domingo, 29 de janeiro de 2023

Uma esquerda que é de direita

Fecha os olhos para Putin, como fecha os olhos para a repressão dos aiatolás contra a coragem cívica das mulheres iranianas

O presidente russo, Vladimir Putin, durante uma coletiva de imprensa em dezembro de 2021. (Crédito da foto: Yuri Kochetkov - Ag, EFE)

Assim como existe uma direita suicida, também existe uma esquerda ignorante. Ele não sabe nada e não quer aprender nada com o passado. Ele também não sabe que a guerra acontece com a política quando a política para de funcionar. Nem que a paz, tão almejada, não venha de um clamor , mas porque quem ganha a guerra tem poder e expertise para impor uma ordem mais justa, para que ninguém volte a usar a força para resolver as inevitáveis ​​disputas que ocorrem entre países e governos.

Ignora que a União Soviética foi o maior império da Europa , e talvez do mundo, entre 1945 e 1991. E que esteve sob a flagrante mentira da pátria socialista, defensora universal do proletariado. Ou que as liberdades européias se mantiveram e se mantêm no meio do continente, assim como se recuperaram da invasão hitleriana de 1945, graças à aliança com os Estados Unidos.

Acredite nas mentiras de Putin sobre a maior catástrofe do século 20, que não foi o desaparecimento da ditadura imperial comunista, mas sua persistência como um avatar paradoxal e monstruoso do czarismo reacionário e ortodoxo. Ele agarra como um prego selvagem a ameaça que representava para o capitalismo, como se as vitórias conquistadas pelos trabalhadores no Ocidente não fossem devidas às suas lutas, mas ao medo de Stalin. E, naturalmente, ele engole as farsas e as bolas do Kremlin sobre a desnazificação da Ucrânia, baseada na apropriação primeiro soviética e depois putinista da luta antifascista.

Essa esquerda, definitivamente, é a direita. E tão suicida quanto a direita. Suas simpatias estão com o populismo nacionalista de Putin e sua ideia ultramontana da Mãe Rússia, guardiã do cristianismo ortodoxo, contra a liberdade de costumes e casamentos homossexuais do Ocidente decadente. Fecha os olhos ao expansionismo autocrático e imperial, como os fecha à repressão selvagem dos aiatolás contra a coragem cívica das mulheres iranianas que não suportam nem mais um minuto o patriarcado totalitário e islâmico. E presta atenção, ao contrário, a esses incríveis argumentos que invertem a realidade da história, transformam as vítimas em carrascos e se apropriam do combate antifascista para defender o fascismo, seu inegável.

Você não sabe o que é guerra. Nem a paz, tão difícil, e os esforços que devem ser feitos para alcançá-la e mantê-la. Portanto, não se pode esperar que ela alcance a Ucrânia. Ele quer se ajoelhar diante de Putin como Chamberlain se ajoelhou diante de Hitler em 1938, às custas não apenas da Tchecoslováquia, mas também da República Espanhola em seu último suspiro. E o pouco que sabe sobre impérios não chega para condenar o único que persiste em solo europeu. Também não sabem que a liberdade e a democracia não são uma dádiva, mas que devem ser defendidas diariamente, às vezes até pagando o preço mais alto, como na Ucrânia, para não serem subjugadas e aniquiladas.

Luís Bassets, o autor deste artigo, escreve colunas e análises sobre política, especialmente política internacional, para o EL PAÍS. Ele também escreveu livros,  entre outros, 'O ano da Revolução' (Taurus), sobre as revoltas árabes, 'A grande vergonha. Ascensão e queda do mito de Jordi Pujol' (Península) e um diário pandêmico e confinado com o título de 'Les ciutats interiors' (Galaxia Gutemberg). Publicado originalmente no EL PAÍS, em 29.01.23

Pacote de leis pela democracia tem efeito incerto

Não foi por falta de policiais que vândalos atacaram em 8 de janeiro, mas porque houve negligência

Manifestantes golpistas invadem o Congresso Nacional Sérgio Lima/AFP

O governo federal apresentará ao Congresso um pacote de medidas para coibir novos ataques às instituições democráticas. O ministro da Justiça, Flávio Dino, entregou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva um documento com quatro propostas que, a partir de agora, serão debatidas. O governo segue um roteiro conhecido diante de fatos graves: a correria para criar instituições ou leis, como se o país tivesse sido vítima de um grande trauma devido à falta de ambas. Todos sabem que não foi bem assim.

Uma das propostas é descabida. Dino sugere criar uma guarda nacional para proteger a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes. A ideia parte de uma premissa falsa. Não foi por falta de policiais que ocorreram os ataques golpistas do dia 8 de janeiro. O problema foi a cooperação entre as forças de segurança e os vândalos. A simples criação de uma nova guarda não a tornaria imune ao golpismo. Tampouco eximiria as autoridades de restabelecer o comando nas instituições que falharam no dia 8. A guarda nacional ainda demandaria a contratação de cerca de 6 mil novos servidores, onerando os cofres públicos em momento de crise fiscal aguda.

Faz mais sentido outra proposta apresentada por Dino: obrigar as plataformas digitais a moderar o conteúdo que circula nas redes sociais com ameaças, tentativas de abolir o Estado Democrático de Direito ou incentivo a terrorismo. É fato que os golpistas se reuniram, se organizaram e se prepararam com a ajuda dos meios digitais.

Está certo Dino ao defender “uma congruência lógica” do que é autorizado nas ruas e nas redes. Não é permitido instalar um quiosque num shopping center para ensinar a montar uma bomba ou aliciar conspiradores para um golpe de Estado, então ninguém deveria poder fazer isso na internet. É um erro acreditar que as plataformas tomarão medidas na base da autorregulação, já que nada fizeram até agora, escoradas na visão peculiar que confunde liberdade de expressão com liberdade de agressão. Essa constatação, porém, não significa que o caminho sugerido por Dino seja o mais adequado.

O governo faria melhor se incluísse suas propostas no Projeto de Lei 2.630, o PL das Fake News, atualmente na Câmara, e trabalhasse pela sua aprovação. “O PL é a chance de a sociedade dar uma resposta mais ampla e forte. A desinformação de todo tipo é o que cria o terreno favorável para reações condenáveis nas mais diferentes áreas, inclusive na política”, afirma o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do projeto.

O pacote de Dino inclui ainda dois projetos de lei. Um criminaliza financiadores e organizadores de atos antidemocráticos, estabelecendo sanções a pessoas físicas e a empresas, como a proibição de participar de licitações ou receber benefícios fiscais. O outro aumenta a pena de quem atentar contra a integridade física ou a vida de chefes dos Três Poderes.

As duas medidas podem ajudar a dissuadir radicais, mas seu efeito é incerto. Mais importante seria o Congresso derrubar vetos do ex-presidente Jair Bolsonaro à Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/21) que a enfraqueceram. Um dos itens vetados aumenta a pena para militares que cometerem crimes contra a democracia, com perda de patente ou do posto. O trecho deveria ser restaurado na lei.

Editorial de O GLOBO, em 29.01.23

Abrace um bolsonarista

Por conhecer e amar muitos negacionistas, me forço a tentar entendê-los. Quase sempre fracasso

Funcionário da equipe de limpeza do STF limpa estátua que foi pichada por manifestantes Cristiano Mariz/Agência O Globo

Levanta a mão quem conhece algum bolsonarista que acredita que a eleição foi roubada. Um vizinho, um irmão, uma tia, um porteiro, um sogrão... De alguns deles, você gosta. Outros, talvez até ame. Tem uns que acreditam em fábulas tão incríveis que parecem de outro planeta.

Mas reduzir os sentimentos dos negacionistas aos absurdos em que eles acreditam é má ideia. Primeiro, porque uma das belezas da democracia é que até bolsonarista pode votar. (Mesmo que alguns discordem.) Segundo, porque os negacionistas raiz foram, realmente, enganados. De verdade.

Por mais surreal que nos pareça, para muitos negacionistas, a libertação de Lula da prisão, sua candidatura e retorno ao poder são parte de uma conspiração para instaurar o comunismo no Brasil. Acreditam nisso com a mesma certeza que nós temos de que a Terra é… redonda?

Hoje em dia é praticamente impossível não conhecer pelo menos um negacionista que, no fundo, a gente ama. Não falo dos que atacaram Brasília. Falo dos parentes e amigos que a gente até evita para não se aborrecer.

Na minha família tem um monte. Logo depois da eleição, um dos meus irmãos trocou a foto dele no WhatsApp por um logotipo que dizia: “Eu apoio a intervenção militar”. Sangue do meu sangue — golpista.

A gente não escolhe parente. Entre os amigos, a situação é bem diferente: não tenho um que seja bolsonarista.

Isso pode até parecer motivo de orgulho, mas, na verdade, é sinal de um problema sério: as bolhas sociais — essa condição moderna em que a gente só ouve e fala com quem concorda com a gente. Precisamos estourar essas bolhas.

Por conhecer e amar muitos negacionistas, me forço a tentar entendê-los. Quase sempre fracasso. Mesmo assim, convido você a tentar também.

Falar com quem acredita nessas mentiras pode parecer um esforço em vão. E talvez seja mesmo. Mas mudar o jeito como pensam não é a única coisa boa que pode acontecer. Vou dar um exemplo.

Adoro uma das minhas cunhadas. É uma pessoa maravilhosa, honesta, trata meu irmão bem e, nunca vou esquecer, cuidou com muito carinho do meu pai quando ele estava perto de morrer. Ela é também bolsonarista raiz.

Depois dos ataques em Brasília, mandei mensagem para saber a opinião dela. Como a maioria de nós, ela se disse indignada com o que viu na televisão. Tanto que sua pressão arterial subiu. Mas sua indignação se dava também porque ela tinha certeza de que a depredação foi provocada por esquerdistas infiltrados:

— Todo mundo sabe disso.

Apesar da raiva com o quebra-quebra, contraditoriamente, ela acrescentou que, se estivesse em Brasília, talvez tivesse sido capaz de, ela mesma, atear fogo em tudo.

— Um lado meu não aprova. — ela disse com a voz embargada. — Mas o outro se mantém cheio de ódio. E me faz muito mal sentir raiva de alguém ou de alguma coisa — concluiu aos prantos.

