quarta-feira, 15 de março de 2023

Governo Lula usa modelo sem transparência para repasses indicados pelo Congresso

Gestão Lula adota padrão de negociação que mantém em segredo o nome de parlamentares que definem destino de verbas federais; procuradora aponta ‘continuidade’ do orçamento secreto

Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão. Foto: Wilton Junior/Estadão

No toma lá, dá cá com o Congresso, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai começar a transferir bilhões de reais do caixa federal para aumentar a base de apoio, sem qualquer transparência. O Palácio do Planalto elaborou um modelo de negociação que mantém em segredo o nome dos parlamentares que definirão para onde vão os recursos públicos que ficam sob controle dos ministérios, retomando uma prática amplamente adotada no orçamento secreto pelo orçamento secreto pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

No começo do mês, três ministros do governo assinaram portaria para estabelecer como vai ser o processo de pagamento de emendas parlamentares – verbas indicadas por deputados e senadores para suas bases eleitorais e repassadas pelo Executivo em troca de apoio político no Legislativo.

O documento não estabelece nenhuma medida para tornar público quem serão os congressistas atendidos pelas verbas controladas pelo governo. Além disso, Lula vetou uma proposta que identificava parte dos recursos de maior interesse dos parlamentares e permitia um nível de acompanhamento dos repasses.

Parte do montante é o espólio do orçamento secreto, derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Inclui ainda outras verbas incluídas pelos parlamentares no Orçamento de 2023. No total, Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão, que pressionam Lula a liberar o dinheiro.

Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão.

São verbas para bancar, por exemplo, pavimentação de ruas, construção de rodovias, compra de tratores e manutenção de postos de saúde. Como o Estadão revelou, durante o funcionamento do orçamento secreto, parlamentares escolhidos a dedo pelo governo Bolsonaro promoveram compras com indícios de sobrepreço, contratação direcionada de empresas de amigos e familiares dos políticos e concentração de recursos em redutos do Centrão. Em dezembro, o Supremo declarou o orçamento secreto inconstitucional.

Portaria

Parte da premissa do orçamento secreto foi ressuscitada na portaria assinada pelos ministros Simone Tebet (Planejamento), Esther Dweck (Gestão) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais). O documento entregou a Padilha o poder de centralizar a negociação com o Congresso de verbas controladas diretamente pelo Executivo, sem necessidade de equidade na divisão dos recursos ou transparência na indicação.

A fonte dos recursos é o dinheiro que alimentou o esquema de Bolsonaro, mas que fora transferido para outra rubrica orçamentária, chamada de RP2 – antes era RP9.

Com Bolsonaro, a negociação sobre quem teria acesso ao dinheiro estava exclusivamente nas mãos de um grupo de parlamentares, entre eles o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Agora, a decisão terá de passar pela pasta de Padilha. O que não significa que Lira perdeu força. Como comanda a pauta da Câmara e do Centrão, as negociações passarão obrigatoriamente por ele.

Orçamento de 2023 contempla mais R$ 15 milhões para a segurança de Lula

O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, por exemplo, tem R$ 2 bilhões para obras, que vão desde a compra de tratores até a pavimentação de ruas. Os parlamentares escolhidos pelo governo Lula poderão dizer em que cidade irão aplicar os recursos como “pagamento” por votarem a favor do governo. Também foram reservados R$ 54 milhões para abastecimento de água no sertão de Alagoas, reduto de Lira.

A procuradora Élida Graziane, do Ministério Público de Contas de São Paulo, disse que a portaria do governo Lula restabelece o orçamento secreto.

‘Continuidade’

“Não vejo uma mudança de um modelo para outro, eu vejo uma continuidade, com um regime híbrido para frustrar a decisão do Supremo e manter tudo exatamente igual”, afirmou a procuradora. “Há uma fortíssima tendência de a execução repetir o que foi o orçamento secreto, que é liberar o dinheiro sem aderência ao planejamento, de forma discriminatória, sem transparência em relação aos beneficiários e escolhendo o beneficiário sem nenhum filtro”.

O Supremo declarou o orçamento secreto inconstitucional por se tratar de um esquema sem transparência, sem planejamento, que concentrou recursos em redutos eleitorais sem equilíbrio regional e envolveu desvios. Lula criticou o mecanismo durante a campanha eleitoral, classificando o modelo como uma “excrescência”.

Em resposta ao Estadão, a assessoria de Padilha afirmou que a destinação dos recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso “em conformidade com o padrão da Lei Orçamentária adotada há muitos anos”. O governo prometeu dar transparência aos atos, mas, questionado pela reportagem, não apontou onde o cidadão poderá consultar os nomes dos parlamentares beneficiados pelos recursos.

Assessoria de Padilha afirmou que a destinação dos recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso 'em conformidade com o padrão da Lei Orçamentária adotada há muitos anos'.

Assessoria de Padilha afirmou que a destinação dos recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso 'em conformidade com o padrão da Lei Orçamentária adotada há muitos anos'. Foto: Wilton Junior/Estadão

“Até o momento, ainda não houve empenho de nenhum valor nessa rubrica. No futuro, ao serem empregados, esses recursos cumprirão critérios técnicos e seguirão absolutamente todos os padrões de transparência da administração pública, com relação a proponentes, órgãos federais envolvidos e ritmo de execução e de liberação de recursos”, destacou Padilha.

O Planejamento, comandado por Tebet, disse que os ministérios não são obrigados a seguir a indicação de parlamentares para as verbas do RP2. Questionado como será dada transparência e como garantir que a negociação não repita o orçamento secreto, a pasta respondeu: “As dotações classificadas com RP2, oriundas ou não de emendas, são executadas pelos órgãos sem o requisito de observância de indicações parlamentares, recaindo sobre o órgão a gestão da execução da despesa”.

Outra medida que reduz a transparência foi a decisão de Lula de vetar uma proposta na Lei Orçamentária Anual (LOA) que separava os recursos autorizados pelo Congresso após a aprovação da PEC da Transição em uma fonte específica. Na prática, a medida colocava uma “digital” nas verbas e permitia um mínimo de acompanhamento do caminho do repasse.

Agora, a gestão petista misturou as programações às demais despesas que estão sob controle do Palácio do Planalto, tornando impossível identificar o que é recurso direto do governo e o que é liberação para atender a interesse de aliados. O Executivo argumentou que a “digital” colocada pelo Congresso não cumpria o objetivo de identificar tecnicamente a fonte do recurso para bancar as despesas.

Para entender: a distribuição de verbas para congressistas

Governo Bolsonaro

Recursos do orçamento secreto eram carimbados como emenda de relator-geral (RP9) e liberados pelos ministérios conforme pedido de parlamentares aliados

Quem definia os beneficiados e a divisão interna era cúpula do Congresso, com controle maior do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL)

Os nomes dos parlamentares contemplados foram mantidos em segredo, assim como os critérios para a distribuição dos recursos

Em 3 anos, governo Bolsonaro liberou R$ 45 bi do orçamento secreto para atender aliados em troca de apoio político no Congresso

Governo Lula

O Executivo define o pagamento da maior parte dos recursos para investimentos e manutenção dos órgãos públicos, com o carimbo das despesas discricionárias (RP2)

Foi criado um modelo de repasse da verba concentrando a negociação no gabinete do ministro Alexandre Padilha, que receberá as indicações de parlamentares

Governo não é obrigado a atender os parlamentares na hora de destinar a verba, mas é pressionado a liberar conforme a indicação de deputados e senadores

Não há nenhum instrumento para dar transparência a essas indicações

Lula terá R$ 100 bi para gastar livremente e atender aliados, incluindo espólio do orçamento secreto, recursos negociados na PEC da Transição e verba para novatos

Daniel Weterman e Felipe Frazão, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 15.03.23

Democracias precisam de escolas de governo

A Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas já é um mapa que pode ficar cada vez mais detalhado. Mas ainda depende de voluntarismo

O futuro do governo está sendo construído em escolas. No livro The Fourth Revolution, John Micklethwait e Adrian Wooldridge começam a contar a história da mudança de paradigma de governo no século 21 a partir do caso da Academia de Lideranças de Shanghai. Esse centro de formação dos futuros governantes chineses, inaugurado em 2005 por Hu Jintao, não tem objetivos tão teóricos – as academias do partido servem a esse propósito –, mas ofertam programas práticos de gestão pública. Quando um executivo assume o comando de uma estatal ou um governador de uma província é indicado, o governo central manda as novas lideranças estudarem, e se atualizarem, em Shanghai. A Academia de Lideranças de Shanghai, escrevem Micklethwait e Wooldridge, “é uma organização empenhada na dominação mundial”.

A China não é um caso isolado. Cingapura tornou-se um vale do silício de governança, atraindo lideranças de outros países para estudarem seus casos de sucesso em gestão pública. A Índia lançou, recentemente, uma plataforma de capacitação online em governo com potencial de se tornar a maior do mundo. Governos asiáticos hoje entendem que capacidade de Estado começa com capacitação de pessoas.

A liderança asiática em capacitação em governo revela questões mais profundas das democracias ocidentais. Suas instituições ainda sofrem com crise de confiança. Seus governos ainda estão atrasados em acompanhar as grandes disrupções econômicas e tecnológicas das últimas décadas. Nenhuma transformação tecnológica consegue superar uma incapacidade de transformarmos pessoas.

Em 2014, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) passou a reunir algumas dessas principais organizações, estatais ou privadas, de capacitação e desenvolvimento do serviço público em sua Rede de Escolas de Governo. Por meio da rede, instituições de diversos países podem se ajudar a superar os desafios de transformação de pessoas. Mas a rede também revela o tamanho dos desafios. Uma pesquisa feita em 2021 entre a OCDE e a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) descobriu que menos de 20% das escolas da rede ofertam programas em automação e inteligência artificial.

Os desafios também revelam a oportunidade do protagonismo do Brasil. Em 2019, enquanto as demais escolas discutiam novas versões de matrizes de competências transversais – o sistema de conhecimento, habilidades e atitudes que todos os servidores devem deter –, o Brasil ainda não tinha sequer a versão 1.

Hoje, não apenas o governo brasileiro adotou uma matriz de competências transversais, mas avançou e criou sua própria matriz de competências de liderança. A Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas, lançada em 2019, permitiu um mapeamento geral das necessidades de desenvolvimento dos diversos órgãos da administração federal.

Para satisfazer boa parte dessas necessidades, a Enap, como principal escola de governo do Brasil, desenvolveu mais de 500 cursos, incluindo doutorado profissional em gestão pública, bootcamps tecnológicos e cursos online abertos, gratuitos e acessíveis a qualquer cidadão pela plataforma Escola Virtual de Governo. Hoje, o Brasil não tem apenas a maior escola da rede da OCDE em número de alunos, mas também tornou-se uma liderança em inovação e desenvolvimento de servidores para toda a rede.

Essa inovação em desenvolvimento é necessária para que o País se antecipe ao futuro do trabalho no serviço público. Pesquisas da Enap descobriram que podemos economizar até 1 em 4 servidores que irão se aposentar até 2030. E requalificar, para funções mais inteligentes, 1 de cada 5 servidores que não devem se aposentar até 2030.

Essa revolução digital já está acontecendo. Em 2022, o Brasil saltou para a vice-liderança global do ranking de maturidade digital do Banco Mundial. E não faltam recursos. Apenas em gratificações para servidores realizarem cursos e concursos, o governo brasileiro já chegou a ultrapassar o valor de R$ 400 milhões ao ano.

O que falta é estratégia em nível do governo como um todo. A Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas já é um mapa que pode ficar cada vez mais detalhado. Mas ainda depende de voluntarismo. Faltam instrumentos para que, quando governos definem novas políticas transversais, ou novas visões de governo, as competências necessárias possam ser desenvolvidas por todo o serviço público.

O Brasil tem um grande potencial para se tornar um líder em governo inovador, mas para isso é preciso que seus programas de capacitação assumam um protagonismo na pauta de reformas administrativas. É necessário que o governo entenda que o futuro do País está sendo construído em suas escolas de governo e que é preciso tratá-las como ativo estratégico para garantir o sucesso do País no século 21. Nossas escolas poderão, assim, ser organizações empenhadas na inovação mundial.

Diogo G. R. Costa, o autor deste artigo, mestre em ciência política pela Columbia University e ex-Presidente da Escola Nacional de Administração Pública / ENAP, é CEO do Instituto Milenium. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.03.23

terça-feira, 14 de março de 2023

O Brasil voltou

Volta dos vistos responde a um anseio das elites, mas pode prejudicar os mais pobres

Brasil recebe um número baixo de turistas: em 2018, teriam entrado menos visitantes no Brasil do que no Coliseu.  Foto: Andrew Medichini/AP Photo

Os Lençóis Maranhenses estão agora concorrendo a Patrimônio Natural da Humanidade. A região é belíssima e também pobre. Em Barreirinhas, sua porta de entrada, há quatro benefícios do Bolsa Família para cada emprego. O potencial econômico do turismo não se exauriu. Mas o governo decidiu voltar a exigir vistos de visitantes dos países mais ricos.

É notório que o Brasil recebe poucos turistas. Em 2018, teriam entrado menos visitantes no Brasil do que no Coliseu. Podemos pensar em tantos lugares em que a beleza convive com pobreza, de Jijoca de Jericoacoara a Presidente Figueiredo no Amazonas. Dinheiro dos EUA, do Japão e de outros poderia ajudar essas regiões que têm poucas vocações: por um curto período os vistos deixaram de ser exigidos.

O governo tem justificativas para voltar a demandar a burocracia, e elas respondem a anseios de nossas elites. Uma é baseada no princípio da reciprocidade: se esses países exigem vistos de brasileiros, vamos exigir de volta.

Brasil recebe um número baixo de turistas: em 2018, teriam entrado menos visitantes no Brasil do que no Coliseu. 

Mas essa é uma reciprocidade formal, não efetiva. Afinal, o Brasil manda muito mais turistas do que recebe, por exemplo, dos EUA. Que tal uma política que buscasse números mais, digamos, recíprocos?

Voltaremos a cobrar vistos dos passaportes mais poderosos do mundo, que entram em boa parte do planeta. Isso sugere tanto que países emergentes não compartilham nossa avaliação sobre soberania, quanto que estamos impondo custos que a concorrência não impõe (como nossos vizinhos).

Um segundo argumento é o de que exigir vistos pode facilitar em negociações para flexibilizar as exigências de nossos viajantes. Mais do que uma revanche pelo cansativo processo para conseguir entrar nos EUA, a reciprocidade poderia trazer resultados concretos para brasileiros que vão para lá.

OK, mas quem deve ser o foco: estes, fundamentalmente uma elite, ou a população mais pobre? Há ainda outra motivação para os vistos: a recuperação de “receita consular” e poder da burocracia.

Não é o fim do mundo, mas é um case interessante de políticas públicas por esses conflitos ocultos, e também pela ausência de evidências simples para balizar as mudanças. Qual modelo de demanda é usado para justificar que turismo não será impactado? Que controles foram usados para estabelecer essa causalidade?

São várias contradições: o desprezo pelo método científico no governo que o prestigiaria, a indiferença com as oportunidades contra a pobreza por quem realça os números da fome, o insulamento diante do slogan Brazil is back.

O Brasil voltou – a exigir vistos.

Pedro Fernando Nery, o autor deste artigo, é Doutor em Economia. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 14.03.23

Brasil precisa enviar sinal claro de repúdio a Moscou, diz jornalista da Rússia

Comitiva russa inclui Nobel da Paz e chega a Brasília com demanda de posição incisiva contra a Guerra da Ucrânia

Kirill Martinov é editor-chefe do jornal Novaia Gazeta Europe, braço do veículo russo fechado por Moscou - Gints Ivuskans/ AFP

O Brasil precisa enviar sinais claros de seu posicionamento sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia após mais de um ano de conflito, afirma o jornalista russo Kirill Martinov, chefe de redação do Novaia Gazeta Europe. O jornal é o braço que restou do veículo após o fechamento determinado por Moscou na ofensiva contra a imprensa independente agravada pelo contexto bélico. Também é onde trabalhava Dmitri Muratov, que ganhou o Nobel da Paz em 2021, pouco mais de dois meses antes da invasão russa.

"Esse é o tempo que a comunidade internacional, todos os governos democráticos —como o Brasil, que é líder da América do Sul—, precisam enviar uma mensagem clara a [Vladimir] Putin: ele nunca terá nenhuma aliança se não interromper a guerra", disse Martinov à Folha, em entrevista nesta segunda (13).

Para ele, a posição política de isolamento da Rússia é mais relevante que a aplicação de sanções comerciais e, portanto, a forma como a mensagem de repúdio à guerra é entregue deve ser decidida pela diplomacia de cada país.

"[O Brasil] ainda não [deixou clara sua posição]. Eu acredito que é tempo de discutir este ponto. Foi dado um importante passo pelo presidente Lula ao aceitar o convite de [Volodimir] Zelenski para conversar. Eu acho que depois que ele olhar com seus próprios olhos, ele entenderá que há dois lados do conflito: a vítima e o agressor."

A posição de Martinov é compartilhada por Pavel Andreiev, ativista de direitos humanos e membro do Conselho de Administração da ONG Memorial —vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2022.

"Por um lado, eu entendo a posição [do Brasil] de definir estrategicamente sua diplomacia, mas, após um ano de guerra, nós não vimos nenhuma decisão do Brasil", disse. "Todo o mundo deveria dizer que é inaceitável, terrível, e que precisa se encerrar o mais rápido possível o conflito. Só Putin consegue encerrar a guerra de uma vez por todas. É uma decisão dele."

Os dois russos integram uma comitiva, organizada pela União Europeia, que realiza uma série de viagens por países da América do Sul para discutir a Guerra da Ucrânia. Os objetivos incluem entender como ocorreu o processo de redemocratização nos países da América do Sul após os regimes militares, para compartilhar experiências.

A Guerra da Ucrânia em 2022

No Brasil, o grupo deve se encontrar com integrantes do MPF (Ministério Público Federal) e com o ministro André Mendonça, do STF (Supremo Tribunal Federal). Todas as reuniões têm sido moderadas pelo jornalista russo Konstantin Eggert. Assim como Martinov, Eggert deixou o país devido aos constantes ataques a jornalistas e aos fechamentos de jornais desde o início do governo Putin.

"O principal inimigo dos autocratas é o tempo. Eventualmente, as pessoas começam a ficar cansadas, e esse é o momento em que Putin sofrerá danos", afirma.

Pavel Andreiev, da ONG Memorial, vencedora do Nobel da Paz em 2022, durante evento no Parlamento do Uruguai - 6.mar.23/Departamento de Fotografia do Parlamento do Uruguai

Na visão dos visitantes russos, diferentemente da experiência brasileira com as notícias falsas, o embate promovido na Rússia é para a ampliação do uso das mídias sociais. No país, a população é proibida de usar Facebook, Twitter e Instagram. Organizações não governamentais, porém, avaliam que até 5% dos russos usam softwares para driblar a censura de Putin e acessar as plataformas.

"Houve uma queda no acesso ao Instagram: no início do ano passado, o Instagram tinha cerca de 30 milhões de acessos por semana. Agora, eles têm somente 5 milhões —equivalente a 3% ou 5% da população da Rússia", diz Andreiev.

Para Martinov, é por meio desse mecanismo que a mídia independente na Rússia continua a reproduzir seus conteúdos —por menor que seja o alcance. O desafio atual é manter o interesse das pessoas em acompanhar o noticiário sobre a guerra e a violação aos direitos humanos após um ano de más notícias.

Manifestações a favor da Ucrânia no mundo

"Neste momento, nós estamos lutando não somente contra esse problema técnico [de acesso às reportagens], mas também contra o problema cultural. O desafio é fazer as pessoas terem interesse no que nós estamos fazendo", conta.

A repressão do governo russo contra os veículos de comunicação aumentou desde o início do conflito na Ucrânia. A Rússia, por exemplo, determinou que é crime chamar o que acontece no Leste Europeu de "guerra" —a expressão usada pelo governo de Putin é "operação militar especial".

"O último ano foi muito duro para todos na Rússia. Pessoas que lutam pelos direitos humanos viram com a guerra que seus sonhos foram destruídos. Isso desanima", alega Muratov, com a ressalva de que o Nobel da Paz dado à ONG Memorial foi importante para "motivar os ativistas a seguirem no trabalho pela paz e pelos direitos humanos".

"A estratégia da propaganda russa é tentar mostrar que o mundo inteiro está contra nós, que todos odeiam a Rússia. Essa é a narrativa deles. Por isso, é tão importante mostrar internacionalmente que os russos ainda acreditam no futuro da democracia de nosso país. Isso quebra a narrativa deles", afirma.

Cézar Feitoza, de Brasília - DF, para a Folha de S. Paulo, em 13.03.23

Dez anos com Francisco, o primeiro papa realmente global

Escolha do argentino Jorge Bergoglio como líder da Igreja, em 13/03/2013, foi uma guinada para o catolicismo mundial. Entre profecia e dúvida cautelosa, ele abre novos caminhos – mas também desperta resistência.

"Vocês sabem, era tarefa do conclave dar um bispo a Roma. Parece, meus irmãos, que os cardeais foram até quase o fim do mundo para trazê-lo..."

Apenas poucos conheciam o eclesiástico que, a partir da sacada da Basílica de São Pedro, assim se dirigia ao mundo. Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, nunca chamara especialmente a atenção da mídia. Por isso, muitos dos presentes perguntaram "Jorge quem...?", quando, naquele 13 de março de 2013, seu nome foi anunciado.

Os especialistas em Vaticano, porém, sabiam imediatamente que em 2005 o argentino de então 76 anos já concorrera à sucessão do papa João Paulo 2º, mas fora preterido em favor do alemão Joseph Ratzinger, futuro Bento 16.

Dez anos mais tarde, há quem diga não saber exatamente quem é esse pontífice e que posição ele defende. Em geral, apresenta-se extremamente próximo dos fiéis, mas em outros momentos parece distante. Um fato, pelo menos, é indiscutível: o papa Francisco é diferente de todos os seus antecessores.

No Parlamento Europeu, em novembro de 2014, Francisco apelou por uma política de imigração unificada e justaFoto: Patrick Seeger/AP Images/picture alliance

Em defesa dos marginalizados

Uma novidade adicional foi ele ser o primeiro líder do catolicismo a escolher o nome "Francisco". Apesar de louvarem com frequência o italiano Francisco de Assis (1181/82-1226) e sua doutrina da pobreza radical, ninguém se decidira até então adotar esse nome de peso programático.

"O papa Francisco é um jesuíta franciscano", define o correspondente holandês no Vaticano Hendro Munstermann. "Ele tem o caráter profético de Francisco de Assis, dá valor à pobreza, a simplicidade, ao meio ambiente, ao diálogo interreligioso. Como o santo do século 13, ele quer consertar a Igreja, porque ela está quebrada."

O teólogo observa e analisa Francisco desde o início do pontificado. Diversos pequenos sinais já apontavam para pobreza e singeleza: o eclesiástico de sapatos surrados não se instalou nas residências do Palácio Apostólico, mas na casa de hóspedes do Vaticano. Repetidamente, ele coloca no centro de suas atenções os indivíduos marginalizados pela sociedade: refugiados, migrantes. Quando viaja, é num pequeno automóvel de marca italiana.

Grandes palavras são o outro lado da moeda desses pequenos gestos. Com a enclícica Laudato si' (Louvado sejas), dedicada ao meio ambiente, ele ocupou as manchetes mundiais em 2015, ao exortar um cuidado maior com a divina criação. Ao mesmo tempo, tratou-se de uma sutil tentativa de influenciar a Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas, realizada em novembro-dezembro do mesmo ano, em Paris.

Apesar de mobilidade reduzida, pontífice permanece ativoFoto: Nathan Denette/The Canadian Press/AP/dpa/picture alliance

Muitas das 40 viagens de Francisco ao exterior o levaram até as margens extremas da comunidade mundial ou das respectivas sociedades nacionais. Quanto mais perdura seu papado, mais severas se tornam suas críticas aos países industrializados e, em especial, aos europeus.

Esse fato pode ser interpretado como uma reviravolta, se não geopolítica, pelo menos da geopolítica eclesiástica: Bergoglio não é europeu, e isso numa Igreja Católica tradicionalmente de cunho europeu e de ideologia eurocêntrica.

"Está claro que Francisco é o primeiro papa realmente global, um papa não ocidental que libertou a religião das ideias de uma classe média moralista burguesa que ainda definiam o que é catolicismo", analisa o historiador eclesiástico Massimo Faggioli.

Em busca da sinodalidade

Será que o catolicismo está se despedindo da Europa? A ideia se impõe, ao examinar as estatísticas: segundo as mais recentes, divulgadas no princípio de março, 1,378 bilhão professam a fé católica.

A cada ano, cresce a participação da África e da Ásia na cifra global, enquanto na Europa ela está estagnada. A tendência entre os eclesiásticos e membros de ordens é semelhante. Além disso, as diversas variedades da fé se distanciam entre si: a Igreja Católica universal aparentemente se tornou uma multiplicidade de Igrejas católicas.

Quando o papa argentino assumiu, escândalos de abuso sexual abalavam a Igreja em regiões totalmente diversas. Pelo menos é o que se acreditava na época: hoje, a questão da violência sexual perpetrada por homens da Igreja é, de fato, um tema global, e Francisco encara essa situação dramática de modo mais incisivo do que seus antecessores.

Abuso sexual nas Igrejas cristãs é um problema de longa dataFoto: Piotr Lapinski/NurPhoto/picture alliance

Para alguns membros do Vaticano, ele vai longe demais, ao atacar o problema na essência, prescrevendo à Igreja uma reflexão sobre si mesma. E para esse fim, aposta em muito mais diálogo, mais intercâmbio de ideias e mais tolerância a opiniões contrárias do que estão acostumados os fiéis, após tantos anos de liderança autoritária a partir da Santa Sé.

Na linguagem eclesiástica, o termo para essa consciência dialógica é sinodalidade: ele significa, aproximadamente, que a Igreja caminha em conjunto e em intercâmbio recíproco. Com os antecessores, os sínodos episcopais no Vaticano eram eventos de autoafirmação pré-fabricados; Francisco deseja debates abertos e mesmo polêmicos.

O que não significa que os impulsos sempre resultem em mudanças concretas. O historiador Faggioli exemplifica: "O que vai ser do papel das mulheres na Igreja, no diaconato, mas também nos cargos eclesiásticos em geral?" A questão também se coloca em relação a novas reformas teológicas e estruturais, sobretudo no que diz respeito à liderança da Igreja.

Papa recebeu bispos do Brasil no Vaticano em 20/10/2022Foto: Vatican Media/Catholic Press Photo/IPApicture alliance

Mistura de profecia e dúvida que intranquiliza os fiéis

O teólogo Munsterman enfatiza que "o profético e cautelosamente duvidoso se combinam no papa Francisco". Desse modo, porém, ele intranquiliza a todos, "os que querem mudanças (e têm esperanças de decisões rápidas), e os que, pelo contrário, querem deixar tudo como era; ou, quem sabe, até mesmo voltar aos bons velhos tempos da Baviera de Bento 16".

Francisco já é um dos papas mais idosos da história do catolicismo, mais do que Bento 16 (2005-2013) quando renunciou, ou do que João Paulo 2º (1978-2005) ao morrer. Agora, muitas vezes ele se locomove de cadeira de rodas, durante as viagens seu programa é mais restrito. Porém é certo que a Igreja Católica e o pontificado atuais não são mais os mesmos que em 2013.

O líder "pensa em termos de processos", afirma Munstermann: seu discurso profético coloca trajetórias em andamento e tem a intenção de desafiar. Ao mesmo tempo, o pontífice da ordem jesuíta pretende guiar espiritualmente esses processos.

Para Faggioli, o maior problema é "o resultado aberto, ainda incerto" do caminho em direção à sinodalidade: "Esta é a maior aposta." E para o significado de longo termo do papa Francisco, "os próximos dois anos serão decisivos".

Christoph Strack para Deutsche Welle Brasil. Publicado originalmente em 13.03.23

segunda-feira, 13 de março de 2023

A irritação da cúpula das Forças Armadas com o escândalo das joias do casal Bolsonaro

Integrantes da cúpula das Forças Armadas não escondem sua irritação com o caso das joias da Arábia Saudita que tinham como destino o casal Bolsonaro, mas que foram apreendidas pela Receita Federal.

Bolsonaro e as joias apreendidas pela Receita Federal (Foto do Arquivo)

A principal preocupação é referente ao número de militares envolvidos diretamente no escândalo e as possíveis consequências que as investigações podem ter para a imagem das Forças.

Só nos fatos centrais, de trazer as joias de R$ 16,5 milhões sem declarará-las ao Fisco e tentar reaver as peças de diamantes, há quatro militares envolvidos diretamente no caso: o almirante de esquadra da Marinha e ex-ministro Bento Albuquerque, o primeiro-tenente da Marinha e ex-assessor de Bento, Marcos Soeiro, o tenente-coronel do Exército e ex-ajudante de ordem de Jair Bolsonaro, Mauro Cid, e o primeiro-sargento da Marinha, Jairo Moreira da Silva.

Além disso, eles apontam o desgaste com a exposição do uso de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) na tentativa de Jair Bolsonaro de reaver as joias, assim como o transporte de fuzil e pistola nas aeronaves militares durante o governo passado.

A avaliação de integrantes da cúpula das Forças é que o escândalo envolvendo diretamente quatro militares traz prejuízos diretos à imagem da corporação, que já foi afetada pela atuação partidária de alguns de seus membros. Para eles, a situação pode se agravar ainda com o desdobramento das investigações da Polícia Federal que apura crimes como descaminho e advocacia administrativa, entre outros.

Por isso, a ordem direta dada aos militares que protagonizam o escândalo é que mantenham silêncio e evitem qualquer manifestação pública sobre o tema. O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, foi alvo de queixas do comando do Exército, por ter falado publicamente sobre o caso.

Segundo aliados de Cid, ele tentou justificar que buscava “se defender” ao falar com jornalistas sobre o tema, mas a orientação para que ele submerja foi expressa. Nesta semana, a tensão segue alta na caserna sobre as consequências que depoimentos à PF podem trazer à imagem das Forças.

Bela Megale, a autora deste artigo, é repórter d'O Globo, especializada em investigações criminais, bastidores do poder e a vida política de Brasília. Publicado originalmente em 13.03.23

A ideologia petista

Já é hora de o governo do PT revisar suas posições, sob pena de produzir intolerância, instabilidade institucional, insegurança jurídica e a radicalização política

O que seja um governo de esquerda nos novos moldes petistas, diferente, por exemplo, do primeiro governo Lula ou o do presidente Fernando Henrique, parece ser uma fonte de desorientação dos novos governantes e líderes partidários. O que mais se sobressai são palavras vagas acerca da redução da desigualdade social, o que não caracteriza algo novo, pois até os liberais compartilham dos mesmos valores.

Talvez seja mais adequado atentarmos às políticas de esquerda no mundo e seus reflexos no País. Se observamos o discurso petista atual, sobressaem-se dois aspectos que, com certa dificuldade, entram em sintonia. Ora um ganha a frente, ora o outro, com os dois grupos frequentemente se contrapondo. De um lado, o discurso tradicional, de origem marxista, anticapitalista, contra a economia de mercado e a propriedade privada; de outro, a nova narrativa identitária, centrada em questões de gênero e de costumes em geral, embora essa última não seja tampouco exclusiva da esquerda, sendo compartilhada por liberais.

No que toca ao primeiro ponto, sua expressão mais utilizada consiste na fraseologia da luta de classes, no apoio à ditadura de Ortega, na consideração da propriedade privada como uma forma de usurpação, traduzindo-se em seu desrespeito, e na percepção do mercado como uma articulação de pessoas desalmadas, como se ele não obedecesse a suas próprias regras, para além das empresas e indivíduos. Pelo menos na versão marxista, o capitalismo, em razão de seu processo intrínseco, corria para sua própria derrocada, ato inaugural do surgimento de uma sociedade socialista e comunista.

Ocorre que o capitalismo não só não se extinguiu, como propiciou novas formas de desenvolvimento econômico e social, criando o Estado de Bem-estar Social, engendrando a democracia representativa e amplas formas de liberdades, de pensamento, civis e políticas. As experiências comunistas redundaram no despotismo, na violência e no terror, com a fome atingindo amplas parcelas de suas populações, casos da Rússia e da Ucrânia – ainda unidas, naquele então, à União Soviética. A única experiência de esquerda bem-sucedida foi a da social-democracia, com o seu reconhecimento da economia de mercado, da propriedade privada, das liberdades e do Estado de Direito.

Aqui, no Brasil, a social-democracia é considerada pelos petistas como de direita, não se sabe bem por qual razão. Talvez por receio de que o seu reconhecimento equivaleria a uma mudança necessária de orientação programática e partidária. Sobraram, assim, narrativas vagas dos “ricos contra os pobres”, permeadas recentemente por ataques ao Banco Central como se fosse um centro de rentistas contra os pobres, para além da defesa do Estado enquanto instrumento de desenvolvimento econômico, inclusive com o fortalecimento de empresas estatais. Nem tal posição, no entanto, corresponderia ao pensamento marxista, mas à sua forma leninista, trotskista e stalinista. O resultado só pode ser a desorientação governamental.

No que toca ao segundo ponto, a experiência pós-queda do Muro de Berlim e de desmantelamento da União Soviética levou a esquerda mundial, atordoada, à busca de novos valores que poderiam orientar a sua ação. Sua luta passou a centrar-se nos costumes e na moral, com questões de gênero ganhando a cena. É como se os problemas sociais pudessem ser resolvidos não mais pela luta de classes, mas pela luta de gêneros em suas mais distintas figuras.

Surgem, aqui, duas facetas: uma, a da intolerância, na medida em que qualquer questionamento dessas posições leva a qualificativos depreciativos, como se a pessoa fosse portadora de alguma fobia; a outra é a de que tais transformações deveriam ser conduzidas e impostas pelo Estado, e não fruto de necessárias transformações sociais, que consideram os valores em mutação, como ocorreu com os direitos civis, a igualdade racial e a emancipação das mulheres. Quando partem da sociedade, tornam-se progressivamente consensuais, e os novos valores são por todos compartilhados. Se são meramente impostos, provocam reações dos setores conservadores, que terminam politicamente por afirmar os valores existentes.

Se o atual governo Lula, diferentemente do seu primeiro mandato, salvo no quesito de apoio à invasão de propriedades rurais, perseverar em seu espírito anticapitalista – ou, melhor, de capitalismo de compadrio – e insistir em sua concepção de Estado ancorada na irresponsabilidade fiscal e na tolerância com a inflação, só produzirá conflitos insolúveis e o enfraquecimento do mesmo Estado que diz fortalecer, prejudicando os mais pobres e os desvalidos. Se insistir numa pauta identitária, conduzida pelo Estado, e não consoante com os progressos sociais e culturais, caminhará para enfrentamentos que, no passado, já elegeram Bolsonaro.

Já é mais do que hora de o governo petista revisar suas posições, sob pena de produzir a intolerância, a instabilidade institucional, a insegurança jurídica e a radicalização política.

Denis Lerrer Rosenfield, o autot deste artigo, é Professor de Filosofia na Univrsidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS. Publicado originariamente n'O Estado de S. Paulo, em 13.03.23

domingo, 12 de março de 2023

Ministro que trouxe joias ilegalmente ao Brasil ganha R$ 34 mil de conselho da Itaipu

Bolsonarista remanescente, Bento Albuquerque deve perder cargo em breve para aliados do governo Lula; ministro Juscelino Filho assumiu presidência de fundo de pensão dos trabalhadores das empresas de telecomunicações

Bento está no centro do escândalo da entrada ilegal de joias no Brasil, revelado pelo 'Estadão' Foto: Dida Sampaio / Estadão

O governo Luiz Inácio Lula da Silva começou a abrigar aliados em cargos estratégicos de empresas públicas que rendem até R$ 40 mil extras por reuniões mensais ou bimestrais. Os assentos nos conselhos das estatais são entregues para contemplar apoiadores, garantir controle nas decisões sobre os rumos das companhias e incrementar as remunerações de ministros e executivos.

Na Itaipu Binacional, indicações de Jair Bolsonaro devem perder em breve os cargos com remunerações de R$ 34 mil para encontros bimestrais. Entre os bolsonaristas remanescentes, estão o ex-assessor especial Célio Faria Junior e os ex-ministros Bento Albuquerque e Adolfo Sachsida.

Bento está no centro do escândalo da entrada ilegal de joias no Brasil, revelado pelo Estadão. Por indicação de Bolsonaro, os ex-ministros têm mandato até maio de 2024. O regimento da empresa, porém, permite a substituição dos conselheiros a qualquer tempo. O governo Lula está preparando as substituições, segundo petistas. Os novos nomes estão sendo analisados pela Casa Civil.

Bento está no centro do escândalo da entrada ilegal de joias no Brasil, revelado pelo 'Estadão'

No ano passado, 77 empresas públicas repassaram R$ 14,6 milhões em honorários e jetons para 460 pessoas. O gasto com os extras é ainda maior porque as empresas de economia mista não seguem as mesmas regras de transparência, e os valores pagos não são revelados. Os valores devem ser repetidos até dezembro.

Primeiras mudanças

As primeiras alterações no governo Lula já foram realizadas no Conselho de Administração do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), após a renúncia, em janeiro, de seis nomeados pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). Um conselheiro do BNDES recebe R$ 8,1 mil. O valor contempla as reuniões mensais e as extraordinárias. Em 2022, foram 51 encontros, média de quatro por mês.

Entre os novos membros da equipe estão a ex-ministra de Meio Ambiente Izabella Teixeira, que atuou no segundo mandato de Lula e no governo de Dilma Rousseff (PT), e o climatologista Carlos Nobre. A entrada deles, segundo o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, visa a uma “transição ambiental” no banco.

Chefe da assessoria especial da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República e ex-assessor do gabinete da liderança do PT no Senado, Jean Keiji Uema também virou conselheiro do BNDES. Além dele, está também Robinson Barreirinhas, secretário da Receita Federal escolhido pelo ministro da Economia, Fernando Haddad. Barreirinhas chefiou a Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura de São Paulo na gestão de Haddad (2013-2016).

Para a presidência do conselho foi escolhido o economista Rafael Lucchesi, ex-secretário de Ciência e Tecnologia do governo do petista Jaques Wagner, na Bahia. Lucchesi também esteve na equipe de transição do governo Lula, no fim do ano passado.

O economista Rafael Lucchesi foi escolhido para a presidência do conselho. Ele já foi secretário de Ciência e Tecnologia de Jaques Wagner, na Bahia, e esteve na equipe de transição de Lula. Foto: Felipe Rau/Estadão

Incremento

As vagas de conselheiros das empresas costumam ser entregues a ministros e executivos provenientes da iniciativa privada para incremento salarial. Os jetons não são considerados salário e por isso não entram nos cálculos de teto salarial, equivalente à remuneração mensal de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que passará a R$ 41,6 mil a partir de abril.

O chefe da pasta das Comunicações, Juscelino Filho, assumiu a presidência do Conselho Deliberativo da Fundação Sistel de Seguridade Social, o fundo de pensão complementar dos trabalhadores das empresas de telecomunicações. Por ser uma entidade privada, a remuneração dos membros do conselho não é pública.

O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, utilizou avião da FAB e recebeu diárias pagas pelo governo para participar de leilões de cavalos de raça que chegam a valer mais de R$ 1 milhão Foto: Wilton Júnior/Estadão

Deputado licenciado do União Brasil do Maranhão e sem expertise no ramo das telecomunicações, Juscelino Filho entrou na vaga da Telebras. A empresa diz que indica “executivos de alto nível como membros representantes para compor o seu conselho deliberativo”. É praxe a Telebras indicar um nome do ministério para o conselho. Até o ano passado a pasta era representada não pelo ministro, mas pela então secretária executiva, Maria Estella Dantas.

Como revelou o Estadão, o ministro requisitou diárias e avião da FAB para ir a compromissos em São Paulo que ele julgou urgentes: participar de dois eventos sobre cavalos, de uma festa sobre cavalos e de uma inauguração de praça em homenagem a um cavalo. Após reportagem, o ministro devolveu o dinheiro das diárias e teve de se explicar ao presidente Lula.

O governo Lula ainda não alterou a composição dos principais conselhos administrativos de estatais. Empresas como Petrobras e Embraer pagam jetons superiores a R$ 40 mil. As primeiras reuniões deliberativas estão em vias de serem realizadas. São previstas novas trocas a partir de abril deste ano. Procurada, a Casa Civil não comentou.

Decisão

Em 2020, o Supremo decidiu que políticos e servidores podiam acumular os vencimentos, extrapolando o teto atual do funcionalismo. As gratificações que garantiram supersalários foram consideradas remunerações privadas. Essa situação foi questionada por uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) apresentada pelo PT e pelo PDT ainda em 1996, no governo Fernando Henrique Cardoso. Depois da gestão do tucano, entretanto, os governos petistas de Lula e Dilma e também os de Michel Temer (MDB) e Bolsonaro recorreram à prática dos jetons para turbinar os vencimentos dos aliados políticos.

No governo Bolsonaro, generais da reserva e integrantes da equipe econômica estavam entre os que extrapolaram o teto do serviço público com nomeações para os conselhos de estatais. Um dos discursos do governo anterior é que, no caso da área econômica, os vencimentos inflados permitiam a contratação de executivos da iniciativa privada com salários mais elevados.

A priori, as indicações precisam passar por análise de instâncias do governo. A Casa Civil dá a palavra final sobre a aptidão técnica e a capacidade dos indicados para ocuparem cargos nos conselhos das empresas públicas. No entanto, virou quase uma praxe a nomeação de pessoas próximas do presidente ou de ministros sem relação direta com as áreas de atuação das estatais.

Limites

Iniciativas para limitar os jetons costumam não ir adiante. Em uma rara inflexão da prática de inflar os salários, a Lei de Estatais, de 2016, proibiu que dirigentes partidários assumissem cargos de direção. A norma que estabeleceu diretrizes de governança para as estatais, entretanto, não impediu o uso dos conselhos como instrumento de garantir altos vencimentos nem como moeda de troca nas negociações do Palácio do Planalto com o Congresso.

Valores

R$ 14,6 milhões foi o valor pago em honorários e jetons por 77 empresas públicas no ano passado. O gasto com os extras é ainda maior porque as empresas de economia mista não revelam os valores pagos aos conselheiros.

460 pessoas integrantes de conselhos foram beneficiadas.

R$ 8 mil é o valor pago aos conselheiros do BNDES por cada participação em reunião mensal.

Vinícius Valfré para O Estado de S. Paulo, em 12.03.23

Política e a aprendizagem institucional nas Forças Armadas

A polarização política persiste no País e deve afetar eleições futuras. É, pois, imprescindível que as Forças Armadas solidifiquem sua identidade de instituições apolíticas

Nos últimos anos, o envolvimento das Forças Armadas com a política ocasionou episódios de flagrante ofensa aos cânones da profissão militar. Alguns desses fatos foram determinados pelo presidente Jair Bolsonaro, ao passo que outros foram iniciativas de militares envolvidos. Notórios entre os primeiros foram o engajamento das Forças Armadas na fiscalização das eleições e as demissões dos comandantes de Força em 2021. Entres os últimos, citam-se a saudação como “líder” a um político (Jair Bolsonaro) em campanha, em 2014, por jovens prestes a receber a espada de oficial na Academia Militar das Agulhas Negras; a postagem de temas políticos e de notícias inverídicas nas redes sociais por militares da ativa; e a participação de militares em manifestações com pleitos claramente ilegais. São todos casos preocupantes, notadamente aqueles que se passaram sem intervenção do comandante supremo das Forças Armadas.

Em que pese nunca ter havido unanimidade entre os militares a respeito de tais episódios, a exigência de que as Forças tenham um pensamento claro de repúdio à politização recomenda que elas aprendam a partir deles.

Organizações, ou instituições estruturadas, aprendem. Elas o fazem corriqueiramente, pela aquisição de conhecimento por seus membros. Mas existe o conhecimento coletivo, bem mais relevante. Ele é obtido, por exemplo, quando cada membro da instituição compreende que, ao desempenhar suas tarefas, deve fazê-lo de modo a contribuir para que os demais sejam o mais eficiente possível nas tarefas deles. Ou – mais bem relacionado com o presente tema – quando todos os integrantes assimilam aquilo que assegura a “identidade” da instituição, sem a qual ela não realiza seus propósitos.

Instituições aprendem por perceberem que mudanças são benéficas ou por causa de falhas que comprometem sua efetividade ou existência. Muitas vezes, tais aprendizagens requerem autocrítica e a consciência de que a instituição é mais importante que qualquer um de seus membros.

Um caso típico de aprendizagem institucional ocorreu com o Exército dos Estados Unidos da América, por ocasião da Guerra do Vietnã. Durante o conflito, políticas de pessoal levaram ao surgimento de um “carreirismo administrativo”. Capitães e tenentes iam para a guerra interessados unicamente em poupar-se e sobreviver, ou dispostos a enviar seus subordinados para missões perigosas e, à custa de seu sacrifício, obter menções para promoção. A disseminação de tal mentalidade feriu de morte o espírito de liderança dos quadros e corroeu a coesão no Exército.

A correção de rumo iniciou-se alguns anos depois da guerra, impulsionada pela publicação do livro Crisis in Command: Mismanagement in the Army, por Richard Gabriel e Paul Savage. Os autores, ambos acadêmicos e oficiais da reserva do Exército, ofereceram à sociedade uma crítica contundente da situação e sensibilizaram para a necessidade de mudança. Embora o livro tenha sido recebido com ceticismo e reticência por parte da cúpula do Exército, acabou gerando uma autocrítica responsável, indutora de transformações que recuperaram a imagem e a eficiência da instituição.

A aprendizagem das Forças Armadas pode ser conduzida pelo Ministério da Defesa. Entretanto, essa modalidade não é eficiente quando a questão é desenvolver ou fixar uma mentalidade. Exército, Marinha e Aeronáutica têm princípios, valores e cultura próprios, o que torna inconveniente a administração de tal processo pelo governo.

Por outro lado, a aprendizagem endógena, que se origina na Força e é conduzida por ela, é bastante eficiente. Ela segue métodos adequados à instituição e leva em conta suas peculiaridades e idiossincrasias, o que é essencial para o êxito. Alguns podem argumentar que, em se tratando do atual envolvimento dos militares com a política, razões corporativas e ideológicas impediriam a correção de rumos. Entretanto, tal crítica é bastante questionável, uma vez que a maior parte dos oficiais generais e significativo segmento da oficialidade já se posicionaram a favor da atitude estritamente profissional da tropa.

A academia, por meio da Sociologia, da Ciência Política e das Relações Internacionais, pode oferecer uma grande contribuição para a aprendizagem nas Forças Armadas. A polarização política e os eventos que nos últimos anos conturbaram a normalidade democrática serão, certamente, objeto de estudo nos programas de pós-graduação de universidades e institutos de alto nível. Assim, pesquisas destinadas a analisar a participação ou a influência dos militares nesses acontecimentos serão muito úteis.

A polarização política persiste no Brasil e deve afetar eleições futuras. Por conseguinte, é imprescindível que as Forças Armadas solidifiquem sua identidade de instituições apolíticas. Aliado a isso, cada militar precisa saber conciliar o direito de ter posição política própria com o requisito de ser apolítico profissionalmente. Essas são as bases da aprendizagem que se faz necessária.

Fernando Rodrigues Goulart, o autor deste artigo, General de Divisão na Reserva, é Doutor em Relações Internacionais. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.03.23

A ‘criatividade’ fiscal de Dilma deu em recessão; e a de Lula vai dar no quê?

No tripé do novo governo, o pé que balança é a economia; Lula atira contra o BC, ironiza o rigor com o dinheiro público e só fala em gastos, nada sobre receitas

O presidente Lula e o ministro Fernando Haddad, da Fazenda, durante reunião ministerial realizada em 10 de março.  Foto: Wilton Junior/Estadão

A estratégia do presidente Lula para sobreviver, primeiro, e para o sucesso, ao fim e ao cabo, passa por um tripé: popularidade, governabilidade e desenvolvimento. A coisa balança nesse último pé, lembrando que os três vão se fechando ao longo do governo e vão definir, para o bem ou para o mal, a eleição de 2026 e a história.

Na questão da popularidade, Lula tem discurso, certezas e ações firmes, anunciadas em eventos regados a emoção, que miram o apoio decisivo da base da pirâmide, que vem desde sempre e foi fundamental em 2022: miseráveis e a massa de até dois salários mínimos, que decantam para o eleitorado feminino, pretos e nordestinos.

É basicamente para eles que Lula reativa e prioriza Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, Merenda Escolar e isenção do IR e lança o Desenrola (renegociação de dívidas da baixa renda com garantia do Tesouro). Sem falar no reajuste das bolsas da Capes e do CNPq, que atinge também a classe média.

Na governabilidade, o foco está em Arthur Lira, que tem controle raramente visto do Congresso e tem lá seu preço, mas Lula não vai regatear. Conta com Lira e os governadores para impedir a CPI do golpe e aprovar onze MPs, nova âncora fiscal e reforma tributária. Ninguém ganha todas, mas Lula está bem colocado. “É mais fácil negociar com o Congresso do que com a Gleisi (Hoffmann)”, diz-se na área econômica.

O pé que balança é a economia. Não há desenvolvimento sustentável sem responsabilidade fiscal, mas Lula atira contra o BC, ironiza o rigor com o dinheiro público e só fala em gastos, nada sobre receitas. Dinheiro não nasce em árvore e a última de Lula foi animar a plateia falando da “criatividade” de Fernando Haddad e Simone Tebet, o que remete à “contabilidade criativa”, ironia de Delfim Netto para o desmanche fiscal de Dilma Rousseff, que deu em dois anos de recessão.

Estudiosos e representantes do setor produtivo e da área financeira têm um pé atrás, acham o governo sem rumo e Lula 3 mais populista e esquerdista, gastador e voluntarioso. Mas com o benefício da dúvida: será só jogo político? Lula faz populismo, Haddad cuida da economia?

A resposta virá nesta semana, com a nova âncora fiscal. O “criativo” Haddad está serelepe, convencido de que sua engenharia para equilibrar receita e gastos, reoneração e investimento social é uma beleza. Fazer mistério para depois surpreender positivamente é um bom marketing, assim como o slogan de Lula que Haddad encampou: “Pobre no Orçamento e rico no Imposto de Renda”. Justo é. Resta saber o quanto e se a conta fecha.

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é Jornalista. Comentarista de política no tele-jornal "Em Pauta" da GloboNews. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.03.23

O salvacionismo lulopetista

Dino diz que, se Lula falhar, ‘abre espaço para a emergência do golpismo’, como se houvesse o imperativo moral de apoiar o governo. Mas a oposição não é feita só de golpistas

O governo Lula da Silva escolheu o tipo de oposição que mais lhe apraz. É essa direita radical, ignorante e golpista que, há cerca de dez anos, deixou de ser uma franja no mosaico político-ideológico da sociedade brasileira para se tornar uma força política capaz de mobilizar parcela considerável dos eleitores, culminando na eleição de um inimigo declarado da Constituição de 1988 para a Presidência da República no ano em que a Carta “cidadã” completou três décadas de vigência.

Não é novidade para ninguém que tanto o presidente Lula como seus partidários cultivaram a polarização política com Jair Bolsonaro com profundo esmero, para desventura do Brasil. As razões para esse mutualismo e seus efeitos deletérios, em que pesem as muitas diferenças que há entre o petista e sua nêmesis, já foram escrutinadas muitas vezes por este jornal, nesta mesma página.

A novidade é a tentativa do governo de reavivar o discurso da polarização com a direita radical no momento em que os fatos – notadamente a derrota de Bolsonaro em sua campanha pela reeleição e o assalto às sedes dos Três Poderes no fatídico 8 de Janeiro – começam a empurrar os extremistas de volta para o nicho da irrelevância ao qual eles sempre pertenceram. Tamanhos foram os reveses sofridos pela direita radical que alguns de seus notórios representantes já começam a dar passos públicos no sentido de uma certa moderação.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, resumiu esse movimento do governo em entrevista ao Estadão, publicada no dia 25 passado. Perguntado se o Planalto temia a reorganização dos grupos extremistas a partir do retorno de Bolsonaro ao País, Dino respondeu, com razão, que “esse ethos golpista, terrorista, do vale-tudo, continua aí, em um estado de latência”. Entretanto, o seu reavivamento, disse o ministro, dependerá das respostas dadas pelo próprio governo às prementes necessidades do País. “A pergunta é: o governo Lula vai melhorar a vida do povo brasileiro? Se a resposta for sim, o golpismo tende a ser uma força declinante. Se o governo enfrentar dificuldades no resultado, aí abre espaço para a emergência do golpismo.”

O busílis está nessa formulação marota segundo a qual o golpismo será mais ou menos forte no País a depender das eventuais “dificuldades” que o governo Lula terá de “enfrentar” para levar a cabo seus planos e, assim, produzir o “resultado” que dele se espera. Subjaz nesse discurso do ministro da Justiça um imperativo quase moral de a sociedade brasileira abraçar incondicionalmente a agenda do governo Lula e do PT, nos seus termos, ou a democracia morre no País. Era só o que faltava.

As críticas que porventura a sociedade brasileira possa fazer ao governo Lula – e as quais este jornal não se furtará a fazer quando julgar que é o caso – fazem parte de qualquer democracia digna do nome. Um eventual fracasso do governo Lula não resultará no fim da democracia – convém lembrar que outros governos fracassaram e não houve ruptura. Ademais, se o governo Lula não entregar o que prometeu, será por sua inteira responsabilidade, e não em razão das críticas que receber.

Para neutralizar a retórica salvacionista do lulopetismo, no entanto, é dever cívico da direita civilizada e democrática se recompor. Se, como força política representativa, essa direita será capaz de gerar uma liderança que conquiste corações e mentes da maioria dos eleitores, o tempo vai dizer. Para a democracia liberal, no entanto, importa apenas que ela seja capaz de formular soluções responsáveis para os problemas do País e que tenha voz. Os valores da democracia devem estar constantemente presentes no debate público.

A enorme dificuldade que Lula teve para derrotar Bolsonaro no segundo turno da eleição passada autoriza a inferência de que, fosse outro o adversário do petista – um representante da direita responsável, liberal e democrática –, talvez Lula não tivesse saído vitorioso daquele pleito. O presidente decerto sabe disso, daí seu estímulo à sobrevivência política do golpismo bolsonarista como espécie de fantasma a assombrar a democracia brasileira – que só Lula, evidentemente, se julga capaz de salvaguardar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em  12.03.23

sábado, 11 de março de 2023

Brasil votou para preservar democracia e o governo deve respeitá-la

Para país não ser 'refém de um só homem' há instituições como o BC autônomo

Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central - Adriano Machado - 7.mar.23/Reuters

O presidente da República, referindo-se ao presidente do Banco Central, afirmou que "o país não pode ser refém de um único homem (...) esse cidadão, que não foi eleito para nada, acha que tem o poder de decidir as coisas".

É justamente para que o país não fique "refém de um único homem" que existem instituições como o Banco Central autônomo. Se for dada ampla liberdade ao presidente da República para tomar toda e qualquer decisão, ele transformará a sociedade em sua refém.

A estabilidade das democracias exige pesos e contrapesos de poder. Em questões sujeitas à chamada "inconsistência intertemporal", na qual benefícios presentes (juros baixos, por exemplo) podem gerar ganhos políticos ao governante ao custo de grandes perdas futuras para a sociedade (inflação alta, juros altos e baixo crescimento, por muitos anos), as democracias caminharam no sentido de entregar o poder discricionário para técnicos com menores incentivos políticos e mais focados no bem-estar e estabilidade de longo prazo.

O Judiciário, o Ministério Público, as agências reguladoras, as Forças Armadas e outras instituições públicas também são (ou deveriam ser) comandadas por técnicos especializados nas respectivas funções, que mantêm distância das urnas. O mesmo se dá com instituições semipúblicas, como os fundos de pensões de empresas estatais.

Entregar ao presidente e demais autoridades eleitas o poder decisório dessas instituições significa instituir a ditadura da maioria. Daí porque há tanta preocupação e crítica quando há indicações políticas para a direção de tais instituições. É sinal de que seus objetivos precípuos e de longo prazo ficarão subordinados aos interesses da maioria do momento.

O presidente da Petrobras afirmou que a empresa tem "uma máquina de proibir coisas" e reclamou que a companhia "tomou alguns caminhos" de forma racional e "apolítica".

E não deveria ser assim? Uma companhia listada em bolsa, que capta recursos privados, precisa tomar decisões racionais e apolíticas. A "máquina de proibir coisas" é, na verdade, um conjunto de regras de governança que visa evitar que meia dúzia de pessoas tome as decisões que quiser, da forma que quiser.

O reforço da governança da Petrobras veio justamente em resposta ao elevado nível de corrupção ali instalado, quando, a título de atingir questionáveis objetivos de políticas públicas, dilapidou-se o patrimônio da companhia.

Mais uma vez estamos diante de mecanismos que protegem a coletividade —os acionistas majoritários (os contribuintes) e os minoritários— de decisões inconsistentes e irresponsáveis, que geram ganhos políticos no curto prazo, mas muitos prejuízos em seguida.

Um diretor do BNDES propôs que a instituição emitisse o seu próprio título público, para deixar de ser "refém" de recursos orçamentários alocados ao Banco pelo Tesouro. Ora, o BNDES é uma entidade 100% estatal, cuja missão é implementar políticas públicas. Dar ao BNDES o poder de emitir título próprio é praticamente criar um Tesouro Nacional paralelo. O BNDES emitiria o quanto quisesse, emprestaria para quem quisesse, sem dar satisfação às autoridades fiscais ou prestar contas ao Congresso.

O título do BNDES concorrerá diretamente com os do Tesouro, aumentando o custo de financiamento da dívida pública, e com debêntures e certificados privados que hoje já cumprem a função de financiar a infraestrutura e outros setores, sem precisar que o governo entre para fazer isso.

A bem da democracia, o BNDES tem que ser refém da autoridade fiscal. A restrição ao seu "funding" evita dar superpoderes ao Poder Executivo do momento. Assim como a governança da Petrobras deve redobrar a vigilância, agora que a companhia distribuirá menos dividendos (que iriam para o Orçamento da União, de forma transparente) para ter mais recursos a serem alocados por seus dirigentes, sob determinação do governo de plantão, com alta discricionariedade.

Lula foi eleito por pequena margem de votos, garantida por eleitores que temiam que Bolsonaro desmontasse a democracia. Seu governo precisa respeitar as instituições, limites, pesos e contrapesos típicos da democracia.

Marcos Mendes, o autor deste artigo, é pesquisador associado do Insper e autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?' Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 10.03.23

Bolsonaristas acampam na alfândega

Apoiadores de Bolsonaro protestam pela integridade das joias

Ilustração de Débora Gonzales para a coluna de Renato Terra de 9.mar.23 - Débora Gonzales

Nas redes sociais, Carlos Bolsonaro divulgou o áudio de uma conversa com o pai.

- Hello, daddy! Tudo joia?

- Não, meu filho. Tem também uma caneta, um anel, um relógio, um par de abotoaduras e um terço.

- Daddy, o que podemos fazer pra liberar nossa parada?

- Fala pro seu irmão mandar um cabo e um soldado irem lá, porra!

O diálogo foi interpretado pela base bolsonarista como um sinal cifrado de que os verdadeiros patriotas deveriam acampar na frente da alfândega no Aeroporto Internacional de Guarulhos. "Onde já se viu isso? Se o Bolsonaro ganhou um presente foi porque mereceu. O comunismo é assim. Primeiro, o Estado se apropria das nossas joias! E depois? Amanhã podem tomar o seu apartamento! Ou pior: podem tomar a pensão das filhas dos militares", denunciou Lucrécia Maria de Pádua Figueiroa, de 78 anos. Em seguida, Figueiroa jogou um coquetel Molotov no Free Shop.

No embalo, o vendedor Diógenes Petrúcio de Souza, de 72 anos, fez uma defesa enfática do Mito. "Antigamente a gente via dinheiro na cueca ou em malas. Bolsonaro e sua família prometeram fazer diferente. E fizeram. Hoje é tudo em cheque, barras de ouro e agora são essas joias. Viva o novo Brasil!", exclamou, enquanto atirava para cima com um fuzil de ouro.

Sobre um fundo rosa há uma mão com o polegar apontando para baixo e desse polegar estão caindo vários anéis.

Com a repercussão do acampamento, a rede de solidariedade às joias do ex-presidente se ampliou e começou a tomar proporções nacionais. Em Campos de Jordão, bolsonaristas organizaram uma joiaciata. "Vamos andar pela Suíça Brasileira erguendo colares de pérolas, brincos de diamantes, pulseiras Swarovski e braceletes de ouro puro", explicou Verinha Brazil, coordenadora do Movimento dos Sem Bijuteria.

Comovido, Flávio Bolsonaro escreveu no Twitter que o pai já tinha data para voltar ao Brasil, mas depois recuou. "É que a gente se deu conta de que ele teria que passar na alfândega ao desembarcar", explicou.

Em seguida, Eduardo postou um vídeo desmascarando a farsa da alfândega. "Vejam só. Semana passada, voltando de Dubai, passei na alfândega levando uma mochila lotada de pen drives e calendários. Mas ninguém apreendeu nada! Hipócritas!", vituperou.

No final da tarde, a sociedade civil organizada se organizou para organizar uma cerimônia de premiação ao Funcionário Público Desconhecido. "Essa pessoa anônima e heroica que fez o seu dever e reteve as joias. Depois, resistiu bravamente às tentativas de intimidação. No Brasil, isso não é pouca coisa", explicaram os organizadores. O prêmio concedido foi batizado de "Troféu Joinha".

Renato Terra, o autor deste artigo, é roteirista e autor de “Diário da Dilma”. Dirigiu o documentário “Uma Noite em 67. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 09.03.23

quinta-feira, 9 de março de 2023

Comissão do Senado vai investigar escândalo das joias de Bolsonaro e Michelle

Bolsonaro almoçou na Embaixada da Arábia Saudita, no Brasil, no mesmo dia em que Bento Albuquerque recebia presentes na Arábia Saudita

Senador Omar Aziz diz que grupo vai apurar razões dos presentes dados pelo regime da Arábia Saudita e também os negócios fechados pelo governo anterior com empresas do Oriente Médio

A tentativa do governo Bolsonaro de entrar ilegalmente no País com joias milionárias presenteadas pelo regime da Arábia Saudita será investigada pela Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor (CTFC) do Senado. A informação foi dada pelo presidente da comissão CTFC, Omar Aziz (PSB-AM). O parlamentar pretende direcionar os esforços da comissão para apurar negócios que foram fechados entre empresas do Oriente Médio durante a gestão Bolsonaro.

“É papel do Senado Federal a responsabilidade de apurar qualquer desvio de conduta de servidores públicos, seja ele um ministro ou presidente”, disse Aziz ao Estadão. “Essa é uma história mal contada, em que um ministro foi o portador de uma joia valiosa, que deveria ser do povo brasileiros, mas que ele disse que iria para a primeira-dama. Temos que apurar isso.”

Joias: Bolsonaro deu ordem para que diamantes apreendidos fossem cadastrados como acervo privado

Joias de três milhões de euros que seriam entregues a Michelle Bolsonaro foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País

Joias de três milhões de euros que seriam entregues a Michelle Bolsonaro foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País Foto: DIV - Wilton Junior/Estadão

Nas redes sociais, Omar Aziz disse que vai abrir a investigação no Senado para apurar temas como a venda refinaria da Petrobras Landulpho Alves, na Bahia, para o fundo árabe Mubadala Capital. “Qualquer violação ao interesse da União, relação com a tentativa de descaminho de joias, ou qualquer ato que tenha gerado vantagens a autoridades nessa venda, será levado à Justiça para punição dos envolvidos.”

O senador afirmou que o primeiro passo da comissão será pedir documentos da Petrobras sobre a eventual avaliação de preço abaixo do valor de mercado do ativo brasileiro para os estrangeiros.

Antes de voltar ao Brasil no dia 26 de outubro de 2021 e tentar entrar no Brasil de forma ilegal com as joias dadas a Bolsonaro pelo regime saudita, o então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque e sua comitiva tiveram compromissos durante quatro dias em Riade, incluindo encontro com o príncipe Abdulaziz bin Salman Bin Abdulaziz Al-Saud, ministro de Energia da Arábia Saudita, e o príncipe Mohammed bin Salman.

Foi na despedida desta viagem, em 25 de outubro, que o regime árabe entregou os presentes milionários para Bolsonaro, quando deixava o hotel com a sua comitiva para retorno ao Brasil. Naquele mesmo momento, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro almoçava na Embaixada da Arábia Saudita, em Brasília, na residência de Ali Abdullah Bahittam. Bolsonaro estava acompanhado do filho e senador Flávio Bolsonaro, além do ex-ministro das Relações Exteriores, Carlos França e diplomatas de demais países do Oriente Médio.

Naquele encontro, um dos temas abordados foi a venda da refinaria Landulpho Alves pela Petrobras. A estatal repassou a refinaria para o Mubadala Capital, dos Emirados Árabes. A operação foi concluída em novembro com o pagamento de US$ 1,8 bilhão (R$ 10,1 bilhões à época) para a Petrobras.

As relações que o governo Jair Bolsonaro mantinha com o regime da Arábia Saudita envolveram anúncios de acordos bilionários feitos diretamente pelo então presidente Bolsonaro e Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Dois anos antes da comitiva do então ministro de Minas e Energia deixar a Arábia Saudita com pacotes de joias de diamantes avaliados em cerca de R$ 16,5 milhões, Bolsonaro esteve em Riade, capital do país árabe, para celebrar acordos comerciais que envolviam US$ 10 bilhões (R$ 51,7 bilhões no câmbio atual).

No dia 29 de outubro de 2019, Bolsonaro celebrou a assinatura de um acordo que previa o investimento bilionário no Brasil, por meio do Fundo de Investimento Público saudita (PIF), que exploraria “oportunidades em parceria com o governo brasileiro”.

O próprio Bolsonaro tratou de ir às redes sociais para anunciar a negociação. “O fundo soberano da Arábia Saudita vai investir até US$ 10 bilhões em projetos no Brasil, cerca de R$ 40 bilhões”, escreveu o então presidente, em sua conta no Twitter

O ministro da Casa Civil à época, Onyx Lorenzoni, disse que iria “organizar um conselho de cooperação entre os dois governos, com a iniciativa privada dos dois países para fazer a definição em que áreas e em que velocidade esses recursos vão ser aplicados no Brasil”. Onyx afirmou que o conselho foi, inclusive, uma sugestão das autoridades árabes, e que seria formado em três semanas.

Um dos principais alvos dos árabes eram as concessões de infraestrutura no País, dentro da área de energia e em outros setores incluídos no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que reunia os projetos estatais que seriam repassados à iniciativa privada. Esses acordos, no entanto, não chegaram a avançar, devido a dificuldades tributárias que envolviam a entrada dos recursos no Brasil

Naquela ocasião, o governo Bolsonaro afirmou que a Arábia Saudita é o principal parceiro comercial do Brasil no Oriente Médio. O volume de intercâmbio comercial havia atingido US$ 4,42 bilhões em 2018, soma que superava os fluxos de comércio bilateral do Brasil com vizinhos da América do Sul, à exceção de Argentina, Chile e Colômbia. Tratava-se, também, do maior fornecedor de petróleo do Brasil, tendo suprido 33% do total importado do produto em 2018.

A lista completa das transações discutidas envolvia, ainda uma série de acordos, como cooperação na área de ciência e tecnologia, memorando de entendimento sobre vistos de visita, memorando sobre fundo bilateral de investimentos em produtos de Defesa, acordo de cooperação administrativa em matéria Aduaneira e memorando de entendimento entre o BNDES e o fundo de investimentos Saudi Development, para projetos em financiamento em parceria.

Em junho de 2019, Bolsonaro já tinha se encontrado com o príncipe Mohammed bin Salman, durante a reunião de Cúpula do G20, em Osaka, no Japão. “Há acordos bilaterais propostos em diversas frentes de cooperação, como facilitação de investimentos, ciência e tecnologia, uso pacífico de energia nuclear, e uso do espaço exterior. Em muitas delas, a cooperação bilateral poderia se beneficiar da complementaridade entre o conhecimento técnico existente no Brasil e a ampla disponibilidade recursos da Arábia Saudita”, afirmou o governo Bolsonaro, em outubro de 2019.

Adriana Fernandes e André Borges, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 09.03.23, às 19h50

Veja o que diz a lei e quais crimes Bolsonaro pode ter cometido no caso das joias da Arábia Saudita

Especialistas listaram crimes descritos no Código Penal que podem descrever a conduta do ex-chefe do Executivo e de membros de seu governo

A Polícia Federal descobriu que o segundo pacote das joias sauditas, de paradeiro até então desconhecido, foi listado como acervo privado do ex-presidente Jair Bolsonaro. (Foto: Reprodução/TV Globo)

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tem sustentado que não houve “ilegalidade” na tentativa de entrar no País com joias de valor milionário trazidas da Arábia Saudita sem o pagamento do imposto devido. Especialistas consultados pelo Estadão ponderam que os fatos ainda precisam ser elucidados por meio de investigação, mas listaram crimes descritos no Código Penal que podem enquadrar a conduta do ex-chefe do Executivo e de membros de seu governo.

Como mostrou o Estadão, Bolsonaro atuou em diversas frentes para reaver um pacote de joias avaliado em 3 milhões de euros (cerca de R$ 16,5 milhões), presenteado pelo regime saudita e apreendido pela alfândega no aeroporto de Guarulhos. O conjunto inclui um colar e um par de brincos para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, além de um relógio, uma escultura de cavalo com as patas quebradas e um anel. O ex-presidente mobilizou dois ministérios - das Relações Exteriores e de Minas e Energia -, a Receita Federal e também atuou por conta própria para tentar recuperar os bens, sem sucesso.

Um segundo pacote de bens valiosos passou despercebido pelos servidores da alfândega e está no acervo pessoal do ex-presidente, conforme ele mesmo admitiu.

Segundo especialistas, uma eventual investigação deve buscar entender se e de que forma Bolsonaro usou a estrutura do Estado para recuperar as joias; além disso, se a intenção do ex-presidente era de fato manter os bens consigo. O criminalista André Lozano explica a importância de se elucidar a motivação do presente. “Tem de ver se a Arábia Saudita deu esses bens na qualidade de governo ou de forma particular. Se foi de forma particular, tem de ver qual a motivação, porque ninguém recebe um presente de R$ 16 milhões. Eventualmente, se tiver algum interesse escuso da Arábia Saudita para dar esses bens, pode se pensar na possibilidade de corrupção passiva. Mas tudo ainda é embrionário, são conjecturas”, diz.

Como mostrou o Estadão, os auditores da Receita ofereceram a alternativa de declarar os bens como patrimônio do Estado brasileiro, o que livraria do pagamento de imposto, mas a comitiva brasileira declinou. “Isso tudo vai lá para a primeira-dama”, disse, na ocasião, o ex-ministro Bento Albuquerque.

Lozano também aponta a possibilidade, mediante investigação, do enquadramento das condutas nos crimes de peculato (quando um cargo público é usado para tomar posse de dinheiro ou bens móveis), advocacia administrativa (quando um funcionário público usa o cargo para patrocinar interesse privado) e descaminho (o que popularmente é conhecido como “contrabando”).

Veja artigos do Código Penal que podem descrever a conduta do presidente e do ministro:

Crime: Art. 312 (peculato): Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.

Situação: Bolsonaro tentou reaver as joias, mas não indicou claramente se elas iriam para o acervo público da União. Ao ouvir essa opção no aeroporto, Bento Albuquerque declinou. Um segundo pacote de joias está no acervo pessoal do ex-presidente.

Crime: Art. 321 (advocacia administrativa): Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário.

Situação: Bento Albuquerque, Itamaraty e o ex-chefe da Receita Federal, Júlio Cesar Vieira, encaminham ofícios pedindo a liberação dos bens. Se ficar comprovado que as joias eram para o acervo privado de Bolsonaro, pode ficar configurada advocacia administrativa.

Crime: Art. 334 (descaminho): Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

Situação: Servidores do Ministério de Minas e Energia tentaram passar pela alfândega brasileira sem declarar o conteúdo dos pacotes - joias que valem milhões de reais - e, consequentemente, sem pagar o imposto devido.

Joias do primeiro pacote, o que foi apreendido na alfândega, seriam para Michelle Bolsonaro, segundo o ex-ministro Bento Albuquerque.

Joias do primeiro pacote, o que foi apreendido na alfândega, seriam para Michelle Bolsonaro, segundo o ex-ministro Bento Albuquerque. Foto: Wilton Junior/Estadão

A especialista em Direito Penal Marina Pinhão Coelho afirma Bolsonaro deveria ter documentado o recebimento das joias à União, já que estava na condição de chefe de Estado quando as recebeu. “São bens que deveriam ser devidamente declarados ao País e tutelados como patrimônio do Estado brasileiro”. No ato de apreensão, foi dada a opção de declarar que se tratava de um presente de um governo para outro, mas a comitiva liderada pelo então ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia, não aceitou. Se o fizesse, as joias seriam tratadas como propriedade do Estado brasileiro e poderiam ser liberadas.

“Os tipos penais concretos só conseguimos apontar a partir de análises mais detidas dos documentos do caso, mas pode haver crimes tributários, crimes de falsidade e crimes praticados por funcionários públicos contra o patrimônio comum do Estado”, afirmou Marina Pinhão Coelho.

A criminalista Marina Brecht afirma que a conduta do presidente também poderia se enquadrar, em tese, na lei de abuso de autoridade. O texto descreve, em seu 33º artigo, o ato de “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal”. Bolsonaro teria feito isso quando impôs a ministros e ao secretário da Receita Federal que pressionassem pela liberação das joias.

Segundo Marina, a investigação precisa desvendar se há vínculo de Bolsonaro com a tentativa de entrada ilegal com as joias. Após o caso ser revelado pelo Estadão, o ex-presidente passou a dizer que “não pediu, nem recebeu” os presentes do regime saudita. “É preciso demonstrar se existia algum tipo de conluio, plano comum entre todos eles (o ex-presidente, o ministro Bento Albuquerque e os assessores). Existem sinais que indicam esse vínculo, que vão precisar ser melhor esclarecidos durante a investigação”, afirma.

Bolsonaro diz a TV que ficou com segundo pacote de joias da Arábia Saudita

'Isso tudo vai entrar lá pra primeira-dama', disse Bento Albuquerque.

‘Isso tudo vai entrar lá pra primeira-dama’, disse ministro de Bolsonaro ao tentar liberar joias

O que diz a lei sobre presentes recebidos na condição de chefe de Estado?

O decreto nº 4.344, assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 2002 e que trata da preservação “da memória presidencial como um todo num conjunto integrado”, diz que o presidente titular de determinado item deve “preservá-lo e conservá-lo de acordo com a orientação técnica da Comissão Memória dos Presidentes da República, autorizando o acesso a eles”. O texto determina, ainda, que trocas do local de guarda do acervo devem ser comunicadas ao Departamento de Documentação Histórica do Gabinete Pessoal do Presidente da República.

O decreto, contudo, é amplo e pode deixar interpretações em aberto. A decisão mais incisiva sobre o tema veio do Tribunal de Contas da União (TCU), que determinou, em 2016, que todos os presentes recebidos “por ocasião das visitas oficiais ou viagens de Estado ao exterior, ou das visitas oficiais de chefes de Estado estrangeiros ao Brasil” devem ser incorporados ao acervo público.

O tribunal lista exceções: “Itens de natureza personalíssima (medalhas personalizadas e grã-colar) ou de consumo direto (bonés, camisetas, gravata, chinelo, perfumes, entre outros)”.

Davi Medeiros para O Estado de S. Paulo, em 09.03.23, às 10h00.