse mercado sem destruir a natureza: "O segredo está no manejo das espécies".

O biólogo, inclusive, acredita que há potencial em desenvolver a produção não apenas do tambaqui, como também do pirarucu, do jaraqui, do matrinxã e de outras variedades populares entre os moradores da Amazônia.

Como a economia da 'floresta em pé' pretende explorar as riquezas da Amazônia

"Sabemos que o matrinxã, por exemplo, pode ser produzido em pequenos igarapés espalhados pela Amazônia. Um canal de 20 metros de extensão, dois metros de largura e um metro de profundidade é capaz de gerar até uma tonelada desse peixe por ano", calcula o biólogo.

"Agora, imagine que esse pequeno igarapé seja gerido por uma família de quatro pessoas, que vai consumir 400 quilos de pescado por ano. Os 600 quilos que sobram poderiam ser vendidos para cooperativas, que fariam o processamento e a venda em larga escala", complementa.

Segundo o especialista, "o produto mais importante da bioeconomia, ou a economia da floresta em pé, é a informação".

"Ao saber como os peixes vivem, comem e se reproduzem, temos o domínio do conhecimento para fazer o manejo adequado, sem prejuízo à biodiversidade", conclui.

André Biernath - @andre_biernath, de Londres para a BBC News Brasil, em 22..01.23. ( Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64178820).

Brasil bate recorde de endividados: 'Com nome sujo, a gente não é nada'

Para endereçar o problema, o governo federal espera lançar ainda em fevereiro o programa Desenrola, de renegociação de dívidas.

Em 2022, a cada 100 famílias brasileiras, 78 estavam endividadas. Governo planeja lançar programa Desenrola, de renegociação de dívidas, ainda este mês (Crédito da foto: Thaís Carrança / BBC)

Adriana da Silva Lins, de 47 anos e moradora da Vila Ema, na zona leste de São Paulo, trabalhava como ajudante geral na cozinha de uma escola. Ela perdeu o emprego e, sem renda em meio à pandemia, viu as dívidas se acumularem.

“É dívida de cartão, dívida de banco. Eu vendia cosméticos e também fiquei em dívida com isso, porque não conseguia receber das minhas clientes e não consegui pagar pelos produtos da Boticário, Natura, Avon. Foi virando uma bola de neve”, conta a mãe de três filhos.

Atualmente fazendo bicos como diarista e recebendo o Auxílio Brasil há dois meses, ela estima suas dívidas em cerca de R$ 20 mil – o que inclui também contas de luz em atraso. Com a mãe doente, a prioridade é comprar remédios e, assim, as dívidas vão ficando para depois.

“Isso faz eu me sentir péssima. Eu sempre gostei de ter minhas contas em dia, de ter meu nome limpo. E, de repente, você se vê um nada. Porque, quando a gente não tem o nome limpo, a gente não é nada”, afirma.

A família de Adriana é uma de milhões de famílias brasileiras endividadas e inadimplentes – isto é, com dívidas em atraso.

Os dois indicadores bateram recordes em 2022, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

E, com juros elevados e os mais pobres recorrendo ao crédito para fazer frente a despesas do dia a dia, o recorde poderá ser quebrado novamente este ano, prevê a entidade empresarial.

Para endereçar o problema, o governo federal espera lançar ainda em fevereiro o programa Desenrola, de renegociação de dívidas.

Os detalhes do programa – uma das promessas de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – ainda não foram divulgados, mas a expectativa é de que a iniciativa priorize cerca de 40 milhões de brasileiros endividados com renda até dois salários mínimos (R$ 2.604, em valores atuais).

O governo também pretende lançar ainda este mês o novo Bolsa Família, que deve substituir o programa Auxílio Brasil, criado pelo governo Jair Bolsonaro (PL).

A mudança preocupa famílias de baixa renda que se endividaram com o empréstimo consignado do Auxílio Brasil – cujas parcelas são descontadas diretamente do benefício pago pelo governo federal. Elas temem mudanças no Cadastro Único e a possibilidade de serem excluídas do programa, ficando com a dívida do consignado para pagar.

O que explica o recorde de endividados

Em 2022, a cada 100 famílias brasileiras, 78 estavam endividadas. O patamar é o mais elevado da série histórica da Peic, com início em 2010.

Entre 2020 e 2022, a proporção de famílias endividadas passou de 66,5% para 77,9%, uma alta de 11,4 pontos percentuais.

No período, a taxa básica de juros da economia brasileira (Selic) foi elevada de 2% para os atuais 13,75% – nível que tem sido motivo de embates entre o governo e o Banco Central.

Izis Ferreira, economista da CNC, afirma que três fatores contribuíram para esse recorde de endividamento em 2022: a alta da inflação até a metade do ano, que corroeu o poder de compra das famílias; o incentivo crescente ao uso do cartão de crédito, através da oferta de novos produtos e serviços por bancos e fintechs; e, para os mais ricos, a demanda represada por serviços, como viagens e compra de passagens aéreas, geralmente pagos no cartão.

