quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

A guarda de que o Brasil precisa

Ideia de Guarda Nacional brotou das entranhas de um governo que não se peja em falar e agir de forma ideológica e destemperada

Flávio Dino, ministro da Justiça, defende a criação de Guarda Nacional AFP (Foto - AFP)

A comédia de atos e falas do governo Lula precisa começar a ser levada a sério, antes que vire uma tragédia. Quando a administração federal, na pessoa do ministro da Justiça, anuncia ter pronta a proposta de criação de uma força paramilitar para ser empregada em todo o território nacional à revelia das salvaguardas constitucionais, sem que tal projeto tenha sido amplamente conhecido e discutido, acende-se o alerta na sociedade quanto aos rumos que ela pretende dar ao país.

Um governo inexplicavelmente omisso na tomada de medidas preventivas, arbitrário na prisão indiscriminada de pessoas e covarde ao se eximir de suas responsabilidades pela manutenção da ordem na capital federal não demonstra agir segundo os critérios de discricionariedade que justificam uma proposta dessa natureza.

Uma proposta inoportuna (mal se completa um mês de governo). Proposta inconveniente, desconsiderando o papel das forças de defesa e segurança nacionais. Proposta contrária ao interesse público, uma vez que implicará acréscimo de despesas e, mais grave, intromissão do governo federal em prerrogativas dos entes federativos.

A mera listagem das inconsistências já é suficiente para indicar que ela brotou das entranhas de um governo que não se peja em falar e agir de forma ideológica e destemperada, sendo, por conseguinte, preocupantes as suposições que o animaram a anunciar essa proposta: que a defesa das instituições democráticas requer a criação de uma organização armada sob seu controle exclusivo para tal fim e que as existentes, capituladas na Constituição Federal, não merecem confiança no cumprimento dessa missão.

A ideia da Guarda Nacional surgiu com a Revolução Francesa. Nascida da indisciplina de alguns contingentes militares e do medo da reação das tropas do rei na jornada de 14 de julho de 1789, logo ela se tornaria instrumento do Terror, que promoveria infames massacres políticos movidos pela obsessão de traição. Desde então, instituiu-se a prática revolucionária de munirem-se os regimes autoritários e totalitários de instrumentos excepcionais de força, de que a guarda bolivariana da Venezuela é o mais recente exemplo.

No Brasil, a criação da Guarda Nacional seguiu a mesma lógica: que as instituições do Império estavam em risco e que os militares não eram confiáveis para sustentá-las. O curso da História colocou as coisas no seu devido lugar quando algumas delas foram instrumentos das revoltas que o governo teve de dominar com o Exército e a Marinha.

A revolução não está nas cogitações dos brasileiros de bem que querem trabalhar e viver suas vidas em paz. Ela só está na mente dos insensatos, do momento e da História, aqueles unidos na pleonexia sem peias.

Definitivamente, o Brasil não precisa de uma guarda que, qualquer que seja seu nome, ameace sua população e se preste ao arbítrio de que governo for. O arremedo bolivariano desenhado pelo governo Lula não é do que o Brasil precisa para se defender de ameaças a sua democracia.

Para garantir o funcionamento harmônico e independente dos Poderes da República, a prevalência do Estado de Direito e a sustentação da União com respeito à Federação, enfim, todo o conjunto de instâncias, relações e interdependências que conformam o Brasil moderno, basta a guarda da Constituição, começando pelo retorno do STF a seus limites institucionais, seguindo-se a restauração do Parlamento perdido no fisiologismo e atropelado em suas prerrogativas e, finalmente, o exercício de governo pelo Poder Executivo de forma responsável e atenta ao bem comum e ao interesse nacional.

Esta é a guarda de que o Brasil precisa: da lei, da sensatez e das boas intenções.

Hamilton Mourão, o autor deste artigo, é Senador da República  (Republicanos-RS), foi Vice-Presidente da República. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 02.02.23

Caminho para a ordem e o progresso é a profissionalização

É necessário rever todas as carreiras na segurança pública, nos Três Poderes e nos três níveis federativos

Soldados do Batalhão da Guarda Presidencial (Foto de André Coelho)

Aproveitando (ou não) o “Pacote da Democracia”, precisamos urgentemente repensar o desenho institucional das forças de segurança no Brasil. Não é apenas a criação de uma Guarda Nacional que vai nos tirar dessa.

Nos ataques de 8 de Janeiro, a insuficiência da Polícia Militar do Distrito Federal, a insubordinação do Batalhão da Guarda Presidencial e a provável conivência do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) mostraram ser inadiável uma ampla reforma da segurança pública brasileira nos três níveis federativos e nos Três Poderes. A crise de segurança é uma crise nacional.

Lembrando que o estado do Rio de Janeiro tem a menor taxa de elucidação de homicídios do país: 16%, menos da metade da já inadmissível média nacional, de 37%. Nada a ver — e tudo a ver — com a impunidade em zonas de garimpo e pesca ilegal na Amazônia ou com casos de corrupção.

A crise de segurança é uma crise de recursos humanos, já que o Estado é feito de profissionais que nele trabalham. O Estado não é “máquina”, e sim “relações humanas”, como dizia minha avó Adyr. Logo, o foco da transformação deve ser a gestão de pessoas. A começar pelo Executivo federal — onde as Forças Armadas reúnem 59% dos 560 mil servidores.

Filho de recruta do Forte de Copacabana, neto de coronel da cavalaria do Exército — que se casou com a Adyr —, filmei na Vila Militar, entre 2005 e 2007, o documentário “PQD”, disponível no Globoplay, sobre recrutas no 25º Batalhão Paraquedista.

Entre os oficiais, encontrei apenas bons militares: gente digna, decente, infelizmente sem objetivos claros para seus trabalhos e sem o devido reconhecimento. À época não se falava em ditadura nem em comunismo. Nada de ideologia, só assistência social. Não imaginei que, dez anos depois, voltaríamos a falar em golpe militar.

“O Brasil vive uma crise militar. Há décadas.” É o que acredita Lucas Figueiredo, autor de “Ministério do silêncio”, livro sobre o serviço secreto brasileiro. Para ele, é urgente uma atualização na formação e na governança das Forças Armadas e também em órgãos civis como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), hoje dentro de um órgão militar, o GSI.

Duas principais distorções devem ser definitivamente corrigidas. Primeiro, a má-fé de alguns militares que continuam a defender, para si, um inexistente “poder moderador”. A submissão dos militares ao poder civil é o que manda a Constituição. Segundo, a teoria do “inimigo interno”, doutrina paranoica segundo a qual as Forças Armadas devem intervir contra cidadãos brasileiros considerados “ameaças”. Para Figueiredo, na tradição brasileira, esses “alvos” foram quase sempre integrantes dos movimentos sociais. Reconhecemos o padrão também nas polícias estaduais.

No 8 de Janeiro, o Brasil assistiu à Praça dos Três Poderes deixada à própria sorte — ou melhor, à covardia. A troca do comandante do Exército e os recentes acenos com investimentos vão na direção correta. No entanto precisamos mais do que submarinos nucleares, caças suecos — ou Viagra.

Governos passam, e o Estado fica. O Estado é feito por pessoas, e seu sucesso depende de como elas são organizadas, reconhecidas e engajadas. É imprescindível formá-las continuamente, cada vez melhor.

Além disso, é necessário rever todas as carreiras na segurança pública, nos Três Poderes e nos três níveis federativos. Há diversos desencontros e sobreposições entre as responsabilidades partilhadas. Por último, é preciso modernizar os concursos públicos em geral. Existe hoje um amadurecimento sobre o tema, e uma convergência entre dois projetos de lei já tramitados no Senado (PL 2258/2022) e na Câmara (PL 252/2003).

O único caminho para a ordem e o progresso é a profissionalização, com a responsabilização e a motivação dentro do serviço público. Esse é o encontro marcado com um futuro melhor.

Guilherme Cezar Coelho, o autor deste artigo. é documentarista e diretor de “PQD” (2008), pelo qual recebeu a Medalha do Pacificador do Exército Brasileiro. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 02.02.23

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Pacheco reeleito no Senado

 Em discurso de vitória, Pacheco diz que será colaborativo com o Executivo, pede pacificação e critica atos antidemocráticos

Em seu primeiro pronunciamento após reeleito à presidência do Senado Federal, o senador Rodrigo Pacheco defendeu a “pacificação nacional” e fez duras críticas aos ataques golpistas que ocorreram em 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes. “Os poderes da República precisam trabalhar em harmonia, buscando o consenso pelo diálogo. O senado federal também precisa de pacificação para bem desempenhar suas funções de legislar e fiscalizar. Os interesses do País estão além e acima de questões partidárias”, disse.

Pacheco também alegou que pacificação “não significa alienação nem inflamar a população com narrativas inverídicas”. Sobre os atos antidemocráticos, o presidente do Senado afirmou que a “polarização tóxica” precisa ser erradicadas e que os acontecimentos de 8 de janeiro “não vão se repetir”. Segundo ele, os brasileiros precisam reconhecer quando derrotados e precisam “respeitar a autoridade das instituições públicas”. “Só há patriotismo se assim o fizerem.”

Pacheco ainda defendeu as prerrogativas dos senadores, tema da campanha à presidência de Rogério Marinho, a quem o parlamentar do PSD cumprimentou pela disputa. Apoiado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o parlamentar concluiu afirmando que será colaborativo com o Poder Executivo, com o presidente da República, com os ministros de estado e as instituições de governo para “possibilitar medidas que permitam a volta do crescimento e desenvolvimento da infraestrutura nacional.

Gustavo Queiroz, de Brasília-DF, para O Estado de S. Paulo, em 01.02,23

Futuro presidente do PSDB, Leite critica incertezas da política fiscal de Lula

Tucano também disse ser 'um bálsamo' poder ser oposição e não ser atacado pelo presidente, em alusão a Bolsonaro

O governador reeleito do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB) (Crédito da foto:  Guito Moreto/Agência O Globo)

O governador do Rio Grande do Sul e presidente nacional interino do PSDB, Eduardo Leite, criticou nesta quarta-feira o que chamou de "incerteza sobre os rumos da política fiscal" do governo Lula. Também disse que a escolha do nome de Fernando Haddad (PT) para o Ministério da Fazenda gerou dúvidas no mercado.