Política sempre foi motivo de raiva, tristeza, confusão e desilusão para muita gente. Isso não é novidade. A novidade é que, agora, é mais fácil do que nunca espalhar mentiras para tirar vantagem dessas emoções.

É natural tentar ignorar quem cai nas mentiras dos Bolsonaros da vida. É uma forma de defesa que ajuda a preservar nossa sanidade. Mas isso não resolve o problema.

Minha proposta é: que tal se, em vez de nos afastarmos dessas pessoas, nos aproximássemos delas? Que tal se a gente falasse com elas com respeito?

A dor era evidente na voz da minha cunhada. Ela sentia ódio, medo. O sofrimento dela era real.

Em vez de desdenhar, tentei confortá-la como pude. Disse que não via a menor chance de o Brasil ser tomado por comunistas. E que, em quatro anos, ela poderia votar novamente em quem ela achar que merece.

Encerrei dizendo:

— Um beijão e te amo.

— Te amo — ela respondeu.

Sergio Peçanha, o autor deste artigo, é colunista de Opinião do Washington Post, onde publicou uma versão deste texto aqui publicado originalmente n'O GLOBO, em 29.01.23

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Lula ‘herda’ conta de R$ 255,2 bilhões do governo Bolsonaro e faz pente-fino em contratos

Valor é superior ao ‘herdado’ por outros presidentes e vai passar por revisão para determinar se será mantido; Tesouro Nacional já fez o bloqueio de R$ 33,7 bilhões

O governo Bolsonaro deixou R$ 255,2 bilhões de despesas contratadas e não pagas para 2023. Chamadas na linguagem orçamentária de Restos a Pagar (RAPs), essas despesas são herdadas de um ano para outro e acabam se transformando num verdadeiro “orçamento paralelo”, competindo por espaço com os novos gastos.

Ao Estadão, o Tesouro Nacional antecipou que já bloqueou R$ 33,7 bilhões de Restos a Pagar depois que um decreto do governo Lula determinou que os ministérios e órgãos públicos façam uma avaliação da necessidade de manter ou não esses contratos. O decreto faz parte do conjunto de medidas de ajuste de fiscal anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, há duas semanas.

Chamadas na linguagem orçamentária de Restos a Pagar (RAPs), essas despesas são herdadas de um ano para outro e acabam se transformando num verdadeiro 'orçamento paralelo'

Chamadas na linguagem orçamentária de Restos a Pagar (RAPs), essas despesas são herdadas de um ano para outro e acabam se transformando num verdadeiro 'orçamento paralelo' Foto: Mauro Pimentel/AFP

O Tesouro informou que um alerta será disparado na próxima semana pelos ministérios da Fazenda, Planejamento e Gestão com as orientações técnicas e de governança fiscal aos seus gestores orçamentários para que façam o pente-fino da necessidade de manter essas despesas ou cancelá-las. O governo conta com essa medida para reduzir as despesas deste ano e tirar as contas publicas do vermelho.

“Independentemente do bloqueio já feito, todos os órgãos terão de fazer uma revisão de contratos e convênios”, explicou o subsecretário de Contabilidade Pública do Tesouro, Heriberto Henrique Vilela do Nascimento. “É uma medida de ajuste fiscal porque esperamos que boa parte dessas despesas bloqueadas sejam canceladas”, acrescentou ele.

Nascimento explica que a medida pode ter um impacto “substancial” para reduzir as despesas neste ano. O bloqueio dos Restos a Pagar é combinado com outro decreto do pacote que determina um pente-fino nos contratos de fornecedores do governo superiores a R$ 1 milhão. No pacote do ministro Haddad, está previsto um potencial de R$ 50 bilhões de diminuição de despesas em 2023, R$ 25 bilhões com efeito permanente de revisão de contratos e programas.

O subsecretário explicou que, por restrições legais, nem todos os Restos a Pagar podem ser bloqueados. Nada também pode ser feito com gastos que já foram processados e liquidados –ou seja, já houve a entrega do produto ou do serviço, mas nem tudo foi pago. As despesas desse grupo somam R$ 81,8 bilhões.

Também não podem ser bloqueadas despesas obrigatórias, emendas parlamentares impositivas, do Ministério da Saúde e das fundações e autarquias da administração pública indireta.

Herança

A herança de gastos deixada pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro mostrou, na virada de 2022 para 2023, um aumento de R$ 21,6 bilhões. De 2021 para 2022, último ano do governo anterior, os restos a pagar estavam em R$ 233,6 bilhões.

A razão principal desse salto foi que, faltando poucos dias para o final do ano passado, o governo Bolsonaro editou R$ 20 bilhões de crédito orçamentário autorizando novas despesas. Como não houve tempo para executá-las, elas foram “carregadas” para 2023, inflando o Orçamento desde ano.

A edição desses novos créditos, no apagar das luzes do governo Bolsonaro, só foi possível porque a Proposta Emenda à Constituição (PEC) da Transição, negociada pelo governo Lula, abriu brecha para gastar R$ 23 bilhões fora teto de gastos (a regra que impõe um limite anual ao crescimento de despesas) ainda em 2022 e permitiu ao governo empenhar as emendas de relator do orçamento secreto – esquema revelado pelo Estadão de transferência de verbas a parlamentares em troca de apoio político.

Em 2018, o ex-secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, adotou uma medida que obrigava o cancelamento dos Restos a Pagar depois de três anos. A medida reduziu o estoque inicialmente, mas ele voltou a crescer na pandemia da covid-19, quando o governo voltou a aumentar os gastos com o chamado “orçamento de guerra”.

No final do ano passado, o Congresso também aprovou uma medida para proibir que Restos a Pagar fossem cancelados no final de 2022. O prazo foi estendido para o final deste ano.

O presidente Lula, ao final do segundo mandato, deixou R$ 246,8 bilhões (valores corrigidos a preços de dezembro de 2021) de Restos a Pagar para a ex-presidente Dilma Rousseff. Sem a correção, a herança de Lula para Dilma foi de R$ 128,5 bilhões. Dilma não completou o seu segundo mandato. Já o presidente Michel Temer deixou R$ 189,6 bilhões, que com a correção da inflação resultam em R$ 227,4 bilhões.

Por Adriana Fernandes, O Estado de S. Paulo, em 27.01.23

Tudo assim e fica por isso mesmo?

Lira distribui R$ 70 milhões em pacote de benesses a Deputados por vitória esmagadora na Câmara

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tem usado o cargo para distribuir um pacote de benesses aos deputados que irão escolher, em 1º de fevereiro, quem comandará a Casa no biênio 2023/2025. Candidato à reeleição, Lira deu aos deputados, em menos de um mês, R$ 9 mil para gastar com combustível e R$ 4 mil para outras despesas, além de aprovar reajuste salarial de mais de R$ 7 mil a partir de abril. Os rendimentos serão de R$ 41.650,92. O total de desembolso para os cofres públicos chega a R$ 70 milhões.

O aumento do auxílio moradia, que dobrou de R$ 4 mil para R$ 8 mil, beneficiará os 513 deputados, até mesmo aqueles que já moram em apartamento funcional, graças a uma manobra articulada pelo presidente da Câmara. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) impede esse tipo de reajuste. O cálculo sobre os valores a mais foi feito pelo Estadão com base nos aumentos publicados pela própria Casa.

Expoente do Centrão, Lira é favorito para ganhar novo mandato, mas toda sua estratégia vem sendo montada para obter o maior número de votos e se tornar o candidato mais bem votado da história da Câmara. Não sem motivo: quanto mais apoio ele conquistar, mais poder de barganha terá o Centrão nas negociações com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para exigir o que quiser, em troca de apoio nas votações.

Sem orçamento secreto, Lira vem sendo pressionado pelo baixo clero a conceder privilégios aos colegas. O deputado tem apoio de Lula, do PT e de partidos do Centrão. Nos bastidores, porém, os petistas torcem para que o tamanho da possível vitória do presidente da Câmara não seja muito maior do que a de 2021, quando ele obteve 302 votos na disputa contra Baleia Rossi (MDB). A avaliação no Palácio do Planalto é a de que, se isso ocorrer, Lira e o Centrão vão criar muito problema para o governo, vendendo dificuldades para ter facilidades.

O único candidato lançado para desafiar Lira, até agora, é o deputado eleito Chico Alencar (PSOL-RJ), que já foi filiado ao PT e deixou o partido após o escândalo do mensalão. “Essas medidas tomadas por Arthur Lira fogem à regra. Poderiam ser discutidas pela nova Mesa Diretora da Câmara e também pelo colégio de líderes”, disse Alencar. “Alguns itens do pacote ficaram acima da inflação. Nesse momento do País, precisamos ter austeridade. A Câmara quer um presidente democrático, e não um imperador”, completou. Levantamento do PSOL indica que os valores reajustados por Lira subiram “acima da inflação acumulada entre 2019 até 2022?.

Disputa no TCU

Até mesmo uma vaga no Tribunal de Contas da União (TCU) entrou nas negociações de Lira, empenhado em eleger o deputado Jonathan de Jesus (Republicanos-RR) para ter um aliado na Corte. A votação para a vaga aberta com a aposentadoria da ministra Ana Arraes no TCU deve ocorrer na próxima quinta-feira, 2, um dia depois das eleições para a presidência da Câmara e também do Senado, hoje comandado por Rodrigo Pacheco (PSD-MG). São os deputados empossados no dia 1.º que escolherão o ministro do TCU.

Lira fez acordo com o partido de Jonathan de Jesus para obter apoio à sua reeleição. O presidente do Republicanos, Marcos Pereira (SP), também pleiteia a primeira vice da Câmara, cargo disputado com o PL de Jair Bolsonaro e com o PT. Além de Jonathan, concorrem à vaga no TCU a deputada Soraya Santos (PL-RJ) e Fábio Ramalho (MDB), que não foi reeleito e pode ser lançado por outro partido, o Patriota.

O deputado Hugo Leal (PSD-RJ) desistiu do páreo após assumir a Secretaria de Óleo e Gás do governo fluminense. Lira quer que Soraya também retire a candidatura, com o objetivo de deixar o caminho aberto para Jonathan. Ela resiste.