“A face negativa desse maior endividamento é a inadimplência, que também chegou a proporções recordes”, observa a analista.

Em 2022, a proporção de famílias brasileiras com contas em atraso chegou a 28,9%, também maior patamar da série histórica da Peic.

“Quando você tem mais dívidas no seu orçamento, num momento em que ainda tem uma inflação que incomoda, é mais difícil gerir esse orçamento e pagar tudo em dia”, diz Ferreira.

“O desafio para o consumidor hoje é pagar tudo isso num cenário de juros altos, porque os juros elevados aumentam o valor da dívida. Eles dificultam a renegociação e o pagamento de dívidas atrasadas. E esse contexto deve permanecer no ano de 2023”, prevê.

Segundo a economista, os juros de mercado – que chegaram a uma média de 52,1% ao ano para pessoas físicas em 2022, segundo dados do Banco Central – vão continuar elevados, devido à alta da inadimplência, do risco de não pagamento e da perspectiva de desaceleração da atividade econômica e do emprego neste ano.

“Nesse contexto de juros altos, teremos em 2023 mais famílias com dificuldades para pagar dívidas em dia e aquelas que já estão atrasadas vão enfrentar muita dificuldade de renegociar.”

Quem são os endividados: mulheres, jovens, de baixa escolaridade

Segundo a pesquisa da CNC, o endividamento tem rosto no Brasil: de mulher, com menos de 35 anos, ensino médio incompleto e moradora das regiões Sul ou Sudeste.

Em 2022, do total de mulheres, 79,5% se endividaram, comparado a 76,7% dos homens.

Entre as famílias lideradas por pessoas sem ensino médio completo, 31,2% tinham dívidas em atraso, comparado a 25,8% das famílias de pessoas com segundo grau completo.

Mulheres, com menos de 35 anos, ensino médio incompleto e moradoras das regiões Sul ou Sudeste são maioria entre endividados (Getty Images)

“As mulheres trabalham mais na informalidade e em tempo parcial, e muitas são chefes de famílias, então elas têm uma condição de vulnerabilidade no mercado de trabalho maior do que os homens”, observa Izis Ferreira, da CNC.

“Com renda instável, o risco de atrasar dívidas é maior. E, como as mulheres usam modalidades de crédito de pior qualidade, quando essas dívidas atrasam, elas vão ficando muito caras.”

Para as mulheres, a principal forma de endividamento é o cartão de crédito e o carnê de loja, observa a economista.

E o perfil das dívidas no cartão revela como essa modalidade de crédito tem sido usada como uma extensão do orçamento das famílias: das dívidas com cartão de crédito, 65% são referentes a compras no supermercado, e 41% a compra de remédios ou tratamento médico, segundo o Perfil e Comportamento do Endividamento Brasileiro 2022, da Serasa.

Tabela mostra principais tipos de dívidas contraídas no cartão de crédito 

“O cartão é um crédito de acesso muito fácil, oferecido inclusive pelo varejo e com limites baixos, que facilitam esse acesso”, observa Patrícia Camillo, gerente da Serasa.

“Ele ainda é visto como um valor adicional ao orçamento mensal. As pessoas adquirem o cartão para fazer compras básicas, já considerando que, sem o cartão, o orçamento não é suficiente. Esse comportamento é o perigo do cartão e o que leva ele a ser o Top 1 das dívidas.”

Em 2022, o juro médio cobrado pelos bancos no rotativo do cartão chegou a 409,3% ao ano, uma alta de 61,9 pontos percentuais em relação a 2021, quando o juro foi de 395,4%. Assim, essa modalidade de crédito é uma das mais caras do mercado, junto ao cheque especial.

Ainda segundo os dados da Serasa, o país tinha 69,4 milhões de inadimplentes em dezembro de 2022 e o valor médio das dívidas por pessoa era de R$ 4,5 mil, somando um total de R$ 312 bilhões em dívidas em atraso.

Os novos endividados do consignado do Auxílio Brasil

Em 2022, um outro fator contribuiu para o aumento do endividamento entre os mais pobres no Brasil: a criação, às vésperas da eleição, do empréstimo consignado do Auxílio Brasil.

O empréstimo foi liberado em 10 de outubro, entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais em que o então presidente Jair Bolsonaro (PL) tentava a reeleição. Somente naquele mês, a modalidade movimentou mais de R$ 5 bilhões, segundo o Banco Central.

Quem tomou o empréstimo consignado em outubro, desde novembro está tendo seu Auxílio Brasil descontado. Quem recebia R$ 600, agora recebe R$ 440 após o pagamento da parcela mensal.

Propaganda do programa Auxílio Brasil no muro de residência na favela de Heliópolis em São Paulo, em dezembro de 2021

Quem tomou o empréstimo consignado do Auxílio Brasil em outubro, desde novembro está tendo seu benefício descontado (AFP - Ag, France Press)

“Está sendo difícil, mas eu tinha ciência que ia estar sendo descontado”, diz Elisângela Cruz César, de 43 anos e moradora de uma área invadida na zona norte de São Paulo.