— No atual governo federal, as mensagens ainda são ambíguas. Não era para ter dúvida afinal das contas. A dúvida e a incerteza geram riscos. E riscos são custos, acabam tendo de ser precificados a ponto de inviabilizar os negócios, os investimentos — afirmou Leite. Apesar disso, disse que é preciso dar o "benefício da dúvida" a Lula.

As declarações foram dadas a uma plateia de investidores durante evento em São Paulo e marcam uma mudança no tom do discurso de Leite, que buscar antagonizar com o PT e afastar o PSDB do bolsonarismo.

Leite afirmou que a escolha de Haddad para ministro da Fazenda "gera incerteza e dúvida" devido à "falta de retrospecto" do ex-prefeito de São Paulo na área econômica.

Ao comentar sobre a importância da aprovação de uma reforma tributária, o governador gaúcho afirmou que é preciso que Lula priorize a pauta.

— A reforma tributária sair depende fundamentalmente da vontade do presidente da República. Se não tiver essa convicção do presidente, fica difícil. (...) Se a articulação for relegada a um segundo nível, não será aos olhos dos parlamentares que vão votar a bandeira (do governo) — disse.

Leite afirmou não duvidar da intenção de Lula de "melhorar a vida das pessoas", mas que entende que os sinais dados sobre a política fiscal até o momento são "equivocados".

— Muitos dos sinais sugerem que o que vem pela frente é mais parecido com o governo Dilma (...) que levou o país à maior recessão de sua história — ressaltou Leite.

O tucano também criticou o ex-presidente da República Jair Bolsonaro. — De outro lado, para mim é um bálsamo poder voltar a discutir no âmbito da política sem ser agredido pelo presidente da República. Para o ex-presidente Bolsonaro, a responsabilidade nunca era sua, sempre a culpa era de terceiros — afirmou. Na visão de Leite, a beligerância bolsonarista travou a aprovação de reformas no país.

Leite ainda comentou a redução de tamanho do PSDB nas últimas eleições. A sigla, que comandou o governo paulista por 28 anos, não conseguiu eleger o ex-governador Rodrigo Garcia (PSDB). Para o governador gaúcho, a derrota é uma oportunidade para que o tucanato repense o partido.

— O Estado de São Paulo é tão forte que acabava significando uma alavanca e ao mesmo tempo uma âncora para o partido. Pela força que tinha, acabava se impondo — disse.

Ivan Martínez-Vargas, de S. Paulo - SP para O GLOBO, em 01.02.23 

Não faz sentido reabrir negociações no acordo entre Mercosul e UE

Ao manifestar tal intenção ao lado do chanceler alemão, Olaf Scholz, Lula faz o jogo dos protecionistas europeus

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o chanceler alemão Olaf Scholz (Créditoda foto:  Cristiano Mariz/Agência O Globo)

Um dos itens mais importantes na agenda da visita do chanceler alemão, Olaf Scholz, à América Latina é o acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia (UE), firmado em 2019 e paralisado em razão da alta na devastação da Amazônia no governo Jair Bolsonaro. Com a volta ao Planalto de Luiz Inácio Lula da Silva e de Marina Silva ao Ministério do Meio Ambiente, esperava-se que ele pudesse enfim entrar em vigor.

O próprio Scholz deixou isso claro em entrevista ao Grupo de Diários América (GDA), de que O GLOBO faz parte, e ao anunciar investimentos de € 200 milhões em projetos de preservação ambiental, com a reativação do Fundo Amazônia, também paralisado na gestão Bolsonaro. Lula, porém, aproveitou a passagem de Scholz por Brasília para anunciar a reabertura das tratativas entre os dois blocos.

Trata-se de uma temeridade, já que o acordo foi assinado há mais de três anos, depois de ter sido negociado e renegociado durante outros vinte. Para que entre em vigor, falta apenas a sanção dos parlamentos dos países-membros da UE e do Mercosul, além do próprio Parlamento Europeu. Com o anúncio de Lula, não é mais possível prever quando a economia brasileira poderá se beneficiar de um mercado de 780 milhões de consumidores, que representa quase 25% do PIB mundial.

Lula ainda tentou reduzir danos ao afirmar que tudo estará resolvido “até o fim deste semestre”. Mas os temas que mencionou são complexos: rever a participação de fornecedores europeus em licitações de compras governamentais (para favorecer pequenas empresas brasileiras) e evitar que o acordo impeça a reindustrialização do Brasil e da Argentina.

Após encontro com chanceler da Alemanha: Lula condena invasão russa, nega envio de munição à Ucrânia e sugere criação de grupo para tentar a paz

Ambas as preocupações são infundadas. Compras governamentais já estão contempladas satisfatoriamente no acordo. Além disso, ele prevê uma abertura comercial paulatina, entre 10 e 15 anos, período suficiente para que as empresas, submetidas à maior concorrência externa, se modernizem e se tornem competitivas. A reindustrialização não pode servir de pretexto para ressuscitar políticas antigas, fracassadas, de proteção de mercados para empresas nacionais, cujo resultado é ineficiência, baixa capacidade de criar empregos e gerar renda. A queda do peso da indústria na economia é uma tendência global. Não se trata de uma distorção brasileira ou argentina, a ser enfrentada com políticas protecionistas.

Ao anunciar que o Brasil deseja reabrir as negociações, Lula ajuda os protecionistas do setor agropecuário europeu, que temem a concorrência de dois dos maiores exportadores mundiais de grãos e carnes, Brasil e Argentina. E ainda cria tensões desnecessárias com o Uruguai, a menor economia do Mercosul, que deseja assinar um tratado bilateral com a China, em desafio à união aduaneira do Mercosul. Para convencer o presidente uruguaio, Lacalle Pou, a não firmar esse tratado, Lula argumentou que não demoraria a conclusão do acordo com a UE. Não é o que acontecerá se o Brasil insistir em reabrir negociações com os europeus.

Editorial d'O GLOBO, em 01.02.13

Imoralidade no Ministério Público

A institucionalização de mais um inconstitucional penduricalho – agora, por acúmulo de processos – explicita a disfuncionalidade do atual Conselho Nacional do MP

Não é possível assistir passivamente a tamanho acinte com o dinheiro público, com a moralidade e com a Constituição de 1988. Em portaria publicada no dia 27 de janeiro, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) institucionalizou a tal da “gratificação por acúmulo de processos”, que aumenta o salário dos procuradores da República em até 33%, ou cerca de R$ 11 mil.

A manobra vinha sendo costurada desde o ano passado, quando o CNMP criou uma primeira norma sobre o benefício. Na ocasião, como forma de minimizar o escândalo, o conselho disse que era apenas “uma orientação”. De toda forma, sendo obrigatória ou não a regra, o fato é que procuradores da República vinham, desde o ano passado, recebendo um acréscimo no contracheque em razão do acúmulo de processos sob sua responsabilidade.

A recomendação de 2022 incluía também os integrantes dos Ministérios Públicos estaduais, que, segundo o CNMP, também precisavam ganhar mais em razão do acúmulo de processos. No ano passado, ao menos dois Estados – Paraná e Santa Catarina – já tinham regras similares prevendo a benesse aos membros dos respectivos Ministérios Públicos.

Ressalta-se o absurdo do benefício. Não é prêmio por produtividade, e sim convite à ineficiência. Os membros do Ministério Público são agraciados por “acúmulo de processos”. Quanto mais represar seu trabalho, um procurador terá mais chances de ter seu salário aumentado. No Paraná, por exemplo, um promotor com 200 processos sob sua responsabilidade tinha direito a aumento de 11% no contracheque.

Vigorando desde o ano passado, o penduricalho recebeu agora um novo patamar de institucionalização pelo CNMP. Explicitando que seu caráter não tem nada de orientativo – e sim obrigatório –, a nova sistemática fixa prazo de 90 dias para que o conselho de cada um dos quatro Ministérios Públicos vinculados ao Ministério Público da União – o Federal, o do Trabalho, o Militar e o do Distrito Federal e Territórios – defina a quantidade de processos por procurador que dará direito ao benefício.

A agravar o acinte, o CNMP reitera, como havia feito em 2022, que o penduricalho por “acúmulo de acervo processual, procedimental ou administrativo” não deve estar submetido à norma constitucional que fixa um teto máximo para a remuneração dos servidores públicos. Segundo o conselho, a benesse é uma “gratificação”, não se sujeitando ao chamado abate-teto.

Trata-se de interpretação contrária ao texto constitucional. A norma da Constituição é cristalina. A remuneração dos ocupantes de cargos públicos – “incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza” – não pode exceder o subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, o CNMP prefere ignorar essa limitação.

O mais estranho nessa história é que o CNMP foi criado na reforma do Judiciário (Emenda Constitucional 45/2004) precisamente para exercer “o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros”. Ou seja, a criação do órgão vinha atender a um objetivo essencialmente republicano: num Estado Democrático de Direito, não pode haver órgão ou instituição sem controle. No entanto, é o CNMP que agora cria benefícios inconstitucionais para a categoria.

Nem se diga, como justificativa para a manobra, que o novo penduricalho foi inspirado num benefício similar concedido aos juízes (que está submetido ao teto constitucional). Tudo isso é tremendamente constrangedor, seja pela afronta ao texto constitucional, seja pela imoralidade de premiar a ineficiência, seja pela indiferença de aumentar, em tempos de fome e de profunda crise social no País, a remuneração de quem já tem os maiores salários do funcionalismo público.

É mais que hora de o Congresso revisar as regras relativas ao CNMP. Com a maioria proveniente do Ministério Público, a atual composição do conselho não apenas é incapaz de realizar sua missão constitucional, como tem servido para autorizar escandalosos benefícios corporativistas.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 01.02.23

Princípio da simetria não significa igualdade

Há juristas, e não dos menores, que veem na Constituição um princípio de simetria. Com efeito, se se der a este princípio o sentido de “correspondência em grandeza, forma e posição” – como está no dicionário Aurélio – de entes constitucionais, ele existe.


Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho

É o caso, por exemplo, da estrutura federativa do Estado brasileiro, em que União, Estados e Municípios se correspondem ao menos em “forma e posição”, embora com diferenças óbvias. Também ocorre isto com instituições que se vinculam a esses entes, dada a sua importância para o sistema e a função que exercem.

É o caso do Ministério Público, que só existe em níveis da União e dos Estados. Na Constituição, é ele incluído no Título IV, “Da Organização dos Poderes”; no capítulo IV, “Das Funções Essenciais à Justiça”, que se segue ao capítulo dedicado ao Judiciário. Tal função ele partilha com a advocacia pública, com a advocacia e com a defensoria pública.

O MP é posto como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Em razão disto, os membros do MP, seja da União, seja dos Estados, têm garantias especiais, funções institucionais etc. – ou seja, um status relevante, reflexo de sua importância em um Estado de Direito.

Entretanto, a organização do MP é deixada a uma lei complementar, de acordo com o artigo 128, parágrafo 5.º: “Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos procuradores-gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas relativamente a seus membros”.

Decorre do artigo 128, portanto, que, em razão das peculiaridades de cada Estado, a sua organização pode ser diferente, com atribuições que podem ser distribuídas a órgãos diversos, incluída a diferença de estatuto, que inclui retribuições especiais. Ela, porém, só poderá ser feita por lei complementar.

Na verdade, a exigência de lei complementar reflete a importância do MP para a efetivação da justiça, embora ele não esteja enquadrado no Judiciário, cujos componentes estão enunciados no artigo 92 da Constituição. A diferenciação possibilitada não fere o princípio de simetria, porque simetria não significa evidentemente igualdade. •

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o autor deste artigo, é Professor Emérito de Direito Constitucional na Universidade de S. Paulo - USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 01.02.23

As bolinhas dos poderosos

Bento 16 apontou para o abuso com os remédios

Papa Bento 16 acena a fiéis na Praça São Pedro, no Vaticano - Vincenzo Pinto - 11.fev.2012/AFP

O falecido papa Bento 16 contou a um de seus biógrafos que renunciou por causa de uma insônia que o afligia desde 2005. Meia verdade, o papa Ratzinger foi atormentado também pelos efeitos de bolinhas que médicos lhe receitavam para dormir. Em 2012, no México, ele acordou com os lençóis sujos de sangue sem saber o que lhe havia sucedido. Tinha sido o efeito da bolinha e ele havia se machucado, sem acordar.

O que parece ter sido um episódio isolado é algo mais comum, sobretudo no mundo dos poderosos. Bento 16 revelou que começou a pensar na renúncia ao sentir que lhe faltavam forças para dar conta do serviço. Essa explicação poderia reduzir a importância das dificuldades que atormentavam seu pontificado.

Até bem pouco, o Brasil foi governado por um presidente que tinha problemas com o sono. Bolsonaro foi um notívago da internet. Transformou um quartinho da ala residencial do Alvorada em base para expedição de mensagens disparadas durante as madrugadas. Ele mesmo se proclamou recordista de apneia. Um exame indicou que sofria 89 interrupções do sono a cada hora. Viu-se agora que ele tinha uma fonte de oxigênio no quarto de dormir. Um dia se saberá o tamanho da relação entre suas explosões diurnas e seus desconfortos noturnos. É indiscutível, contudo, que o capitão se sentia bem explodindo.

Os Estados Unidos já foram governados por dois presidentes que sofriam as consequências de noites mal dormidas. Elas estragaram o primeiro ano de governo de Bill Clinton. Richard Nixon meteu-se com as bolinhas de Seconal nos anos 50 e dez anos depois entrou no Valium, dependendo delas. Quando o escândalo do Watergate apertou, ele se queixava que o Dilantin não fazia mais efeito. Passou a beber e, em pelo menos uma ocasião, pareceu bêbado quando estava apenas fora do ar.

Estava assim quando seus assessores lhe contavam que Leonid Brejnev, o chefe do governo da União Soviética, não ia bem.

O russo também estava pendurado nas pílulas, desde 1968, antes da invasão da Tchecoslováquia. Como os poderosos preferem médicos em quem possam mandar, Brejnev fritou-se. Em 1974, a dependência destrambelhou-o. Dormia na hora errada e não conseguia acordar na hora certa.

O que há de preocupante nessa epidemia de bolinhas dos poderosos é que depois dos desastres que eles provocam, as responsabilidades acabam deslizando para os remédios e para os médicos. Ninguém acha que Hitler fez o que fez porque vivia empanturrando-se de remédios. Afinal, ele era vegetariano, abstêmio e não fumava. Já Winston Churchill comia de tudo, fumava dez charutos por dia e começava a beber champanhe antes do almoço.

Quando Donald Trump se apresentava como um bem-sucedido milionário (o que ele não era), orgulhava-se de só dormir quatro horas. Com o prestígio em baixa, surgiu a informação de que ele tomava bolinhas de Ambien para pegar no sono. Chegava a distribuí-las durante viagens que atravessavam várias zonas de fusos horários.

O mundo vai melhor quando os poderosos são julgados pelo que fazem, e não pelos remédios que tomam. O cardeal Ratzinger era chamado de "Rottweiler de João Paulo 2º". Renunciando, os cardeais elegeram o argentino Bergoglio, e Francisco tomou outro caminho.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é Jornalista e autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 01.02.23

O genocídio Yanomami carrega os rastros de Bolsonaro

O resultado de quatro anos de laboratório da extrema direita no Brasil surge na forma de corpos infantis

Uma mulher Yanomami carrega uma criança em um centro de apoio aos povos indígenas em Boa Vista, Brasil. (Foto de Edmar Baros - AP)

O resultado de quatro anos no laboratório da extrema direita no Brasil surge na forma de corpos infantis. Desde 20 de janeiro, quando se soube que pelo menos 570 crianças indígenas do povo Yanomami morreram de causas evitáveis, o Brasil e o mundo assistiram horrorizados às imagens dos corpos emaciados sendo resgatados na selva. A denúncia foi feita pelo Sumaúma, uma plataforma de jornalismo baseada na Amazon que criei com um pequeno grupo de jornalistas experientes. Imediatamente, Lula da Silva assumiu parte de seu ministério na região, o Supremo Tribunal Federal determinou que seja aberta uma investigação às autoridades do Governo de Jair Bolsonaro por genocídio e, em apenas dois dias, nos dias 22 e 23 de Em janeiro, cerca de 20.000 profissionais de saúde se ofereceram para ajudar a saúde pública a resgatar os Yanomami famintos, desnutridos, doentes e quase mortos.

As cenas pavorosas servem de lição para o mundo: a extrema direita instalou-se no governo brasileiro de 2018 a 2021 por meio de um processo democrático, após anos de sinais eloquentes que foram ignorados; com o apoio das Forças Armadas, que durante quatro anos flertaram com o golpe sem serem incomodadas por quem tinha o dever de fazer cumprir a Constituição; com o apoio de parte significativa do empresariado nacional e das elites brasileiras; e defendido por uma horda de fanáticos armados que cometeram uma série de crimes até finalmente tentarem dar um golpe em 8 de janeiro , depois de passar meses confraternizando alegremente e impunemente em frente ao quartel do Exército.

Já se sabia que os Yanomami viviam uma catástrofe humana , o que se desconhecia era a dimensão. Em setembro do ano passado, a jornalista Talita Bedinelli já havia revelado que crianças morreram vomitando vermes por falta de vermífugo. No mesmo relatório, ele mostrou que meninas Yanomami sofreram estupros coletivos. Passando fome, prostituem-se em troca de arroz ou salsichas. Seu território, invadido por milhares de garimpeiros ilegais em busca de ouro, incentivados por Bolsonaro, estava desfigurado: rios poluídos com mercúrio, pomares destruídos, fome e doenças se espalhando. Ainda assim, Bolsonaro quase ganhou a eleição presidencial e, nesse caso, quantos milhares de Yanomami continuariam morrendo de fome, malária e outras doenças na selva?

Todos testemunharam em tempo real o que Bolsonaro era capaz de fazer. Mas, embora visse que estava executando um plano para disseminar o vírus da covid-19 que causou a morte de 700 mil pessoas durante a pandemia, conforme denunciou o EL PAÍS , uma parte da elite jurídica e intelectual brasileira hesitou em chamar de genocídio o genocídio. Hoje, depois do desfile de crianças e adultos indígenas semimortos, muitos dos quais condenados a sofrer graves consequências caso sobrevivam, a palavra genocídio começa a entrar no vocabulário até dos covardes. O custo humano da extrema direita que chegou ao poder pelo voto apenas começou a ser exposto. E o Brasil começa a descobrir que se continuar tolerando o genocídio, logo não sobrará país.

Eliane Brum, a autora deste artigo, é Jornalista no Brasil. Publicado originalmente no EL PAÍS, 01.02.23 (Tradução de Meritxell Almarza).

Quem não condena Putin se torna conivente

A decisão de Lula de não tomar partido na guerra na Ucrânia é do interesse econômico e geopolítico do Brasil. Mas recusar-se a condenar Putin significa tornar-se cúmplice de um agressor fascista.

Olaf Scholz ouviu de Lula que o Brasil não vai enviar munição à Ucrânia / Foto: Kay Nietfeld/dpa/picture alliance

Lula segue a linha tradicional da política externa brasileira ao não tomar partido na guerra na Ucrânia. Faz sentido quando ele diz que o Brasil é "um país da paz", que combateu sua única guerra em 1865, contra o Paraguai. E que vai parar por aí.

Ele prefere falar sobre como alcançar a paz. Por esse motivo, Lula apresentou seu veto ao envio de munição para os tanques de guerra Leopard 2, quea Alemanha e outros países da União Europeia vão enviar para que a Ucrânia possa se defender.

Fica evidente que, por trás dessa postura, está, de um lado, o sincero esforço de Lula pela paz, e é de se saudar que ele proponha uma iniciativa sob a liderança do Brasil e também da China para a mediação do conflito.