As benesses concedidas pelo presidente da Câmara aos deputados têm o objetivo de “fidelizar” o apoio de seus pares. Os gastos com combustíveis e auxílio-moradia valem a partir do próximo dia 1º e podem custar até R$ 32,6 milhões. Com o aumento salarial dos deputados, a Casa vai gastar R$ 36,4 milhões.

O auxílio moradia é composto por um valor fixo de R$ 4.253, somado a um adicional, por meio da cota parlamentar, de R$ 1.747. Lira elevou o valor adicional para R$ 4.148,80 a partir de 1º de fevereiro. Assim, o benefício poderá chegar a R$ 8.401. Ao mexer no complemento do auxílio moradia - que teve um reajuste de 137% - e não na quantia fixa, o presidente da Câmara beneficiou todos os parlamentares, inclusive quem já mora em imóveis funcionais.

A Câmara tem 432 apartamentos nas asas Norte e Sul de Brasília, mas alguns edifícios estão sem condições de uso e foram interditados. O benefício fixo de R$ 4.253 pode ser pago em espécie, com desconto de Imposto de Renda, ou mediante pedido de reembolso após apresentação de nota fiscal de hotel ou de aluguel.

Além disso, como mostrou o Estadão, Lira também garantiu a seus pares o reembolso de até quatro passagens aéreas por mês, de ida e volta. O valor será computado fora da cota parlamentar, que já leva em consideração o preço dos bilhetes. A assessoria da Câmara foi procurada, mas não se manifestou até o fechamento desta reportagem.

As benesses de Lira

- Reajuste de deputados: salários passaram de R$ 33.763,00 para R$ 39.293,32 em 1º de janeiro. A partir de 1º de abril, os valores vão a R$ 41.650,92. Em 1º de fevereiro de 2024, alcançam R$ 44.008,52. Subsídios serão de R$ 46.366,19 a partir de 1º de fevereiro de 2025. Reajuste total é de 37,32%.

- Reajuste de servidores da Câmara: aumento de 6% a cada fevereiro de 2023, 2024 e 2025.

- Reajuste de 6% da Verba de Gabinete para abarcar o aumento dos servidores. Cada deputado tem R$ 111.675,59 por mês para pagar salários de até 25 secretários parlamentares, que trabalham em Brasília ou nos Estados. Os salários individuais vão de R$ 1.025,12 a R$ 15.698,32.

- Reajuste da Cota Parlamentar, com aumento dos limites para gastos com combustíveis e com o complemento do auxílio-moradia. A cota pode custear despesas do mandato, como passagens aéreas e conta de celular.

- Reembolso de até quatro passagens áreas, de ida e volta, por mês, fora da cota parlamentar.

- Estrutura adicional de 65 comissionados e de cargos de natureza especial para Lideranças de Partidos Políticos e Federações Partidárias.

Para cada deputado

- R$ 5.793,80: aumento na cota parlamentar a partir de 1º de fevereiro de 2023

- R$ 7.887,92: aumento salarial a partir de abril de 2023. O rendimento total será de R$ 41.650,92.

Total do aumento: R$ 13.681,72 para cada parlamentar.

Por Julia Affonso e Vera Rosa, O Estado de S. Paulo, em 27.01.23


Falta grandeza a Lula

Ao insistir em chamar de ‘golpe’ o impeachment constitucional de Dilma, Lula investe no rancor, como sempre fez ao longo de sua trajetória, mas o momento do País clama por um estadista

Num evento público na Argentina, o presidente Lula da Silva chamou de “golpe de Estado” – nada menos – o impeachment da então presidente Dilma Rousseff em 2016. Ou seja: não contente em classificar de “golpe de Estado” uma decisão soberana do Congresso, com respaldo do Supremo Tribunal Federal e em estrito cumprimento da Constituição, Lula o fez no exterior, enxovalhando as instituições democráticas do Brasil perante uma audiência estrangeira. Foi, portanto, uma dupla ofensa ao País

De Lula, é claro, não se podia esperar outra coisa. É da sua natureza investir no rancor como ativo eleitoral. Foi assim que, desde a fundação do PT, e de modo mais acentuado durante o mandarinato lulopetista, Lula alimentou a cizânia nacional, dividindo o País em “nós” e “eles”. “Nós”, no léxico lulopetista, designa todos aqueles que, sendo petistas, são considerados naturalmente bons, justos e tradutores juramentados dos desejos do “povo”; já “eles”, nesse mesmo dicionário, representam todos os que ousam criticar o PT e, portanto, são naturalmente maus, injustos e inimigos do “povo” – e, agora, golpistas.

Se o comportamento de Lula não causa surpresa, provoca desânimo: justamente no momento em que o País mais precisa de um estadista, capaz de reconstruir pontes e fomentar o diálogo, o que temos na Presidência, até o momento, é o agressivo líder sindical que só se interessa pelos seus e desmerece quem não integra sua patota.

Lula recebeu um País imerso numa profunda crise, mas não uma crise qualquer: há risco real de ruptura, como testemunhamos, estarrecidos, no dia 8 de janeiro, com a tentativa de golpe em Brasília. Seu antecessor deixou como principal legado a desconfiança generalizada em tudo – seja em relação a vacinas e às urnas eletrônicas, seja em relação aos políticos, à imprensa e ao Judiciário. Relações familiares foram irremediavelmente rompidas, e todos os aspectos da vida cotidiana foram politizados.

Ora, ao qualificar como “golpe de Estado” um processo rigorosamente constitucional, em que nenhum direito foi violado, Lula colabora decisivamente para manter em carne viva o tecido social, alimentando o descrédito nas instituições, exatamente como fazia Jair Bolsonaro na Presidência.

Ao longo da campanha eleitoral e em seus primeiros discursos, Lula transmitiu a esperança de que agiria para retomar o diálogo entre os cidadãos em torno de objetivos comuns, a começar pela defesa do regime democrático. Mas não é isso o que o presidente tem feito até agora. O Lula da “frente ampla”, está cada vez mais claro, era só um personagem inventado pelo marketing político. O Lula que está na Presidência certamente satisfaz os petistas que desejam vingança pelos anos em que o partido virou sinônimo de corrupção e incompetência, mas está longe de satisfazer as demandas de um dos mais graves momentos da história nacional. Depois de ser presidido por um anão moral, o Brasil esperava, se não um gigante, ao menos um presidente minimamente empenhado em restabelecer a grandeza da Presidência da República.

É claro que as soluções para os imensos problemas do País não dependem apenas da ação do governo, pois demandam uma concertação de interesses e o engajamento da sociedade civil organizada. Tudo isso, no entanto, só será possível sob a liderança de alguém disposto a sobrepor o interesse público a outros interesses de natureza ideológico-partidária – e o interesse público nem remotamente se confunde com a agenda retrógrada e rancorosa do PT. A história nacional não é aquilo que o partido do presidente diz que é.

O País precisa de entendimento sobre suas prioridades e clama por uma condução altiva e responsável. É em momentos de turbulência, como o que ora o Brasil atravessa, que estadistas são forjados. Lula, portanto, tem de decidir se quer ser visto como o líder certo para essa quadra desafiadora de nossa história ou se pretende seguir como um dos grandes beneficiários do jogo de soma zero com o bolsonarismo, retroalimentando o círculo vicioso que nos trouxe até aqui.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.01.23

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

A ‘verdade oficial’

Lula falou uma fake news quando afirmou que impeachment de Dilma foi golpe

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva posa ao lado do par argentino, Alberto Fernández, e do ex-presidente boliviano, Evo Morales, durante evento cultural na segunda-feira em Buenos Aires ESTEBAN COLLAZO/AFP

Não bastassem comunicados oficiais do PT afirmando que a então presidente Dilma Rousseff foi tirada do governo por um golpe — o que poderia ser atribuído a uma das muitas facções petistas radicais —, o presidente Lula deu seu aval oficial a tal absurdo, afirmando, na presença do presidente da Argentina, Alberto Fernández, e do ex-presidente da Bolívia Evo Morales:

— Vocês sabem que, depois de um momento auspicioso no Brasil, quando governamos de 2003 a 2016, houve um golpe de Estado — disse Lula na Argentina.

Incluindo os anos Dilma no “momento auspicioso”, Lula, além de imodesto, fugiu da verdade.

Se houve alguma coisa fora da legalidade no impeachment de Dilma, foi a manobra do senador Renan Calheiros, referendada pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, para evitar a perda de direitos políticos da presidente derrubada, com uma leitura distorcida do artigo constitucional que transforma automaticamente a autoridade impedida em inelegível. Coube ao eleitorado mineiro cassar pela segunda vez a ex-presidente, candidata ao Senado derrotada nas urnas pelo voto direto.

Como é possível que um governo que pretende acabar com as fake news e combater a desinformação comece, ele mesmo, a tentar transformar mentira em verdade? O que Lula disse foi fake news. Vários órgãos, em diversos ministérios e secretarias governamentais, se preparam para divulgar a “verdade oficial”. Diz-se que a História é escrita pelos vencedores. A verdade, porém, é que Dilma foi deposta por um fato concreto.

Impeachment é sempre um processo político, e ela não escapou porque tinha relacionamento político frágil no Congresso. Deixou atrás um rabo grande de pedaladas fiscais, que foi devidamente punido. Mas não há como evitar a versão dos vitoriosos. Imaginemos o que fizeram com Lula: anularam as condenações por causa de atitudes do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores que, algumas vezes, realmente saíram das regras. Moro, durante anos, foi um herói nacional, com sentenças, inclusive as de Lula, referendadas por juízes de segunda e terceira instâncias e pelo próprio plenário do Supremo Tribunal Federal, embora alguns ministros tenham mudado de posição no meio do caminho.

Do jeito como as coisas acontecem no Brasil, se volta um governo de direita, Moro poderá ser reabilitado, e os petistas voltarão a ser acusados e presos novamente. O país precisa entrar numa normalidade de alternância de poder democrática, com projetos de Estado que possam ser continuados, sem revisionismos.

