sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A bobagem de Lula sobre o Banco Central

Fiel ao primitivismo petista, Lula ataca a autonomia do BC, como se a alta dos juros não fosse necessária para conter a inflação e preservar o poder de compra sobretudo dos pobres

Lula da Silva declarou, numa entrevista, que não gosta do Banco Central (BC) autônomo. E não gosta porque, para o lulopetismo clássico, o governo deve mandar na autoridade monetária para definir, conforme critérios políticos, quais devem ser os juros básicos da economia. A autonomia, segundo os petistas, “afeta a soberania popular e nacional” ao “transferir o controle do BC aos bancos privados”, como se lê em um comentário do partido a respeito do projeto de lei que conferiu independência ao BC, em 2021. Nada muito diferente dos manifestos radicais do PT primevo.

De volta ao poder, o presidente Lula mostrou que continua incapaz de compreender que, sem autonomia, o Banco Central depende da boa vontade do governante para fazer seu trabalho de preservação do poder de compra da moeda. A mão pesada de Dilma Rousseff no BC para forçar uma queda dos juros logo no início de seu primeiro mandato, em 2011, a título de impulsionar o crescimento, abriu a picada para o desastre que estava por vir – inflação descontrolada, instabilidade econômica e recessão. Mas Lula e o PT são teimosos.

Em entrevista à GloboNews, o presidente disse que a autonomia formal do BC é “uma bobagem”. Além disso, Lula sugeriu que, se autonomia fosse eficiente, a inflação não estaria tão alta. “Por que, com um banco independente, a inflação está do jeito que está?”, questionou, ignorando o fato, óbvio, de que a inflação só não está mais alta porque o BC tomou as providências necessárias. Aliás, pode-se dizer que, não fosse a autonomia do BC, o então presidente Jair Bolsonaro teria usado a autoridade monetária para seus propósitos eleitoreiros, mandando criar artificialmente um aumento momentâneo do poder de compra dos brasileiros para ganhar votos. Talvez até se reelegesse – vejam só os petistas do que a autonomia do BC nos livrou.

As declarações de Lula, portanto, não surpreendem ninguém, mas são dignas de lamento. É inacreditável que o presidente hesite em reconhecer a importância de um marco institucional tão relevante para o País.

Ao longo de sua história, o PT sempre defendeu o combate à inflação por meio do controle de preços de combustíveis, incentivos setoriais e uma política cambial que reduza a volatilidade da moeda. Não são propostas de um passado distante, mas as diretrizes expressas do programa apresentado por Lula na campanha eleitoral de 2022.

Esse receituário heterodoxo foi testado e reprovado no governo de Dilma, quando o BC ignorou os sinais de deterioração da economia e abriu mão da defesa da moeda, sua função primordial, perdendo o controle da inflação e da ancoragem das expectativas. A combinação entre juros em patamares artificialmente baixos e os efeitos de uma política fiscal expansionista mergulharam o País em uma profunda crise econômica até hoje não totalmente superada.

Foi após esse contexto que ressurgiu o debate sobre a autonomia do Banco Central. Um dos pilares do projeto de lei complementar aprovado pelo Congresso foi o estabelecimento de mandatos fixos para os diretores e o presidente da instituição em períodos não coincidentes com os do presidente da República. Longe de representar privilégio aos membros da autarquia, a proposta deu a eles a blindagem necessária para executar suas atividades sem pressões políticas do governo de plantão, independentemente de seu viés político.

Tema completamente superado, a autonomia do BC é mais um dos vários dogmas aos quais o PT mantém um apego visceral. Quando Lula a critica, trai a si mesmo, pois sabe que a independência que deu ao BC lhe garantiu um primeiro mandato tranquilo. Pior: amplia as incertezas e a volatilidade da economia, desancora as expectativas do mercado e cria um ambiente propício para que um BC sobre o qual ele não tem qualquer poder ou ascendência volte a aumentar a taxa básica de juros. Com o enorme desafio de pacificar o País após os violentos ataques à democracia, Lula deveria abandonar essa retórica inconsequente. Com esse discurso, ele boicota seu próprio governo e castiga justamente os mais pobres, que ele diz tanto defender.

Editorial / Notas & Informações, em 20.01.23

A hora e a vez da despolitização das Forças, para o bem do Brasil e dos militares

Punir os oficiais que tiveram atuação golpista e organizar a volta integral aos quartéis são as duas únicas decisões que cabem ao comando das Forças Armadas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com os chefes das Forças Armadas nesta sexta-feira, 20, no Palácio do Planalto (Foto: RICARDO STUCKERT/PR)

As Forças Armadas vivem hoje a maior crise de sua história. É uma crise de legitimidade perante o sistema político, a sociedade e a ordem internacional. Houve outros momentos difíceis para a instituição, como no conturbado mandato de Floriano Peixoto ou no final da ditadura militar, mas em nenhum deles se teve tanto consenso sobre a imprescindível despolitização das Forças Armadas.