Dona de casa e mãe de seis filhos, Elisângela conta que tomou o empréstimo por conta do desemprego do marido, que é açougueiro, mas perdeu o trabalho durante a pandemia. Ainda desempregado, os dois têm no auxílio descontado agora sua única fonte de renda.

“A gente só não está passando necessidade mesmo porque tem ajuda, tem cesta básica”, afirma.

Elisângela conta que nunca tinha pegado um empréstimo na vida, o consignado do Auxílio foi sua primeira vez no mercado de crédito, já que nem cartão de crédito ela usa.

“Todo mundo que tinha o benefício e estava passando necessidade foi [fazer o empréstimo], nem pensou, porque quem tem criança não vai querer passar dificuldade. Era minha única opção, então eu fui e fiz”, lembra.

“Mas agora é bem preocupante, porque mudou o presidente e a regularização do CadÚnico [Cadastro Único] vai mudar muita coisa. Vai que de repente cancela, faz alguma coisa no benefício? Aí ou a gente paga [a dívida do consignado] por fora, ou então acaba sujando o nome da gente, que vai ficar com uma dívida nas costas”, diz a mãe de família.

No início deste mês, o novo governo mudou as regras do consignado para beneficiários do Auxílio Brasil.

Com a mudança, o desconto mensal máximo do benefício para pagamento das parcelas passa a ser de 5%. Antes, chegava a 40%.

A taxa de juros agora não vai poder passar de 2,5% ao mês e o número de parcelas não pode ser superior a seis. Anteriormente, o limite de juros era de 3,5% ao mês e o número máximo de parcelas chegava a 24.

As novas regras, no entanto, valem apenas para novos empréstimos.

Ansiedade, insônia, depressão

Para além do nome sujo – que dificulta a obtenção de novos créditos e financiamentos –, o aumento da inadimplência no país também tem efeito sobre a saúde e os relacionamentos familiares dos brasileiros.

Segundo a pesquisa da Serasa:

83% dos endividados têm dificuldade para dormir por conta das dívidas;

78% têm surtos de pensamentos negativos devido aos débitos vencidos;

74% afirmam ter dificuldade de concentração para realizar tarefas diárias;

62% sentem impactos no relacionamento conjugal;

61% vivem sensação de “crise e ansiedade” ao pensar na dívida;

53% revelam sentir “muita tristeza” e “medo do futuro”;

51% têm vergonha da condição de endividado;

33% não se sentem mais confiantes em cuidar de suas próprias finanças;

31% sentem impacto das dívidas no relacionamento com familiares.

Endividados sentem vergonha e sofrem impacto das dívidas no relacionamento conjugal e com familiares, mostra pesquisa da Serasa (Getty Images)

Tatiane*, de 35 anos, está enfrentando essa realidade.

Antes empregada com carteira assinada, ela deixou o emprego em meio a uma gravidez de risco e agora trabalha por conta própria, vendendo roupas e produtos naturais. De um ano para cá, suas vendas diminuíram e ela acabou se endividando em três cartões e com o fornecedor dos produtos que vende.

“Com tudo isso, eu comecei a ter uma ansiedade muito forte, que eu não tinha. A ponto de não conseguir dormir, sentir dor no peito, ficar chorando o tempo todo”, conta a trabalhadora autônoma.

“Eu tenho duas crianças pequenas, as contas vão chegando. Nada espera e é muito complicado a gente ver as contas vencendo, as crianças precisando das coisas. Você começa a entrar em desespero, de ver que você não está conseguindo arcar com as obrigações.”

Programa Desenrola Brasil

Para Izis Ferreira, economista da CNC, Adriana, Elisângela e Tatiane são exemplos das pessoas que deveriam ser priorizadas no novo programa de renegociação de dívidas do governo federal.

“Quando falamos do perfil dos mais endividados e dos que mais atrasam dívidas é justamente para entendermos quem é preciso priorizar. Porque não adianta fazer um programa que tente trazer todo mundo de uma vez, será preciso dar preferência aos públicos mais vulneráveis, que têm dívidas atrasadas há mais tempo e estão sujeitas aos juros maiores”, diz a economista.

“São as famílias com dívidas atrasadas no cartão de crédito, as mulheres, as pessoas de menor renda, de menor escolaridade”, enumera.

“Para garantir o consumo futuro das famílias, que é um dos motores do crescimento, temos que resolver o problema da inadimplência e do endividamento.”

Famílias com dívidas atrasadas no cartão de crédito, mulheres, pessoas de menor renda e de menor escolaridade precisam ser priorizadas em programa de renegociação de dívidas, diz economista da CNC (Getty Images)

Na segunda-feira (14/2), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o desenho do programa Desenrola já está pronto para ser analisado por Lula. Caso seja aprovado pelo presidente, a expectativa é de que possa ser lançado ainda em fevereiro, depois do Carnaval.