No romance “1984”, de George Orwell, o protagonista trabalha para o Ministério da Verdade, responsável pelo revisionismo histórico. Reescreve artigos de jornais do passado, destrói documentos não revisados, para não deixar prova de que o governo mente. Além de tentar emplacar uma versão mentirosa do impeachment, uma série de medidas legislativas está sendo proposta para que a verdade oficial prevaleça, como a retirada das redes sociais de conteúdos considerados perniciosos pelo governo, antes mesmo de intervenção judicial.

O “Pacote da Democracia” do Ministério da Justiça, uma nomenclatura orwelliana que é uma contradição em termos, está em preparação. A criminalização de postagens que incitem a violência contra as instituições pela internet seria feita sem nem mesmo passar pelo crivo do Judiciário. Se as ações do ministro Alexandre de Moraes, respaldadas posteriormente pelo plenário do Supremo, já são criticadas por parte da sociedade, o que dizer de uma decisão governamental sem a interferência desse mesmo Supremo já acusado — na maior parte das vezes injustamente — de politização?

Não é apenas no Ministério da Justiça que se engendra essa “orwellização”. Também na Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República foi instituído um “Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão”, para fiscalizar peças de desinformação e promover políticas de igualdade social. Parece brincadeira, mas é grave e sério.

Merval Pereira, o autor deste artigo é Jornalista e Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 26.01.23

Uso indecente do cartão corporativo

Em mais um insulto aos princípios republicanos, Bolsonaro bancou motociatas com o cartão da Presidência, que só existe para pequenas despesas e cujo uso deve ser impessoal


Motociatas - Mussolini já fazia na Itália fascista

A violação dos princípios da impessoalidade e da moralidade na administração pública, previstos no caput do artigo 37 da Constituição, foi uma constante no governo de Jair Bolsonaro. A rigor, desde muito antes de ser eleito presidente da República, Bolsonaro jamais deu sinais de que sabia separar bem as questões de interesse público de seus interesses particulares, como se suas vitórias eleitorais tivessem o condão de transformar assuntos de Estado, de governo e de sua família em uma coisa só. Alçado à Presidência, o mau uso por Bolsonaro do Cartão de Pagamentos do Governo Federal (CPGF), conhecido popularmente como “cartão corporativo”, é corolário dessa mixórdia.

Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o Estadão analisou detidamente, em parceria com a agência Fiquem Sabendo, milhares de notas fiscais apresentadas pelo governo federal a título de prestação de contas pelo uso do cartão corporativo, tanto por Bolsonaro como por alguns de seus auxiliares. Foi uma faina, pois o papelório é armazenado fisicamente em pastas contidas em dezenas de caixas trancadas em um almoxarifado.

O resultado da análise desses papéis é de estarrecer qualquer cidadão que tenha a mínima noção dos fundamentos sobre os quais se erigiu esta República.

Bolsonaro gastou milhões de reais por meio do cartão corporativo em eventos de pura autopromoção, como as tais motociatas que o então presidente promoveu País afora. Em nenhum desses passeios, realizados às expensas dos contribuintes, havia interesse público envolvido. Apenas o interesse político-eleitoral do então incumbente, em campanha permanente e ilegal pela reeleição.

Em média, cada passeio de moto do sr. Bolsonaro com seus amigos e apoiadores – e foram muitos ao longo do mandato, inclusive em dias e horários em que o então presidente deveria estar trabalhando – custava R$ 100 mil aos cofres públicos. Nesse montante estão incluídas as despesas com deslocamento, alimentação e hospedagem de um séquito de servidores mobilizados exclusivamente para atender aos interesses privados do ex-presidente, pois nenhuma promoção de política pública esteve remotamente envolvida nessas motociatas.

Nesses eventos privados, era comum o dispêndio de milhares de reais em lanches não só para os servidores do governo federal que acompanham o presidente da República durante viagens, como também para policiais que cuidavam da segurança das motociatas, militares baseados nas cidades onde ocorriam os passeios e socorristas.

O cartão corporativo não foi criado para isso. O uso do CPGF é regulamentado pelo Decreto 6.370/2008. Esse meio de pagamento se presta ao suprimento de fundos para a realização de “despesas eventuais que exijam pronto pagamento”. Em geral de pequena monta, essas despesas, até por seu imediatismo, não passam por licitação. O cartão corporativo também pode ser usado para o pagamento de despesas que precisam ser sigilosas, como, por exemplo, as realizadas por agentes públicos durante processos de investigação. Mas, conforme a Controladoria-Geral da União, “embora não exista a obrigatoriedade de licitação, devem ser observados os mesmos princípios que regem a Administração Pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. As motociatas de Bolsonaro desrespeitam todos esses critérios.

Ilegal e indecente por si só, o uso do cartão corporativo para custear as motociatas pode ser o menor dos problemas de Bolsonaro. O Decreto 6.370/2008 veda o uso do CPGF na modalidade saque, salvo casos excepcionalíssimos. Mas paira sobre o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, a suspeita de realizar uma série de saques em dinheiro que, entre outros gastos, teriam bancado despesas pessoais do clã Bolsonaro e de familiares da então primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

Portanto, além da flagrante violação da Lei Eleitoral, há indícios robustos de ato doloso de improbidade administrativa. Bolsonaro terá de ser criativo para se explicar.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.01.23

Exércitos refletem as respectivas sociedades

Trabalha-se para juntar cacos e superar a desconfiança mútua. Vai depender das circunstâncias


Mas todo mergulho no redemoinho político é incontrolável e o das Forças Armadas trouxe para elas duas graves consequências: a corrosão da disciplina e hierarquia promovida por um ex-capitão que via no caos suas melhores chances políticas. Foto: Wilton Junior/Estadão

Não há nada de original acontecendo com as Forças Armadas brasileiras. Vale lembrar o que escreveu em 1921 o fundador do Exército Vermelho, Leon Trotsky, intelectual que virou comissário da Guerra na revolução bolchevista: “Todos sabemos que um exército não é algo externo a uma sociedade dada, mas reflete todos os seus aspectos, tanto os fracos quanto os fortes”.

Os eventos em torno do 8 de janeiro são parte de um aspecto mais abrangente, o de que indivíduos conduzindo instituições mergulhadas na luta política acabam atuando ao sabor das circunstâncias. É o que vale também para o STF (e o TSE): vendo-se num confronto “existencial”, pois enxergavam (com razão) no bolsonarismo a intenção de destruí-los, tribunais superiores engalfinharam-se na luta política de curtíssimo prazo, ainda que ministros digam que só obedeciam a “princípios jurídicos”.

Mas todo mergulho no redemoinho político é incontrolável e o das Forças Armadas trouxe para elas duas graves consequências: a corrosão da disciplina e hierarquia promovida por um ex-capitão que via no caos suas melhores chances políticas.

Mas todo mergulho no redemoinho político é incontrolável e o das Forças Armadas trouxe para elas duas graves consequências: a corrosão da disciplina e hierarquia promovida por um ex-capitão que via no caos suas melhores chances políticas. Foto: Wilton Junior/Estadão.

O que levou ao engajamento político do Exército especialmente a partir de 2018 (ainda antes das eleições) não era o intuito de “tutelar” a Nação. Mas, sim, a noção entre seus principais comandantes de que o tecido social se esgarçava perigosamente em função da corrupção dos dirigentes políticos, da disfuncionalidade e da baixa representatividade do sistema político – sem que os militares tivessem nem sequer o contingente necessário para eventualmente garantir lei e ordem.

Nesse sentido, Jair Bolsonaro não foi uma escolha mas uma circunstância considerada então “fortuita” pelos comandantes militares para estabilizar o País que, na visão deles, estava à mercê de decisões monocráticas do Judiciário e à beira do caos (greves de caminhoneiros e PMs), e vivendo a indignação causada pelos escândalos de corrupção dos governos petistas. Não foi à toa que às vésperas do pleito de 2018 o então chefe de Estado-Maior do Exército virou assessor do presidente do STF.

Mas todo mergulho no redemoinho político é incontrolável e o das Forças Armadas trouxe para elas duas graves consequências: a corrosão da disciplina e hierarquia promovida por um ex-capitão que via no caos suas melhores chances políticas. Com danos inevitáveis à própria imagem, pois a credibilidade reconquistada a partir de 1985 baseava-se numa percepção de “neutralidade” institucional das Forças Armadas que o “fortuito” Bolsonaro arrasou.

A tal “volta à normalidade” e “pacificação” se dão agora num ambiente no qual se reitera o respeito às instituições, o que pressupõe o controle civil sobre os militares – mas sem que se enxergue em Lula a autoridade proporcionada por uma efetiva liderança nacional. Trabalha-se para juntar cacos e superar a desconfiança mútua.

William Waack, o autor deste artigo é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O estado de S. Paulo, em 26.01.23

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

‘Carinho’ com ditadores

Diplomacia com Venezuela e Cuba é do interesse do Brasil. Mas tratamento privilegiado a suas ditaduras perpetua sofrimento de seus povos e, de quebra, pode lesar o bolso dos brasileiros

O presidente Lula da Silva anunciou que vai restabelecer a “normalidade diplomática” com a Venezuela em dois meses. Faz muito bem. No entanto, coisa muito diferente é sua promessa de “tratar Venezuela e Cuba com muito carinho”.

Países não têm amigos, têm interesses. Com a Venezuela, em especial, o Brasil compartilha mais de 2 mil km de fronteiras e tem relações comerciais históricas: a Venezuela importa quase 80% de tudo o que consome, incluindo muitos produtos agropecuários brasileiros, e tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo, exportando ao Brasil toda uma série de derivados petroquímicos. Além de seus interesses comerciais, o Brasil precisa de uma representação na Venezuela que resguarde os direitos dos mais de 20 mil brasileiros que lá vivem, assim como de uma representação da Venezuela que ajude a resguardar os direitos dos cerca de 340 mil imigrantes e refugiados venezuelanos no Brasil.