(Comandantes ‘estão cientes de que vamos tomar providências’, diz Múcio sobre punição a golpistas)

O cume dessa crise foi a Intentona do dia 8 de janeiro, quando se constatou que a ação dos militares tinha sido, no mínimo, conivente com golpistas que praticaram um ato terrorista sem paralelo na história democrática brasileira. Mas o processo não se iniciou naquele trágico evento. As origens estão na adesão de boa parte dos integrantes das três Forças ao bolsonarismo, deixando-se politizar em episódios como o desastroso combate à covid-19 e em eventos públicos de apoio ao presidente Bolsonaro, que prometeu benesses materiais e, sobretudo, um projeto de poder a integrantes ou à própria instituição militar.

Embora a cúpula militar tenha rechaçado a adesão ao plano de golpe preparado por Bolsonaro, uma parcela importante da instituição fez discursos ou agiu de modo golpista, como se estivéssemos ainda em 1964. Mas o mundo mudou. Os três Poderes e a Federação são mais fortes hoje e a maioria dos políticos defende firmemente a democracia. Setores sociais e econômicos importantes vão reagir a qualquer Intentona, como ficou claro nos últimos dias. E, mais do que isso, os países mais relevantes, especialmente os Estados Unidos, isolariam completamente o Brasil e vão pressionar por uma despolitização das Forças Armadas brasileiras.

Punir os militares que tiveram atuação golpista e organizar a volta integral aos quartéis, colocando a profissionalização e a excelência de seus quadros acima da política, são as duas únicas decisões que cabem ao comando das Forças Armadas. É isso que deveria ter sido feito desde a redemocratização, e foi adiado indefinidamente até Bolsonaro vender uma ilusão autoritária de poder. A hora e a vez da mudança é agora, pois evitá-la poderia levar a um questionamento maior de suas funções, inclusive de seu padrão de gastos.

Vale frisar que se submeter ao comando civil é algo mais do que obedecer ao presidente Lula. Os militares devem obediência à democracia e não podem colocar o Brasil em risco geopolítico e econômico. O papel permanente das Forças Armadas é muito importante para ser destruído por integrantes seduzidos pelo discurso de um “mau militar”, tal qual Bolsonaro foi definido exemplarmente por Geisel.

Fernando Luiz Abrucio, o autor deste artigo, é Doutor em Ciência Política pela USP, professor e pesquisador da FGV-Eaesp. Publicado originalmente n'O Estado de SA. Paulo, em 20.01.23.

Tem de respeitar o resultado da urna’, diz comandante do Sudeste

General Tomás Miguel Ribeiro Paiva fez pronunciamento com tropa formada no quartel general do CMSE na quarta-feira; vídeo mostra discurso de dez minutos do general

O comandante militar do Sudeste, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva discursa em defesa da democracia Foto: Reprodução/CMSE

O comandante militar do Sudeste, general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, afirmou que o resultado das urnas deve ser respeitado. É a primeira manifestação pública de um comandante militar desde os ataques à sede dos três Poderes, em Brasília, no dia 8. “Vamos continuar garantindo a nossa democracia, porque a democracia pressupõe liberdade e garantias individuais e públicas. E é o regime do povo, de alternância de poder. É o voto. E, quando a gente vota, tem de respeitar o resultado da urna.”

Um dos três mais antigos oficiais generais do Alto Comando do Exército (ACE), Tomás, como é conhecido, foi um dos comandantes que se opuseram a qualquer tentativa de virada de mesa após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na eleição presidencial. Por isso, tornou-se alvo, ao lado de outros integrantes do ACE, de uma campanha difamatória de bolsonaristas.

Na quarta-feira, dia 18 de janeiro, no quartel-general do Comando Militar do Sudeste (CMSE), com a tropa formada, o general discursou durante cerca de dez minutos. Na ocasião, ele lembrava os militares mortos na missão de paz das Nações Unidas no Haiti, onde o Brasil permaneceu de 2004 a 2017. Dezoito militares morreram no terremoto de 12 de janeiro de 2010, que destruiu parte do país caribenho em 2010. Quando coronel, Tomás comandou um batalhão no Haiti.

No meio do discurso, o general passou a tratar de outro “terremoto”, que atingiu recentemente o País. “Nós últimos dias, nós estamos vivendo um outro tipo de terremoto no País: um terromoto político, que não causou mortes” Esse terremoto, segundo ele, é movido pelo ambiente virtual, que não tem freio. “Todo nós somos hoje hiperinfomados. Para excesso de informação só tem um remédio: mais informação. É se informar com qualidade e buscar fontes fidedignas.”

De acordo com ele, essa violência, “essa intolerância tem nos atacado”. “Esse terremoto não está matando gente, mas está tentando matar a nossa coesão, a nossa hierarquia e a nossa disciplina, o nosso profissionalismo e o orgulho que a gente tem de vestir essa farda. E não vai conseguir.” Logo em seguida, o general reafirmou o Exército como instituição de Estado. “Ser militar é ter uma instituição de Estado, apolitica, apartidária; não interessa quem está no comando, a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito. Isso é ser militar.”

O general disse ainda que os militares não devem ter correntes políticas e devem permanecer coesos. “(Ser militar) é não ter corrente. Isso não significa que ele não pode ter sua opinião. Ele pode ter, mas ele não pode se manifestar. Ele pode ouvir muita coisa: ‘faço isso, faça aquilo’, mas ele faz o que é correto, mesmo que o correto seja impopular.”