Questionado pela BBC News Brasil sobre a provável data de lançamento e detalhes do novo programa, o Ministério da Fazenda afirmou apenas que “ainda não há uma previsão e nem detalhes, faremos uma ampla divulgação quando a data for definida”.

Segundo informações do jornal O Estado de S. Paulo, o programa deve focar quem ganha até dois salários mínimos e tem dívidas de até R$ 5 mil, atrasadas há mais de 180 dias em 31 de dezembro de 2022.

O Tesouro Nacional deve aportar R$ 20 bilhões em um fundo garantidor para as renegociações.

A ideia é que o banco escolhido pague a dívida ao credor e então faça um novo empréstimo para o cliente, com desconto. A taxa de juros deverá ser de até 1,99% ao mês (equivalente a 26,7% ao ano).

Caso o cliente não pague, terá o nome sujo de novo e o banco pode apresentar o contrato ao Tesouro, que honra a garantia de 100% do valor.

Ainda segundo o jornal, o programa deverá ter duas fases, a primeira voltada aos credores (bancos, varejistas, empresas de telefonia e de serviços públicos), que deverão manifestar o interesse em participar do programa e informar quanto de desconto estão dispostos a conceder sobre a dívida que têm a receber.

A partir dessa manifestação de interesse, será feita a seleção das empresas participantes do programa através de um modelo de leilão.

Na segunda fase do programa, os devedores poderão acessar um site a ser criado pelo governo para verificar quais dívidas podem ser quitadas sob as regras do Desenrola. O devedor poderá escolher o que pagar e a instituição com quem vai fazer a renegociação.

Adriana, a mãe de três filhos da zona leste de São Paulo com dívidas no cartão de crédito e contas de luz atrasadas, vê o programa com bons olhos e espera poder participar da renegociação.

“Se eu puder participar, vou com certeza. Tudo que eu mais quero é ter meu nome limpo. A coisa mais importante que a gente pode ter é nossa dignidade”, diz a diarista.

*O sobrenome da entrevistada foi omitido a pedido para preservar sua identidade.

Thais Carrança, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 16.02.23

'Há um renascimento de grupos neonazistas no Brasil', diz diretor de fundação judaica

A prisão de um jovem de 17 anos, detido por atirar bombas caseiras do tipo coquetel molotov em duas escolas enquanto usava uma braçadeira com uma suástica, acendeu mais uma vez o alerta para o crescimento do antissemitismo no Brasil.

Adolescente que jogou bombas caseiras em escola de Monte Mor, no interior de São Paulo, usava suástica no braço esquerdo (Guarda Metropolitana)

Para Ariel Gelblung, diretor para a América Latina do Centro Simon Wiesenthal, o incidente é reflexo do fortalecimento da ideologia neonazista no país durante o governo de Jair Bolsonaro.

"Há um renascimento de grupos neonazistas no Brasil. Vimos algo semelhante acontecer nos Estados Unidos durante o governo de Donald Trump, quando membros da extrema direita se achavam no direito de expressar e dizer qualquer coisa", afirmou o advogado à BBC News Brasil.

"O mesmo aconteceu no Brasil durante o governo Bolsonaro."

Segundo o argentino, o tema precisa ser discutido e trazido à tona para "desarmar a disseminação" do antissemitismo violento.

"Embora estejamos tranquilos com a forma como as autoridades agiram para deter o agressor e por não haver vítimas ou danos significativos, estamos preocupados com o episódio em si", diz o representante da organização judaica que afirma ter como objetivo promover os direitos humanos e pesquisar o Holocausto.

O ataque aconteceu no prédio em Monte Mor, interior de São Paulo, que abriga a Escola Estadual Professor Antonio Sproesser e a Escola Municipal Vista Alegre, onde o agressor havia estudado até o 5º ano do ensino fundamental. Ele é menor de idade e não teve a identidade divulgada.

Dois artefatos explodiram depois de atingir a grade de entrada do prédio, mas ninguém ficou ferido.

Segundo a Guarda Municipal, além da braçadeira, foram encontrados um caderno e livros com referências nazistas e uma réplica de fuzil em um carro utilizado pelo agresssor e na casa dele.

"É a primeira vez que vemos algo assim recentemente no Brasil. Trata-se de um adolescente e sinceramente não sabemos se a motivação foi pessoal ou ideológica. Mas isso é um sinal de que temos que ficar em alerta", afirmou Ariel Gelblung.

Beatrix von Storch e o marido em encontro com Bolsonaro no Palácio do Planalto (Crédito da foto: Arquivo Pessoal)

Alianças perigosas

Para o argentino, não há necessariamente uma ligação direta entre Jair Bolsonaro e o antissemitismo, mas as visões e alianças feitas pelo ex-presidente durante seu mandato deram espaço para o crescimento de uma extrema direita perigosa.