Mas normalidade diplomática não significa tratar como normais ditaduras militares, comandadas por caudilhos e seus clãs, que mergulham seus povos a cada dia mais na opressão e na miséria. Se a ideia é respeitar os povos venezuelano e cubano, o melhor começo é reconhecer que vivem sob Estados de exceção. Mas Lula, que já disse que a Venezuela tem “excesso” de democracia, insiste em tratar esses regimes totalitários não só como democracias plenas, mas como vítimas do imperialismo norte-americano. Afinal, como disse recentemente, não fosse pelo embargo dos EUA, Cuba seria uma “Holanda”, ou seja, uma democracia capitalista com irretocável histórico de tolerância civil, política e religiosa.

“O que eu quero para o Brasil, quero para a Venezuela: respeito à minha soberania e respeito à autodeterminação do meu povo”, disse Lula. Afora os delírios bolsonaristas à época de Donald Trump, que não encontraram um mínimo respaldo nos poderes civis e militares brasileiros, o Brasil nunca representou qualquer ameaça à soberania da Venezuela. Já invocar a autodeterminação do povo venezuelano ou cubano – como se tivessem livremente se autodeterminado a serem oprimidos pelas tiranias mais brutais da América Latina – é um insulto.

Lula poderia criticar os embargos, como fazem muitos analistas geopolíticos, por serem contraproducentes. Se retirados, eles poderiam dinamizar a economia desses países, insuflar o anseio por mais liberdade e eliminar o pretexto de seus déspotas para sustentar seu Estado policialesco. Mas é no mínimo curioso que ele considere que esses países são oprimidos por um regime “imperialista” que se autodeterminou a não fazer negócios com eles. Afinal, se o socialismo é tão superior ao capitalismo, por que eles precisariam da maior potência capitalista do mundo para serem livres e prósperos?

Acrescentando insulto à injúria, Lula não só escarnece do sofrimento dos venezuelanos e cubanos, como dá sinais de que pode sobrepor suas amizades aos interesses do Brasil – de novo.

Lula diz que o BNDES voltará a financiar projetos para “ajudar” países vizinhos. Como se sabe, nas mãos do PT, o BNDES torrou dinheiro público em projetos sem relevância para o interesse nacional, liberando financiamentos a empresas brasileiras contratadas por governos estrangeiros para grandes obras. Muitos desses financiamentos foram mantidos sob sigilo e praticamente todos foram dados a empresas envolvidas nos esquemas investigados pela Lava Jato. Na prática, o BNDES se tornava credor do contratante a juros camaradas subsidiados com o dinheiro do contribuinte.

Só os calotes de Cuba e Venezuela somam mais de US$ 529 milhões – quase R$ 2,7 bilhões. Como o risco foi assumido inteiramente pelo governo brasileiro, o BNDES acionou o Fundo de Garantia à Exportação do Tesouro. Ou seja, quem quitou a dívida não foram nem as empreiteiras nem os governos estrangeiros, mas o contribuinte brasileiro.

Em outras palavras, o “carinho” de Lula com ditadores companheiros não só ajuda a perpetuar a miséria e a opressão das populações sob seu tacão, mas pode custar muito caro ao bolso dos brasileiros.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.01.23

Justiça não é vingança

A pacificação política exige a punição dos radicais, mas também um exame de consciência de todas as forças democráticas, que precisam se desvencilhar de quaisquer ânimos retaliatórios

A democracia saiu ou não saiu fortalecida após 8 de janeiro? Com essa interrogação, que tem perpassado os corações e mentes de todos os brasileiros, a Fundação Fernando Henrique Cardoso promoveu um debate sobre o tema com Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, e a socióloga Maria Hermínia Tavares de Almeida, com mediação do cientista político Sergio Fausto.

Jobim e Maria Hermínia concordam: a democracia saiu mais forte. Mais que uma impressão, essa confiança é corroborada pelas diversas manifestações cívicas nas últimas semanas. A esmagadora maioria da população quer paz e não apoia manobras autoritárias. Este ânimo foi representado no dia seguinte àquele domingo infame, no gesto de solidariedade entre os representantes dos Três Poderes, os governadores da Federação e representantes dos municípios. Mas a própria amplitude dessa reunião mostra que a ameaça é grave. A democracia saberá se fortalecer? Eis a questão realmente desafiadora.

A resposta, em tese, já foi dada pela Constituição: o vigor da democracia depende da combinação entre a força da lei e a concertação política. Na prática, cabe a todos um profundo exame de consciência sobre suas responsabilidades. Como elas são interdependentes, não haverá paz firme e duradoura sem diálogo franco e consistente entre a sociedade e o poder público, entre civis e militares, entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário e entre a direita e a esquerda.

Há, primeiro, as responsabilidades mais evidentes. A direita e as Forças Armadas precisam se engajar em um trabalho de depuração: qualquer laivo de conivência com o golpismo é intolerável. A direita republicana precisará construir uma oposição responsável e organizar estruturas partidárias eleitoralmente competitivas e ideologicamente consistentes. As Forças Armadas precisam investigar e prestar contas à população de quem foi leniente ou cúmplice com as mobilizações antidemocráticas.

Mas as esquerdas, em especial o governo petista, o alvo maior dos vândalos, também têm um papel na pacificação política. Como disse Jobim, com conhecimento de causa de quem foi ministro da Defesa no governo Lula, houve uma “euforia injustificada” do PT na vitória eleitoral, porque ela foi estreita e não foi só do partido, mas, sobretudo, daqueles que não queriam mais Bolsonaro no poder. Mas o governo tem mostrado pouca abertura aos desconfiados, isto é, à maioria do eleitorado das Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste e das classes médias e altas, que rejeitam seu projeto desenvolvimentista.

A Justiça precisa mostrar rigor à altura da ameaça. Mas é crucial que esse rigor se volte sobre a própria forma de seus atos e os limites de suas competências. Como apontou Jobim, quando adversários políticos se transformaram em inimigos, a política começou a perder sua capacidade de administrar conflitos, e os próprios políticos levaram à Suprema Corte suas desavenças. Mas essa judicialização da política acabou levando à politização da Justiça, que passou a tomar muitas decisões que caberiam ao Legislativo ou ao Executivo.

Todos esses protagonistas têm lições a recolher da história. Da Independência à Proclamação da República e ao nascimento da Nova República, o Brasil tem um histórico de rupturas necessárias, mas conduzidas através de acomodações e compromissos pacíficos. É preciso resgatar esse patrimônio.

Isso não significa impunidade. O maior responsável pelos atentados tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro. Mas, se a sua responsabilização, e a de seus seguidores, não for realizada com o rigor do devido processo legal, segundo a verdade dos fatos, o radicalismo sairá mais forte e a democracia, mais fraca. “Temos de saber ter tolerância”, disse Jobim. “Se nós, se o governo, se os democratas, começarem a fazer uma retaliação generalizada, vamos ter radicalização, e aí Bolsonaro se fortalece.” Tolerância não é indiferença. Mas a tentação à indiferença é agora o menor dos riscos. Muito mais importante é que as forças democráticas se lembrem, e reforcem umas nas outras, a consciência de que justiça não é vingança.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.01.23

O maior inimigo do governo Lula

O presidente insiste em provocar danos com suas falas sobre economia

Foto de LulaVinícius Schmidt/Metrópoles

Bem ao contrário de seu antecessor, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tem problemas de cognição. Muitíssimo ao contrário: Lula é um homem extremamente inteligente, esperto, safo. Também muito diferentemente do outro, Lula é bem preparado para a tarefa de administrar, resolver problemas, dirimir dissensões, liderar, delegar poderes. Governar, enfim.

Há mais uma diferença imensa, abissal entre os dois – e importantíssima: Lula não é preguiçoso, indolente. De forma alguma.

Em menos de um mês, o novo governo já ostenta um rol de realizações que é absolutamente admirável, nos mais diversos campos. Só os atos revogando absurdos cometidos ao longo do desgoverno passado já são uma imensa contribuição ao Brasil e aos brasileiros – desde a volta do controle de armamentos até a anulação da portaria do general Pazuello que praticamente impedia a realização do aborto legal, nos poucos casos permitidos pela legislação.

As prontas ações dos últimos dias de socorro à população ianomâmi são exemplares, de se aplaudir com entusiasmo – ao mesmo tempo em que revelam ao mundo o descaso premeditado, intencional, do desgoverno do antecessor, com a vida dos indígenas. Diante das imagens de homens, mulheres e crianças ianomâmis que fazem lembrar os presos encontrados nos campos de concentração nazistas ao fim da Segunda Guerra, é absolutamente inevitável que a palavra “genocida” volte a ser associada ao nome do Capitão das Trevas.

No âmbito das relações internacionais, então, é impressionante o que o governo Lula já realizou. De fato, o Brasil voltou a ser um ator importante na cena mundial, após anos em que foi tornado um pária.

Pois bem.

Mas por que Lula insiste em, dia sim e outro também, falar asneiras, sandices, idiotices sobre política econômica?

Por ue raios o presidente insiste em dinamitar o duríssimo trabalho de seus auxiliares, o ministro Fernando Haddad à frente?

“Nesse país (sic) se brigou muito para ter um Banco Central independente, achando que ia melhorar o quê? Eu posso te dizer com a minha experiência, é uma bobagem achar que o presidente do Banco Central independente vai fazer mais do que fez o Banco Central quando o presidente era que indicava.”

“Por que com um banco independente a inflação está do jeito que está?”

“Você estabelecer uma meta de inflação de 3,7%, quando você faz isso, você é obrigado a arrochar mais a economia para poder atingir aqueles 3,7%. […] O que nós precisamos nesse instante é o seguinte: a economia brasileira precisa voltar a crescer.”

“Por que as mesmas pessoas que discutem com seriedade o teto de gasto não discutem a questão social do país? Por que o povo pobre não está na planilha da discussão da macroeconomia?”

“Para cumprir teto fiscal, geralmente é preciso desmontar políticas sociais e não se mexe com o mercado financeiro. Mas o dólar não aumenta ou a bolsa cai por causa das pessoas sérias, e sim dos especuladores.”

É sempre o mesmo script. Parece disco quebrado, que fica repetindo a mesma coisa sempre: Lula se sai com frases desse tipo, o dólar sobe, a Bolsa cai, os economistas, os analistas, os artigos e editoriais dos jornais criticam unanimemente, e duramente. O ministro Fernando Haddad tenta apagar o incêndio, dá entrevista em tom calmo, sereno, adequado – mas, diabo, em quem os agentes econômicos vão acreditar? No ministro ou no chefe dele?