O general concluiu o discurso para a tropa com uma defesa enfática da democraia e do respeito ao resultado das urnas. “Essa é a mensagem que quero trazer para vocês. Em que pese o turbulhão, o terremoto, o tsunami, nós vamos continuar íntegros, coesos e respeitosos e vamos continuar garantindo a nossa democracia, porque a democracia pressupõe liberdade e garantias individuais e públicas. E é o regime do povo, da alternância de poder. É o voto. E, quando a gente vota, tem de respeitar o reusltado da urna. Essa é a convicção que eu tenho, mesmo que a gente não goste do resultado – nem sempre é o que a gente queria. Mas essa é o papel da instituição de Estado, que respeita os valores da Pátria.”

Marcelo Godoy, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 20.01.23, às 20h23

Rodrigo Rangel, Exclusivo no Metrópoles: o caixa 2 de Jair Bolsonaro no Planalto

TRANSAÇÕES FINANCEIRAS DO MILITAR DO EXÉRCITO QUE ATUAVA COMO AJUDANTE DE ORDENS DO EX-PRESIDENTE FORAM MAPEADAS PELA POLÍCIA FEDERAL POR ORDEM DO STF

O tenente coronel do Exercito, Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro - MetrópolesDida Sampaio/Estadão

MILITAR PAGAVA CONTAS DO CLÃ PRESIDENCIAL EM DINHEIRO VIVO AO MESMO TEMPO QUE OPERAVA UMA ESPÉCIE DE “CAIXA PARALELO” NO PLANALTO QUE INCLUÍA RECURSOS SACADOS DE CARTÕES CORPORATIVOS

PAGAMENTOS ERAM FEITOS EM AGÊNCIA DO BANCO DO BRASIL LOCALIZADA DENTRO DO PALÁCIO

ENTRE AS CONTAS PAGAS ESTAVA A FATURA DE UM CARTÃO DE CRÉDITO USADO PELA EX-PRIMEIRA-DAMA MICHELLE BOLSONARO, MAS EMITIDO EM NOME DE UMA AMIGA DELA

ÁUDIOS COM A VOZ DE BOLSONARO REUNIDOS PELA INVESTIGAÇÃO, SOB COMANDO DO MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES, INDICAM QUE O PRESIDENTE CONTROLAVA E TINHA CIÊNCIA DE TUDO

As investigações que correm no Supremo Tribunal Federal sob o comando do ministro Alexandre de Moraes avançam sobre um personagem-chave que, por tudo o que se descobriu até agora e por sua estreita proximidade com Jair Bolsonaro, deixará o ex-presidente ainda mais encrencado.

As descobertas conectam o antigo gabinete de Bolsonaro diretamente à mobilização de atos antidemocráticos e lançam graves suspeitas sobre a existência de uma espécie de caixa 2 dentro do Palácio do Planalto, com dinheiro vivo proveniente, inclusive, de saques feitos a partir de cartões corporativos da Presidência e de quartéis das Forças Armadas.

O personagem em questão é o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, o “coronel Cid”, ajudante de ordens de Jair Bolsonaro até os derradeiros dias do governo que acabou em 31 de dezembro.

O militar compartilhava da intimidade do então presidente. Além de acompanhá-lo em tempo quase integral, dentro e fora dos palácios, Cid era o guardião do telefone celular de Bolsonaro. Atendia ligações e respondia mensagens em nome dele. Também cuidava de tarefas comezinhas do dia a dia da família. Pagar as contas era uma delas – e esse é um dos pontos mais sensíveis do caso.

Entre os achados dos policiais escalados para trabalhar com Alexandre de Moraes estão pagamentos, com dinheiro do tal caixa informal gerenciado pelo tenente-coronel, de faturas de um cartão de crédito emitido em nome de uma amiga do peito de Michelle Bolsonaro que era usado para custear despesas da ex-primeira-dama.


Vinícius Schmidt/Metrópoles

QUEBRA DE SIGILO PERMITIU MAPEAR TRANSAÇÕES

Já era sabido, há tempos, que Cid se tornara alvo dos inquéritos tocados por Moraes, em diferentes frentes. Ainda no ano passado, o jornal Folha de S.Paulo noticiou que mensagens de texto, imagens e áudios encontrados no celular do oficial do Exército levaram os investigadores a suspeitar das transações financeiras realizadas por ele.

Pois bem. Depois disso, Moraes autorizou quebras de sigilo que permitiram revirar pelo avesso as operações realizadas pela equipe do tenente-coronel, muitas delas com dinheiro em espécie, na boca do caixa de uma agência bancária localizada dentro do Palácio do Planalto (foto acima).

As primeiras análises do material já apontavam que Cid centralizava recursos que eram sacados de cartões corporativos do governo ao mesmo tempo que tinha a incumbência de cuidar do pagamento, também com dinheiro vivo, de diversas despesas do clã presidencial, incluindo contas pessoais de familiares da então primeira-dama Michelle Bolsonaro.

Durante a investigação, os policiais se depararam com um modus operandi que lembrava em muito aquele adotado pelo clã bem antes da chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto e que, anos depois, seria esquadrinhado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro nas apurações das rachadinhas do hoje senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do ex-presidente. Dinheiro manejado à margem do sistema bancário. Saques em espécie. Pagamentos em espécie. Uso de funcionários de confiança nas operações. As semelhanças levaram a um apelido inevitável para as transações do tenente-coronel do Exército: “rachadinha palaciana”.