"Bolsonaro recebeu e se aproximou de uma representante da AfD da Alemanha", diz o advogado, em referência à recepção à deputada alemã Beatrix von Storch, vice-líder do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD).

Von Storch é neta de Johann Ludwig Schwerin von Krosigk, que serviu como ministro das Finanças da ditadura de Adolf Hitler por mais de 12 anos. Muitos membros da legenda também são acusados regularmente de nutrir simpatias pelo nazismo e de minimizar os crimes cometidos pelo Terceiro Reich.

"Ideologicamente, esses membros da extrema direita se sentiram como se tivessem o direito real de expressar suas crenças", diz Gelblung.

Questionado sobre a proximidade do ex-presidente e de muitos de seus seguidores com Israel – não é incomum que bolsonaristas exibam bandeiras do país em demonstrações públicas – o especialista afirmou que a política nem sempre segue uma lógica exata.

"Me parece que Bolsonaro fala sério quando expressa sua admiração por Israel, porque ele apoia muito a igreja evangélica e eles amam Israel", diz.

"Mas nem todo mundo pensa igual. Muitos de seus apoiadores não são evangélicos - eles o apoiam como político, não como fiel. A política não é como matemática."

Bolsonaro sempre negou ter qualquer relação com extremistas da direita ou neonazistas.

O diretor da organização judaica para a América Latina também compara esse contexto brasileiro com o americano. "Ninguém fez tanto por Israel [na Presidência americana] como Donald Trump. Mas a extrema direita se sentiu confortável demais com sua liderança", afirma.

A BBC News Brasil tentou contato com Bolsonaro e seus assessores para que pudessem dar um posicionamento a respeito das alegações. Não foram enviadas respostas até a publicação deste material.

Reprodução - Vídeo mostra saudação nazista em ato em Santa Catarina

'Novo governo traz outros problemas'

Apesar da preocupação, Ariel Gelblung afirma que o Brasil fez alguns progressos nos últimos anos, com a entrada na Aliança Internacional de Memória do Holocausto (IHRA) como membro observador e decisões importantes do Supremo Tribunal Federal (STF) contra discursos de negação do Holocausto.

Mas o advogado não vê a mudança de governo como necessariamente uma boa notícia para o combate aos grupos neonazistas. Segundo ele, a proximidade do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o Irã pode ser problemática para o avanço da luta contra o antissemitismo.

Gelblung viu a decisão da Presidência de, inicialmente, permitir o atracamento de duas embarcações militares iranianas no porto do Rio de Janeiro em janeiro como sinal dessa aproximação.

A autorização foi vetada posteriormente, após o pedido do governo do Irã ser visto como uma tentativa de Teerã de usar o Brasil para provocar os EUA — os navios chegariam à costa na mesma semana em que o presidente brasileiro estaria em Washington para uma visita à Casa Branca.

"Com a mudança de governo podemos ver surgir outro tipo de problema com o antissemitismo", diz o representante do Centro Simon Wiesenthal.

"Quando o Irã ampliou sua influência na América Latina no passado, tivemos três ataques terroristas no país. Dois em Buenos Aires e um no Panamá."

Buenos Aires foi alvo de dois ataques, em 1992 e 1994. O primeiro deles, contra a embaixada de Israel, deixou 29 mortos. O segundo atentado teve como alvo o prédio da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) e deixou 85 mortos.

Um dia depois do ataque de 1994 em Buenos Aires, a explosão de um avião no Panamá matou todas as 21 pessoas a bordo. Entre os passageiros, 12 eram judeus. O incidente foi oficialmente classificado como ato terrorista por Israel e EUA.

A BBC procurou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República sobre um posicionamento em relação às declarações, mas não obteve resposta.

Lula em visita a Teerã em 2010, durante seu segundo mandato (Getty Images)

Crescimento de denúncias

Entre junho de 2020 e julho de 2022, o Brasil registrou uma denúncia de antissemitismo por semana, segundo levantamento feito pelo relatório O Antissemitismo durante o governo Bolsonaro.

O documento, assinado por quatro ativistas e acadêmicos brasileiros de longa trajetória no estudo e monitoramento do antissemitismo no país, fala em 104 "acontecimentos antissemitas" no Brasil ao longo de mais de 700 dias.

Os pesquisadores apontaram para uma exacerbação do antissemitismo em paralelo a manifestações de caráter nazifascista no Brasil, inclusive por parte de integrantes de postos governamentais.

Diversos episódios são listados no relatório como indicativos desse comportamento por membros do governo. Um dos casos apontados aconteceu em 2020, quando Jair Bolsonaro e assessores beberam um copo de leite durante uma live.

"Beber leite em público é um símbolo dos neonazistas. Eles defendem uma 'teoria' (obviamente parte da pseudociência), que afirma que somente indivíduos da raça ariana seriam capazes de tolerar lactose enquanto adultos. Portanto, em manifestações, eles tomam galões de leite e 'se orgulham' disto", diz o relatório.