Por outro lado, o que justifica a posição de Lula são, claro, fortes interesses econômicos. O agronegócio brasileiro depende completamente de fertilizantes vindos da Rússia e de Belarus, em especial do cloreto de potássio. Sem ele, o Brasil pode esquecer seu status de "maior campo de soja do mundo".

Disso resulta a amizade com Vladimir Putin, único ponto em comum entre Lula e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que, poucos dias antes do início da guerra na Ucrânia, viajou para Moscou e cortejou Putin para garantir o envio de fertilizantes.

Guerras imperialistas de Putin

Mas, tão correto quanto Lula possa estar quando tenta deslanchar uma iniciativa de paz, tão errado ele está quando procura a culpa da guerra na Ucrânia, na Europa ou na Otan.

É completamente ingênuo pensar que Putin foi obrigado a atacar, como Lula e uma grande parte da esquerda no Brasil e na América Latina reiteradamente argumentam.

Na verdade, há 20 anos a Rússia conduz guerras imperialistas e criminosas nos seus entornos para expandir sua esfera de influência. A Rússia começou a guerra contra a Ucrânia já em 2014, com a anexação da Crimeia, o que é ilegal sob o direito internacional.

O erro de fato foi a Europa, em vez de reagir com rigor, achar que Putin iria parar por aí. Pois a história alemã também ensina que não se deve entregar, sem luta, a agressores e ditadores o que eles querem. Eles não vão parar por aí.

A guerra e a agressão são da natureza constituinte de seus regimes, são elas que dão estabilidade a esses regimes. A Rússia de Putin também é assim.

Ordem social fascista

Com Putin, Lula cai na teia de um maquiavélico brutal e mentiroso, que quer criar, na Rússia, uma ordem social que deixaria qualquer bolsonarista babando: militarista, nacionalista, homofóbica, hostil a minorias, sem contestação, com culto à personalidade de um líder, hostil à ciência, baseada em fake news.

É essa ordem social, em essência fascista, que Putin quer expandir para outros países. É por ela que ele usa centenas de milhares de russos, sobretudo pobres e de pouca instrução, vindos da parte asiática do país, como bucha de canhão no front; é por ela que ele destrói hospitais, residências, parques infantis, usinas elétricas, represas e mesmo vilarejos inteiros na Ucrânia com mísseis russos.

Quem, como Lula, não condena, mas procura justificar isso, se torna conivente.

Um agressor, várias vítimas

Lula diz: "Acho que, quando um não quer, dois não brigam". Fica a pergunta: isso também vale para o conflito entre os garimpeiros e os yanomami? Assim como os russos, os garimpeiros atravessaram fronteiras ilegalmente porque achavam que muito poucos indígenas possuíam muitas terras e, com isso, impediam que brasileiros que trabalham duro, e a quem este país também pertence, pudessem gerar riqueza.

Por isso agora se negociará para que os garimpeiros fiquem com um pedaço da reserva indígena? Não, eles serão expulsos, como manda a lei. E assim como a lei brasileira vale para os garimpeiros, o direito internacional deve valer para Putin.

Com sua lógica, Lula inverte a relação de causalidade e coloca na vítima a culpa pela agressão.

Esta guerra não tem dois lados que precisam ser ouvidos: há um agressor (Putin) e várias vítimas (russos, ucranianos, países em desenvolvimento que sofrem com a falta de grãos provenientes da região em guerra).

O que é realmente trágico nessa inversão da culpa é que o Brasil e a esquerda latino-americana, no seu automático antiamericanismo, se colocam do lado de Putin e, assim, do lado de um fascista.

Philipp Lichterbeck, o autor deste artigo, queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria  Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio. / Este texto do autor, colunista e correpsondente da Deutsche Welle Brasil, não reflete necessariamente a opinião da DW. / @Lichterbeck_Rio

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Não há alternativa a não ser combater a extrema direita

É preciso mirar nos financiadores, mostrando que a atividade política ilegal não é tolerável para além de 8 de janeiro

Confronto entre bolsonaristas e agentes de segurança nos arredores do Palácio do Planalto Evaristo Sá/AFP

A invasão e depredação das sedes dos Três Poderes da República — levada a cabo por bolsonaristas radicalizados no dia 8 de janeiro — foi somente o clímax de uma cruzada contra as instituições democráticas que Bolsonaro e seus seguidores mais próximos vêm conduzindo desde a eleição de 2018. Quem não se lembra da ameaça do “cabo e soldado”, proferida por um de seus porta-vozes, o filho Eduardo?

Durante o mandato, o bolsonarismo mirou principalmente no STF, uma vez que ocupava o Executivo e conseguiu pacificar o Legislativo à custa de um acordo altamente danoso à administração pública federal. Ao longo da campanha de 2022, o TSE foi incluído na mira do ódio extremista.

Uma vez perdida a eleição, o Executivo, agora ocupado pelo PT, tornou-se o alvo primordial, e o Congresso — em via de celebrar mais um acordo de sustentação da governabilidade — já não poderia ser contado como aliado. Agora, o governo como um todo, o regime mesmo, tornou-se alvo da extrema direita. A invasão da Praça dos Três Poderes —imitação tosca da invasão do Capitólio há dois anos — parecia uma consequência lógica para quem vive no mundo de fantasias criado pelo bolsonarismo.

É compreensível que tal evento mobilize o debate público no momento atual. Mas ele somente atualiza e torna ainda mais óbvio e urgente um desafio que já estava posto para Lula e para a democracia brasileira como um todo antes de sua ocorrência: o desmonte do bolsonarismo, da maneira como se estruturou até o momento.

Não há alternativa para a democracia brasileira a não ser combater unida as atividades antidemocráticas da extrema direita. Isso deve ser feito atentando para sua estrutura comunicacional, que é sua espinha dorsal. Avessa às instituições, incapaz mesmo de fundar um partido político, a extrema direita se organizou como um sistema de comunicação entre lideranças e base, complexo e mais ou menos informal. Esse sistema se assenta em três pilares: o gabinete do ódio, as mídias tradicionais cooptadas e o púlpito do cristianismo ultraconservador.

O gabinete do ódio é o nome da cabeça de uma organização de influenciadores e produtores de conteúdo para as redes sociais, que estava instalada no Palácio do Planalto. A partir de janeiro, não mais pode contar com os recursos e a força de trabalho dos cargos comissionados do Executivo, mas ainda tem à disposição o financiamento ilegal provido por empresários ultradireitistas ou com interesses escusos na sublevação golpista. Sobrevive, mas está enfraquecido. É preciso, portanto, focar as lentes das instituições democráticas nos financiadores, mostrando que a atividade política ilegal não é tolerável para além do evento de 8 de janeiro.

A conversão das mídias cooptadas e dos líderes do cristianismo ultraconservador à legalidade democrática é também uma questão política. A coalizão democrática que ora passa a governar tem canais de comunicação com esses agentes e deve trabalhar ativamente para que deixem de ser divulgadores de conteúdo antidemocrático. Ademais, eles também estão sujeitos ao aparato legal do Estado, que tem mecanismos para coibir abusos.

Por fim, é necessária uma ampla negociação do governo com as empresas que administram as redes sociais e serviços de mensageria, para que critérios mais eficazes de combate às notícias falsas e ao discurso se ódio sejam implantados, como já feito em outros países.

A tarefa é enorme, mas o custo de não a fazer é muito maior. Ironicamente, a reação das instituições e atores políticos aos atos terroristas de 8 de janeiro cria oportunidades para fazermos enormes avanços em direção a esse objetivo. Para alguns especialistas, a extrema direita é, por definição, uma força política antidemocrática. Se for esse o caso, que pereça a extrema direita.

João Feres Júnior, o autor deste artigo, é cientista político da Universidade Estadual do Rio de Janeiro / Uerj e coordenador do Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 31.01.23

A contaminação golpista na polícia

Pesquisa mostra que 4 em 10 policiais entendem que é ‘legítima’ a pauta dos extremistas que vandalizaram Brasília. Não há democracia quando o vírus do golpismo afeta forças de segurança

Ofortalecimento da democracia brasileira, submetida nos últimos quatro anos a ataques inéditos desde o fim da ditadura militar, passa, obrigatoriamente, pela despolitização das forças de segurança pública. Na prática, isso significa nada mais do que circunscrever a atuação dos agentes aos limites impostos pelas leis e pela Constituição.

Malgrado se tratar de uma obviedade, uma pesquisa realizada com policiais há poucos dias pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que o desafio de trazer parte deles para os trilhos do Estado Democrático de Direito nada tem de trivial. Quase 40% do total de entrevistados disseram concordar, no todo ou em parte, com o seguinte enunciado: “A invasão (da Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro) é condenável e não pode ser tolerada, mas as pautas defendidas pelos invasores eram legítimas e não atentam contra a democracia”.

O fato de 4 em cada 10 policiais do País verem como “legítima” a agenda golpista dos que tomaram de assalto as sedes dos Poderes em Brasília é, sem dúvida, muitíssimo preocupante. Resta evidente que há, no mínimo, uma lacuna de formação democrática para uma parcela expressiva das forças de segurança pública, se não um vácuo de comando. A bem da verdade, o problema é antigo. Desde muito antes de chegar à Presidência da República, Jair Bolsonaro já inoculava os vírus do golpismo e da insubordinação no seio das Forças Armadas e das polícias.

A integridade funcional de uma parcela dos policiais federais, rodoviários, civis e militares foi conspurcada pela ideologia bolsonarista, em tudo contrária aos princípios republicanos. Inspirados pelo ex-presidente, muitos policiais se sentiram confortáveis para manifestar publicamente suas visões peculiares sobre “liberdade de expressão”, “povo” e “democracia”. Naquele fatídico 8 de janeiro, o País pôde ver, atônito, o que acontece quando agentes públicos sobrepõem suas opiniões políticas às suas obrigações legais.

O Estado detém o monopólio da violência. Seus agentes armados, portanto, devem exercer a função pública no estrito cumprimento do ordenamento jurídico, independentemente de suas crenças, valores e opiniões políticas particulares. Quem serve ao Estado portando armas, é evidente, não pode se envolver em questões políticas. Trata-se de um princípio elementar da democracia. Apenas como exercício de imaginação, pensemos no caos em que o País estaria mergulhado se cada policial na esquina pautasse suas ações segundo suas convicções morais, políticas ou religiosas.