A certa altura do trabalho, os investigadores enxergaram indícios fortes de lavagem de dinheiro. Chamou atenção, em especial, a origem de parte dos recursos que o oficial e seus homens da ajudância de ordens manejavam.

Para além do montante sacado a partir de cartões corporativos que eram usados pelo próprio staff da Presidência, apareceram indícios de que valores provenientes de saques feitos por outros militares ligados a Cid e lotados em quartéis – sim, quartéis – de fora de Brasília eram repassados ao tenente-coronel. Os detalhes dessas transações ainda estão sendo mantidos sob absoluto sigilo, trafegando entre o gabinete de Moraes e o restrito núcleo de policiais federais que o auxilia nas apurações.

NA BOCA DO CAIXA, DENTRO DO PLANALTO

As investigações desceram à minúcia das transações. A partir dos primeiros sinais de que várias delas haviam sido feitas em espécie, os policiais esquadrinharam as fitas de caixa e pediram até as imagens do circuito de segurança da agência bancária onde os pagamentos eram feitos – a agência 3606 do Banco do Brasil, que funciona no complexo do Palácio do Planalto.

Da mesma forma que o MP do Rio conseguiu documentar o notório Fabrício Queiroz, operador das rachadinhas, pagando em dinheiro vivo contas de Flávio Bolsonaro, os policiais a serviço de Alexandre de Moraes foram buscar os registros em vídeo de que pessoas da equipe de Cid, o ajudante de ordens do presidente, eram as responsáveis por quitar – também em espécie, assim como Queiroz – os boletos do presidente, da primeira-dama e de seus familiares.

Michelle Bolsonaro e Rosimary Cardoso Cordeiro (Reprodução)

MICHELLE E O CARTÃO DA AMIGA

Entre os pagamentos, destacavam-se faturas de um cartão de crédito adicional emitido por uma funcionária do Senado Federal de nome Rosimary Cardoso Cordeiro. Lotada no gabinete do senador Roberto Rocha, do PTB do Maranhão, Rosimary é amiga íntima de Michelle Bolsonaro desde os tempos em que as duas trabalhavam na Câmara assessorando deputados.

Rosi, como os mais próximos a chamam, é apontada como a pessoa que aproximou Jair Bolsonaro e Michelle quando o ex-presidente ainda era um deputado do baixo clero que nem sonhava um dia chegar ao Palácio do Planalto. Moradora de Riacho Fundo, cidade-satélite de Brasília distante pouco mais de 20 quilômetros do centro do Plano Piloto, até hoje ela mantém laços estreitos com o casal.

Veja galeria:

Amiga do peito: Rosi no casamento de Bolsonaro com Michelle, em 2013Reprodução/Facebook

Rosimary Cordeiro com Jair Bolsonaro e o general Augusto Heleno Ribeiro no avião presidencial (Reprodução/Redes sociais)


Rosi com Michelle em evento da campanha de Bolsonaro no Maranhão

Rosimary Cordeiro viajou com a então primeira-dama em um jato privado (Reprodução/Redes sociais)

Amiga do peito: Rosi no casamento de Bolsonaro com Michelle, em 2013 (Reprodução/Facebook)

A antiga amizade ganhou toques de glamour depois que a senhora Bolsonaro virou primeira-dama do Brasil – passou a contar, por exemplo, com viagens a bordo de jatinhos e até do avião presidencial. Em maio do ano passado, Rosi acompanhou Michelle em um tour por Israel que contou, ainda, com a participação da então ministra Damares Alves. As duas também foram juntas, em voos fretados pagos pelo PL, para eventos da campanha de Jair Bolsonaro à reeleição.

Em uma viagem oficial de Bolsonaro ao Maranhão, Rosi foi convidada a integrar a comitiva presidencial e registrou fotos ao lado dele na cabine principal do Airbus que serve à Presidência. A ascensão de Michelle fez a amiga também ascender no Congresso. No início do governo, era telefonista no gabinete de Rocha, aliado de Bolsonaro. Logo depois, foi promovida e viu seu salário aumentar. No fim do ano passado, ela ocupava um dos cargos comissionados mais altos da equipe, com salário de R$ 17 mil brutos. Como o mandato de Rocha está a dias do fim, Rosi já tem a promessa de ganhar uma função no futuro gabinete de Damares, eleita senadora pelo Distrito Federal. Michelle, claro, deu uma força.

ÁUDIOS DE BOLSONARO E CONEXÃO COM RADICAIS

O material reunido nas investigações sobre o tenente-coronel o coloca na cena da sucessão de atos antidemocráticos que já vinham sendo investigados por Moraes e que culminaram com a invasão das sedes dos três poderes, em 8 de janeiro. Pela proximidade com Bolsonaro e pela função que o militar exercia no Planalto, o ex-presidente é peça indissociável dos movimentos que ele fazia.