Em outro episódio mais recente, apoiadores de Bolsonaro fizeram uma saudação nazista durante execução do Hino Nacional em uma manifestação a favor da intervenção militar em Santa Catarina. O caso é investigado pelo Ministério Público.

Julia Braun, de Londres para a BBC Brasil, em 17.02.23 ( Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9wdd7kx1n8o)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

A ameaça de Bolsonaro

Ex-presidente diz que voltará para liderar oposição. A direita civilizada deve ver essa promessa como ameaça a seus valores mais caros e um risco de que a esquerda se fortaleça no poder

Jair Bolsonaro disse ao Wall Street Journal que voltará ao Brasil para liderar a oposição. Se não quiser perpetuar a dialética infernal que recolocou no Planalto o lulopetismo – responsável pelos maiores escândalos de corrupção e a pior recessão da Nova República – nem a espiral de degradação que desembocou no 8 de Janeiro – o maior atentado à democracia desde a ditadura –, a direita, seja a liberal, seja a conservadora, deve fugir desse “líder” que nega todos os seus valores mais caros.

A direita civilizada deve se opor tão energicamente a Bolsonaro quanto a Lula. Em certo sentido, até mais. Seu enfrentamento ao lulopetismo é um combate corpo a corpo. Até as derrotas podem ser revigorantes, se servirem para reconduzi-la às fontes de sua potência e de seu dinamismo. Como disse Winston Churchill, “o sucesso não é final; o fracasso não é fatal; é a coragem de continuar que conta”. A luta com o bolsonarismo é de outra natureza. Não tanto contra um adversário em pé de igualdade, mas contra um patógeno, um parasita que suga suas energias a ponto da putrefação.

Bolsonaro não é conservador nem liberal, só reacionário e autoritário. O liberalismo crê na potência do livre-arbítrio e sua contrapartida, a responsabilidade individual. Daí a ênfase nas liberdades fundamentais, na igualdade ante a lei, na meritocracia, no livre mercado. O conservadorismo reverencia a sacralidade da família e a experiência acumulada pela sociedade nas tradições e materializada nas instituições. Ambos desconfiam da húbris humana. Por isso, creem no progresso rumo a uma sociedade mais justa e próspera por meio da distribuição, não da concentração do poder; do debate, não da imposição de ideias; da reforma, não da ruptura das instituições.

Não é liberal quem faz carreira insultando minorias; acumulando privilégios para sua família e clientela política; opondo-se a reformas e defendendo o intervencionismo estatal. Não é conservador quem desdenha tão orgulhosamente do princípio moral e religioso do amor ao próximo, especialmente lá onde ele é mais testado e necessário: na compaixão pelos desvalidos, os vulneráveis, os marginalizados e mesmo, sim, os marginais. Não é nem liberal nem conservador quem promove o culto à própria personalidade; quem vê a luta política não como um embate entre adversários, mas como a aniquilação de inimigos; quem violenta a separação dos Poderes e busca submetê-los ao seu tacão.

A direita, se quiser manter seu vigor e promover seus valores, deve combater esse corpo estranho. Mas não com seus mesmos meios. O bolsonarismo deve ser desmoralizado sem violência.

Não será fácil. Primeiro, porque liberais e conservadores precisam expiar seus próprios pecados, a começar pela complacência com as desigualdades sociais, e recobrar a convicção em seus ideais e sua capacidade de articulação. Mas também porque a facção da esquerda no poder fará de tudo para oxigenar esse parasita que corrói a direita e no qual os esquerdistas encontraram sua nêmesis ideal. Lula tem feito tudo menos cumprir suas promessas de conciliação e está redobrando a aposta no ressentimento, colando em toda oposição os rótulos de “elitista”, “fascista”, “golpista”, “genocida”, “terrorista”. Essa esquerda também deve ser desmoralizada. Mas não com seus mesmos meios.

Conservadores e liberais não devem buscar desmoralizar os eleitores de Lula ou Bolsonaro, mas ouvi-los, humildemente questioná-los, influenciá-los e, enfim, representá-los. Aos primeiros, precisam provar que antes que antagonizar seus ideais mais preciosos, a igualdade e a inclusão, só desconfiam dos instrumentos da esquerda e oferecem outros mais eficazes. Já as ansiedades dos eleitores de Bolsonaro – ante o crime, ante as intromissões estatais, ante as coerções das militâncias identitárias, ante a corrupção do “sistema” político – podem ser passíveis de distorções, mas exprimem, no fundo, um anseio pela lei e a ordem e pela preservação de valores universais. O desafio é mostrar que Bolsonaro, antes que liderá-los rumo à satisfação desses desejos, só os afastará dela, como os afastou, ainda mais.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 17.02.23

Lula exalta PT e desdenha de outros partidos: ‘Cooperativas de deputados’; legendas reagem mal

Apesar de desdenhar de outros partidos, presidente petista tem oito ministros indicados por legendas aliadas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva desdenha dos demais partidos e diz que o PT é que é o partido mais importante do País Foto: Wilton Junior / Estadão

Com oito partidos apadrinhando ministros de seu governo e ainda em busca de apoio do Legislativo para garantir aprovação de projetos de interesse do governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desdenhou nesta quinta-feira, 16, das agremiações políticas. Em entrevista à CNN, Lula deixou claro que, para ele, o único partido relevante no Brasil é o PT.