Tem tanta coisa a ser feita. Há que serenar os ânimos depois do inédito, violento, criminoso ataque terrorista aos Três Poderes e à democracia. Dividido ao meio, o país precisa ser pacificado. E reconstruído, depois de quatro anos de destruição ampla, geral e irrestrita. Educação, saúde, meio ambiente, segurança pública, tecnologia – há que se investir em tudo, reconstruir, recomeçar.

E o presidente Lula vem falar de botar o BNDES para “ajudar o desenvolvimento dos países vizinhos”? Para concorrer com o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento? E de criar moeda comum com a Argentina e quem mais quiser?

Aaaaaah!

É como estão dizendo: sur-real. Surreal.

Sérgio Vaz , o autor deste artigo, é jornalista (ex-Estadão, estado.com.br, Agência Estado, revistas Marie Claire e Afinal, Jornal da Tarde). Edita os sites 50 Anos de Filmes e 50 Anos de Textos. Publicado no Blog do Noblat / Metropóles, em 25.01.25

Tanques ocidentais para Kyiv: uma mensagem devastadora para o Kremlin

Os Abrams e os Leopards representariam uma atualização substancial no campo de batalha para a Ucrânia e uma decisão de grande valor político e militar.

Um tanque Leopard 2 durante exercícios militares na Letônia em 2021. (Foto de Valda Kalinda - Ag. EFE)

A sorte parece lançada. Der Spiegel informou na tarde de terça-feira que o governo alemão tomou a decisão de entregar os tanques Leopard 2 à Ucrânia; Pouco antes, a mídia norte-americana indicou que o governo Joe Biden está optando por fornecer tanques Abrams a Kiev , embora o presidente ainda não tenha endossado a medida. Se essas etapas forem formalizadas, seria um desenvolvimento transcendental na guerra, não apenas no campo militar. Também na política, com uma mensagem muito dura de união ocidental e determinação para o Kremlin.

A nível militar, a entrega de tanques ocidentais modernos é de grande valor por várias razões. Em primeiro lugar, porque são mais eficazes do que os de fabrico soviético-russo que a Ucrânia tem actualmente, alguns como material próprio, outros entregues por aliados da Europa de Leste que também tinham estes modelos nos seus arsenais, e outros mais conquistados no campo de batalha às forças invasoras. Os tanques ocidentais têm maior agilidade, maior capacidade de reconhecimento geral e, portanto, movimento noturno, maior resistência da blindagem e melhor precisão de tiro.

Dentro do lote ocidental, os Leopard 2 são especialmente úteis, pois estão disponíveis em pelo menos uma dezena de países, com um conjunto de cerca de 2.000 unidades, o que facilita uma cadeia de abastecimento muito profunda, que permitiria homogeneidade operacional, uniformidade na Manutenção e logística de peças de reposição. Além disso, segundo especialistas, seu manuseio, manutenção e alimentação em termos de combustível são mais viáveis ​​que o Abrams americano.

O trunfo reside não só na melhoria que estes dispositivos representariam, mas nos problemas que, sem eles, a Ucrânia em breve enfrentaria em termos não só da destruição progressiva pelo inimigo das unidades que possui, mas também do esgotamento de peças .que servem para operar tanques soviéticos, que obviamente não estão em produção nas indústrias ocidentais.

Traduzida para o campo de batalha, esta injeção de forças sem dúvida alteraria significativamente o equilíbrio no terreno. Naturalmente, seus efeitos na batalha não podem ser previstos com precisão, mas é razoável pensar que a posição de guerra da Ucrânia seria substancialmente melhorada pela entrega de centenas de tanques ocidentais. Esta guerra tem uma componente terrestre muito forte. A artilharia desempenha um papel fundamental, mas o dinamismo no terreno e a capacidade de ação combinada que assenta em tanques é um pilar de extraordinária importância.

No segundo plano, o político, a importância não é menor. Um acordo sobre este assunto pelos aliados ocidentais da Ucrânia seria uma nova mensagem forte para o Kremlin. Seria mais um grande passo no caminho do apoio a Kyiv, que começou com o fornecimento de armas de pequeno alcance e chega agora a um dos elementos mais significativos dos arsenais ocidentais. É uma demonstração de união e compromisso.

Novamente, se os relatórios forem confirmados, a administração de Joe Biden desempenha um papel central. Berlim relutou por semanas em dar luz verde à entrega do Leopard, sentindo-se desconfortável em assumir uma posição de liderança. Washington considerou que o racional era que, nesta seção, Kyiv fosse apoiada por tanques produzidos na Alemanha. O chanceler alemão Olaf Scholz enfatizou na semana passada em Davos o conceito de aliados estarem "interconectados" como a chave para avançar. O fluxo de notícias sugere que a reviravolta nos Estados Unidos finalmente convenceu a Alemanha.

A união política do Ocidente em apoio a Kyiv é possivelmente a pior notícia para o Kremlin. A coragem e habilidade dos ucranianos seriam insuficientes sem o apoio financeiro e militar de seus parceiros. O Leopard 2 e o Abrams são uma mensagem devastadora para Moscou, a confirmação de que o Ocidente não está se dividindo nem se afrouxando, como deseja Vladimir Putin.

Andrea Rizzi, o autor deste artigo, é correspondente de assuntos globais do EL PAÍS e autor de uma coluna dedicada a questões europeias publicada aos sábados. Anteriormente, foi editor-chefe do Internacional e vice-diretor de Opinião do jornal. É licenciado em Direito (La Sapienza, Roma), mestre em Jornalismo (UAM/EL PAÍS, Madrid) e em Direito da União Europeia (IEE/ULB, Bruxelas). Publicado originalmente por EL PAÍS, em 25.01.23.

Uma agenda comum para defender as democracias ibero-americanas

As profundas transformações pelas quais passa a região exigem uma resposta das instituições que lhes permita continuar construindo o pacto social entre os cidadãos

Várias pessoas se manifestam em frente ao hotel onde acontece a cúpula da Celac, nesta terça-feira em Buenos Aires. (Foto: Juan Ignácio Roncoroni - Ag, EFE)

Há pouco mais de quatro décadas, a Ibero-América vive uma expansão de seus sistemas democráticos como nunca antes em sua história. Ao longo desses anos, trabalhamos para consolidar eleições periódicas, livres e justas: a pedra angular de um regime democrático. Além disso, entendemos que a democracia é o modo de vida de uma sociedade que aspira viver de forma coesa, por meio dos princípios de inclusão, igualdade, liberdade, paridade e universalidade. Um mecanismo de convivência social através do diálogo e debate entre diferentes pessoas, que nos permite resolver as discrepâncias que habitam nossas sociedades complexas, plurais e multiétnicas.

A mutação das democracias está implícita nessa noção, pois mudam as demandas, as dinâmicas, os fatores e os contextos em que atuamos. Vivemos uma era disruptiva que exige uma compreensão abrangente e interdisciplinar dos novos desafios e dilemas derivados das várias transições e mudanças em curso. Desde a transformação tecnológica e digital, a revolução do conhecimento, a transformação geopolítica, as mudanças derivadas da incorporação das mulheres no mercado de trabalho e na vida política e, sem dúvida, as transformações da transição ecológica.

Dadas as consequências dessas transformações, é mais necessário do que nunca resolver a falta de convergência entre fatos e valores. Devemos nos perguntar até que ponto estamos testemunhando uma realização dos valores e ideais democráticos que propusemos. E como resolvemos o conflito entre a aspiração e a real qualidade de democracia que obtemos e que percebemos . Não é uma tarefa fácil. Acima de tudo, diante da desafiadora escuridão dos fenômenos de desinformação que ameaçam nossas democracias, influenciando a opinião pública, gerando emoções polarizadas e crenças além da evidência científica que enganam ou distorcem a realidade.

Todas essas transformações têm impacto em nossas sociedades, embora não o façam igualmente em mulheres ou homens, em populações rurais ou urbanas, em populações afrodescendentes e indígenas, ou de acordo com sua formação profissional, emprego ou situação econômica. As instituições têm o dever de ouvir as demandas de uma cidadania plural e diversa, bem como articular respostas que continuem a construir o contrato social entre os cidadãos ibero-americanos.

Após a crise de 2008 e recentemente com a pandemia, ficou ainda mais evidente que precisamos refundar um pacto social para todos que garanta que nossas democracias sejam de qualidade e trabalhem para prover satisfatoriamente os bens públicos que as sociedades demandam. Por isso, hoje é fundamental dotá-los de novos conteúdos, com políticas públicas efetivas e com um nível adequado de consenso e legitimidade, enquanto construímos uma cidadania empoderada, responsável e participativa, e garantimos uma gestão governamental moderna, competente e responsável.

Assim, no atual processo de mutação de nossas democracias, enfrentamos três desafios. Em primeiro lugar, assistimos a uma opinião pública que oscila entre as expectativas e as desilusões. Após regimes autoritários duradouros, a sociedade tende a criar grandes expectativas de mudanças políticas e econômicas que, no entanto, nem sempre são alcançadas no curto ou médio prazo, gerando frustração. O risco muitas vezes reside no retorno de formas políticas que se acreditavam ultrapassadas. Diante disso, conhecemos as receitas: pedagogia continuada em valores e educação para a cidadania.

Em segundo lugar, a democracia não implica por si só uma melhoria automática das condições de vida, inclusão e equidade da população, o que é inadiável, diga-se de passagem, numa região marcada pela desigualdade social e económica. Nesta era de mudanças, os governos devem fazer ajustes sociais e econômicos, adotando políticas públicas. Evitar que esses ajustes prejudiquem os mais vulneráveis ​​e voltem a beneficiar os mais ricos, enquanto os governos assumem os custos eleitorais, sociais e políticos exigidos pelos períodos de transição e implementação de reformas. São tarefas complexas, mas necessárias. Frequentemente, como consequência desses ajustes, a percepção da democracia é prejudicada. Mais uma vez , a pedagogia é essencial.