Em mensagens de texto e áudio, o tenente-coronel funcionava como elo entre Bolsonaro e vários dos radicais que há tempos vinham instigando a militância bolsonarista a atentar contra as instituições. Há fartas evidências nesse sentido. Um dos contatos frequentes de Cid era Allan dos Santos, o blogueiro que vive nos Estados Unidos e em outubro de 2021 teve a prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Jair Bolsonaro terá sérias dificuldades para se desvencilhar, ele próprio, das provas que engolfam seu ex-ajudante de ordens. O material compromete os dois. O ex-presidente aparece como interlocutor em várias das mensagens que Cid mantinha em seus aplicativos e foram copiadas pelos investigadores com autorização de Moraes. Uma série de áudios enviados por Bolsonaro ao subordinado indicam que ele tinha conhecimento e controle de tudo o que Cid fazia — seja na seara financeira, pagando as contas do clã em dinheiro vivo, seja na interlocução com os bolsonaristas radicais.

CID PAI, CID FILHO E BOLSONARO

Jair Bolsonaro e o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid têm uma relação que transcende a carreira militar do ex-ajudante de ordens. O pai de Cid, general Mauro Cesar Lourena Cid, foi colega do ex-presidente no curso de formação de oficiais do Exército. Lourena Cid tornou-se amigo de Bolsonaro. Em 2019, ano em que foi para a reserva, ele ganhou do governo a confortável posição de chefe do escritório da Apex, a agência brasileira de promoção de exportações, em Miami. Com salário em dólares, o cargo lhe garantiu uma bolada mensal equivalente a mais de R$ 80 mil.

Cid filho, o ajudante de ordens, também ascendeu na carreira durante o governo passado. Era major e foi promovido a tenente-coronel. Tido como um dos mais radicais auxiliares do ex-presidente, o oficial já havia aparecido em várias das frentes de investigação a cargo de Moraes no STF.

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Bolsonaro embarca para a Suíça, em janeiro de 2019: Cid estava sempre ao lado (Alan Santos/PR)

Cid com Bolsonaro em viagem aos Estados Unidos em março de 2020 (Alan Santos/PR)

Acompanhado do ajudante de ordens, Bolsonaro visita museu em Dallas, em 2019 (Marcos Corrêa/PR)

Cid com Bolsonaro na Assembleia Geral da ONUAlan Santos/PR

Cid com Bolsonaro no debate da TV Globo, na antevéspera do segundo turno das eleições de 2022 (Reprodução/TV Globo)

A dupla Bolsonaro-Cid em viagem ao Catar, em 2021Isac Nóbrega/PR

O ajudante de ordens carregava a pasta e era o guardião do telefone do presidente (Isac Nóbrega/PR)


Ele foi investigado, por exemplo, por suspeita de atuar no vazamento de informações de um inquérito sigiloso sobre ameaças às urnas eletrônicas — parte do velho movimento bolsonarista destinado a descredibilizar o sistema eleitoral. Em dezembro passado, a Polícia Federal concluiu que o tenente-coronel Cid e Bolsonaro cometeram crime ao associar falsamente, durante um live, as vacinas anticovid com o vírus da Aids.

CID ESTÁ NOMEADO PARA CHEFIAR COMANDO DE FORÇAS ESPECIAIS

Antes de deixar o poder, Bolsonaro dispensou o tenente-coronel Mauro Cid da função de ajudante de ordens. O ato foi publicado em 31 de dezembro. O futuro do militar, porém, ficou encaminhado — e de uma forma não muito agradável para o novo governo. Com a bênção do então presidente, o comando do Exército o designou para comandar nada menos que o 1º Batalhão de Ações e Comandos, o 1º BAC, uma das unidades do prestigiado e temido Comando de Operações Especiais, com sede em Goiânia.

O batalhão reúne as mais bem treinadas tropas de elite do Exército e seus homens têm por atribuição, por exemplo, realizar operações de emergência para debelar ameaças a Brasília e, em eventuais situações de guerra, cumprir missões delicadas contra alvos tidos como difíceis. Textos publicados pelo próprio Exército dizem que cabe às tropas do BAC atuar em “ações contra alvos de alto valor” em “áreas hostis ou sob controle do inimigo”.

Mais cedo ou mais tarde, a designação de Cid para o posto será motivo de mais dor de cabeça para o novo governo na delicada relação com o alto comando do Exército — a quem, teoricamente, caberia uma eventual decisão capaz de reverter o ato assinado no apagar das luzes do governo Bolsonaro. Depois das invasões das sedes dos poderes, em 8 de janeiro, nas quais Lula já disse abertamente ter visto o dedo de militares, manter uma unidade tão sensível sob comando de um oficial sabidamente bolsonarista e reconhecidamente radical certamente será um problema para o atual chefe do Planalto.

Indagado pela coluna, o Exército informou nesta quinta-feira que a designação de Mauro Cid está mantida. O staff de imprensa da corporação disse não saber, porém, a data em que ele assumirá o comando do batalhão. O tenente-coronel viajou com Jair Bolsonaro para a Flórida, nos Estados Unidos, nos últimos dias de 2022.

“É PESSOAL”, DIZ AMIGA DE MICHELLE

A coluna tentou por mais de uma vez ouvir Rosimary, a amiga que cedia um cartão para Michelle Bolsonaro. Ela se negou a falar sobre o assunto. Primeiro, disse que estava em um almoço. “Bom, querido, quando eu for (informada da investigação) aí eu falo sobre o assunto, tá bom? Mas nesse momento eu não posso falar. Estou em almoço, estou com meu chefe aqui em reunião”, disse (ouça abaixo).

