quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

As bolinhas dos poderosos

Bento 16 apontou para o abuso com os remédios

Papa Bento 16 acena a fiéis na Praça São Pedro, no Vaticano - Vincenzo Pinto - 11.fev.2012/AFP

O falecido papa Bento 16 contou a um de seus biógrafos que renunciou por causa de uma insônia que o afligia desde 2005. Meia verdade, o papa Ratzinger foi atormentado também pelos efeitos de bolinhas que médicos lhe receitavam para dormir. Em 2012, no México, ele acordou com os lençóis sujos de sangue sem saber o que lhe havia sucedido. Tinha sido o efeito da bolinha e ele havia se machucado, sem acordar.

O que parece ter sido um episódio isolado é algo mais comum, sobretudo no mundo dos poderosos. Bento 16 revelou que começou a pensar na renúncia ao sentir que lhe faltavam forças para dar conta do serviço. Essa explicação poderia reduzir a importância das dificuldades que atormentavam seu pontificado.

Até bem pouco, o Brasil foi governado por um presidente que tinha problemas com o sono. Bolsonaro foi um notívago da internet. Transformou um quartinho da ala residencial do Alvorada em base para expedição de mensagens disparadas durante as madrugadas. Ele mesmo se proclamou recordista de apneia. Um exame indicou que sofria 89 interrupções do sono a cada hora. Viu-se agora que ele tinha uma fonte de oxigênio no quarto de dormir. Um dia se saberá o tamanho da relação entre suas explosões diurnas e seus desconfortos noturnos. É indiscutível, contudo, que o capitão se sentia bem explodindo.

Os Estados Unidos já foram governados por dois presidentes que sofriam as consequências de noites mal dormidas. Elas estragaram o primeiro ano de governo de Bill Clinton. Richard Nixon meteu-se com as bolinhas de Seconal nos anos 50 e dez anos depois entrou no Valium, dependendo delas. Quando o escândalo do Watergate apertou, ele se queixava que o Dilantin não fazia mais efeito. Passou a beber e, em pelo menos uma ocasião, pareceu bêbado quando estava apenas fora do ar.

Estava assim quando seus assessores lhe contavam que Leonid Brejnev, o chefe do governo da União Soviética, não ia bem.

O russo também estava pendurado nas pílulas, desde 1968, antes da invasão da Tchecoslováquia. Como os poderosos preferem médicos em quem possam mandar, Brejnev fritou-se. Em 1974, a dependência destrambelhou-o. Dormia na hora errada e não conseguia acordar na hora certa.

O que há de preocupante nessa epidemia de bolinhas dos poderosos é que depois dos desastres que eles provocam, as responsabilidades acabam deslizando para os remédios e para os médicos. Ninguém acha que Hitler fez o que fez porque vivia empanturrando-se de remédios. Afinal, ele era vegetariano, abstêmio e não fumava. Já Winston Churchill comia de tudo, fumava dez charutos por dia e começava a beber champanhe antes do almoço.

Quando Donald Trump se apresentava como um bem-sucedido milionário (o que ele não era), orgulhava-se de só dormir quatro horas. Com o prestígio em baixa, surgiu a informação de que ele tomava bolinhas de Ambien para pegar no sono. Chegava a distribuí-las durante viagens que atravessavam várias zonas de fusos horários.

O mundo vai melhor quando os poderosos são julgados pelo que fazem, e não pelos remédios que tomam. O cardeal Ratzinger era chamado de "Rottweiler de João Paulo 2º". Renunciando, os cardeais elegeram o argentino Bergoglio, e Francisco tomou outro caminho.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é Jornalista e autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 01.02.23

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