“Não existe partido político no Brasil. O único partido com cabeça, tronco e membro é o PT. O PT não é uma coisa qualquer, é um partido político. O restante é uma cooperativa de deputados que se juntam nas eleições”, disse o petista.

Ele admitiu que sua legenda desperta “amor e ódio”, mas que é uma das maiores legendas da esquerda no mundo. “O PT só perde para o Partido Comunista chinês, que é muito grande”.

Lula reduziu a “cooperativas de deputados” 22 partidos com representação formal na Câmara, dentre os quais oito possuem ministros no primeiro escalão do governo. Ocupam Pastas da gestão petista ministros do PCdoB, União Brasil, MDB, PSD, PDT, PSB, PSOL e Rede.

Na oposição, o PL do ex-presidente Jair Bolsonaro tem a maior bancada, com 99 deputados, 31 a mais do que o PT.

Apesar de desmerecer a importância das demais siglas partidárias, Lula alegou que é preciso “estar junto” com os presidentes das casas legislativas, porque o Congresso seria um retrato da vontade do eleitor. “Não pode reclamar, tem que conviver”, afirmou o presidente, que mostrou confiança na possibilidade de construir a governabilidade sem o orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão e derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Na entrevista, o presidente condenou a criminalização da política e voltou a atacar seu antecessor Jair Bolsonaro. “Quando você nega a política o resultado é esse: Bolsonaro, Hitler, Mussolini. Quando você nega a política, o resultado é o surgimento do autoritarismo”, declarou.

O petista ainda evitou criticar diretamente o vice-presidente de seu partido, o deputado Washington Quaquá (RJ), que postou uma foto ao lado do deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), ministro da Saúde do governo Bolsonaro. “Cada um carrega a fotografia que quiser. Acho que ele já tem idade suficiente para escolher com quem ser fotografado”, disse Lula. Quaquá foi criticado publicamente pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann.

Lula também saiu em defesa do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, condenado pelo Supremo Tribunal Federal por envolvimento no escândalo do mensalão. “Ninguém pode ser penalizado a vida inteira, ninguém pode ser na política criminalizado de forma perpétua. José Dirceu é um agente político, militante político da maior qualidade e está voltando a participar”, declarou em entrevista à CNN Brasil. (COM BROAD)

Weslley Galzo, O Estado de S. Paulo, em 17.02.23

Resolução do PT amplia decepção de ‘frente ampla’ com rumo do governo Lula

Siglas e setores políticos que aderiram a Lula no 2.º turno da acirrada disputa contra Bolsonaro veem partido e presidente com foco em ‘fake news’, ‘revanchismo’ e ‘retrovisor

Resolução foi formulada após reunião do Diretório Nacional do PT ocorrida no aniversário de 43 anos do partido, em 13 de fevereiro.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Com pouco mais de um mês de governo, manifestações do PT e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva têm despertado desconfiança e decepção entre setores políticos que aderiram ao petista no segundo turno da acirrada disputa contra Jair Bolsonaro (PL). Ontem, líderes partidários que se aliaram numa “frente ampla” anti-Bolsonaro reagiram à resolução do Diretório Nacional do PT, que procurou reforçar a narrativa segundo a qual o partido foi vítima de “falsas denúncias” nos rumorosos casos de corrupção que protagonizou nas duas últimas décadas.

Em linha com os discursos mais recentes do presidente, o texto da legenda se refere ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff como “golpe” e chama de “quadrilha” os antigos procuradores da Operação Lava Jato e o ex-juiz e atual senador Sérgio Moro (União Brasil-PR), além de defender a revisão da autonomia do Banco Central, da taxa de juros e das metas de inflação.

A versão distorcida dos fatos causou desconforto e irritação no MDB, um dos mais importantes aliados de Lula na etapa final da eleição. “Triste o PT, um partido importante, em um documento da sigla, resolver espalhar fake news”, afirmou ao Estadão o presidente da legenda, Baleia Rossi.

Quando o cenário eleitoral era incerto e os bolsonaristas escalavam o discurso contra as urnas eletrônicas, o comitê de Lula reuniu um arco de apoios em segmentos políticos desalinhados com o PT, como João Amoêdo (ex-presidente do Novo) e Arminio Fraga, tucanos históricos e ex-rivais dos petistas na centro-esquerda.