Horas depois, abordada novamente, desta vez no Senado, ela respondeu o seguinte: “É um assunto tão pessoal… Não quero falar. Até porque eu acho que não preciso dar satisfação para entrevista. É uma coisa minha, pessoal. (…) Eu não tô sabendo (da investigação), não, mas se tiver (sic) eu já vou resolver com os advogados, né? (…) Eu não quero tocar nesse assunto que não seja com advogado”.

A coluna tentou contato com Jair e Michelle Bolsonaro e com o tenente-coronel Mauro Cid nesta sexta-feira, sem sucesso.

Interlocutores do ex-presidente e da ex-primeira-dama disseram que Cid precisava lidar com dinheiro em espécie porque muitas das despesas, especialmente as que envolviam a primeira-dama, “tinham valor ínfimo” e precisavam ser pagas diretamente a fornecedores que “prestavam serviços informalmente”.

Apesar de admitirem haver “confusão” com os valores em espécie, esses mesmos interlocutores negaram que contas pessoais do clã e de parentes de Michelle fossem pagas com os recursos que eram provenientes de saques corporativos do governo.

Não houve resposta sobre o pagamento dos boletos, especialmente os do cartão que era cedido pela amiga de Michelle Bolsonaro, e das contas de familiares da ex-primeira-dama. Tampouco houve explicação sobre as razões pelas quais os tais “serviços de fornecedores”, por exemplo, não poderiam ser quitados por transferência bancária.

RODRIGO RANGEL E SARAH TEÓFILO, originalmente para o Metrópoles, em 20.01.23

Ibaneis Rocha: quem é o governador afastado alvo de operação da PF

A Polícia Federal cumpriu na sexta-feira (20/1) cinco mandados de busca e apreensão contra o governador afastado do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha (MDB), e o ex-secretário executivo da Segurança Pública do DF Fernando Oliveira.

Operação da PF buscou provas em inquérito que apura suposta omissão de Ibaneis Rocha nos atos em Brasília (Reuters)

Ambos são alvo de um inquérito do Ministério Público Federal (MPF) que apura se autoridades do DF que se omitiram durante a invasão das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro.

A operação da PF foi em busca de provas para instruir essa investigação. A defesa do governador disse à imprensa que a ação foi inesperada porque ele vem colaborando com as investigações e acrescentou que isso irá provar definitivamente que ele não teve qualquer responsabilidade pelo ocorrido.

O ex-ministro Anderson Torres, que era o secretário de Segurança do DF na data, e o coronel Fábio Augusto Vieira, ex-comandante-geral da Polícia Militar do DF (PM-DF), também são alvo do inquérito. Ambos estão presos.

Demissões de militares e policiais: o efeito da 'limpa' de Lula após invasões

A operação da PF teve como alvo a casa de Ibaneis em Brasília, o Palácio do Buriti, sede do governo do DF, um escritório ligado ao governador, a sede da Secretaria de Segurança do DF e a casa do ex-secretário.

Ela foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Ibaneis Rocha foi afastado do governo por 90 dias por decisão de Moraes após as invasões em Brasília.

No dia 8 de janeiro, as forças de segurança do DF não contiveram apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que invadiram e destruíram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF.

A decisão de Moraes diz que houve "omissão e conivência de diversas autoridades da área de segurança e inteligência".

Segundo o ministro, "a escalada violenta dos atos criminosos" que resultou na invasão dos três prédios públicos "somente poderia ocorrer com a anuência, e até participação efetiva, das autoridades competentes pela segurança pública e inteligência, uma vez que a organização das supostas manifestações era fato notório e sabido, que foi divulgado pela mídia brasileira".

Com o afastamento de Ibaneis, quem assumiu o governo do DF foi a vice, Celina Leão (PP).

Até o momento, três pedidos de impeachment de Ibaneis já foram protocolados na Câmara Legislativa do DF por sua conduta durante os atos de domingo.

Governador reeleito, Ibaneis declarou apoio 'de coração' a Bolsonaro antes do segundo turno da eleição presidencial (Reuters)

Antes da decisão do Supremo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já tinha decretado a intervenção federal na segurança do DF até 31 de janeiro, colocando a União no comando das competências do DF nessa área. A intervenção foi aprovada pelo Congresso.

Em depoimento à PF, Ibaneis afirmou acreditar que houve "algum tipo de sabotagem" na atuação das forças de segurança do DF.

O governador afirmou ainda que a responsabilidade de garantir a segurança na capital federal era integralmente da Secretaria de Segurança, chefiada por Anderson Torres, que foi exonerado do cargo por Ibaneis Rocha logo após os atos.

Em seu depoimento à polícia, Torres preferiu se manter em silêncio. Segundo sua defesa, o ex-secretário agiu assim porque seus advogados ainda não haviam tido acesso aos detalhes da investigação. Torres deve ser ouvido de novo na segunda-feira (23/1).

À PF, Ibaneis Rocha acrescentou que foi "absolutamente surpreendido com a falta da resistência exigida para a gravidade da situação por parte da PM-DF", e que ficou revoltado quando viu cenas de alguns policiais se confraternizando com manifestantes.