Ao mesmo tempo que lançou luz sobre o alto grau de contaminação política das forças de segurança pública, a pesquisa do FBSP também trouxe um dado alentador. Para 62,1% dos policiais entrevistados, seus colegas que, por ação ou omissão, facilitaram a ação dos golpistas devem ser punidos. Outro dado auspicioso trazido pela pesquisa é que a maioria dos agentes (62,9%) acredita que a politização atrapalha o bom exercício das atividades-fim das corporações.

“Isso prova que eles (os policiais) entendem que a questão política atrapalha (as atividades-fim das polícias)”, disse ao Estadão o presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima. Ao mesmo tempo, Lima ressaltou o quão árdua será a faina para afastar a política dos quartéis quando quase 40% dos policiais não veem como atentatórias à democracia as reivindicações dos extremistas bolsonaristas. Sem dúvida, reverter essa percepção será o desafio de uma geração de autoridades policiais absolutamente comprometidas com a Constituição.

A todos os brasileiros são assegurados o direito à opinião e a liberdade para expressá-las nos limites da lei. Evidentemente, militares e agentes de segurança pública, como cidadãos, podem e devem ter suas opiniões sobre qualquer tema. Entretanto, jamais podem manifestá-las nos casos em que há vedação legal para isso e, menos ainda, nortear o exercício de suas funções com base em suas convicções pessoais. Não há democracia sem respeito às leis. E são justamente os policiais, nas ruas, os primeiros a zelar por seu cumprimento por todos os cidadãos.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 31.01.23

Excessos? O que dizem juristas sobre 'superpoderes' de Alexandre de Moraes contra golpismo

À frente de inquéritos controversos abertos de ofício pelo próprio STF, o ministro já determinou centenas de prisões, suspensão de contas em redes sociais e até mesmo o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, sob a justificativa de conter ataques à Corte e ao Estado Democrático de Direito.

Alexandre de Moraes chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017 após acidente que matou Teori Zavascki (Reuters)

Alexandre de Moraes chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017 por obra do acaso, quando uma inesperada vaga na Corte foi aberta após um acidente fatal vitimar o ministro Teori Zavascki. De lá pra cá, se tornou, possivelmente, a autoridade mais temida e poderosa da República.

Para alguns, Moraes se tornou o herói da República, entendimento que ganhou mais apoio após o dia 8 de janeiro, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro inconformados com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva invadiram as sedes dos três Poderes. Para outros, porém, é visto como um ministro que acumulou poderes demais e tem desrespeitado garantias constitucionais, ferindo o sistema democrático que pretende preservar.

A origem dos 'superpoderes'

As investigações concentradas no gabinete de Moraes tiveram origem no chamado inquérito das Fake News, alvo de controvérsia jurídica já no seu início, por ter sido aberto no início de 2019 por decisão direta do então presidente do STF, Dias Toffoli. Isso foi feito à revelia da Procuradoria-Geral da República - ou seja, sem a participação do Ministério Público, que é a instituição responsável por investigar e denunciar criminalmente no país, segundo a Constituição Federal.

No entanto, julgamento do STF de junho de 2020 considerou o inquérito legal. A avaliação foi que o Supremo pode abrir investigação quando ataques criminosos forem cometidos contra a própria Corte e seus membros, representando ameaças contra os Poderes instituídos, o Estado de Direito e a democracia.

A partir daí, outros inquéritos foram instaurados, como os que investigam atos antidemocráticos ou a atuação de milícias digitais. Em vez de a relatoria dessas investigações serem sorteadas entre os ministros do STF, elas foram mantidas com Moraes, sob a justificativa de apurarem possíveis crimes relacionados ao inquérito inicial.

Para críticos, como o professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua, isso estaria concentrando muitos poderes nas mãos do ministro.

"A lógica do Estado de Direito foi criada lá no século 18, principalmente contra o absolutismo monárquico, que era o símbolo da concentração de poder. Então, a lógica do Estado de Direito é dividir poder, evitar que uma autoridade só, por mais poderosa que ela seja, decida sobre tudo. Porque se essa autoridade falhar, e é previsível que ela vá falhar, ninguém mais tem proteção em lugar nenhum", argumenta o professor.

Especialistas dizem que ataque a Brasília foi maior atentado à democracia desde a Constituição de 1988 (Getty Images)

O professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Emilio Peluso considera difícil avaliar no curso das investigações, que em boa parte tramitam em sigilo, se de fato há conexão em todos os inquéritos que justifiquem sua manutenção nas mãos de Moraes.

Ele reconhece que a concentração dos casos com um único ministro traz riscos, mas avalia que uma recente mudança no regimento interno do Supremo, obrigando que todas as medidas cautelares adotadas individualmente por ministros sejam imediatamente submetidas ao plenário ou a uma das duas turmas da Corte, reduz a possibilidade de abusos. Medidas cautelares são aquelas que visam preservar o andamento de uma investigação ou processo, como prisões temporárias, monitoramento eletrônico e suspensão da função pública.

"Com isso, você mantém um ministro que já tem conhecimento de toda a investigação e já sabe aquilo que pode levar a uma eventual responsabilização no futuro, que conhece o processo como um todo e que pode continuar dirigindo esse processo de uma maneira eficaz dali em diante. E, ao mesmo tempo, você exige que todos esses atos sejam fiscalizados pelo plenário ao exigir essa submissão imediata das decisões cautelares", nota Peluso.

Para o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei, é natural que haja controvérsias quando se trata de um volume tão grande de decisões. No entanto, ele avalia que, de modo geral, o ministro tem agido corretamente para enfrentar o que vê como o maior ataque ao sistema democrático estabelecido pela Constituição de 1988.

"Evidentemente, se a gente for olhar uma por uma, é muito difícil - e isso vale para Alexandre de Moraes, para qualquer outro magistrado - que haja consenso sobre todas as decisões que tomou num universo tão grande de casos, porque as pessoas têm mesmo interpretações divergentes, seja sobre os fatos, as provas, ou a (aplicação da) lei", afirma.

Medidas fora da Constituição?

Na visão de Pádua, porém, a atuação de Moraes para proteger a Constituição tem usado medidas extraordinárias sem base na própria Constituição e nas leis brasileiras. E, na sua avaliação, o grave cenário político não autoriza essa atuação, mesmo que ele venha recebendo apoio do Supremo, com medidas referendadas pelo plenário.

Pádua ressalta que a própria Constituição prevê situações extraordinárias em que pode haver supressão de direitos e aumentos dos poderes de certas autoridades provisoriamente, como a decretação de Estado de Defesa ou do Estado de Sítio pelo presidente, com aprovação do Congresso.

"Nenhum Poder, nem mesmo o Supremo Tribunal Federal, poderia invocar situações excepcionais para aumentar os seus poderes, exceto nos casos que a própria Constituição prevê", defende Pádua.

"A despeito dos atos anômalos do dia 8 de janeiro, do cenário político que vemos no Brasil, ninguém, que eu saiba, propôs a sério a decretação de algum Estado de Sítio ou de Defesa no Brasil", disse ainda.

Na sua avaliação, é possível enfrentar as ameaças autoritárias com mecanismos constitucionais.

Pádua cita como exemplo o afastamento de Ibaneis Rocha por 90 dias, que foi determinado por Moraes sem que houvesse um pedido da Procuradoria-Geral da República ou mesmo de outra instituição. Ele ressalta que o artigo 36 da Constituição permite ao STF determinar intervenção em uma unidade da federação para "assegurar o regime democrático", desde que haja uma representação da PGR.

Apoiadores da atuação de Moraes, por outro lado, argumentam que o procurador-geral da República, Augusto Aras, no cargo desde setembro de 2019, é aliado de Bolsonaro e tem sido omisso na repressão aos movimentos antidemocráticos.

Para o professor da UFF, isso também não justifica ações que vê como anticonstitucionais. Ele questiona também se havia de fato necessidade de afastar Rocha quando Lula já havia determinado a intervenção federal na área de segurança pública do DF até 31 de janeiro. Essa medida adotada pelo presidente está prevista na Constituição e foi rapidamente referendada pelo Congresso, seguindo o que determina a lei.

Apoiadores de Jair Bolsonaro quebram vidro do Supremo Tribunal Federal durante invasão do edifício (Getty Images)

Emilio Peluso, por sua vez, defende a legitimidade da decisão. Ele nota que o afastamento foi determinado dentro de um requerimento apresentado pela Advocacia Geral da União (AGU), órgão que representa os interesses do Poder Executivo federal.

Embora não houvesse uma solicitação direta para afastar o governador, o requerimento pedia de forma ampla que Moraes adotasse providências para impedir a repetição dos crimes, as chamadas medidas cautelares.

É o que diz esse trecho do requerimento, apresentado dentro de um dos inquéritos presididos por Moraes: "Prisão em flagrante de todos os envolvidos nos atos criminosos decorrentes de prédios públicos federais em território nacional, inclusive do Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e demais agentes públicos responsáveis por atos e omissões, avaliando, até mesmo, a adoção de outras medidas cautelares que impeçam a prática de novos atos criminosos".

Ao determinar o afastamento com base nesse pedido, Moraes avaliou que "a omissão das autoridades públicas, além de potencialmente criminosa, é estarrecedora, pois os atos de terrorismo se revelam como verdadeira 'tragédia anunciada', pela publicidade da convocação das manifestações ilegais pelas redes".

Peluso ressalta também que a decisão de Moraes foi referendada por ampla maioria do STF. Apenas os ministros indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro se opuseram ao afastamento. Para Nunes Marques, não houve omissão dolosa (intencional) por parte de Ibaneis Rocha. Já André Mendonça considerou que o Supremo não era a Corte adequada para decidir, já que governadores têm foro especial no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Prisões em massa?

Outro ponto alvo de questionamentos foi a decisão de Moraes de determinar a prisão de todos que estavam no acampamento em frente ao Quartel General (QG) do Exército, no dia seguinte aos ataques antidemocráticos.