Em terceiro lugar, a crescente fragilidade dos partidos e a polarização quanto ao tipo mais adequado de relação entre os poderes do Estado produzem a fragmentação das opções eleitorais, a endogamia política, a falta de visão nacional, estatal, regional ou global. Em suma, desencadeia-se uma situação difícil para a construção de acordos essenciais para uma consolidação democrática plural e tolerante, bem como para um bom desenvolvimento social e econômico compartilhado.

Toda essa combinação de desafios provavelmente explica por que os cidadãos da região, de qualquer orientação política, vivem um sentimento de desencanto , em meio a uma delicada situação de polarização, com aumento do populismo e do desdém.

A América Latina terá que repensar e reinventar sua democracia porque no futuro será diferente. Por um lado, o mundo vive uma transição acelerada de uma política de ideologias, classes e interesses, para outra de causas – direitos humanos, feminismo, meio ambiente, memória democrática, educação de qualidade, direitos LGBTI, direitos dos animais, princípios bioéticos. — e identidades múltiplas (etnia, língua, sexo, religião, cultura e sentido de pertença). Há muito que sabemos que os sistemas tradicionais de mediação política perderam a validade, mas a verdade é que ainda não conhecemos os riscos de outros sistemas que serão marcados por outros elementos como o uso e acesso a novas tecnologias , por exemplo.

A vocação de todos nós que trabalhamos com os países ibero-americanos, como é o caso da Organização dos Estados Ibero-americanos, é contribuir para a defesa da democracia, promovendo a tolerância e o pluralismo, a justiça e a coesão social. Somente em sociedades democráticas os cidadãos podem se desenvolver plenamente, gozando plenamente de seus direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais: nossa agenda comum.

Mariano Jabonero  Blanco, o autor deste artigo, é Secretário Geral da Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI) e a sua parceira neste trabalho, Irune Aguirrezabal, é Diretora do Programa Ibero-Americano de Direitos Humanos, Democracia e Igualdade da OEI. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em 25.01.23

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Cultura, minha causa

Era a minha causa parlamentar, aquela que definimos como principal na nossa atuação, que marca o papel que temos ao passar pela política


Sarney - trajetória marcada pelo voto popular

Por duas vezes me despedi — coisa de que não gosto — do Senado Federal: como Senador pelo Maranhão, em 14 de março de 1985; como Senador pelo Amapá, em 18 de dezembro de 2014. Da primeira vez eu me preparava para assumir a Vice-Presidência da República, acompanhando o Presidente Tancredo Neves; da segunda vez eu deixava, depois de sessenta anos, de participar da política representativa.

Aconteceu, em 1985, a tragédia que levou a vida de Tancredo. Colocou-se para mim a responsabilidade de conduzir a transição democrática, e ela foi feita, com a Assembleia Constituinte que convoquei promulgando a nova Constituição do Brasil. Para assegurar sua elaboração com total independência, estabeleci um regime de liberdades — de representação política, legalizando os partidos de esquerda, até então proibidos; de representação sindical, legalizando os sindicatos e as confederações sindicais; de imprensa, de expressão etc. Dei espaço no Estado para algumas áreas fundamentais, criando os ministérios da cultura, da reforma agrária, da ciência e tecnologia e o IBAMA.

A cultura foi a minha causa parlamentar, aquela que definimos como principal na nossa atuação, que marca o papel que temos ao passar pela vida pública. Para lembrar dois exemplos de Parlamentares que tiveram uma causa marcante para si e relevante para o País, cito Joaquim Nabuco, com a abolição, e Nelson Carneiro, com o divórcio. A minha foi a cultura, por ela lutei e a ela dei instrumentos.

Pouco depois que cheguei ao Senado, em 1972, apresentei um projeto de incentivos para a cultura. Ele não avançava. Então, como último gesto antes de renunciar para ocupar a Vice-Presidência da República, o apresentei pela quinta vez. E tive a felicidade de sancioná-lo em 1986. No Congresso deram-lhe o nome de Lei Sarney. O governo que sucedeu ao meu fechou o Ministério da Cultura e revogou a Lei de Incentivos à Cultura para, pouco depois, propor nova lei, nomeada Rouanet desde o projeto. No fundo o que se queria era esconder meu nome e meu pioneirismo.

Sem rancores, ajudei, com Fernando Henrique Cardoso, a viabilizar este projeto. Depois disso, muitas vezes, defendi a política de incentivos fiscais à cultura dos seguidos ataques de setores que a consideram um peso no Estado. Já mostrei muitas vezes que as grandes potências a incentivam e dela têm imenso retorno, sendo parte importantíssima de seus PIBs. Aqui mesmo a participação da cultura nas rendas do País é muito expressiva.

As consequências do investimento na atividade cultural são individuais, pois cada obra de arte é uma criação única que, materializada, assume vida própria e exprime a essência dos sentimentos do povo. E são coletivas, pois o caminho para um país manter sua identidade, tornar-se forte, é a cultura. Não há grande nação que não tenha uma grande cultura. Uma grande potência não pode ser uma potência militar, uma potência econômica, não pode ser uma potência política, se não for uma potência cultural.

Também me preocupei muito com a política do livro e da leitura. Propus e consegui a aprovação da Política Nacional do Livro, mas o Fundo Nacional Pró-Leitura, que também propus e foi aprovado no Senado Federal em 2011, infelizmente até hoje não virou realidade. A leitura é uma das peças-chaves, importantes, da formação dos jovens, do conhecimento dos adultos. É lendo que se abrem as portas, os horizontes da imaginação, a capacidade de compreender e a esperança de transformar o mundo.

Acredito que passei um quinto da minha vida lendo. Não tenho outro hobby, não tenho outra dedicação para encher o meu ócio, senão o prazer de ler.

É com grande satisfação que acompanho, agora, o renascimento do Ministério da Cultura. Espero que, com ele, renove-se o apoio do Estado à cultura, aos criadores de arte, nas suas diversas expressões, tanto eruditas quanto populares. É a cultura quem forja a identidade de um povo e quem o apresenta ao mundo. O Brasil valoriza, assim, a sua voz natural, o que é essencial para que exerça plenamente seu papel entre as nações.

José Sarney, o autor deste artigo, foi Presidente da República.

Vetos golpistas têm de cair

Nos vetos à Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, Bolsonaro pavimentou o 8 de janeiro

Em setembro de 2021, o Congresso aprovou a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021), que revogou a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) e alterou o Código Penal, prevendo crimes contra a democracia. Foi uma medida importante do Legislativo. Ao mesmo tempo que excluiu um diploma legal da época da ditadura que estava sendo usado pelo governo Bolsonaro para perseguir opositores, o Congresso instituiu meios para a defesa do regime democrático.

Ao sancionar a Lei 14.197/2021, o presidente Jair Bolsonaro vetou cinco dispositivos. Foram vetos em pontos importantes da lei, que reduziram a proteção da democracia, como advertimos nesta página (ver o editorial Vetos contra o Estado Democrático de Direito, 3/9/2021). Incompreensivelmente, o Congresso ainda não analisou os vetos à Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. É tarefa urgente do Legislativo, especialmente depois dos atos de 8 de janeiro, restaurar os dispositivos vetados por Bolsonaro.

Um dos vetos refere-se ao crime de comunicação enganosa em massa, relativo à disseminação de “fatos que sabe inverídicos e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”. Segundo Bolsonaro, a medida aprovada pelo Congresso inibiria o “debate de ideias” e “enfraqueceria o processo democrático”. O bolsonarismo não tem mesmo pudores, defendendo explicitamente que a difusão de informação que se sabe equivocada sobre as eleições deveria fazer parte da liberdade de expressão.

No capítulo dos crimes contra as eleições, Bolsonaro também vetou um dispositivo contra a impunidade. O Congresso autorizou que, em caso de omissão do Ministério Público, partidos políticos poderiam propor a respectiva ação penal. Bolsonaro excluiu essa possibilidade.

Em consonância com os objetivos da nova lei, o Congresso estabeleceu que os crimes contra o Estado Democrático de Direito deveriam ter pena (i) aumentada de um terço, se cometidos com violência ou grave ameaça exercidas com emprego de arma de fogo, e (ii) aumentada de um terço e cumulada com perda do cargo, se cometidos por funcionário público. Bolsonaro vetou essas disposições. Para piorar, nem sequer apresentou justificativa para o veto ao aumento de pena por uso de arma de fogo.

Bolsonaro também vetou, vejam só, o aumento de pena para o caso de crime contra o Estado Democrático de Direito cometido por militar. Alegou que, além de supostamente ferir a proporcionalidade, a previsão legislativa seria “uma tentativa de impedir as manifestações de pensamento emanadas de grupos mais conservadores”. Aqui, uma vez mais, o bolsonarismo escancara seu ideário autoritário. Em sua concepção, crimes contra o Estado Democrático de Direito não deveriam ser punidos rigorosamente porque isso significaria reduzir a liberdade de pensamento.

Nos vetos apostos por Bolsonaro em setembro de 2021, vislumbra-se um roteiro preciso para o que ocorreu nos meses seguintes e culminou nos atos de 8 de janeiro de 2023. O Congresso não pode pactuar com esse ataque à capacidade de a democracia se defender.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.01.23.

Com Tomás, Olsen e Damasceno, Lula fecha o cerco legalista nas Forças Armadas

O compromisso é com a farda, o País, a volta à normalidade. Logo, com a democracia

Novo comandante do Exército, General Tomás Miguel Ribeiro Paiva, foi escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para substituir Júlio César de Arruda. Foto: Wilton Júnior/Estadão

Conheci o então “coronel Tomás” no Haiti, em 2007, quando ele comandava o batalhão brasileiro da Minustah, a Força de Paz da ONU no país, e estava com um baita curativo na mão. No início, foi só um corte à toa, com uma folha de papel “afiada”, mas ele descia de tanques e jipes e cumprimentava a garotada local com “soquinhos”: “Oi, cara!” Daí, o pequeno machucado evoluiu para uma infecção com direito a antibiótico.

Essa história ilustra o perfil do atual general de quatro estrelas Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, que assume o Comando do Exército para “normalizar” as tropas, gravemente contaminadas, não por crianças pobres e com higiene precária do Haiti, mas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seu séquito brincando de “golpes”.