Fernando Oliveira, que estava à frente da secretaria de Segurança do DF porque Torres havia viajado de férias para os Estados Unidos na data, também prestou depoimento à PF e disse que seu ex-chefe aprovou o plano de segurança para o dia 8 de janeiro e não passou nenhuma orientação específica para inibir os atos.

Oliveira afirmou ainda que Torres não o "apresentou aos comandantes das forças policiais" antes de viajar. Ele foi demitido pelo interventor da Segurança Pública do Distrito Federal, Ricardo Cappelli, em 10 de janeiro.

Quem é Ibaneis Rocha, que apoiou Bolsonaro 'de coração'?

Ibaneis esteve ao lado de Bolsonaro durante o mandato de ambos. Bolsonaro disse que Ibaneis "teve harmonia" com o governo federal durante sua presidência e chamou o governador de "amigo" em outubro de 2022.

Na ocasião, antes do segundo turno da eleição, Ibaneis declarou apoio a Bolsonaro. Ele afirmou que seu apoio era "de coração" e "natural" — apesar de divergências durante a pandemia, quando Ibaneis contrariou o chefe do Executivo promovendo restrições à circulação de pessoas.

Em 2022, Ibaneis conseguiu ser reeleito ainda no primeiro turno da eleição, com pouco mais de 50% dos votos (Ag.  Brasil)

O agora governador afastado era novidade na política em 2018, quando se candidatou pela primeira vez ao governo do Distrito Federal e conseguiu ser eleito — na esteira do discurso de renovação da política e com apoio em igrejas evangélicas da região. Ele derrotou o então ocupante do cargo, Rodrigo Rollemberg (PSB), e figuras tradicionais da política brasiliense.

Em 2022, Ibaneis conseguiu ser reeleito ainda no primeiro turno da eleição, com pouco mais de 50% dos votos. Em sua posse, disse que o momento é de "união pelo Brasil".

Na semana passada, Ibaneis publicou nas redes sociais fotos com ministros do governo Lula em cerimônias de posse em Brasília, inclusive com Flávio Dino (Justiça).

Ele, que é brasiliense e formado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), abriu seu escritório de advocacia em 1990 e, de 2013 a 2015, foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF).

'Desculpas': o que disse Ibaneis após invasão

Forças de segurança do DF não contiveram apoiadores de Bolsonaro que invadiram e destruíram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF (Reuters)

Na tarde de domingo, Ibaneis anunciou a exoneração do secretário de Segurança DF, Anderson Torres, que foi ministro da Justiça de Bolsonaro. A medida foi lida como uma tentativa de se afastar do que, nas palavras do governador foi uma "baderna antidemocrática na Esplanada dos Ministérios".

Depois, no entanto, foi decretada a intervenção na segurança do DF pelo Executivo. E, em seguida, Moraes decidiu pelo afastamento do governador.

Ibaneis havia divulgado vídeo nas redes sociais pedindo "desculpas" aos chefes dos três poderes pelo que ocorreu em Brasília. "O que aconteceu na nossa cidade foi inaceitável."

"São verdadeiros terroristas, que terão de mim todo o efetivo combate para que sejam punidos", disse o governador, antes de ser afastado.

Após dizer que monitorava a situação, disse: "Não acreditávamos em momento nenhum que manifestações tomariam as proporções que tomaram".

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 09.01.23,

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

O STF e a democracia inabalada

Covardemente atacado no dia 8, o STF vem sendo vandalizado há anos por ameaças e ataques a seus ministros e à Corte. É preciso reconstruir seu edifício e reafirmar sua autoridade

A sede do Supremo Tribunal Federal (STF) foi o prédio mais atacado pela barbárie de 8 de janeiro. Os golpistas quebraram vidros, móveis e antiguidades, além de terem depredado vários ambientes e instalações. Ao assegurar a imediata reconstrução da sede do STF, a presidente do Supremo, ministra Rosa Weber, lembrou que o edifício é “patrimônio histórico dos brasileiros e da humanidade” e “símbolo do Poder Judiciário, um dos três pilares da democracia constitucional brasileira”.

A resposta do STF aos atos de 8 de janeiro, disse Rosa Weber, “passa também por difundir a mensagem de que esta Suprema Corte, assim como a defesa que a instituição faz da democracia e do Estado de Direito, seguem inabaláveis”. Nesse sentido, o Supremo lançou, no dia 17, a campanha Democracia Inabalada, que inclui vídeos na TV e publicações nas redes sociais. Segundo o tribunal, o objetivo é “chamar a atenção para o lamentável episódio, para que ele nunca seja esquecido e nem se repita, e destacar que a democracia e a Suprema Corte saem fortalecidas desses acontecimentos”.

Trata-se de iniciativa muito oportuna. É preciso comunicar a importância do STF para a democracia brasileira. Não há Estado Democrático de Direito sem uma Corte Constitucional independente. Não há proteção a direitos e garantias individuais sem um Judiciário forte e autônomo.

Covardemente atacado no dia 8 de janeiro, o STF vem sendo vandalizado há anos por ameaças e ataques a seus ministros e à Corte. Vale lembrar que não é apenas quebrando vidraças ou destruindo móveis que se ataca o STF. Nos últimos quatro anos, o bolsonarismo afrontou e enfrentou de forma reiterada a Corte e seus ministros, com ameaças, insinuações e muitíssima desinformação.