“Falar em golpe é estultice. Lula não pode fazer dessa resolução do PT uma resolução sua. Ele está governando com o apoio de vários líderes que apoiaram o impeachment de Dilma. O voto nele foi pela democracia, e a democracia não pode viver em permanente fratura”, disse o presidente do Cidadania, Roberto Freire.

Dilma sofreu impeachment em 2016 por promover as chamadas pedaladas fiscais. A prática, revelada pelo Estadão, consiste em manobra fiscal a fim de permitir ao governo cumprir as metas fiscais – portanto, indicando falsamente haver equilíbrio entre gastos e despesas nas contas públicas.

A resolução petista ainda ignora os escândalos que marcaram as gestões do partido, em especial o mensalão e a corrupção na Petrobras. Neste último caso, investigado como parte da Lava Jato, foi revelado esquema que envolvia licitações fraudulentas com empreiteiras e pagamento de propina. Oficialmente, a Petrobras divulgou rombo de R$ 6,2 bilhões em seu balanço em 2015.

‘Sem anistia’

O documento também aponta para os militares e responsabiliza o governo Bolsonaro por provocar onda de “violência, ódio, intolerância e discriminação” na sociedade. E fala em “seguir na luta pela culpabilização e punição de todos os envolvidos, inclusive os militares”. O texto afirma que “a palavra de ordem ‘sem anistia’ deve ser um imperativo do partido para culpabilizar os responsáveis e exigir que Bolsonaro e seus cúmplices respondam pelos seus crimes”. Ao fim de reuniões do Diretório Nacional, a sigla costuma divulgar resoluções como uma espécie de “guia” para filiados e manifesto à sociedade. O documento divulgado ontem é o primeiro depois da posse de Lula para o terceiro mandato.

“Depois do 8 de janeiro, Lula podia ter adotado discurso mais pacificador e tentar atrair setores que votaram em Bolsonaro. Deveria olhar menos para o retrovisor. O revanchismo não é o caminho”, disse o ex-governador do Rio Grande do Sul Germano Rigotto, que integrou a coordenação da campanha presidencial de Simone Tebet (MDB) – atual ministra do Planejamento – no primeiro turno e foi colaborador da equipe de transição após o pleito.

Um dos autores do pedido de impeachment de Dilma, o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr., que apoiou Lula no segundo turno, também vê o petista governando com o retrovisor. “O PT entrou com mais de 50 pedidos de impeachment contra Fernando Henrique Cardoso”, observou. Para ele, o discurso dos petistas é “esquizofrênico e sem pé na realidade”. “Querem reconstruir o passado.”

Ex-ministro das Relações Exteriores no governo Michel Temer (MDB), o tucano Aloysio Nunes Ferreira, que apoiou Lula desde o primeiro turno, seguiu na mesma linha. “Lula discursou perante a direção de um partido que ele lidera, que tem sua cultura, seu programa e uma visão própria dos fatos políticos que não coincidem em todos os pontos com os demais componentes da frente que o elegeu e com quem ele pretende governar. A diversidade pode ser sua força, desde que possamos o quanto antes estabelecer um programa comum que balize sua atuação no governo e no Congresso”, disse Aloysio ao Estadão.

“Todo mundo faz autocrítica no seu dia a dia. É preciso aprender com erros do passado para construir um futuro mais tranquilo. O PT pulou essa parte. O partido precisa calçar as sandálias da humildade”, disse o deputado Danilo Forte (CE), do União Brasil.

‘Passado’

Sensação crescente entre aliados recentes do petismo é a de que presidente e partido vivem uma irrealidade e ainda não se preocuparam com o exercício do governo. Lula tem feito discursos e concedido entrevistas direcionadas a um setor “convertido” da sociedade – seus próprios apoiadores. Ontem, em entrevista à CNN Brasil, ele endossou a necessidade de uma nova narrativa do PT e chegou a dizer que deu uma “surra” em Bolsonaro na eleição, embora tenha vencido a disputa por menos de 2% dos votos.

Para a especialista em estratégias para campanhas eleitorais e CEO do instituto de pesquisa Ideia, Cila Schulman, as falas do petista não contribuem para a construção de uma imagem positiva do governo e são danosas por não dialogarem com “problemas reais” do País. “O eleitor não está de olho no retrovisor da Lava Jato ou do impeachment, ele está interessado na resolução de problemas atuais e que o preocupam, como inflação, educação, saúde, emprego. As pautas do passado não estão no radar do brasileiro”, afirmou.

O sociólogo José Carlos Martins, um dos idealizadores do grupo Derrubando Muros, que reuniu diversos segmentos em oposição a Bolsonaro nas eleições, classificou como “atabalhoados” e “intempestivos” os recentes discursos de Lula e resumiu o sentimento do centro político. “Lula escolheu um time bom nas atividades fundamentais, como Justiça, Saúde, Educação e Meio Ambiente, mas não está tratando com carinho a aliança feita em torno do nome dele.”

Pedro Venceslau, Natália Santos e Davi Medeiros, O Estado de S. Paulo, em 17.02.23