Esse acampamento teve início logo após a eleição de Lula e pedia a ação das Forças Armadas para barra a posse do presidente eleito.

O local serviu de ponto de concentração para os vândalos que atacaram as sedes dos três Poderes, muitos deles vindos de ônibus de diferentes cantos do país nos dias anteriores. Na noite de 8 de janeiro, após os ataques, quando parte deles havia retornado ao QG, a Polícia Militar tentou entrar no acampamento para efetuar prisões, mas o próprio Exército teria impedido.

Alexandre de Moraes decretou prisão de centenas de invasores (Getty Images)

"Soldados da Polícia do Exército, equipados com escudos, formaram um cordão que impediu a passagem da PM. Foram posicionados três blindados para reforçar o bloqueio", noticiou o jornal Folha de S.Paulo, que esteve no local.

Após isso, ainda na madrugada do dia 9 de janeiro, Moraes determinou a dissolução em até 24 horas dos acampamentos que continuavam em frente a quartéis em diversas cidades do país, sob pena de responsabilização das autoridades civis e militares responsáveis pela retirada dos acampados.

Ele decretou também a "prisão em flagrante de seus participantes pela prática dos crimes previstos nos artigos 2ª, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016 e nos artigos 288 (associação criminosa), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado), 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III (perseguição), 286 (incitação ao crime)".

Com isso, na manhã do dia 9, a polícia do DF encaminhou cerca de 1.200 pessoas da área do QG do Exército para averiguação na Academia Nacional de Polícia, segundo relatório da Defensoria Pública da União (DPU). Somadas a outras prisões, como as efetuadas da noite anterior durante os atos de vandalismo, cerca de 1400 pessoas foram detidas.

Depois, essas pessoas foram submetidas a audiências de custódia com juízes, direito que é garantido aos presos para que seja avaliada a legalidade da prisão. Essas audiências devem ser realizadas em 24 horas, mas diante do número elevados de presos, levaram alguns dias.

Após essas audiências, Moraes decidiu converter 942 prisões em flagrante em prisões preventivas (sem prazo para soltura), sob a justificativa de garantir a ordem pública e a efetividade das investigações. Os demais 464 obtiveram liberdade provisória e poderão responder a eventuais processos com a colocação de tornozeleira eletrônica entre outras medidas.

Segundo um levantamento da Defensoria Pública da União, em ao menos seis casos Moraes estabeleceu a prisão preventiva contrariando a posição do Ministério Público, que havia recomendado a liberação da pessoa ou outras medidas, como prisão domiciliar.

Em um relatório sobre os direitos humanos desses presos, a Defensoria Pública da União argumenta que a lei 13.964/2019, ao alterar o Código Processo Penal para eliminar a possibilidade de prisão "de ofício" pelo juiz, na prática "vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva, ou imposição de medidas cautelares diversas da prisão, sem o prévio requerimento do Ministério Público, seja no curso da investigação criminal ou do processo".

No entanto, a decisão de Moraes não é totalmente inovadora nesse ponto, pois há um precedente de 2022 do STJ estabelecendo que, se houver pedido do Ministério Público por outras medidas cautelares mais leves que a prisão, o juiz poderá optar por prender o investigado, sem que essa decisão seja considerada de "ofício".

Há ainda, porém, outras controvérsias na detenção massiva dos suspeitos de crimes no 8 de janeiro. Na avaliação da DPU, a ação contra centenas de pessoas a partir da decisão genérica de Moraes resultou em prisões que não cumpriram os trâmites previstos na lei e deveriam ser imediatamente revertidas.

"No decorrer das audiências de custódia realizadas, observa-se uma grande quantidade de autos de prisão em flagrante deficitários, isto é, não instruídos com a documentação indicada no artigo 304 e seguintes do Código de Processo Penal, tais como oitiva do condutor (autoridade que efetua a prisão), testemunhas e exame de corpo de delito", destaca o relatório da Defensoria.

"Assim, em atenção à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que reconhece o auto de prisão em flagrante como ato de formal documentação, a manutenção das privações de liberdade mesmo diante dos autos de prisão sem os documentos exigidos por lei, configura quadro que deve ser sanado pelo imediato relaxamento das prisões efetuadas em desacordo com a legislação", diz ainda o documento da DPU.

Já Rafael Mafei, da USP, considera que as centenas de prisões foram necessárias para identificar os potenciais criminosos, já que houve uma "turba de milhares de pessoas tentando um golpe de Estado".

Se não houvesse uma ação imediata, diz, as pessoas retornariam para suas casas em diferentes cantos do país, dificultando a ação da Justiça na apuração e punição dos graves crimes cometidos no 8 de janeiro.

"O correto a se fazer nesse caso, quando há suspeita de uma pessoa que está cometendo um crime ou que acabou de cometer o crime, é recolher essa pessoa, levar até um lugar onde ela fique à disposição das autoridades, até que se possa avaliar a participação dela naquele episódio, minimamente, e decidir se ela precisa ficar preventivamente presa ou não", afirma Mafei.

"O que você não pode é, depois de avaliar a participação daquelas pessoas, manter preso quem a lei manda que seja solto, que responsa o processo em liberdade", acrescentou.

Controvérsias anteriores

Apesar de defender a atuação de Moraes na reação ao 8 de janeiro e, de modo geral, na condução dos inquéritos que passaram a investigar ataques à Corte e ao Estado Democrático de Direito desde 2019, o professor da USP critica algumas decisões do ministro, como a operação contra empresários bolsonaristas em agosto de 2022.

Na ocasião, Moraes autorizou a apreensão de celulares e o bloqueio de contas bancárias e de perfis dos empresários nas redes sociais após uma reportagem do portal Metrópoles revelar que eles teriam apoiado um possível golpe de Estado em conversas em um grupo de WhatsApp.

Para Mafei, as medidas "parecem excessivas", já que não houve uma investigação prévia à operação que indicasse uma articulação concreta dos empresários para de fato empreender um golpe de Estado.

"Teve gente que sofreu restrições ou coações por condutas no grupo de Whatsapp que eram absolutamente insignificantes. Me pareceu uma medida principalmente com papel intimidatório em relação a pessoas que estivessem cogitando algum tipo de apoio mais explícito a iniciativas golpistas o que não é o uso próprio daquelas medidas legais", analisa o professor da USP.

No geral, porém, Mafei considera que a atuação de Moraes tem sido correta no enfrentamento de sérios ataques e ameaças ao Estado Democrático de Direito. E, na sua avaliação, há um apoio das instituições a essa atuação, já que o plenário do STF têm confirmado decisões do ministro e o Congresso não tomou medidas para contê-lo, como instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigá-lo ou abrir um processo de impeachment, embora haja dezenas de pedidos nesse sentido apresentados no Senado.

"Então, existiu uma ameaça real, a grande ameaça que já houve à ordem democrática de 1988, porque ela tem estrutura, tem financiamento, tem liderança política, tem uma articulação comunicacional, tem pessoas dispostas a agir e, inclusive, se submetendo às consequências mais graves", avalia o professor.

"E há um conjunto de dispositivos legais que está sendo interpretado não pelo Alexandre de Moraes (isoladamente), mas pelo Supremo, com apoio das outras instituições, de maneira a reagir a esses ataques", reforçou.

-Este texto de Mariana Schreiber (@marischreiber) foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64464312 / BBC News Brasil, em 31.01.23

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Os militares e a democracia

Se golpe não houve, isso se deve a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonismo, embora pouco tenha aparecido na imprensa

O Brasil esteve à beira de uma ruptura institucional, com o golpe espreitando a Nação. E não se trata apenas da violência bolsonarista do dia 8 de janeiro, com a destruição dos símbolos mesmos da República, mas da divisão reinante nas Forças Armadas e, em particular, no Exército. E isso data dos últimos meses do governo anterior e dos primeiros dias do novo. Uma vez que a política penetrou nos quartéis, a cisão interna se fez entre militares constitucionalistas e golpistas, alguns desses da reserva, com forte influência junto ao ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem eram próximos.

Se golpe não houve, isso se deve, entre outros, a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonismo, embora pouco ou nada tenha transparecido na imprensa senão recentemente. Agiram nos bastidores, entre outras razões, para resguardar a imagem do Exército enquanto força coesa, embora a realidade fosse diferente. São eles: general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, agora comandante do Exército, general Valério Stumpf, chefe do Estado-Maior do Exército, general Richard Fernandez Nunes, comandante do Comando Militar do Nordeste.

Foram eles considerados, nas redes sociais militares de extrema direita, generais “melancias”, verdes por fora, vermelhos por dentro, apesar de seu “vermelho” significar simplesmente a defesa da democracia e da Constituição. Outros epítetos foram “traíras”, “comunistas” e por aí afora. Conheço-os pessoalmente, dois deles são amigos próximos, e posso testemunhar sua alta capacitação, seu amor aos valores da liberdade e da democracia, além de nosso apreço comum pelos livros.

A vida deles foi nada fácil nas últimas semanas. Além das calúnias que se tornaram corriqueiras, foram também atingidos em suas respectivas famílias, objeto de ameaças, e isso tão somente por se posicionarem no respeito à Constituição. O presidente Lula da Silva errou, em suas primeiras manifestações, ao não fazer a necessária distinção entre generais democratas e golpistas, considerando-os em bloco como avessos à democracia. Essa foi, inclusive, a percepção militar. Agora, corrigiu em boa hora a sua orientação inicial, escolhendo o general Tomás como novo comandante do Exército. Acertou e deve ser parabenizado por isso.

Na quarta-feira, dia 18, diante da tropa reunida no Comando Militar do Sudeste, o general Tomás fez um contundente discurso, não lido, em defesa da democracia, do voto, da alternância de poder, do respeito à Constituição e da obediência à vontade popular, ou seja, à escolha do novo presidente. Uma coisa é o militar votar no candidato que melhor corresponder às suas convicções, outra muita diferente é, enquanto militar precisamente, prestar continência ao novo presidente da República. E isso vale para qualquer eleito, de esquerda ou de direita. Não lhe cabe fazer opções ideológicas, mas estritamente constitucionais.

