quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Caminho para a ordem e o progresso é a profissionalização

É necessário rever todas as carreiras na segurança pública, nos Três Poderes e nos três níveis federativos

Soldados do Batalhão da Guarda Presidencial (Foto de André Coelho)

Aproveitando (ou não) o “Pacote da Democracia”, precisamos urgentemente repensar o desenho institucional das forças de segurança no Brasil. Não é apenas a criação de uma Guarda Nacional que vai nos tirar dessa.

Nos ataques de 8 de Janeiro, a insuficiência da Polícia Militar do Distrito Federal, a insubordinação do Batalhão da Guarda Presidencial e a provável conivência do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) mostraram ser inadiável uma ampla reforma da segurança pública brasileira nos três níveis federativos e nos Três Poderes. A crise de segurança é uma crise nacional.

Lembrando que o estado do Rio de Janeiro tem a menor taxa de elucidação de homicídios do país: 16%, menos da metade da já inadmissível média nacional, de 37%. Nada a ver — e tudo a ver — com a impunidade em zonas de garimpo e pesca ilegal na Amazônia ou com casos de corrupção.

A crise de segurança é uma crise de recursos humanos, já que o Estado é feito de profissionais que nele trabalham. O Estado não é “máquina”, e sim “relações humanas”, como dizia minha avó Adyr. Logo, o foco da transformação deve ser a gestão de pessoas. A começar pelo Executivo federal — onde as Forças Armadas reúnem 59% dos 560 mil servidores.

Filho de recruta do Forte de Copacabana, neto de coronel da cavalaria do Exército — que se casou com a Adyr —, filmei na Vila Militar, entre 2005 e 2007, o documentário “PQD”, disponível no Globoplay, sobre recrutas no 25º Batalhão Paraquedista.

Entre os oficiais, encontrei apenas bons militares: gente digna, decente, infelizmente sem objetivos claros para seus trabalhos e sem o devido reconhecimento. À época não se falava em ditadura nem em comunismo. Nada de ideologia, só assistência social. Não imaginei que, dez anos depois, voltaríamos a falar em golpe militar.

“O Brasil vive uma crise militar. Há décadas.” É o que acredita Lucas Figueiredo, autor de “Ministério do silêncio”, livro sobre o serviço secreto brasileiro. Para ele, é urgente uma atualização na formação e na governança das Forças Armadas e também em órgãos civis como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), hoje dentro de um órgão militar, o GSI.

Duas principais distorções devem ser definitivamente corrigidas. Primeiro, a má-fé de alguns militares que continuam a defender, para si, um inexistente “poder moderador”. A submissão dos militares ao poder civil é o que manda a Constituição. Segundo, a teoria do “inimigo interno”, doutrina paranoica segundo a qual as Forças Armadas devem intervir contra cidadãos brasileiros considerados “ameaças”. Para Figueiredo, na tradição brasileira, esses “alvos” foram quase sempre integrantes dos movimentos sociais. Reconhecemos o padrão também nas polícias estaduais.

No 8 de Janeiro, o Brasil assistiu à Praça dos Três Poderes deixada à própria sorte — ou melhor, à covardia. A troca do comandante do Exército e os recentes acenos com investimentos vão na direção correta. No entanto precisamos mais do que submarinos nucleares, caças suecos — ou Viagra.

Governos passam, e o Estado fica. O Estado é feito por pessoas, e seu sucesso depende de como elas são organizadas, reconhecidas e engajadas. É imprescindível formá-las continuamente, cada vez melhor.

Além disso, é necessário rever todas as carreiras na segurança pública, nos Três Poderes e nos três níveis federativos. Há diversos desencontros e sobreposições entre as responsabilidades partilhadas. Por último, é preciso modernizar os concursos públicos em geral. Existe hoje um amadurecimento sobre o tema, e uma convergência entre dois projetos de lei já tramitados no Senado (PL 2258/2022) e na Câmara (PL 252/2003).

O único caminho para a ordem e o progresso é a profissionalização, com a responsabilização e a motivação dentro do serviço público. Esse é o encontro marcado com um futuro melhor.

Guilherme Cezar Coelho, o autor deste artigo. é documentarista e diretor de “PQD” (2008), pelo qual recebeu a Medalha do Pacificador do Exército Brasileiro. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 02.02.23

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