Para o general Fernando Azevedo e Silva, ex-ministro da Defesa, os generais Júlio Cesar de Arruda, que sai do Comando, e Tomás, que entra, são “grandes militares”. Arruda, porém, é “operacional” e Tomás, “estratégico”, além de “um dos oficiais mais inteligentes do Exército”. O “operacional” olha para dentro (é corporativista?). O “estratégico” olha para dentro e para fora, compreende o papel das Forças Armadas, tem noção geopolítica e coragem de resistir ao “efeito manada”.

Correm nos grupos de WhatsApp do Exército críticas a Tomás, porque o discurso dele pró-democracia, institucionalidade, alternância de poder e resultado das urnas foi na quarta-feira e a nomeação dele, no sábado. Logo, teria sido “oportunista”. É injusto, porque ele teve o tempo todo esse discurso, e sou testemunha disso.

No meio da campanha eleitoral, quando Bolsonaro era endeusado por militares e tinha boas chances de ganhar, o general já me dizia que as Forças Armadas são instituição de Estado e, ganhasse quem ganhasse, iriam reconhecer o resultado da eleição, bater continência e seguir cumprindo sua missão constitucional. Não foi “de repente”, foi “o de sempre”.

E atenção à fala dele: militar é o que “faz o que é correto, mesmo se o correto for impopular” – não junto à opinião pública, mas à caserna. Militar faz “o correto”, contrariando maiorias que creem em falsos “messias” e versões que geram desordem, indisciplina, quebra da hierarquia e insubordinação ao poder civil.

Assim, o presidente Lula fecha o cerco legalista nas três Forças, com o general Tomás no Exército, o almirante Marcos Olsen na Marinha e o brigadeiro Marcelo Damasceno na Aeronáutica, prontos a fazer “o que é correto”, inclusive investigar e punir os que atentaram contra as instituições. O compromisso é com a farda, o País, a volta à normalidade. Logo, com a democracia.

Eliane Cantanhêde - um olhar crítico no poder enos poderosos, a autora deste artigo, é comentarista de politíca no tele-jornal "Em Pauta", da Globo News. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.01.23.

Zelenski expurga funcionários de alto escalão da corrupção durante a guerra

Dez membros da Administração, incluindo homens de confiança do presidente ucraniano, acusados ​​de aceitar propina de empresários

O presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, durante uma coletiva de imprensa em Kiev na terça-feira. (Foto: AP )

A corrupção irrompe na Ucrânia enquanto o país enfrenta um ponto de virada na guerra. A primeira mudança substancial na liderança de Kyiv desde o início da invasão russa, em fevereiro passado, nada tem a ver com os reveses na frente de Donetsk ou com as difíceis negociações internacionais para obter mais armas: o motivo é outro velho conhecido dos ucranianos sociedade, corrupção política. Investigações de três meios de comunicação ucranianos forçaram o presidente, Volodímir Zelenski, a demitir 10 altos funcionários do governo e o Ministério Público por supostos casos de suborno. A substituição mais controversa é a do vice-chefe da Casa Presidencial, Kirilo Timoshenko, acusado de se beneficiar do favor de empresários que disputam contratos públicos durante a guerra.

Timoshenko apresentou sua renúncia na segunda-feira, quando já estava claro que ele seria dispensado. Seu sucessor, segundo a mídia ucraniana, será o governador de Kiev, Oleksi Kuleba. O jornal Pravda noticiou em dezembro passado que Timoshenko usa um Porsche doado por um empresário que supostamente estava tentando obter contratos com o governo. O jornalista Denis Bihus revelou em outubro passado que o político demitido também havia conseguido um veículo doado pela General Motors como ajuda humanitária.

O caso mais grave ao qual o vice-chefe do gabinete de Zelensky estaria supostamente ligado é uma possível rede de propinas na província de Dnipropetrovsk, de onde é Timoshenko, para conceder contratos de obras públicas durante a guerra a empresários com ideias semelhantes. O governador da província, Valentin Reznichenko, foi demitido após as indicações obtidas pelo Ministério Público de que teria entregado um contrato milionário para a reparação de estradas a um empresário amigo seu. Como conclui o Pravda , tanto a nomeação de Reznichenko por Zelensky em 2020 quanto seu poder atual dependiam de Timoshenko. O Pravda também descobriu que o líder demitido mora em uma mansão de um empresário próximo ao poder político em Kiev.

Em declarações recolhidas pelo canal ZN , Yaroslav Zheleniak, um dos mais destacados deputados do partido de Zelensky, Servo do Povo, assegurou que os restantes governadores destituídos —os das províncias de Sumi, Kherson e Zaporizhia— perderam os cargos devido à sua links com Timoshenko, sem especificar mais. Kuleba, por outro lado, foi substituído como governador de Kyiv, previsivelmente para ocupar o lugar de Timoshenko.

Feriados na Espanha

Na sua intervenção diária nas redes sociais, o presidente avançou na segunda-feira que haveria substituições ou demissões porque tinha sido detetado que altos responsáveis ​​tinham saído da Ucrânia em viagem de férias. Na Ucrânia, homens maiores de idade e até 65 anos não podem deixar o país porque, de acordo com a lei marcial, estão à disposição do Exército. O Pravda publicou em 20 de janeiro que o procurador-geral adjunto Oleksi Simonenko havia passado férias na Espanha em dezembro passado, e o fez viajando em um carro de luxo doado pelo empresário do tabaco Grigori Kozlovski, investigado por sonegação de impostos e contrabando de tabaco, segundo o The Jornal independente de Kiev . Simonenko também foi afastado de seu cargo.

Especialmente grave seria o caso do vice-ministro da Defesa, já exonerado, Viacheslav Shapovalov, acusado de conceder a uma holding um contrato avaliado em cerca de 360 ​​milhões de euros para o fornecimento de alimentos às Forças Armadas ucranianas. O contrato inflacionou os preços de compra dos alimentos, supostamente para beneficiar os associados de Shapovalov. Uma fonte militar vazou a informação na semana passada para o jornal digital ZN . O ministro da Defesa, Oleksi Reznikov, disse na segunda-feira que o artigo do ZN foi uma manipulação de um erro técnico e ameaçou represálias dos serviços secretos contra os vazadores do contrato.

Outro alto funcionário demitido devido a um grave escândalo de corrupção é Vasil Lozinskii, que foi vice-ministro de Desenvolvimento Comunitário e Território até sua prisão no último sábado. Lozinskii é acusado de receber propina de 400 mil dólares [367.688 euros] para conceder um contrato de compra de geradores elétricos. A ofensiva russa contra a rede elétrica ucraniana fez com que dezenas de milhares de estabelecimentos , residências e instituições precisassem de geradores a diesel.

Mark Savchuk, assessor do Escritório Nacional Anticorrupção da Ucrânia, confirma ao EL PAÍS que o papel das equipes jornalísticas de investigação "é fundamental contra a corrupção", e cita especificamente Bihus e o grupo de investigação Esquemas, da rádio americana Free Europe / Radio Liberdade. Os esquemas são um dos flagelos do poder político mais proeminentes da Ucrânia, seja qual for a sua cor. Suas investigações sobre o círculo de confiança de Zelenski têm sido uma dor de cabeça para o presidente, e seu trabalho foi decisivo na destituição do ex-governador Reznichenko.

Savchuk também destaca que foi demonstrada a independência com que o Gabinete Anticorrupção e a Procuradoria Anticorrupção atuam. Zelensky foi duramente criticado por ter adiado a eleição do procurador anticorrupção para julho passado. “Foi uma decisão que eu entendo que não poderia ser tomada quando tínhamos os russos tentando tomar Kyiv”, diz Savchuk, “mas agora que a frente se estabilizou, a população exigiu continuar a luta contra a corrupção, e o presidente sabe disso a situação pode afetar sua popularidade. Timoshenko, especificamente, era um dos membros da equipe de confiança de Zelensky desde a campanha eleitoral que o levou à presidência da Ucrânia em 2019.

Zelensky já assumiu em julho passado dois nomes importantes do poder político e judicial, o então chefe dos serviços secretos, Ivan Bajanov (amigo de infância do presidente), e a procuradora-geral, Irina Venediktova. Naquela ocasião, o terremoto político não foi causado por suspeitas de que eles lucraram irregularmente, mas por informações de que seus departamentos não conseguiram impedir a infiltração de colaboradores russos na administração ucraniana.

Zelensky chegou ao poder prometendo combater a corrupção e o poder dos oligarcas, apesar de seus laços estreitos com poderosos empresários como Rinat Akhmetov . No outono passado, a equipe de Zelensky foi criticada por vários meios de comunicação por conceder uma licença de transmissão nacional a um novo canal de televisão, We Ukraine , em tempo recorde , promovido por pessoas de confiança de Akhmetov e ex-membros da equipe presidencial.

Em 2021, o índice de percepção de corrupção da Transparência Internacional colocou a Ucrânia em 122º lugar entre 180 países estudados — a Rússia, em 136º lugar. En 2019, el año en el que Zelenski asumió la presidencia, Ucrania estaba peor registrada, en el 126. La corrupción en Ucrania es todavía un problema endémico que se detecta no solo en las altas instancias del poder, sino en los estamentos más bajos de a administração.

Em dezembro passado, em entrevista ao EL PAÍS, Paul D'Anieri, renomado especialista em Ucrânia da University of California Riverside, refutou o pedido de Zelenski para que a Ucrânia aderisse à União Europeia o mais rápido possível: “ O melhor é que a UE pedir à Ucrânia que cumpra altos padrões porque, para ser honesto, o passado foi marcado por alta corrupção e nem sempre pelas melhores práticas democráticas. Se a UE aceitar a adesão da Ucrânia como está, muitos dos problemas do país não serão resolvidos.”

Christian Segura, o autor deste artigo, escreve para o EL PAÍS desde 2014. Formado em Jornalismo e diplomado em Filosofia, exerce a profissão desde 1998. Foi correspondente do jornal Avui em Berlim e depois em Pequim. É autor de três livros de não ficção e dois romances. Em 2011 recebeu o Prémio Narrativo Josep Pla. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 24.01.23.