Note-se que o general Tomás tomou três atitudes, vitais para a superação da crise atual: 1) dirigiu-se à tropa, exercendo efetivamente a sua função de comandante e não se restringindo a uma reunião de gabinete com seus pares; 2) gravou toda a sua manifestação, conferindo-lhe depois um caráter público, expondo para toda a população brasileira o compromisso do Exército com a democracia, apesar dos recentes percalços; 3) enviou uma mensagem aos seus pares, inclusive aos seus detratores, de que os valores militares e os compromissos democráticos seriam mantidos.

Sua coragem foi exemplar. Mostrou, inclusive, aos petistas recalcitrantes como as Forças Armadas possuem um compromisso inarredável com a Constituição, dela não se afastando apesar de alguns grupos militares desgarrados. E aprenderam isso nas escolas militares, seguindo os currículos que são tão menosprezados pelos petistas, como se fossem necessárias grandes alterações neles. Deveriam aprender que foi graças a esses currículos que comportamentos exemplares como os desses generais foram possíveis.

Embora pouco tenha sido noticiado, o Exército foi igualmente exemplar na validação das urnas eletrônicas graças a conversas de bastidores que contribuíram decisivamente para a harmonização entre os Poderes. Muita verborreia foi gasta em público e em lutas supostamente ideológicas, enquanto o verdadeiro trabalho foi feito na aproximação entre importantes atores políticos. O discurso da fraude eletrônica foi esvaziado, sendo somente sustentado pelos bolsonaristas radicais que viviam – e vivem – em suas próprias bolhas, alheias à realidade. Foi, portanto, graças a alguns desses generais que a eleição transcorreu normalmente e os seus resultados foram acatados, sem nenhum atropelo institucional. O Exército e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) agiram em sintonia, cada um cedendo em nome do bem maior que é o Brasil.

Está na hora de ser reconhecido o importante papel desses militares na defesa da democracia. O momento é de distensão e de pacificação nacional. O Brasil só poderá crescer no respeito às instituições democráticas. Conflitos não devem ser acirrados, sob pena de retrocedermos ao passado recente.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS. Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 30.01.23

O difícil caminho do não alinhamento do Brasil

 Com a guerra cada vez mais intensa, tudo leva a crer que o conflito contaminará a geopolítica ainda mais do que no ano passado

Imagem mostra tanques dos EUA sendo testados; governo Biden anunciou envio de armamento à Ucrânia  Foto: EFE/EPA/VALDA KALNINA

Com a decisão do Ocidente de fornecer mais de cem tanques à Ucrânia e o debate crescente sobre uma possível tentativa de reconquistar a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, o conflito na Europa entra em nova fase. Depois de o governo Biden ter fornecido quase US$ 30 bilhões em ajuda militar aos ucranianos desde o início do conflito, uma derrota ucraniana seria um desastre político dificilmente aceitável para o presidente americano, que já está se preparando para sua campanha de reeleição.

Equipamentos devem garantir superioridade tecnológica ao arsenal ucraniano, mas podem não ser suficiente para mudar rumos da guerra

Da mesma forma, uma conquista russa de Kiev – o que parece ser a meta da contraofensiva militar que o Kremlin prepara – causaria um terremoto político na Europa, onde o premiê alemão Olaf Scholz, depois de muita hesitação, decidiu aprovar o envio de tanques à Ucrânia, país a menos de 700 quilômetros da fronteira alemã. Há pouca dúvida de que avanços decisivos russos aumentariam a probabilidade de o Ocidente fornecer caças à Ucrânia, algo inimaginável no início do conflito.

Do lado russo, também aumentaram muito as apostas: com uma onda nacionalista varrendo o país, Vladimir Putin sabe que uma derrota militar na Ucrânia representaria grave ameaça política. Tudo indica que o presidente russo está disposto a fazer o máximo possível – inclusive uma mobilização geral, que implicaria o envio de centenas de milhares de soldados para o front – para vencer o conflito. O Kremlin admitiu que tomou a decisão pouco usual de recrutar presidiários, como mercenários do Grupo Wagner, 40 mil dos quais, segundo estimativas, estão lutando na Ucrânia.

Com a guerra cada vez mais intensa, tudo leva a crer que o conflito contaminará a geopolítica ainda mais do que no ano passado, tornando-se um dos temas prioritários a ser discutidos nas principais plataformas multilaterais, como o G-7, o G-20, e o grupo Brics. Essa é uma notícia ruim para o Brasil, que deve participar de reunião dos três grupos, afinal, enquanto o País tem como brilhar na questão climática – tema que pode ajudar a reconquistar o status de ator indispensável no sistema internacional –, o conflito na Ucrânia dificulta a estratégia de não-alinhamento, pilar da política externa brasileira.

Tanto no encontro do G-7 quanto na cúpula do Brics, o Brasil estará em uma posição pouco confortável. Situações como a do recente pedido do governo alemão para o envio de munição brasileira – feito dias antes da visita do premiê a Brasília e declinado pelo presidente Lula – se tornarão mais comuns. Enquanto o G-7 fará uma declaração condenando a Rússia nos termos mais explícitos e buscará intensificar o isolamento econômico de Moscou – algo que o governo brasileiro não apoia –, o Brasil terá de se empenhar para evitar que a declaração final do grupo Brics vire um manifesto pró-Rússia. Afinal, com a postura cada vez mais pró-Moscou da África do Sul, o Brasil é o integrante que mais tem a perder com um posicionamento anti-ocidental do bloco.

Essa tensão intra-Brics não é nova: certa vez, em reunião preparatória para a cúpula do grupo em Moscou, um participante russo afirmou em discurso que o Brics deveria se posicionar como “bloco anti-ocidental”, ideia prontamente criticada por um representante brasileiro, o qual lembrou que o Brasil também faz parte do Ocidente e, portanto, rejeita a caracterização.

Com os dois lados dobrando as apostas na guerra, o Brasil precisa se preparar para o cenário de uma conversa global cada vez mais monotemática, a qual deverá levar a uma intensificação das sanções econômicas contra a Rússia, a mais volatilidade dos preços de alimentos e a espaço cada vez mais estreito para construir acordos em outras áreas. As negociações para se chegar a um acordo nuclear com o Irã são o melhor exemplo: com o regime em Teerã fornecendo drones à Rússia, é pouca a disposição ocidental de negociar com o país.

É impossível prever o percurso da guerra, mas tanto a queda de Kiev aos russos – forçando Zelenski a fugir – quanto a reconquista ucraniana da Crimeia, que provavelmente levaria a uma queda de Putin – são possibilidades reais ao longo dos próximos anos. Ambos produziriam transformações significativas no sistema internacional: uma derrota russa na Ucrânia aumentaria as chances de instabilidade na Ásia Central, antigo quintal de Moscou, além de um possível atrito na sucessão presidencial russa. A queda de Zelenski poderia causar uma onda de refugiados ucranianos com profundas consequências para a Europa. Todos os cenários teriam consequências amplas para a economia brasileira e sua inserção internacional.

Oliver Stuenkel, o autor deste artigo, é analista político e Professor de Relações Internacionais da Fundação Getílio Vargas - FGV-SP. Publicado riginalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.01.23

Copenhague entre o capitalismo e o socialismo

A Dinamarca aproveitou a boa condição econômica e conseguiu reduzir o abismo entre ricos e pobres

Capital da Dinamarca é bonita e tem ótima qualidade de vidaCapital da Dinamarca é bonita e tem ótima qualidade de vida Márcia Foletto

Passei uma semana em Copenhague, na Dinamarca, cidade que ainda não conhecia. Voltei maravilhado.

Fiquei hospedado no Hotel Sanders, do bailarino Alexander Kølpin. Na região do hotel ficam algumas galerias de arte, vários teatros de dança e uma loja chamada Ballet Boutique, que coloca a Capezio, de Nova York, no chinelo, ou na sapatilha, para usar uma linguagem mais adequada.

O Sanders é pequeno. Tem 54 quartos, num prédio de 1869, totalmente restaurado, que mistura contemporaneidade com nostalgia.

Os funcionários são poucos, bonitos e jovens. Todos fazem diversas atividades. O rapaz que cuida da portaria também se encarrega das malas, a moça que prepara o café da manhã também serve as mesas, e o pianista do bar, de vez em quando, faz o papel de barman. Ouve-se música boa naquele hotel: Billie Holiday, Chet Baker e João Gilberto é a trilha sonora dos corredores.

Na verdade, ouve-se música boa em toda a cidade. Há bares de jazz com música ao vivo que funcionam durante o dia, como o Jazzklubben, que abre de segunda a sexta-feira, às dez da manhã.

Em Copenhague, apesar do clima frio, as pessoas se comportam como se acabassem de chegar da praia. Todas num altíssimo astral.

Tudo é reciclável e sustentável.

As chaves magnéticas dos quartos do hotel são de madeira, e os cabos das escovas de dente também.

Copenhague — a capital mundial do movimento Hygge, que quer dizer “o segredo da felicidade” — é também a capital mundial do design. Tudo é bonito.

Podem ser joias do Georg Jensen, móveis coloridos desenhados especialmente para quartos de crianças ou aqueles tamancos com solados de madeira chamados clogs, que os chefs adoram.

Por falar em chefs, por causa de René Redzepi e seu restaurante Noma, eleito diversas vezes o melhor do mundo, a cidade passou a ter diversos restaurantes com estrelas Michelin, como o Selma, o Alchemist e o Kiin Kiin.

Mas, de todos eles, incluindo o Noma, o melhor é o Geranium, onde os pratos são mais saborosos, e as explicações sobre como eles foram preparados menos detalhadas.

Para quem prefere comida boa, mas sem estrelas e stars, Copenhague tem desde cachorros-quentes deliciosos como os de Düsseldorf, na feirinha próxima ao Canal Nyhavn, até pizzas saborosas como as de Nápoles.

No capítulo bibliotecas, museus e casas de espetáculo, a cidade também dá show. A biblioteca Black Diamond tem todos os livros possíveis e imagináveis, magníficos espaços de leitura e trabalho, belíssimas salas de exposições.

