domingo, 29 de janeiro de 2023

Abrace um bolsonarista

Por conhecer e amar muitos negacionistas, me forço a tentar entendê-los. Quase sempre fracasso

Funcionário da equipe de limpeza do STF limpa estátua que foi pichada por manifestantes Cristiano Mariz/Agência O Globo

Levanta a mão quem conhece algum bolsonarista que acredita que a eleição foi roubada. Um vizinho, um irmão, uma tia, um porteiro, um sogrão... De alguns deles, você gosta. Outros, talvez até ame. Tem uns que acreditam em fábulas tão incríveis que parecem de outro planeta.

Mas reduzir os sentimentos dos negacionistas aos absurdos em que eles acreditam é má ideia. Primeiro, porque uma das belezas da democracia é que até bolsonarista pode votar. (Mesmo que alguns discordem.) Segundo, porque os negacionistas raiz foram, realmente, enganados. De verdade.

Por mais surreal que nos pareça, para muitos negacionistas, a libertação de Lula da prisão, sua candidatura e retorno ao poder são parte de uma conspiração para instaurar o comunismo no Brasil. Acreditam nisso com a mesma certeza que nós temos de que a Terra é… redonda?

Hoje em dia é praticamente impossível não conhecer pelo menos um negacionista que, no fundo, a gente ama. Não falo dos que atacaram Brasília. Falo dos parentes e amigos que a gente até evita para não se aborrecer.

Na minha família tem um monte. Logo depois da eleição, um dos meus irmãos trocou a foto dele no WhatsApp por um logotipo que dizia: “Eu apoio a intervenção militar”. Sangue do meu sangue — golpista.

A gente não escolhe parente. Entre os amigos, a situação é bem diferente: não tenho um que seja bolsonarista.

Isso pode até parecer motivo de orgulho, mas, na verdade, é sinal de um problema sério: as bolhas sociais — essa condição moderna em que a gente só ouve e fala com quem concorda com a gente. Precisamos estourar essas bolhas.

Por conhecer e amar muitos negacionistas, me forço a tentar entendê-los. Quase sempre fracasso. Mesmo assim, convido você a tentar também.

Falar com quem acredita nessas mentiras pode parecer um esforço em vão. E talvez seja mesmo. Mas mudar o jeito como pensam não é a única coisa boa que pode acontecer. Vou dar um exemplo.

Adoro uma das minhas cunhadas. É uma pessoa maravilhosa, honesta, trata meu irmão bem e, nunca vou esquecer, cuidou com muito carinho do meu pai quando ele estava perto de morrer. Ela é também bolsonarista raiz.

Depois dos ataques em Brasília, mandei mensagem para saber a opinião dela. Como a maioria de nós, ela se disse indignada com o que viu na televisão. Tanto que sua pressão arterial subiu. Mas sua indignação se dava também porque ela tinha certeza de que a depredação foi provocada por esquerdistas infiltrados:

— Todo mundo sabe disso.

Apesar da raiva com o quebra-quebra, contraditoriamente, ela acrescentou que, se estivesse em Brasília, talvez tivesse sido capaz de, ela mesma, atear fogo em tudo.

— Um lado meu não aprova. — ela disse com a voz embargada. — Mas o outro se mantém cheio de ódio. E me faz muito mal sentir raiva de alguém ou de alguma coisa — concluiu aos prantos.

Política sempre foi motivo de raiva, tristeza, confusão e desilusão para muita gente. Isso não é novidade. A novidade é que, agora, é mais fácil do que nunca espalhar mentiras para tirar vantagem dessas emoções.

É natural tentar ignorar quem cai nas mentiras dos Bolsonaros da vida. É uma forma de defesa que ajuda a preservar nossa sanidade. Mas isso não resolve o problema.

Minha proposta é: que tal se, em vez de nos afastarmos dessas pessoas, nos aproximássemos delas? Que tal se a gente falasse com elas com respeito?

A dor era evidente na voz da minha cunhada. Ela sentia ódio, medo. O sofrimento dela era real.

Em vez de desdenhar, tentei confortá-la como pude. Disse que não via a menor chance de o Brasil ser tomado por comunistas. E que, em quatro anos, ela poderia votar novamente em quem ela achar que merece.

Encerrei dizendo:

— Um beijão e te amo.

— Te amo — ela respondeu.

Sergio Peçanha, o autor deste artigo, é colunista de Opinião do Washington Post, onde publicou uma versão deste texto aqui publicado originalmente n'O GLOBO, em 29.01.23

Nenhum comentário: