quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Justiça não é vingança

A pacificação política exige a punição dos radicais, mas também um exame de consciência de todas as forças democráticas, que precisam se desvencilhar de quaisquer ânimos retaliatórios

A democracia saiu ou não saiu fortalecida após 8 de janeiro? Com essa interrogação, que tem perpassado os corações e mentes de todos os brasileiros, a Fundação Fernando Henrique Cardoso promoveu um debate sobre o tema com Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, e a socióloga Maria Hermínia Tavares de Almeida, com mediação do cientista político Sergio Fausto.

Jobim e Maria Hermínia concordam: a democracia saiu mais forte. Mais que uma impressão, essa confiança é corroborada pelas diversas manifestações cívicas nas últimas semanas. A esmagadora maioria da população quer paz e não apoia manobras autoritárias. Este ânimo foi representado no dia seguinte àquele domingo infame, no gesto de solidariedade entre os representantes dos Três Poderes, os governadores da Federação e representantes dos municípios. Mas a própria amplitude dessa reunião mostra que a ameaça é grave. A democracia saberá se fortalecer? Eis a questão realmente desafiadora.

A resposta, em tese, já foi dada pela Constituição: o vigor da democracia depende da combinação entre a força da lei e a concertação política. Na prática, cabe a todos um profundo exame de consciência sobre suas responsabilidades. Como elas são interdependentes, não haverá paz firme e duradoura sem diálogo franco e consistente entre a sociedade e o poder público, entre civis e militares, entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário e entre a direita e a esquerda.

Há, primeiro, as responsabilidades mais evidentes. A direita e as Forças Armadas precisam se engajar em um trabalho de depuração: qualquer laivo de conivência com o golpismo é intolerável. A direita republicana precisará construir uma oposição responsável e organizar estruturas partidárias eleitoralmente competitivas e ideologicamente consistentes. As Forças Armadas precisam investigar e prestar contas à população de quem foi leniente ou cúmplice com as mobilizações antidemocráticas.

Mas as esquerdas, em especial o governo petista, o alvo maior dos vândalos, também têm um papel na pacificação política. Como disse Jobim, com conhecimento de causa de quem foi ministro da Defesa no governo Lula, houve uma “euforia injustificada” do PT na vitória eleitoral, porque ela foi estreita e não foi só do partido, mas, sobretudo, daqueles que não queriam mais Bolsonaro no poder. Mas o governo tem mostrado pouca abertura aos desconfiados, isto é, à maioria do eleitorado das Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste e das classes médias e altas, que rejeitam seu projeto desenvolvimentista.

A Justiça precisa mostrar rigor à altura da ameaça. Mas é crucial que esse rigor se volte sobre a própria forma de seus atos e os limites de suas competências. Como apontou Jobim, quando adversários políticos se transformaram em inimigos, a política começou a perder sua capacidade de administrar conflitos, e os próprios políticos levaram à Suprema Corte suas desavenças. Mas essa judicialização da política acabou levando à politização da Justiça, que passou a tomar muitas decisões que caberiam ao Legislativo ou ao Executivo.

Todos esses protagonistas têm lições a recolher da história. Da Independência à Proclamação da República e ao nascimento da Nova República, o Brasil tem um histórico de rupturas necessárias, mas conduzidas através de acomodações e compromissos pacíficos. É preciso resgatar esse patrimônio.

Isso não significa impunidade. O maior responsável pelos atentados tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro. Mas, se a sua responsabilização, e a de seus seguidores, não for realizada com o rigor do devido processo legal, segundo a verdade dos fatos, o radicalismo sairá mais forte e a democracia, mais fraca. “Temos de saber ter tolerância”, disse Jobim. “Se nós, se o governo, se os democratas, começarem a fazer uma retaliação generalizada, vamos ter radicalização, e aí Bolsonaro se fortalece.” Tolerância não é indiferença. Mas a tentação à indiferença é agora o menor dos riscos. Muito mais importante é que as forças democráticas se lembrem, e reforcem umas nas outras, a consciência de que justiça não é vingança.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.01.23

O maior inimigo do governo Lula

O presidente insiste em provocar danos com suas falas sobre economia

Foto de LulaVinícius Schmidt/Metrópoles

Bem ao contrário de seu antecessor, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tem problemas de cognição. Muitíssimo ao contrário: Lula é um homem extremamente inteligente, esperto, safo. Também muito diferentemente do outro, Lula é bem preparado para a tarefa de administrar, resolver problemas, dirimir dissensões, liderar, delegar poderes. Governar, enfim.

Há mais uma diferença imensa, abissal entre os dois – e importantíssima: Lula não é preguiçoso, indolente. De forma alguma.

Em menos de um mês, o novo governo já ostenta um rol de realizações que é absolutamente admirável, nos mais diversos campos. Só os atos revogando absurdos cometidos ao longo do desgoverno passado já são uma imensa contribuição ao Brasil e aos brasileiros – desde a volta do controle de armamentos até a anulação da portaria do general Pazuello que praticamente impedia a realização do aborto legal, nos poucos casos permitidos pela legislação.

As prontas ações dos últimos dias de socorro à população ianomâmi são exemplares, de se aplaudir com entusiasmo – ao mesmo tempo em que revelam ao mundo o descaso premeditado, intencional, do desgoverno do antecessor, com a vida dos indígenas. Diante das imagens de homens, mulheres e crianças ianomâmis que fazem lembrar os presos encontrados nos campos de concentração nazistas ao fim da Segunda Guerra, é absolutamente inevitável que a palavra “genocida” volte a ser associada ao nome do Capitão das Trevas.

No âmbito das relações internacionais, então, é impressionante o que o governo Lula já realizou. De fato, o Brasil voltou a ser um ator importante na cena mundial, após anos em que foi tornado um pária.

Pois bem.

Mas por que Lula insiste em, dia sim e outro também, falar asneiras, sandices, idiotices sobre política econômica?

Por ue raios o presidente insiste em dinamitar o duríssimo trabalho de seus auxiliares, o ministro Fernando Haddad à frente?

“Nesse país (sic) se brigou muito para ter um Banco Central independente, achando que ia melhorar o quê? Eu posso te dizer com a minha experiência, é uma bobagem achar que o presidente do Banco Central independente vai fazer mais do que fez o Banco Central quando o presidente era que indicava.”

“Por que com um banco independente a inflação está do jeito que está?”

“Você estabelecer uma meta de inflação de 3,7%, quando você faz isso, você é obrigado a arrochar mais a economia para poder atingir aqueles 3,7%. […] O que nós precisamos nesse instante é o seguinte: a economia brasileira precisa voltar a crescer.”

“Por que as mesmas pessoas que discutem com seriedade o teto de gasto não discutem a questão social do país? Por que o povo pobre não está na planilha da discussão da macroeconomia?”

“Para cumprir teto fiscal, geralmente é preciso desmontar políticas sociais e não se mexe com o mercado financeiro. Mas o dólar não aumenta ou a bolsa cai por causa das pessoas sérias, e sim dos especuladores.”

É sempre o mesmo script. Parece disco quebrado, que fica repetindo a mesma coisa sempre: Lula se sai com frases desse tipo, o dólar sobe, a Bolsa cai, os economistas, os analistas, os artigos e editoriais dos jornais criticam unanimemente, e duramente. O ministro Fernando Haddad tenta apagar o incêndio, dá entrevista em tom calmo, sereno, adequado – mas, diabo, em quem os agentes econômicos vão acreditar? No ministro ou no chefe dele?

Tem tanta coisa a ser feita. Há que serenar os ânimos depois do inédito, violento, criminoso ataque terrorista aos Três Poderes e à democracia. Dividido ao meio, o país precisa ser pacificado. E reconstruído, depois de quatro anos de destruição ampla, geral e irrestrita. Educação, saúde, meio ambiente, segurança pública, tecnologia – há que se investir em tudo, reconstruir, recomeçar.

E o presidente Lula vem falar de botar o BNDES para “ajudar o desenvolvimento dos países vizinhos”? Para concorrer com o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento? E de criar moeda comum com a Argentina e quem mais quiser?

Aaaaaah!

É como estão dizendo: sur-real. Surreal.

Sérgio Vaz , o autor deste artigo, é jornalista (ex-Estadão, estado.com.br, Agência Estado, revistas Marie Claire e Afinal, Jornal da Tarde). Edita os sites 50 Anos de Filmes e 50 Anos de Textos. Publicado no Blog do Noblat / Metropóles, em 25.01.25

Tanques ocidentais para Kyiv: uma mensagem devastadora para o Kremlin

Os Abrams e os Leopards representariam uma atualização substancial no campo de batalha para a Ucrânia e uma decisão de grande valor político e militar.

Um tanque Leopard 2 durante exercícios militares na Letônia em 2021. (Foto de Valda Kalinda - Ag. EFE)

A sorte parece lançada. Der Spiegel informou na tarde de terça-feira que o governo alemão tomou a decisão de entregar os tanques Leopard 2 à Ucrânia; Pouco antes, a mídia norte-americana indicou que o governo Joe Biden está optando por fornecer tanques Abrams a Kiev , embora o presidente ainda não tenha endossado a medida. Se essas etapas forem formalizadas, seria um desenvolvimento transcendental na guerra, não apenas no campo militar. Também na política, com uma mensagem muito dura de união ocidental e determinação para o Kremlin.

A nível militar, a entrega de tanques ocidentais modernos é de grande valor por várias razões. Em primeiro lugar, porque são mais eficazes do que os de fabrico soviético-russo que a Ucrânia tem actualmente, alguns como material próprio, outros entregues por aliados da Europa de Leste que também tinham estes modelos nos seus arsenais, e outros mais conquistados no campo de batalha às forças invasoras. Os tanques ocidentais têm maior agilidade, maior capacidade de reconhecimento geral e, portanto, movimento noturno, maior resistência da blindagem e melhor precisão de tiro.

Dentro do lote ocidental, os Leopard 2 são especialmente úteis, pois estão disponíveis em pelo menos uma dezena de países, com um conjunto de cerca de 2.000 unidades, o que facilita uma cadeia de abastecimento muito profunda, que permitiria homogeneidade operacional, uniformidade na Manutenção e logística de peças de reposição. Além disso, segundo especialistas, seu manuseio, manutenção e alimentação em termos de combustível são mais viáveis ​​que o Abrams americano.

O trunfo reside não só na melhoria que estes dispositivos representariam, mas nos problemas que, sem eles, a Ucrânia em breve enfrentaria em termos não só da destruição progressiva pelo inimigo das unidades que possui, mas também do esgotamento de peças .que servem para operar tanques soviéticos, que obviamente não estão em produção nas indústrias ocidentais.

Traduzida para o campo de batalha, esta injeção de forças sem dúvida alteraria significativamente o equilíbrio no terreno. Naturalmente, seus efeitos na batalha não podem ser previstos com precisão, mas é razoável pensar que a posição de guerra da Ucrânia seria substancialmente melhorada pela entrega de centenas de tanques ocidentais. Esta guerra tem uma componente terrestre muito forte. A artilharia desempenha um papel fundamental, mas o dinamismo no terreno e a capacidade de ação combinada que assenta em tanques é um pilar de extraordinária importância.

No segundo plano, o político, a importância não é menor. Um acordo sobre este assunto pelos aliados ocidentais da Ucrânia seria uma nova mensagem forte para o Kremlin. Seria mais um grande passo no caminho do apoio a Kyiv, que começou com o fornecimento de armas de pequeno alcance e chega agora a um dos elementos mais significativos dos arsenais ocidentais. É uma demonstração de união e compromisso.

Novamente, se os relatórios forem confirmados, a administração de Joe Biden desempenha um papel central. Berlim relutou por semanas em dar luz verde à entrega do Leopard, sentindo-se desconfortável em assumir uma posição de liderança. Washington considerou que o racional era que, nesta seção, Kyiv fosse apoiada por tanques produzidos na Alemanha. O chanceler alemão Olaf Scholz enfatizou na semana passada em Davos o conceito de aliados estarem "interconectados" como a chave para avançar. O fluxo de notícias sugere que a reviravolta nos Estados Unidos finalmente convenceu a Alemanha.

A união política do Ocidente em apoio a Kyiv é possivelmente a pior notícia para o Kremlin. A coragem e habilidade dos ucranianos seriam insuficientes sem o apoio financeiro e militar de seus parceiros. O Leopard 2 e o Abrams são uma mensagem devastadora para Moscou, a confirmação de que o Ocidente não está se dividindo nem se afrouxando, como deseja Vladimir Putin.

Andrea Rizzi, o autor deste artigo, é correspondente de assuntos globais do EL PAÍS e autor de uma coluna dedicada a questões europeias publicada aos sábados. Anteriormente, foi editor-chefe do Internacional e vice-diretor de Opinião do jornal. É licenciado em Direito (La Sapienza, Roma), mestre em Jornalismo (UAM/EL PAÍS, Madrid) e em Direito da União Europeia (IEE/ULB, Bruxelas). Publicado originalmente por EL PAÍS, em 25.01.23.

Uma agenda comum para defender as democracias ibero-americanas

As profundas transformações pelas quais passa a região exigem uma resposta das instituições que lhes permita continuar construindo o pacto social entre os cidadãos

Várias pessoas se manifestam em frente ao hotel onde acontece a cúpula da Celac, nesta terça-feira em Buenos Aires. (Foto: Juan Ignácio Roncoroni - Ag, EFE)

Há pouco mais de quatro décadas, a Ibero-América vive uma expansão de seus sistemas democráticos como nunca antes em sua história. Ao longo desses anos, trabalhamos para consolidar eleições periódicas, livres e justas: a pedra angular de um regime democrático. Além disso, entendemos que a democracia é o modo de vida de uma sociedade que aspira viver de forma coesa, por meio dos princípios de inclusão, igualdade, liberdade, paridade e universalidade. Um mecanismo de convivência social através do diálogo e debate entre diferentes pessoas, que nos permite resolver as discrepâncias que habitam nossas sociedades complexas, plurais e multiétnicas.

A mutação das democracias está implícita nessa noção, pois mudam as demandas, as dinâmicas, os fatores e os contextos em que atuamos. Vivemos uma era disruptiva que exige uma compreensão abrangente e interdisciplinar dos novos desafios e dilemas derivados das várias transições e mudanças em curso. Desde a transformação tecnológica e digital, a revolução do conhecimento, a transformação geopolítica, as mudanças derivadas da incorporação das mulheres no mercado de trabalho e na vida política e, sem dúvida, as transformações da transição ecológica.

Dadas as consequências dessas transformações, é mais necessário do que nunca resolver a falta de convergência entre fatos e valores. Devemos nos perguntar até que ponto estamos testemunhando uma realização dos valores e ideais democráticos que propusemos. E como resolvemos o conflito entre a aspiração e a real qualidade de democracia que obtemos e que percebemos . Não é uma tarefa fácil. Acima de tudo, diante da desafiadora escuridão dos fenômenos de desinformação que ameaçam nossas democracias, influenciando a opinião pública, gerando emoções polarizadas e crenças além da evidência científica que enganam ou distorcem a realidade.

Todas essas transformações têm impacto em nossas sociedades, embora não o façam igualmente em mulheres ou homens, em populações rurais ou urbanas, em populações afrodescendentes e indígenas, ou de acordo com sua formação profissional, emprego ou situação econômica. As instituições têm o dever de ouvir as demandas de uma cidadania plural e diversa, bem como articular respostas que continuem a construir o contrato social entre os cidadãos ibero-americanos.

Após a crise de 2008 e recentemente com a pandemia, ficou ainda mais evidente que precisamos refundar um pacto social para todos que garanta que nossas democracias sejam de qualidade e trabalhem para prover satisfatoriamente os bens públicos que as sociedades demandam. Por isso, hoje é fundamental dotá-los de novos conteúdos, com políticas públicas efetivas e com um nível adequado de consenso e legitimidade, enquanto construímos uma cidadania empoderada, responsável e participativa, e garantimos uma gestão governamental moderna, competente e responsável.

Assim, no atual processo de mutação de nossas democracias, enfrentamos três desafios. Em primeiro lugar, assistimos a uma opinião pública que oscila entre as expectativas e as desilusões. Após regimes autoritários duradouros, a sociedade tende a criar grandes expectativas de mudanças políticas e econômicas que, no entanto, nem sempre são alcançadas no curto ou médio prazo, gerando frustração. O risco muitas vezes reside no retorno de formas políticas que se acreditavam ultrapassadas. Diante disso, conhecemos as receitas: pedagogia continuada em valores e educação para a cidadania.

Em segundo lugar, a democracia não implica por si só uma melhoria automática das condições de vida, inclusão e equidade da população, o que é inadiável, diga-se de passagem, numa região marcada pela desigualdade social e económica. Nesta era de mudanças, os governos devem fazer ajustes sociais e econômicos, adotando políticas públicas. Evitar que esses ajustes prejudiquem os mais vulneráveis ​​e voltem a beneficiar os mais ricos, enquanto os governos assumem os custos eleitorais, sociais e políticos exigidos pelos períodos de transição e implementação de reformas. São tarefas complexas, mas necessárias. Frequentemente, como consequência desses ajustes, a percepção da democracia é prejudicada. Mais uma vez , a pedagogia é essencial.

Em terceiro lugar, a crescente fragilidade dos partidos e a polarização quanto ao tipo mais adequado de relação entre os poderes do Estado produzem a fragmentação das opções eleitorais, a endogamia política, a falta de visão nacional, estatal, regional ou global. Em suma, desencadeia-se uma situação difícil para a construção de acordos essenciais para uma consolidação democrática plural e tolerante, bem como para um bom desenvolvimento social e econômico compartilhado.

Toda essa combinação de desafios provavelmente explica por que os cidadãos da região, de qualquer orientação política, vivem um sentimento de desencanto , em meio a uma delicada situação de polarização, com aumento do populismo e do desdém.

A América Latina terá que repensar e reinventar sua democracia porque no futuro será diferente. Por um lado, o mundo vive uma transição acelerada de uma política de ideologias, classes e interesses, para outra de causas – direitos humanos, feminismo, meio ambiente, memória democrática, educação de qualidade, direitos LGBTI, direitos dos animais, princípios bioéticos. — e identidades múltiplas (etnia, língua, sexo, religião, cultura e sentido de pertença). Há muito que sabemos que os sistemas tradicionais de mediação política perderam a validade, mas a verdade é que ainda não conhecemos os riscos de outros sistemas que serão marcados por outros elementos como o uso e acesso a novas tecnologias , por exemplo.

A vocação de todos nós que trabalhamos com os países ibero-americanos, como é o caso da Organização dos Estados Ibero-americanos, é contribuir para a defesa da democracia, promovendo a tolerância e o pluralismo, a justiça e a coesão social. Somente em sociedades democráticas os cidadãos podem se desenvolver plenamente, gozando plenamente de seus direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais: nossa agenda comum.

Mariano Jabonero  Blanco, o autor deste artigo, é Secretário Geral da Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI) e a sua parceira neste trabalho, Irune Aguirrezabal, é Diretora do Programa Ibero-Americano de Direitos Humanos, Democracia e Igualdade da OEI. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em 25.01.23

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Cultura, minha causa

Era a minha causa parlamentar, aquela que definimos como principal na nossa atuação, que marca o papel que temos ao passar pela política


Sarney - trajetória marcada pelo voto popular

Por duas vezes me despedi — coisa de que não gosto — do Senado Federal: como Senador pelo Maranhão, em 14 de março de 1985; como Senador pelo Amapá, em 18 de dezembro de 2014. Da primeira vez eu me preparava para assumir a Vice-Presidência da República, acompanhando o Presidente Tancredo Neves; da segunda vez eu deixava, depois de sessenta anos, de participar da política representativa.

Aconteceu, em 1985, a tragédia que levou a vida de Tancredo. Colocou-se para mim a responsabilidade de conduzir a transição democrática, e ela foi feita, com a Assembleia Constituinte que convoquei promulgando a nova Constituição do Brasil. Para assegurar sua elaboração com total independência, estabeleci um regime de liberdades — de representação política, legalizando os partidos de esquerda, até então proibidos; de representação sindical, legalizando os sindicatos e as confederações sindicais; de imprensa, de expressão etc. Dei espaço no Estado para algumas áreas fundamentais, criando os ministérios da cultura, da reforma agrária, da ciência e tecnologia e o IBAMA.

A cultura foi a minha causa parlamentar, aquela que definimos como principal na nossa atuação, que marca o papel que temos ao passar pela vida pública. Para lembrar dois exemplos de Parlamentares que tiveram uma causa marcante para si e relevante para o País, cito Joaquim Nabuco, com a abolição, e Nelson Carneiro, com o divórcio. A minha foi a cultura, por ela lutei e a ela dei instrumentos.

Pouco depois que cheguei ao Senado, em 1972, apresentei um projeto de incentivos para a cultura. Ele não avançava. Então, como último gesto antes de renunciar para ocupar a Vice-Presidência da República, o apresentei pela quinta vez. E tive a felicidade de sancioná-lo em 1986. No Congresso deram-lhe o nome de Lei Sarney. O governo que sucedeu ao meu fechou o Ministério da Cultura e revogou a Lei de Incentivos à Cultura para, pouco depois, propor nova lei, nomeada Rouanet desde o projeto. No fundo o que se queria era esconder meu nome e meu pioneirismo.

Sem rancores, ajudei, com Fernando Henrique Cardoso, a viabilizar este projeto. Depois disso, muitas vezes, defendi a política de incentivos fiscais à cultura dos seguidos ataques de setores que a consideram um peso no Estado. Já mostrei muitas vezes que as grandes potências a incentivam e dela têm imenso retorno, sendo parte importantíssima de seus PIBs. Aqui mesmo a participação da cultura nas rendas do País é muito expressiva.

As consequências do investimento na atividade cultural são individuais, pois cada obra de arte é uma criação única que, materializada, assume vida própria e exprime a essência dos sentimentos do povo. E são coletivas, pois o caminho para um país manter sua identidade, tornar-se forte, é a cultura. Não há grande nação que não tenha uma grande cultura. Uma grande potência não pode ser uma potência militar, uma potência econômica, não pode ser uma potência política, se não for uma potência cultural.

Também me preocupei muito com a política do livro e da leitura. Propus e consegui a aprovação da Política Nacional do Livro, mas o Fundo Nacional Pró-Leitura, que também propus e foi aprovado no Senado Federal em 2011, infelizmente até hoje não virou realidade. A leitura é uma das peças-chaves, importantes, da formação dos jovens, do conhecimento dos adultos. É lendo que se abrem as portas, os horizontes da imaginação, a capacidade de compreender e a esperança de transformar o mundo.

Acredito que passei um quinto da minha vida lendo. Não tenho outro hobby, não tenho outra dedicação para encher o meu ócio, senão o prazer de ler.

É com grande satisfação que acompanho, agora, o renascimento do Ministério da Cultura. Espero que, com ele, renove-se o apoio do Estado à cultura, aos criadores de arte, nas suas diversas expressões, tanto eruditas quanto populares. É a cultura quem forja a identidade de um povo e quem o apresenta ao mundo. O Brasil valoriza, assim, a sua voz natural, o que é essencial para que exerça plenamente seu papel entre as nações.

José Sarney, o autor deste artigo, foi Presidente da República.

Vetos golpistas têm de cair

Nos vetos à Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, Bolsonaro pavimentou o 8 de janeiro

Em setembro de 2021, o Congresso aprovou a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021), que revogou a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) e alterou o Código Penal, prevendo crimes contra a democracia. Foi uma medida importante do Legislativo. Ao mesmo tempo que excluiu um diploma legal da época da ditadura que estava sendo usado pelo governo Bolsonaro para perseguir opositores, o Congresso instituiu meios para a defesa do regime democrático.

Ao sancionar a Lei 14.197/2021, o presidente Jair Bolsonaro vetou cinco dispositivos. Foram vetos em pontos importantes da lei, que reduziram a proteção da democracia, como advertimos nesta página (ver o editorial Vetos contra o Estado Democrático de Direito, 3/9/2021). Incompreensivelmente, o Congresso ainda não analisou os vetos à Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. É tarefa urgente do Legislativo, especialmente depois dos atos de 8 de janeiro, restaurar os dispositivos vetados por Bolsonaro.

Um dos vetos refere-se ao crime de comunicação enganosa em massa, relativo à disseminação de “fatos que sabe inverídicos e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”. Segundo Bolsonaro, a medida aprovada pelo Congresso inibiria o “debate de ideias” e “enfraqueceria o processo democrático”. O bolsonarismo não tem mesmo pudores, defendendo explicitamente que a difusão de informação que se sabe equivocada sobre as eleições deveria fazer parte da liberdade de expressão.

No capítulo dos crimes contra as eleições, Bolsonaro também vetou um dispositivo contra a impunidade. O Congresso autorizou que, em caso de omissão do Ministério Público, partidos políticos poderiam propor a respectiva ação penal. Bolsonaro excluiu essa possibilidade.

Em consonância com os objetivos da nova lei, o Congresso estabeleceu que os crimes contra o Estado Democrático de Direito deveriam ter pena (i) aumentada de um terço, se cometidos com violência ou grave ameaça exercidas com emprego de arma de fogo, e (ii) aumentada de um terço e cumulada com perda do cargo, se cometidos por funcionário público. Bolsonaro vetou essas disposições. Para piorar, nem sequer apresentou justificativa para o veto ao aumento de pena por uso de arma de fogo.

Bolsonaro também vetou, vejam só, o aumento de pena para o caso de crime contra o Estado Democrático de Direito cometido por militar. Alegou que, além de supostamente ferir a proporcionalidade, a previsão legislativa seria “uma tentativa de impedir as manifestações de pensamento emanadas de grupos mais conservadores”. Aqui, uma vez mais, o bolsonarismo escancara seu ideário autoritário. Em sua concepção, crimes contra o Estado Democrático de Direito não deveriam ser punidos rigorosamente porque isso significaria reduzir a liberdade de pensamento.

Nos vetos apostos por Bolsonaro em setembro de 2021, vislumbra-se um roteiro preciso para o que ocorreu nos meses seguintes e culminou nos atos de 8 de janeiro de 2023. O Congresso não pode pactuar com esse ataque à capacidade de a democracia se defender.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.01.23.

Com Tomás, Olsen e Damasceno, Lula fecha o cerco legalista nas Forças Armadas

O compromisso é com a farda, o País, a volta à normalidade. Logo, com a democracia

Novo comandante do Exército, General Tomás Miguel Ribeiro Paiva, foi escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para substituir Júlio César de Arruda. Foto: Wilton Júnior/Estadão

Conheci o então “coronel Tomás” no Haiti, em 2007, quando ele comandava o batalhão brasileiro da Minustah, a Força de Paz da ONU no país, e estava com um baita curativo na mão. No início, foi só um corte à toa, com uma folha de papel “afiada”, mas ele descia de tanques e jipes e cumprimentava a garotada local com “soquinhos”: “Oi, cara!” Daí, o pequeno machucado evoluiu para uma infecção com direito a antibiótico.

Essa história ilustra o perfil do atual general de quatro estrelas Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, que assume o Comando do Exército para “normalizar” as tropas, gravemente contaminadas, não por crianças pobres e com higiene precária do Haiti, mas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seu séquito brincando de “golpes”.

Para o general Fernando Azevedo e Silva, ex-ministro da Defesa, os generais Júlio Cesar de Arruda, que sai do Comando, e Tomás, que entra, são “grandes militares”. Arruda, porém, é “operacional” e Tomás, “estratégico”, além de “um dos oficiais mais inteligentes do Exército”. O “operacional” olha para dentro (é corporativista?). O “estratégico” olha para dentro e para fora, compreende o papel das Forças Armadas, tem noção geopolítica e coragem de resistir ao “efeito manada”.

Correm nos grupos de WhatsApp do Exército críticas a Tomás, porque o discurso dele pró-democracia, institucionalidade, alternância de poder e resultado das urnas foi na quarta-feira e a nomeação dele, no sábado. Logo, teria sido “oportunista”. É injusto, porque ele teve o tempo todo esse discurso, e sou testemunha disso.

No meio da campanha eleitoral, quando Bolsonaro era endeusado por militares e tinha boas chances de ganhar, o general já me dizia que as Forças Armadas são instituição de Estado e, ganhasse quem ganhasse, iriam reconhecer o resultado da eleição, bater continência e seguir cumprindo sua missão constitucional. Não foi “de repente”, foi “o de sempre”.

E atenção à fala dele: militar é o que “faz o que é correto, mesmo se o correto for impopular” – não junto à opinião pública, mas à caserna. Militar faz “o correto”, contrariando maiorias que creem em falsos “messias” e versões que geram desordem, indisciplina, quebra da hierarquia e insubordinação ao poder civil.

Assim, o presidente Lula fecha o cerco legalista nas três Forças, com o general Tomás no Exército, o almirante Marcos Olsen na Marinha e o brigadeiro Marcelo Damasceno na Aeronáutica, prontos a fazer “o que é correto”, inclusive investigar e punir os que atentaram contra as instituições. O compromisso é com a farda, o País, a volta à normalidade. Logo, com a democracia.

Eliane Cantanhêde - um olhar crítico no poder enos poderosos, a autora deste artigo, é comentarista de politíca no tele-jornal "Em Pauta", da Globo News. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.01.23.

Zelenski expurga funcionários de alto escalão da corrupção durante a guerra

Dez membros da Administração, incluindo homens de confiança do presidente ucraniano, acusados ​​de aceitar propina de empresários

O presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, durante uma coletiva de imprensa em Kiev na terça-feira. (Foto: AP )

A corrupção irrompe na Ucrânia enquanto o país enfrenta um ponto de virada na guerra. A primeira mudança substancial na liderança de Kyiv desde o início da invasão russa, em fevereiro passado, nada tem a ver com os reveses na frente de Donetsk ou com as difíceis negociações internacionais para obter mais armas: o motivo é outro velho conhecido dos ucranianos sociedade, corrupção política. Investigações de três meios de comunicação ucranianos forçaram o presidente, Volodímir Zelenski, a demitir 10 altos funcionários do governo e o Ministério Público por supostos casos de suborno. A substituição mais controversa é a do vice-chefe da Casa Presidencial, Kirilo Timoshenko, acusado de se beneficiar do favor de empresários que disputam contratos públicos durante a guerra.

Timoshenko apresentou sua renúncia na segunda-feira, quando já estava claro que ele seria dispensado. Seu sucessor, segundo a mídia ucraniana, será o governador de Kiev, Oleksi Kuleba. O jornal Pravda noticiou em dezembro passado que Timoshenko usa um Porsche doado por um empresário que supostamente estava tentando obter contratos com o governo. O jornalista Denis Bihus revelou em outubro passado que o político demitido também havia conseguido um veículo doado pela General Motors como ajuda humanitária.

O caso mais grave ao qual o vice-chefe do gabinete de Zelensky estaria supostamente ligado é uma possível rede de propinas na província de Dnipropetrovsk, de onde é Timoshenko, para conceder contratos de obras públicas durante a guerra a empresários com ideias semelhantes. O governador da província, Valentin Reznichenko, foi demitido após as indicações obtidas pelo Ministério Público de que teria entregado um contrato milionário para a reparação de estradas a um empresário amigo seu. Como conclui o Pravda , tanto a nomeação de Reznichenko por Zelensky em 2020 quanto seu poder atual dependiam de Timoshenko. O Pravda também descobriu que o líder demitido mora em uma mansão de um empresário próximo ao poder político em Kiev.

Em declarações recolhidas pelo canal ZN , Yaroslav Zheleniak, um dos mais destacados deputados do partido de Zelensky, Servo do Povo, assegurou que os restantes governadores destituídos —os das províncias de Sumi, Kherson e Zaporizhia— perderam os cargos devido à sua links com Timoshenko, sem especificar mais. Kuleba, por outro lado, foi substituído como governador de Kyiv, previsivelmente para ocupar o lugar de Timoshenko.

Feriados na Espanha

Na sua intervenção diária nas redes sociais, o presidente avançou na segunda-feira que haveria substituições ou demissões porque tinha sido detetado que altos responsáveis ​​tinham saído da Ucrânia em viagem de férias. Na Ucrânia, homens maiores de idade e até 65 anos não podem deixar o país porque, de acordo com a lei marcial, estão à disposição do Exército. O Pravda publicou em 20 de janeiro que o procurador-geral adjunto Oleksi Simonenko havia passado férias na Espanha em dezembro passado, e o fez viajando em um carro de luxo doado pelo empresário do tabaco Grigori Kozlovski, investigado por sonegação de impostos e contrabando de tabaco, segundo o The Jornal independente de Kiev . Simonenko também foi afastado de seu cargo.

Especialmente grave seria o caso do vice-ministro da Defesa, já exonerado, Viacheslav Shapovalov, acusado de conceder a uma holding um contrato avaliado em cerca de 360 ​​milhões de euros para o fornecimento de alimentos às Forças Armadas ucranianas. O contrato inflacionou os preços de compra dos alimentos, supostamente para beneficiar os associados de Shapovalov. Uma fonte militar vazou a informação na semana passada para o jornal digital ZN . O ministro da Defesa, Oleksi Reznikov, disse na segunda-feira que o artigo do ZN foi uma manipulação de um erro técnico e ameaçou represálias dos serviços secretos contra os vazadores do contrato.

Outro alto funcionário demitido devido a um grave escândalo de corrupção é Vasil Lozinskii, que foi vice-ministro de Desenvolvimento Comunitário e Território até sua prisão no último sábado. Lozinskii é acusado de receber propina de 400 mil dólares [367.688 euros] para conceder um contrato de compra de geradores elétricos. A ofensiva russa contra a rede elétrica ucraniana fez com que dezenas de milhares de estabelecimentos , residências e instituições precisassem de geradores a diesel.

Mark Savchuk, assessor do Escritório Nacional Anticorrupção da Ucrânia, confirma ao EL PAÍS que o papel das equipes jornalísticas de investigação "é fundamental contra a corrupção", e cita especificamente Bihus e o grupo de investigação Esquemas, da rádio americana Free Europe / Radio Liberdade. Os esquemas são um dos flagelos do poder político mais proeminentes da Ucrânia, seja qual for a sua cor. Suas investigações sobre o círculo de confiança de Zelenski têm sido uma dor de cabeça para o presidente, e seu trabalho foi decisivo na destituição do ex-governador Reznichenko.

Savchuk também destaca que foi demonstrada a independência com que o Gabinete Anticorrupção e a Procuradoria Anticorrupção atuam. Zelensky foi duramente criticado por ter adiado a eleição do procurador anticorrupção para julho passado. “Foi uma decisão que eu entendo que não poderia ser tomada quando tínhamos os russos tentando tomar Kyiv”, diz Savchuk, “mas agora que a frente se estabilizou, a população exigiu continuar a luta contra a corrupção, e o presidente sabe disso a situação pode afetar sua popularidade. Timoshenko, especificamente, era um dos membros da equipe de confiança de Zelensky desde a campanha eleitoral que o levou à presidência da Ucrânia em 2019.

Zelensky já assumiu em julho passado dois nomes importantes do poder político e judicial, o então chefe dos serviços secretos, Ivan Bajanov (amigo de infância do presidente), e a procuradora-geral, Irina Venediktova. Naquela ocasião, o terremoto político não foi causado por suspeitas de que eles lucraram irregularmente, mas por informações de que seus departamentos não conseguiram impedir a infiltração de colaboradores russos na administração ucraniana.

Zelensky chegou ao poder prometendo combater a corrupção e o poder dos oligarcas, apesar de seus laços estreitos com poderosos empresários como Rinat Akhmetov . No outono passado, a equipe de Zelensky foi criticada por vários meios de comunicação por conceder uma licença de transmissão nacional a um novo canal de televisão, We Ukraine , em tempo recorde , promovido por pessoas de confiança de Akhmetov e ex-membros da equipe presidencial.

Em 2021, o índice de percepção de corrupção da Transparência Internacional colocou a Ucrânia em 122º lugar entre 180 países estudados — a Rússia, em 136º lugar. En 2019, el año en el que Zelenski asumió la presidencia, Ucrania estaba peor registrada, en el 126. La corrupción en Ucrania es todavía un problema endémico que se detecta no solo en las altas instancias del poder, sino en los estamentos más bajos de a administração.

Em dezembro passado, em entrevista ao EL PAÍS, Paul D'Anieri, renomado especialista em Ucrânia da University of California Riverside, refutou o pedido de Zelenski para que a Ucrânia aderisse à União Europeia o mais rápido possível: “ O melhor é que a UE pedir à Ucrânia que cumpra altos padrões porque, para ser honesto, o passado foi marcado por alta corrupção e nem sempre pelas melhores práticas democráticas. Se a UE aceitar a adesão da Ucrânia como está, muitos dos problemas do país não serão resolvidos.”

Christian Segura, o autor deste artigo, escreve para o EL PAÍS desde 2014. Formado em Jornalismo e diplomado em Filosofia, exerce a profissão desde 1998. Foi correspondente do jornal Avui em Berlim e depois em Pequim. É autor de três livros de não ficção e dois romances. Em 2011 recebeu o Prémio Narrativo Josep Pla. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 24.01.23.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Democracias não morrem de ataque cardíaco

É importante estar ciente de que esse perigo existe e que a única vacina é o fortalecimento das instituições e uma cidadania vigilante

Apoiadores do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro durante o assalto à sede do Congresso do país em Brasília no domingo.(Foto de André Borges, Ag. EFE)

Mesmo as tentativas de golpe, que acabamos de ver no Brasil, estão imbuídas do espírito da época. Chamada pelas redes e toda essa gestualidade tão passível de ser vista na televisão e no ciberespaço: estetização banal —lembre-se do personagem dos chifres sentado à mesa da presidência da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos tirando selfies ou do uniforme amarelo dos brasileirosSalta do mundo virtual para o real como se fosse sua extensão natural. A consequência imediata é que, uma vez reprimida, a confusão se espalha entre seus protagonistas. Mas não éramos os mocinhos, os que iriam salvar o país? É aqui que se manifesta o seu aspecto mais pós-moderno. Cada um acredita em sua verdade tribal; a realidade objetiva desapareceu atrás de relatos interessados. Il n'y a pas hors de texte , como diria o bom e velho Derrida. Tudo consiste em contar milongas e depois infantilizar as pessoas a ponto de acreditar, como é o caso das teorias da conspiração. Tudo é fala. Se então o mundo da realidade não se adapta a ele, pior para o mundo, mesmo que se vingue mais tarde.

Se não fosse uma coisa tão grave —lembremos que na captura do Capitólio houve até várias mortes—, a reflexão anterior estaria justificada. Não, embora não sejam comparáveis ​​aos motins "modernos" anteriores, não podemos deixar de apontar os seus perigos. No entanto, acredito que não é assim, através da invasão das instituições pelas massas, que as democracias morrem. Além do mais, quase até facilitam o fortalecimento de seus anticorpos. As democracias de hoje não morrem de ataques cardíacos ou derrames, mas de câncer; não por choque, mas por uma metástase progressiva em todo o corpo político até ocorrer a falência de múltiplos órgãos. É um golpe a fogo lento, quase imperceptível, mas que está bem claro no manual populista. O primeiro objetivo é assumir o Estado, assim como o Governo. E isso pressupõe a eliminação ou patrimonialização de todo o sistema de contrapoderes, especialmente o judiciário. Colonizar instituições e instrumentalizá-las para fins partidários. A maioria, sempre circunstancial, pode assim aspirar a tornar-se permanente. Em seguida, ou paralelamente, o objetivo é desacreditar toda oposição, seja de outras forças políticas ou de meios de comunicação desfavoráveis; ignorando o pluralismo, que o povo fala "a uma só voz", aquela emitida pelo líder ou seus capangas; silenciar o dissidente.

Alguns o fazem de forma mais ou menos sutil, como na Hungria e na Polônia; outros de forma flagrante, como vimos na América Latina ou na Turquia de Erdogan , onde seus possíveis adversários eleitorais estão presos. E outros, enfim, os que não conseguem, recorrem às travessuras com que começamos. O importante é ter consciência de que esse perigo existe e que a única vacina é o fortalecimento das instituições e uma cidadania vigilante. Somos avisados.

Fernando Vallespin escreveu este artigo originalmente para o EL PAÍS. Publicado em 15.01.23.

'Lula terá que tomar cuidado, sem baixar a cabeça', diz especialista sobre troca no comando do Exército

"Não podemos cair na armadilha de achar que o general (Tomás) Paiva é um dissidente [do alto comando do Exército], que é simpático ao governo petista, que é um democrata. Eu sugeriria que a gente esperasse um tempo para ver, mas acho difícil que ele seja qualquer uma dessas três coisas."

Lula, acompanhado do comandante do Batalhão da Guarda Presidencial, durante a cerimônia de posse (Geraldo Magela / Agência Senado)

A troca no comando do Exército ordenada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com apenas 20 dias de governo pode ser um caminho para estabilizar as tensas relações com os militares, mas o petista terá que "tomar cuidado extraordinário, sem baixar a cabeça", diz o cientista social João Roberto Martins Filho, que estuda as Forças Armadas desde a década de 1980.

Ele se refere ao fato de que o bolsonarismo "calou fundo" e permanece com bastante adesão não só no Exército como na Marinha e na Aeronáutica, nos mais variados escalões.

Para o professor sênior da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é preciso cautela nas avaliações de que o novo comandante, o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, tem espírito democrático e sintonia total com Lula.

"Não podemos cair na armadilha de achar que o general Paiva é um dissidente [do alto comando do Exército], que é simpático ao governo petista, que é um democrata. Eu sugeriria que a gente esperasse um tempo para ver, mas acho difícil que ele seja qualquer uma dessas três coisas."

Novo comandante do Exército conseguirá maior distensão entre Lula e militares, diz especialista

Na semana passada, dias antes de sua nomeação, Paiva fez um discurso em que classificou de "terremoto político" as invasões de Brasília que vandalizaram a sede dos Três Poderes e pregou respeito ao resultado da última eleição presidencial.

"Quando a gente vota, tem que respeitar o resultado da urna. Não interessa. Tem que respeitar. É essa a convicção que a gente tem que ter, mesmo que a gente não goste", disse, em fala no Quartel-General Integrado (QGI), em São Paulo.

Também afirmou na ocasião que as Forças Armadas são "uma instituição de Estado. Apolítica, apartidária. Não interessa quem está no comando: a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito. Isso é ser militar. É não ter corrente."

Martins Filho disse que o general falou "exatamente aquilo que é música para o ouvido do governo atual".

Lula e o general Tomás Paiva em foto divulgada após sua nomeação como o novo comandante do Exército(Ricardo Stckert/PR)

"Mas está muito em cima do fato para tirar essas conclusões, é preciso tomar um pouco de cuidado."

O cientista social destaca que Paiva chefiava a Academia Militar das Agulhas Negras, instituição que gradua oficiais de carreira do Exército, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro lançou sua candidatura a presidente durante um evento de formatura de aspirantes em 2014.

Paiva também já foi chefe de gabinete do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército que costuma usar as redes sociais para insuflar movimentos antidemocráticos, inclusive com posts em que colocou dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral após a derrota de Bolsonaro no segundo turno.

Jogo de xadrez

No entanto, o professor sênior da UFSCar enxerga que há espaço para retomar a normalização institucional após confrontos com o general Júlio César de Arruda, o comandante do Exército demitido por Lula.

Durante a transição, no que foi interpretado como um gesto de distensão em relação às Forças Armadas para o começo de governo, Lula indicou para chefiar a Defesa José Múcio, um nome bem visto pelos militares.

O ministro Múcio então escolheu Arruda para comandar o Exército usando o critério de antiguidade.

Mas quando forças de segurança foram até o acampamento bolsonarista em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, na noite dos distúrbios do dia 8 de janeiro, o general disse ao ministro Flávio Dino (Justiça): "Você não vai prender as pessoas aqui". O relato foi dado por dois oficiais militares, de acordo com reportagem do jornal The Washington Post.

A gota d'água que culminou na saída de Arruda foi sua recusa, segundo o site Metrópoles, em exonerar de um posto sensível do Exército em Goiânia o tenente-coronel Mauro Cid — que foi ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Múcio declarou em entrevista coletiva após o anúncio da demissão de Arruda que "as relações, principalmente no comando do Exército, sofreram uma fratura no nível de confiança" e que "precisávamos estancar isso logo de início".

"Usando uma analogia com o xadrez, eu acho que o Lula avançou uma peça [com a troca no comando do Exército]", afirma Martins Filho.

"Todo mundo ficou em suspenso e com a demissão agora parece que o Lula vai normalizando as coisas. É como se ele falasse 'Eu sou o comandante [o Presidente da República é oficialmente o Comandante Supremo das Forças Armadas]: eu demito, eu nomeio'. E com certeza o alto comando [do Exército] já tinha dado sinais de que ele poderia fazer isso. Acho que o general Paiva consultou os colegas do alto comando e aceitou o cargo."

Ele diz que existe uma razoável coesão nos comandos militares desde a redemocratização e que não vê evidência de divisões internas atualmente.

Na visão de Martins Filho, também não interessa ao Exército provocar uma nova crise com Lula e a tendência, nesse primeiro momento, é de estabilizar a relação entre as duas partes.

"O 8 de janeiro unificou o governo e fortaleceu Lula. Ele teve que cuidar da questão militar precocemente e até agora tem acertado."

Shin Suzuki, originalmente, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 23.01.23.

A continência e a mentalidade militar

Felizes são os militares das democracias. A esses é dado saber a que seus concidadãos, em sua maioria, aspiram


General Tomás, novo Comandante do Exército

Desde o término das eleições, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro vêm questionando a prestação de continência pelos militares ao presidente Lula da Silva. Projetando sobre os militares da ativa as severas restrições que possuem em relação ao novo presidente, eles escolheram a continência para simbolizar submissão e comunhão de ideias entre aqueles que a prestam e seu destinatário. Entretanto, esse uso metafórico da continência é equivocado, pois ela não convém ao propósito visado. De qualquer modo, o tema é instigante e merece ser explorado.

A continência é um gesto singelo. Trata-se, segundo o regulamento militar, de um ato pelo qual os membros das Forças Armadas manifestam respeito por seus superiores, dignitários e símbolos nacionais. Define ainda o regulamento que a continência é um procedimento impessoal, ou seja, destinado à autoridade, e não à pessoa dela investida. Assim, o verdadeiro objeto do questionamento dos partidários do ex-presidente não deveria ser a continência em si, mas o que passa pela cabeça de quem a realiza. Essa abordagem procede, pois a História é cheia de exemplos de militares que prestavam garbosas continências ao mesmo tempo que conspiravam contra o chefe do Estado.

Com relação a esse assunto, os preceitos da disciplina e da ética militar são claros. Os militares se obrigam a respeitar os superiores como autoridades legalmente constituídas. Na presença do presidente da República, que é o comandante supremo das Forças Armadas, eles devem guiar-se pelo respeito funcional devido e considerá-lo pela “autoridade” que representa, mesmo que, como cidadãos, tenham restrições a sua pessoa ou atuação política. É como se o militar possuísse dois “papéis” – um profissional e outro igual ao de qualquer cidadão civil – e tivesse que representar cada um de acordo com o momento.

Lidar com essa situação é algo difícil, que requer formação apurada e entendimento claro. Mas é também uma exigência crucial. No momento em que estão exercendo suas atribuições, soldados, marinheiros e aviadores são “profissionais militares” e devem abdicar de opiniões políticas. Do mesmo modo, na presença de uma autoridade política ou tratando com ela assuntos de sua profissão, eles precisam ser apolíticos.

Várias instituições militares se esmeram em educar seus integrantes para cumprir bem a servidão de alternância de papéis. Dentre elas, eu destacaria as Forças Armadas da República Federal da Alemanha.

As Forças Armadas alemãs foram criadas em 1955, alicerçadas em dois conceitos filosóficos que visavam a moldá-las a um Estado Democrático de Direito: o militar como “cidadão em uniforme” e a “liderança interior”, ou Innere Führung. Os militares alemães se consideram cidadãos fardados, ou seja, são, antes de tudo, cidadãos. Além disso, eles têm a obrigação adicional de defender os valores e normas da Constituição de seu país. Para tanto, eles são educados, orientam-se e comportam-se segundo as premissas da Innere Führung. Os militares são estimulados a pensar criticamente; a identificar os critérios éticos, morais e legais que legitimam suas atribuições; e a tomar decisões de consciência, inclusive a decisão de obedecer. O próprio soldado, com seus pensamentos e consciência moral, torna-se assim a derradeira instância a determinar seus comportamentos e ações. Por conta disso, os cidadãos alemães reconhecem os militares como pares envergando uniformes e, sabendo-os preparados para ter entendimentos baseados nos valores e leis da Alemanha, confiam neles e os apoiam. O exemplo da Alemanha é ainda mais interessante porque, além de abranger a questão dos dois papéis, coloca em evidência o ente superior que os concilia: a Constituição alemã. A Lei Maior constitui um imperativo para o cidadão fardado, seja como militar, seja como cidadão. Desse modo, a sistemática alemã de estruturação militar e de relações civis-militares é moderna e eficiente. A despeito da história e cultura peculiares daquele país, ela deve merecer a atenção de outras Forças Armadas.

Enfim, a competência funcional do militar e sua mentalidade profissional, a qual inclui a neutralidade política no exercício de suas atribuições, são de fundamental importância para uma sólida identidade profissional e a vida normal da sociedade. O envolvimento indiscriminado e sem critério de oficiais e praças com a política tem sérias consequências, como turvar seu julgamento técnico-profissional, comprometer as relações civis-militares e, talvez o mais grave de todos, prejudicar o necessário apoio da sociedade em caso de crise ou guerra. Portanto, tal disfunção deve ser evitada a todo custo.

Em O Soldado e o Estado, Samuel Huntington sugere que o senso profissional militar tem fundamento no exercício de uma vocação elevada, a de servir à sociedade. Nesse sentido, felizes são os militares das democracias. A esses é dado saber a que seus concidadãos, em sua maioria, aspiram.

Fernando Rodrigues Goulart, o autor deste artigo, é General de Divisão na reserva e doutor em relações internacionais pela Universidade de Brasília. (UNB). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22.02.23.

O presidente exerce sua autoridade

Ao demitir o comandante do Exército por evidente insubordinação e substituí-lo por militar comprometido com a democracia, Lula reafirma a soberania do poder civil no País

General Arruda, ex- Comandante do Exército

O presidente Lula da Silva, conforme as prerrogativas previstas no artigo 84 da Constituição, que lhe confere o comando supremo das Forças Armadas, demitiu o comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, por atos de insubordinação que, nas palavras do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, provocaram uma “fratura no nível de confiança” que o presidente deve ter em seus comandantes militares.

Lula tomou a decisão correta, no momento mais que oportuno. Caso não o fizesse, o presidente abriria um perigoso flanco para a quebra da hierarquia e restaria vulnerável, antes de completar um mês de mandato, a toda sorte de chantagens por parte de militares pouco ciosos de suas obrigações estatutárias e constitucionais.

No breve período em que esteve à frente do Exército, o general Arruda impediu que a Polícia Militar de Brasília prendesse golpistas que se homiziaram num acampamento em frente ao quartel-general do Exército após a invasão das sedes dos Poderes. A inaceitável tolerância do general Arruda com o golpismo, para dizer o mínimo, ajudou a transformar os arredores da sede do Exército em um valhacouto de sediciosos.

O ex-comandante ainda opôs resistência à exoneração, do 1.º Batalhão de Ações de Comando, do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro na Presidência. Houve muitos pedidos do governo Lula para que a nomeação de Cid fosse cancelada, não só por se tratar de notório bolsonarista, mas porque sobre ele recaem suspeitas de transações obscuras com o cartão corporativo da Presidência. O Palácio do Planalto, contudo, foi olimpicamente ignorado pelo general Arruda.

Além disso, Lula nutria fundada desconfiança de que, sob o comando do general Arruda, o Exército não agiu para impedir nem para repelir a intentona de 8 de janeiro. Ou seja, não havia alternativa ao presidente que não fosse a substituição imediata do comandante da Força Terrestre. Era isso ou o derretimento de sua autoridade.

Um dos mais prementes desafios de Lula é a despolitização das Forças Armadas, o que significa impedir que saiam dos trilhos da Constituição. O poder militar se submete ao poder civil, eleito pelo povo, mas durante o governo Bolsonaro esse pilar democrático foi posto à prova por uma espécie de mutualismo antirrepublicano. Bolsonaro usou os militares para ameaçar a Nação em defesa de seus interesses, com a pretensão de fazer das Forças Armadas sua guarda pretoriana; e por alguns militares Bolsonaro foi usado em troca de poder e privilégios que em nada se coadunam com a República.

Nos últimos quatro anos, alguns integrantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica se deixaram seduzir por uma ideia de ascendência sobre os rumos do País que nenhuma das três Forças tem à luz da Constituição. Eis o buraco em que o bolsonarismo nos meteu, do qual só será possível sair tendo à frente das três Forças militares inequivocamente comprometidos com os ditames da Lei Maior.

A escolha do general Tomás Miguel Ribeiro Paiva para comandar o Exército, anunciada pelo governo, parece respeitar esse imperativo. Dez dias depois da intentona golpista em Brasília, o general Tomás, em discurso para a tropa no Comando Militar do Sudeste, declarou, com todas as letras, que o resultado da eleição presidencial deve ser acatado e que o Exército, como instituição de Estado que é, deve se manter afastado das lides políticas, próprias da vida civil.

A democracia, lembrou o general, “é o regime do povo”, com “alternância de poder”. Referindo-se aos militares, disse que “nem sempre a gente gosta” do resultado da eleição, mas “tem que respeitar” – e acrescentou: “Esse é o papel da instituição de Estado, da instituição que respeita os valores da pátria. Somos Estado”. Trata-se de uma obviedade, mas, nos dias que correm, tal declaração é um alento.

Além de convicção democrática, o general Tomás demonstra ter profundo respeito ao Exército. Sob seu comando, a instituição decerto estará menos exposta à nefasta influência de Bolsonaro, alguém que antes de tudo foi um mau militar, e continuará a servir ao País nas estritas atribuições que lhe são dadas pela Constituição.

Editorial / Por Notas & Informações, em 23.01.23

Cartão corporativo de Bolsonaro: Passeios custavam R$ 100 mil em média e reuniam 300 militares

Estadão’ e Fiquem Sabendo tiveram acesso a dois mil documentos classificados como reservados, anexados na prestação de contas do cartão corporativo

O então presidente Jair Bolsonaro em motociata no Rio de Janeiro em maio de 2021 Foto: Alan Santos/PR

Toda vez que Jair Bolsonaro decidia viajar a lazer ou passear de moto por capitais do País ele era acompanhado por até 300 militares ao custo médio de R$ 100 mil para os cofres públicos. É o que revelam as notas fiscais que descrevem gastos com cartão corporativo do ex-presidente. O Estadão teve acesso a dois mil documentos classificados como reservados, anexados na prestação de contas do cartão corporativo. Até então, apenas o somatório dos gastos com esse método de pagamento foi divulgado, sem a identificação do que foi adquirido.

Nota fiscal de compra de 534 lanches em São Paulo com cartão corporativo da Presidência no governo Bolsonaro. 

O Estadão não conseguiu contato com o ex-presidente. O ex-ministro das Comunicações Fabio Faria informou que Bolsonaro está recluso nos Estados Unidos. Durante o mandato, Bolsonaro disse ao menos 15 vezes em lives que não utilizava cartão corporativo.

As milhares de notas fiscais foram consultadas em parceria com a Fiquem Sabendo, agência de dados especializada no acesso a informações públicas. Os documentos detalham que as viagens de Bolsonaro para promoção pessoal representavam despesas volumosas, tanto com a hospedagem de cerca de 30 servidores públicos que partiam de Brasília, como com a alimentação de aproximadamente 300 pessoas que davam suporte no local de destino. Esses eventos, batizados de motociatas por Bolsonaro, tinham como único propósito promover a figura do ex-presidente sem qualquer ação pública a ser anunciada.

Gastos revelados

Presidente Bolsonaro com populares, e comendo pastel em Marechal Hermes. FOTO WILTON JUNIOR / ESTADAO

Cartão corporativo de Bolsonaro: na rua, presidente comia pastel; em casa, picanha e camarão

Notas fiscais mostram que até os medicamentos de Bolsonaro eram comprados com cartão corporativo. Medicamentos para depressão, ansiedade, problemas de pele e infecção de garganta constam nos documentos.

Interações

Bolsonaro gastou R$ 1,46 milhão em umúnico hotel e R$ 362 mil na mesma padaria

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Cartão corporativo: Bolsonaro gastou R$ 1,46 milhão num único hotel e R$ 362 mil na mesma padaria

Um passeio de moto de Bolsonaro no Rio, por exemplo, em maio de 2021, custou R$ 116 mil, contando com o suporte local de policiais militares, tropa de choque, socorristas e agentes do Exército. Em alguns deslocamentos, mais de 200 integrantes das Forças Armadas chegaram a ser empregados. Os nomes de cada um deles constam das prestações de contas.

Essa tropa explica, ao menos em parte, inclusive os gastos repetidos. Foi comum, por exemplo, a aquisição de 300 lanches a R$ 30 cada – totalizando R$ 9 mil por turno de trabalho. O kit consistia em um ou dois sanduíches de presunto e queijo, uma bebida, como suco ou refrigerante, e uma fruta. Como os funcionários chegavam a fazer mais de 9 horas de prontidão por dia, eram alimentados três vezes – café, almoço e jantar.

As padarias Tony e Thays, em São Paulo (102 compras no total de R$ 126 mil), e Santa Marta, no Rio (24 compras por R$ 364 mil) eram as preferidas para alimentar a tropa. Entre os funcionários estavam pilotos, motoristas, seguranças e integrantes do cerimonial. Geralmente as diárias tinham valores baixos – entre R$ 100 e R$ 250 – mas a quantidade de pessoas envolvidas e o tempo de estadia é que faziam disparar a conta.

Nas despesas do cartão corporativo não constam os gastos de combustível das aeronaves, custeados pela Força Área Brasileira (FAB). Mas o que é servido durante os trajetos, os chamados serviços de comissaria, como a alimentação a bordo do avião oficial, eram contratados, ficando na faixa de R$ 4 mil por viagem.

Nos registros analisados pelo Estadão, na maior parte das vezes Bolsonaro não pernoitava no local: saía de manhã de Brasília e voltava no mesmo dia. As exceções evidentes eram os períodos de férias e lazer. É o caso de uma das hospedagens em São Francisco do Sul (SC), em fevereiro de 2021. O então presidente ficou com familiares e assessores no Forte Marechal Luz, pertencente às Forças Armadas. Mas a hospedagem de quatro dias ficou em quase R$ 9 mil. Reparos em jet-skis e lanchas que ficaram avariadas durante o passeio custaram mais de R$ 5 mil. Também foi realizada a locação de serviços de antena parabólica e TV por assinatura. Durante essa viagem de quatro dias, as compras de supermercados chegaram a R$ 48 mil.

Bolsonaro costumava dizer que essas hospedagens em instalações militares tinham “custo zero” para os cofres públicos. O então secretário de Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Júnior, fez um tour pelo Forte Marechal Luz para mostrar que não tinha ar condicionado. “Hotel 5 estrelas”, ironizou. O custo para o erário é agora revelado pelas notas fiscais.

Carlos Bolsonaro

Além das viagens do próprio presidente, a equipe também era mobilizada nos deslocamentos de seus familiares. Um exemplo é uma visita que o filho Carlos Bolsonaro fez a Resende (RJ), em janeiro de 2021, e foi acompanhado por cinco pessoas, com os gastos de deslocamento, alimentação e hospedagem custeados pelo poder público. O mesmo filho era a presença mais frequente nas viagens do pai, de acordo com os registros consultados pelo Estadão.

Também quando a primeira-dama Michelle decidia fazer algo fora de Brasília, e não acompanhada pelo marido, tinha as despesas – suas e da equipe – bancadas pelo cartão corporativo. Mensagens nos processos de prestação de contas mostram que hotéis ofereciam cortesias para ela e também up grade (melhorias nas instalações).

Caixas

As notas fiscais dos cartões corporativos da Secretaria Geral da Presidência ficam armazenadas em um almoxarifado do Pavilhão de Metas, a 700 metros do Palácio do Planalto. No local, trabalham os servidores públicos que analisam os processos de prestação de contas dos gastos e, em seguida, alimentam o Portal da Transparência.

Arquivos com notas fiscais de gastos da Presidência no governo Bolsonaro Foto: Katia Brembatti

Os documentos não são digitalizados. Ficam dentro de pastas guardadas em caixas de plástico. A consulta às notas fiscais, possibilitada pela solicitação da Fiquem Sabendo via LAI, foi feita presencialmente. Um servidor foi deslocado para monitorar o trabalho de consulta. Ao longo de três dias de leitura dos documentos, foi possível analisar cerca de 20% do total arquivado.

Bolsonaro gastou R$ 40 milhões com cartão corporativo, em valores corrigidos. O valor apurado até agora é inferior ao usado por Luiz Inácio Lula da Silva nos seus dois primeiros mandatos e por Dilma Rousseff no seu primeiro mandato.

Katia Brembatti e Vinícius Valfré, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 23.01.23, às 9h32

sábado, 21 de janeiro de 2023

A rede de indícios

Jair Bolsonaro é cabeça da tentativa de golpe

Cenário de destruição no STF após a invasão de bolsonaristas - Pedro Ladeira - 13.jan.2023/Folhapress

O atentado de 8 de janeiro não existiria sem o comando político de Jair Bolsonaro.

A depredação dos palácios em Brasília, o financiamento do transporte e alimentação de golpistas acampados diante de quartéis ou a omissão de autoridades públicas, agentes policiais e militares, são parte de uma mesma cadeia.

O desafio jurídico é concatenar os acontecimentos, estabelecer a relação de causalidade entre o fato criminoso contra as instituições democráticas e a participação de Jair Bolsonaro, o cabeça do golpe.

Às vezes, a delinquência política e empresarial é camuflada. O crime organizado costuma ter vínculos ocultos de interesse e participação. Nem tudo se prova diretamente.

Para o contexto de dificuldade probatória, o Código de Processo Penal define "indício" como a "circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias". É o caso, por exemplo, do homicídio sem cadáver ou do mandante oculto.

No domingo, a Folha reconstituiu a "marcha do golpismo" e o Globo mostrou números do "legado golpista": uma ameaça de Bolsonaro a cada 23 dias, a maioria contra o Supremo. Não por acaso, o ataque ao plenário do STF é o ponto alto do teatro da destruição.

Bolsonaro depende do caos para emergir do esconderijo golpista –para impedir a posse de Lula ou, depois da posse, reverter o resultado da eleição e afastar o eleito. Quando é vitorioso, o golpista assume o poder. Tentativa é golpe que não dá certo, evento que se pune para desencorajar o delito.

Marco remoto da escalada golpista é o "acabou, porra", proferido em maio de 2020, depois de operação da PF envolvendo aliados e fake news.

É ardiloso. O presidente prega desobediência, mas finge respeito às instituições. A insubordinação é em nome da liberdade: "Estou com as armas da democracia nas mãos", resmunga o presidente alternando ataques, palavrões e falsos álibis. Atinge o ministro Alexandre de Moraes sem mencionar seu nome.

Em julho de 2021, amparado pelo então ministro da Justiça, Anderson Torres, Bolsonaro levanta suspeitas contra a urna eletrônica.

Torres, agora preso, não interrompe o jantar enquanto a malta bolsonarista tenta invadir a sede da Polícia Federal no dia da diplomação de Lula. Ele, oficiais militares e o cabeça da conspiração esperam o caos que não se concretiza. Em sua casa, tem minuta de decreto de intervenção no TSE para reverter o resultado eleitoral.

Torres é nomeado secretário de Segurança do Distrito Federal. O governador Ibaneis Rocha (afastado pelo Supremo) tenta se distanciar da cena do crime, mesmo sabendo que o golpe não aconteceria sem a sua desconfortável participação. Torres assume, desmancha o protocolo de proteção da Praça dos Três Poderes e deixa o país sorrateiramente, criando o álibi das férias na Florida, refúgio de Bolsonaro.

Em julho, tem o briefing golpista para embaixadores estrangeiros. Bolsonaro estimula a compra de armas e dissemina rebeldia nos quartéis. Para tumultuar o segundo turno, a Polícia Rodoviária Federal, hierarquicamente submetida a Torres, realiza operações para dificultar o deslocamento de eleitores.

Os indícios se acumulam. Mesmo depois de 8 de janeiro, o ex-presidente compartilha em seu perfil oficial um post que contesta o resultado da eleição.

O olhar de Bolsonaro para o quebra-quebra é silencioso, dúbio, cínico, sorridente.

 Luís Francisco Carvalho Filho, o autor deste artigo, é Advogado criminal e autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 21.01.23.

O PT não falha

Bastaram alguns dias para que os canais do Estado fossem usados para disseminar a ‘verdade’ do partido

Ao anunciar a nova diretoria da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), o site oficial do governo comunicou que “o ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom), Paulo Pimenta, indicou Rita Freire, presidente do Conselho Curador da EBC cassada após o golpe de 2016″, para um cargo de gerência da estatal.

O PT não falha. Bastaram alguns dias no poder para que o lulopetismo se assenhoreasse dos canais oficiais do Estado com o objetivo de transformá-los em porta-vozes do partido – e, por meio deles, espalhar sua “verdade oficial”. E nessa “verdade oficial” figura com destaque a versão segundo a qual o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 foi um “golpe”.

O PT tem direito de fazer a interpretação que quiser do processo constitucional que levou à cassação de Dilma por suas manobras contábeis criativas, digamos assim, com o propósito de ocultar da sociedade o real estado das finanças do País. O que o partido e seus membros com cargos no Executivo federal não podem fazer é usar canais oficiais de comunicação para impor a todos os brasileiros sua visão particular dos acontecimentos como revanche.

Um dos princípios da administração pública consagrados no artigo 37 da Constituição é o princípio da impessoalidade. Isso significa, na prática, que aos administradores públicos é vedado desempenhar suas funções privilegiando interesses privados de indivíduos ou grupos. Um partido político, naturalmente, é uma entidade privada. Portanto, a comunicação oficial do governo federal não se confunde nem remotamente com a comunicação do PT – ou de qualquer partido político –, ainda que a legenda tenha logrado ascender novamente ao Executivo federal. Triunfos eleitorais, circunstanciais por natureza, não autorizam reescrever a história.

Evidentemente, não é surpresa para ninguém essa interpretação que os petistas e seus aliados fazem do processo de cassação de Dilma. Pouco importa para o partido que, objetivamente, o impedimento da ex-presidente tenha seguido rigorosamente todos os ritos previstos na Constituição e na Lei 1.079/1950 – e sob a supervisão do então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski. Ao PT, interessa a versão, não os fatos.

O presidente Lula da Silva, contudo, já disse algumas vezes que seu terceiro mandato presidencial será o “mandato de sua vida”, e que deseja trabalhar para reunir famílias e reconciliar amigos que se afastaram por divergências políticas. Pois o presidente será tão bem-sucedido em seu desiderato auspicioso se, de fato, transformar suas intenções em gestos concretos no sentido da pacificação. Um bom começo é dissociar o interesse público dos interesses de seu partido.

Poucos hão de discordar: para poder avançar e levar o País de volta ao trilho do desenvolvimento político, econômico e social, a sociedade precisa, o quanto antes, cicatrizar as feridas abertas por ressentimentos cultivados entre os cidadãos pela polarização política extremada. Quando um canal oficial do governo chama o impeachment de Dilma de “golpe”, politiza a comunicação estatal, dissemina uma patranha e atiça a cizânia. Ou seja, nada de bom.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 21.01.23

Combate ao extremismo exige apoio mútuo de instituições

Extremismo político mostrado ao Brasil indica que vencê-lo será uma longa batalha. Ação conjunta de instituições pode fortalecer democracia e melhorar governabilidade.

(Foto de  Adriano Machado/REUTERS)

Forças de segurança disparam bombas de gás lacrimogêneo contra invasores dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. É possível ver uma bandeira do Brasil estendida no gramado e golpistas enfileirados na beirada da grama, no fundo da foto.Forças de segurança disparam bombas de gás lacrimogêneo contra invasores dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. É possível ver uma bandeira do Brasil estendida no gramado e golpistas enfileirados na beirada da grama, no fundo da foto.

Os recentes ataques aos Poderes da República brasileira representam a concretização de uma ameaça que ronda o país desde o surgimento do bolsonarismo: o uso da violência política para desestabilizar a democracia.

Não foram poucos os sinais de que esse dia poderia chegar, como de fato ocorreu no último domingo, 8 de janeiro. Ao nos depararmos com a destruição promovida pelas invasões criminosas, fomos expostos a uma realidade que vinha sendo esboçada ao longo dos últimos quatro anos, por meio de um governo que cultuou o negacionismo, a distopia, o desrespeito às instituições e às regras democráticas.

Os indícios que vinham sendo apresentados por esse fenômeno político de extrema direita, liderado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, culminaram na mais grave agressão ao Estado de direito e à democracia brasileira no pós-88.

A pacificação política do país e a responsabilização dos invasores impuseram-se como prioridades nacionais e passaram a ocupar o centro da agenda do Executivo, do Legislativo e do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas como se trata de um movimento em curso – e não um evento isolado, a desarticulação e a punição das redes de extremismo dependerão da capacidade de resposta coordenada dessas instituições.

Resposta coordenada dos Três Poderes

As primeiras medidas do recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos ataques apostaram nessa ação coordenada, evitando sinalizar qualquer apetite por poderes unilaterais.

Primeiro, recorreu ao seu poder emergencial, decretando a intervenção na segurança do Distrito Federal (DF), a partir de rápida articulação com os demais Poderes da República. Em seguida, anunciou medidas de contenção da violência de mãos dadas com o STF, Congresso e governadores de todas as unidades da Federação brasileira, incluindo aqueles que apoiaram o ex-chefe do Executivo, Jair Bolsonaro.

O presidente Lula assumiu seu mandato ciente dos desafios de governar com a sociedade dividida e polarizada, contexto no qual os resultados econômicos e sociais serão decisivos para tamponar ou aprofundar essas fendas. Mas apenas oito dias após sua posse, precisou compreender, e muito rapidamente, que os problemas resultantes dessa polarização são mais agudos e urgentes do que se supunha.

Se por um lado a gravidade dos eventos força a união das elites políticas e institucionais, por outro, ela exigirá sinais concretos do presidente sobre como superar isso juntos.

A coalizão governativa , apesar dos nove partidos integrantes e da diversidade de seus ministros, não tem a face de uma frente ampla. Isso porque não garante uma maioria parlamentar mínima, com 51% e 52% das cadeiras legislativas na Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente. É provável que a formação do governo ganhe novas rodadas e afete a agenda legislativa do Executivo. Logo, não só o Executivo, mas também o Congresso poderá sair fortalecido no atual cenário.

Desafios administrativos

Os desafios não são só legislativos, mas também administrativos. Os órgãos do poder executivo foram instrumento central na radicalização e polarização política liderada por Bolsonaro.

A aproximação de alguns deles com o bolsonarismo já mostrou seus efeitos, como na operação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) durante o segundo turno das eleições do ano passado e nas tensões entre os militares e o novo governo desde a transição presidencial.

Novas estruturas de governança

Lula enfrentará o desafio de realinhar as estruturas do Executivo, o que é razoável no início de um novo governo, mas em um ambiente polarizado em demasia e com potencial de aprofundar conflitos no interior de suas burocracias. Mais do que redesenho dessas estruturas, como já iniciado, a reversão disso requer novas estruturas de governança internas ao Executivo.

Desde a aprovação célere da PEC da Transição, o Congresso tem sinalizado disposição de cooperar com o governo, se contempladas as suas demandas. O desafio agora é forjar um alinhamento interno capaz de tornar governo e oposição democrática no eixo organizador das batalhas legislativas.

As chances de reeleição dos atuais presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado aumentam nesse cenário, dado o apelo mais forte à continuidade e à celeridade das medidas de defesa da democracia e do Estado de direito.

Esses alinhamentos e pactos podem restringir o espaço e a voz da extrema direita no Congresso, mas certamente os desfechos das investigações e dos inquéritos sobre o 8 de janeiro serão decisivos. Retraídos agora diante da violência e do rechaço popular às invasões, logo os que sobreviverem, em mandato e reputação, disputarão o espólio de Bolsonaro na condução da extrema direita.

O papel do STF

Protagonista no combate aos movimentos antidemocráticos nos anos recentes, o STF adotou fortes medidas para a investigação e responsabilização dos envolvidos nos atos, como o afastamento do governador do DF, pedidos de prisão de autoridades e detenção de mais de mil envolvidos nas invasões. A gravidade da crise elevou a fervura das pressões contra o imobilismo dos demais órgãos do sistema de Justiça. Com isso, o Supremo sai, parcialmente, da posição isolada na contenção dos movimentos antidemocráticos e extremistas – que o transformou em alvo principal de desconfiança institucional.

As vitórias contra o extremismo violento dependem não só do acionamento desses órgãos, mas do seu engajamento ostensivo na defesa do Estado de direito e da democracia. Em alguns casos, a reconstrução e o realinhamento de suas estruturas e burocracias serão cruciais, particularmente onde "simpáticos" aos movimentos extremistas podem se tornar focos de resistências ou inação deliberada.

A face do extremismo político mostrada ao Brasil no último domingo indica que vencê-lo será uma longa batalha, na sociedade e dentro das instituições. Logo, tornar essas medidas e ações iniciais dos três Poderes, adotadas logo após as invasões, em iniciativas coordenadas e de reforços mútuos é o desafio seguinte.

Se bem-sucedidas, elas podem ser potencializadoras da governabilidade e da institucionalidade democrática. Afinal, nada melhor para a democracia do que a governança efetiva e responsiva para deixar para trás quem quer desestabilizá-la.

Autoras deste artigo - Magna Inácio é doutora em ciência política, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais. É coordenadora do PexNetwork (https://pex-network.com/), grupo de pesquisa PEX (Executives, presidents and cabinet politics), vinculado ao Centro de Estudos Legislativos (CEL) da UFMG. / Alessandra Costa é mestre e doutora em Ciência Política pela UFMG, jornalista e pesquisadora do PEX (CEL-UFMG). Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, e 13.01.23. O texto reflete a opinião das autoras, não necessariamente a da DW.

Bolsonaro voltará para o Brasil?

Qual é o plano de Jair Messias Bolsonaro, ainda hospedado próximo aos parques da Disney? Será que ele está esperando um golpe no Brasil para voltar aos braços de seus seguidores como salvador da pátria?

        
Jair Bolsonaro (Foto: Sergio Lima/AFP/Getty Images)

O saguão do aeroporto estava lotado de pessoas com camisas verde e amarela e bandeiras do Brasil. Algumas até fantasiadas, e outras vestindo camisetas com a imagem de Lula preso.

Foi uma loucura quando Bolsonaro saiu da área de desembarque. Colocaram nele uma faixa presidencial (fake, claro) e o carregaram nas costas até a saída do terminal. Enquanto isso, o candidato Bolsonaro dava socos em um boneco inflável de Lula vestido de presidiário.

Presenciei essa chegada triunfal de Bolsonaro no aeroporto de Curitiba, em março de 2018. Naquela manhã, um ônibus da caravana de Lula tinha sido alvo de tiros a caminho da mesma cidade, Curitiba. Era a última caravana de Lula antes de, alguns dias depois, ser preso por corrupção e lavagem de dinheiro.

Como as coisas mudam. Agora, em janeiro de 2023, temos Lula novamente presidente, e Bolsonaro fora do país sendo investigado pelo envolvimento nos ataques aos prédios do Congresso, STF e Palácio do Planalto por parte de seus seguidores. Uma "versão brasileira da invasão do Capitólio”.

Enquanto isso, desde o dia 30 de dezembro Bolsonaro está hospedado em Orlando, na Flórida, próximo aos parques da Disney. Há registros do ex-presidente em restaurantes fast-food e supermercados. Isso é vida de um ex-presidente? E para passar férias existiriam lugares mais aconchegantes, imagino.

E aí, Bolsonaro, vai encarar?

Fica a pergunta: Bolsonaro voltará ao Brasil? Ele terá coragem de enfrentar a justiça? Em 2018, Lula não fugiu do país, mesmo sabendo que passaria um bom tempo na cadeia. No caso de Bolsonaro, há a discussão sobre uma possível perda dos direitos políticos, ou seja, ficar inelegível por oito anos. E aí, Bolsonaro, vai encarar?

Imagino que ele queira uma volta ao Brasil de forma triunfal, com milhares de seguidores esperando por ele num aeroporto brasileiro, assim como na campanha de 2018. E outra vez sendo carregado pelo povo, aclamado como salvador do Brasil.

Para isso, primeiro teria que acontecer um golpe para tirar o governo legítimo de Lula do poder. Ainda há inquéritos em andamento, mas os acontecimentos do dia 8 de janeiro em Brasília me parecem uma tentativa de golpe. Bastaria Lula assinar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para os militares assumirem. Mas Lula sacou isso.

O petista sabe do perigo que ele e seu governo estão correndo e já começou a exonerar militares da administração presidencial. Lula disse na semana passada: "Nós estamos em um momento de fazer uma triagem profunda, porque a verdade é que o Palácio estava repleto de bolsonaristas e militares, e nós queremos ver se a gente consegue corrigir”.

Especulava-se que, depois das eleições presidenciais de 2022, Bolsonaro poderia exercer o papel de líder da oposição ao governo petista. Ele teria uma maioria no Congresso para dificultar a vida de Lula e se preparar para, em 2026, voltar à presidência pela via democrática, ou seja: através de uma vitória nas urnas.

Mas parece que Bolsonaro tem outros planos. Ele quer ser como a espada de Dâmocles: uma ameaça, um perigo iminente à democracia brasileira. O Brasil deve ter tempos sombrios pela frente.

Thomas Milz , o autor deste artigo, saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 21.01.23. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.