No dia em que estive lá, acontecia uma retrospectiva da fotógrafa Lee Miller, mostrando seu trabalho desde o movimento surrealista até sua atuação como correspondente de guerra e fotógrafa de amigos como Man Ray e Pablo Picasso.

O Louisiana Museum — em frente ao mar, com esculturas de Henry Moore, Calder, Miró e Giacometti nos seus pátios e um acervo onde Andy Warhol e Yves Klein são apenas dois dos muitos destaques — parece a Fundação Maeght, do sul da França, multiplicada por três.

E a esplêndida Ópera de Copenhague dá uma surra de arquitetura na belíssima Ópera de Sydney, na Austrália.

Em Copenhague existem carros a gasolina e elétricos, mas o transporte oficial é a bicicleta. As ciclovias são grandes, e ninguém jamais se atreve a atravessar com sinal vermelho, mesmo que não venha nenhum carro ou bicicleta de direção alguma. Todos esperam o sinal verde. Muitos ciclistas usam capacetes, a maioria deles bem desenhados e estilosos, com uma estética apelidada pelos usuários de cycle chic.

A Dinamarca — privilegiando-se de ter uma pequena população e uma condição econômica historicamente favorável — conseguiu reduzir o abismo entre ricos e pobres preservando benefícios típicos do socialismo. Educação e saúde de qualidade são gratuitas.

Seu sistema de governo — nem socialista nem capitalista — é chamado por alguns teóricos de capitalismo compassivo.

Na volta de Copenhague, fiquei pensando que, se Lula conseguir implantar na sua gestão um terço das coisas que prometeu na campanha, estará lançando no Brasil um embrião de capitalismo compassivo tropical.

Tomara que consiga.

Washington Olivetto, o autor deste artigo, é publicitário. Publicado originalmente por O GLOBO, em 30.01.23

domingo, 29 de janeiro de 2023

O respeito dos militares pela democracia

Apesar da trevosa era Bolsonaro, as Forças Armadas têm mostrado firme compromisso com a Constituição e com boas políticas públicas. É dever de todos preservar o bom histórico

Diante da inegável conivência de alguns militares com os atos de 8 de janeiro, ápice da aproximação, ocorrida ao longo dos últimos anos, de alguns setores das Forças Armadas com o bolsonarismo, tem sido frequente ouvir críticas simplistas às instituições militares, como se estivessem à margem dos limites constitucionais e necessitassem de uma generalizada reforma. Trata-se de avaliação injusta, que não corresponde aos fatos.

Na Presidência da República, Jair Bolsonaro – um mau militar, como acuradamente qualificou Ernesto Geisel – causou muitos danos às Forças Armadas. Nos quatro anos de governo, ele tentou de diversas maneiras desviar os militares de suas atribuições constitucionais; por exemplo, insistindo em que colaborassem nas manobras bolsonaristas contra a Justiça Eleitoral.

Tudo isso foi muito grave, com efeitos desastrosos em muitas áreas, e exigirá cuidadoso trabalho de reconstrução nos próximos anos. De toda forma, a contaminação de alguns militares com o bolsonarismo não foi fenômeno generalizado e, especialmente importante, não condiz com a atitude das Forças Armadas no período posterior à redemocratização do País. É um equívoco julgar as instituições militares pelo comportamento de alguns poucos nos últimos anos.

Em carta ao Estadão, a professora associada do Instituto de Química da USP Silvia Helena Pires Serrano lembrou um fato histórico que exemplifica a contribuição dos militares às políticas públicas nacionais. “Em maio de 1946, o vice-almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva (1889-1976), engenheiro de formação, então representante brasileiro na Comissão de Energia Atômica do Conselho de Segurança da recém-criada ONU, propôs ao governo brasileiro a criação de um Conselho Nacional de Pesquisa, o atual CNPq, quase destruído durante o último governo”, escreveu a professora. Diante de “fatos tão grotescos que nos encheram de tristeza e vergonha”, disse ela, referindo-se ao 8 de janeiro, “é sempre bom nos lembrarmos dos bons exemplos que fizeram e ainda fazem a diferença”.

Assim, não é correto tomar a desastrosa passagem do intendente Eduardo Pazuello pelo Ministério da Saúde, onde contrariou as evidências científicas para obedecer cegamente ao comando delirante de Bolsonaro, como se fosse o padrão militar. Pelo contrário: a trajetória das Forças Armadas se identifica, entre outros muitos casos honrosos, com o vice-almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, lembrado pela leitora. Basta ver o prestígio acadêmico de que desfrutam o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e o Instituto Militar de Engenharia (IME), instituições criadas e mantidas pela dedicação e seriedade de gerações de militares.

As Forças Armadas têm mostrado um firme compromisso com a Constituição de 1988. Em novembro de 2015, em um momento de grave crise política, social e econômica, escrevemos neste espaço: “Não é raro pôr-se a culpa por boa parte dos males nacionais nas Forças Armadas, tendo em vista o período que o País viveu sob a ditadura militar. A falta de democracia, a censura, a tortura, o desrespeito aos direitos humanos não são coisas para se orgulhar. Reconhecer essa realidade não significa, no entanto, fechar os olhos ao fato de que, nas últimas décadas, se operou uma profunda e positiva transformação dos militares e de sua mentalidade. Entenderam o seu papel institucional dentro de uma democracia, sabendo deixar a condução do País à sociedade civil” (ver o editorial Os militares e a democracia, de 15/11/2015). Os anos de Bolsonaro no Palácio do Planalto podem ter turvado essa compreensão por parte de alguns, mas não apagaram o bom histórico das Forças Armadas, tampouco as profundas convicções democráticas da grande maioria dos militares. Fato especialmente significativo da constitucional submissão das Forças Armadas ao poder civil se deu com a criação do Ministério da Defesa, em 1999.

Entre outros pontos, o cuidado com o Estado Democrático de Direito exige não ignorar décadas de respeito à Constituição de 1988 por parte dos militares. A resistência ao bolsonarismo é precisamente preservar, e não desprezar esse bom histórico.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.01.23

Golpistas para todos os lados

‘Isso tinha na casa de todo mundo’, disse o chefão do PL, que se tornou o maior partido do Brasil, sobre a minuta de decreto para dar um golpe de Estado. É de estarrecer

Com espantosa naturalidade e incrível ligeireza, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, disse ao jornal O Globo que a articulação de um golpe de Estado – nada menos – foi tema de conversas corriqueiras em Brasília após a eleição do presidente Lula da Silva.

“Isso tinha na casa de todo mundo”, disse o sr. Valdemar, decerto sem ruborizar, ao se referir à minuta de decreto de estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral, encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Ele acrescentou que propostas como aquela circulavam “direto” entre pessoas do governo e que pessoalmente recebeu “várias propostas, que vinham pelos Correios” ou então em eventos políticos. “Tinha gente que colocava (o papel) no meu bolso, dizendo que era como tirar o Lula do governo.”

Não se sabe se as declarações do sr. Valdemar devem ser levadas a sério ou se é apenas uma artimanha para tentar livrar a cara do ex-ministro Anderson Torres e, por extensão, do principal puxador de votos do PL, o ex-presidente Jair Bolsonaro; afinal, se “todo mundo” recebeu alguma sugestão de golpe, como disse o chefão do PL, então nem Anderson nem Bolsonaro poderiam ser particularmente responsabilizados.

Conhecendo o sr. Valdemar como o Brasil bem conhece, é difícil saber o que está por trás dessa declaração tão irresponsável. Mas isso não importa. O que interessa é que o líder do maior partido político do Brasil tratou uma suposta conspiração contra a soberania da vontade popular como algo banal, quase inconsequente. É como se o sr. Valdemar estivesse tratando de propostas para mudar o nome de uma avenida.

A rigor, a própria reabilitação do ex-mensaleiro Valdemar diz muito sobre o longo caminho que a sociedade ainda precisa percorrer até atingir um grau de maturidade política que impeça que os alicerces da República, a começar pelo respeito ao resultado das eleições, sejam carcomidos pela ação insidiosa dos cupins da democracia.

Mesmo assim, não deixa de ser estupefaciente que o golpismo escancarado seja tratado como uma agenda trivial pelo dirigente de um partido que terá 99 deputados federais e 14 senadores a partir da próxima quarta-feira, quando terá início a nova legislatura.

Portanto, é uma leviandade que o golpismo, ao invés de ser enfática e vigorosamente condenado pelo líder de uma bancada tão expressiva de parlamentares democraticamente eleitos, seja tratado pelo sr. Valdemar com essa inconsequência.

A pretexto de “defender” Bolsonaro, Valdemar Costa Neto ainda revelou que, por ser tido como alguém “muito valente, meio alterado, meio louco”, o ex-presidente recebeu muitas sugestões de medidas para impedir a posse de Lula da Silva. Só não o fez, disse o chefão do PL, “porque não viu maneira de fazer”. Que alívio.

A esta altura já está claro que só não houve um golpe de Estado no Brasil após a derrota de Bolsonaro por absoluta rejeição das forças vivas da Nação ao espírito golpista que sempre animou o ex-presidente e muitos de seus apoiadores, entre os quais Valdemar Costa Neto. E também, por óbvio, porque Bolsonaro não logrou reunir apoios e meios não apenas para dar um golpe de Estado, como para sustentá-lo.

Vindo de alguém que se mostrou capaz de afrontar as instituições democráticas do País com aquela molecagem de “auditoria independente” das urnas eletrônicas, com o único objetivo de tumultuar as eleições de outubro passado, as declarações do sr. Valdemar não chegam a surpreender, mas são lamentáveis. É inacreditável que alguém que já deu reiteradas mostras de que seu projeto pessoal de poder está muito acima dos interesses nacionais continue tendo não apenas voz ativa no debate público, mas, sobretudo, influência direta na definição dos rumos do País.

Valdemar Costa Neto pode estar quites com a Justiça. Todavia, seu prestígio político, empregado, entre outras coisas, para banalizar tentativas de golpes de Estado, decorre diretamente do apoio que ele e seus correligionários ainda recebem de muitos eleitores. Nesse ponto, a sociedade ainda tem muito a evoluir.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.01.23