Tanto é assim que, em março de 2019, o então presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, se viu obrigado a determinar a abertura de um inquérito, com base no art. 43 do Regimento Interno do STF, a respeito de “notícias fraudulentas (...), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de ânimo caluniante, difamante e injuriante que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo, de seus membros e de familiares”, precisamente para proteger as prerrogativas do tribunal. Ironicamente, os atos de 8 de janeiro explicitaram, com luzes novas e aterrorizantes, a plena legalidade do inquérito, repetidamente questionada pelos bolsonaristas. Os ataques e ameaças ao Supremo não eram uma invenção, como também não eram um singelo exercício da liberdade de expressão. Eram atos criminosos com o objetivo de vandalizar o STF, deslegitimando-o aos olhos dos cidadãos.

Depois de quatro anos de desinformação contra o Supremo, é necessário reconstruir a imagem pública da Corte Constitucional. É necessário reunir novamente a população em torno da Corte Constitucional, que é aliada, e não inimiga, dos direitos e liberdades individuais. As gravações com os atos de vandalismo dentro da sede do STF podem ajudar nessa tarefa, revelando a grande falácia do bolsonarismo, com sua pretensa defesa da liberdade. Os golpistas atacam o Supremo porque querem impor sua vontade sobre os demais e sobre a própria lei. Não almejam a liberdade, mas a barbárie.

A campanha Democracia Inabalada vem, portanto, em boa hora. Ao explicitar que a reconstrução do STF é muito mais do que reerguer um edifício, ela também é alerta para todos os ministros da Corte. Há um longo trabalho de resgate da legitimidade e do prestígio do STF perante a sociedade, trabalho este que é alicerçado por decisões técnicas e fundamentadas, rigorosamente contidas dentro dos limites de competência da Corte. Essa contenção é fundamental para preservar a autoridade do STF ao longo do tempo. O Judiciário aplica a lei. No caso, o Supremo defende e aplica a Constituição, que é extensa e aborda inúmeros temas. De toda forma, isso não autoriza o STF a tomar o espaço da política ou a abraçar atribuições funcionais que não lhe competem.

O País precisa do Supremo. É urgente reconstruir seu edifício e reafirmar sua autoridade. E que os golpistas, executores e mandantes, sejam punidos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 19.01.23

Ex-GSI, coronel pede golpe, ameaça Dino, ofende comandante da Marinha e o desafia: ‘Venha me punir’

No dia dos ataques às sedes do STF, Congresso e Planalto, em Brasília, oficial do Exército incentivou revolta de coronéis com comando de tropa; ele foi um dos militares que apoiou a ação dos extremistas contra o governo Lula

O coronel José Placídio Matias dos Santos, ex-GSI, atuou na equipe do general Augusto Heleno por três anos

Homem que exerceu função de confiança no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) sob o comando do general Augusto Heleno durante três anos, o coronel do Exército José Placídio Matias dos Santos defendeu no dia 8 de janeiro que coronéis com comando de tropa se rebelassem e “entrassem no jogo, desta vez do lado certo”. Mais ainda. O oficial se dirigiu diretamente ao comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, para que ele se colocasse à frente de um golpe de Estado.

(‘Bolsonaro esperava voltar para o Brasil na glória de um golpe’, diz Lula)

“General Arruda, o Brasil e o Exército esperam que o senhor cumpra o seu dever de não se submeter às ordens do maior ladrão da história da humanidade. O senhor sempre teve e tem o meu respeito. FORÇA!!”, escreveu em postagem em sua conta no Twitter. Placídio e outro oficiais, além de bolsonaristas civis, nos dias que antecederam e na data do ataque às sedes dos três Poderes, viam em coronéis com comando de tropa uma alternativa aos generais que se recusavam a agir para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.

Placídio, que foi nomeado em fevereiro de 2019 como assessor chefe militar da Assessoria Especial de Planejamento e Assuntos Estratégicos da Secretaria Executiva do GSI, escreveu no dia 8 em seu perfil no Twitter (19 mil seguidores): “Brasília está agitada com a ação dos patriotas. Excelente oportunidade para as FA (Forças Armadas) entrarem no jogo, desta vez do lado certo. Onde estão os briosos coronéis com tropa na mão?” Ainda no dia 8, o coronel da reserva fez outra postagem em que ameaçou o ministro da Justiça, Flávio Dino: “Sua purpurina vai acabar”. Placídio permaneceu no GSI até março de 2022.

Oficial da Arma de Infantaria, ele tem curso de forças especiais (FE), como outros suspeitos de incentivar a quebra de hierarquia e de disciplina. Dois dias antes, xingou o comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, e o desafiou publicamente. Escreveu o coronel: “Marinha do Brasil!! Sai um herói patriota, entra uma prostituta do ladrão, com o devido respeito a elas. Venha me punir, Almirante, e me distinga em definitivo da sua estirpe.” Placídio se referia ao fato de o almirante Almir Garnier ter se recusado a passar o comando da Marinha em protesto contra Lula. Na posse, Olsen agradeceu ao presidente.

Os apelos de Placídio e de outros coronéis não surtiram efeito. Na noite do dia 8, após os ataques às sedes dos três Poderes, o general Arruda se reuniu com Flávio Dino e outros dois ministros (José Múcio, da Defesa, e Rui Costa, da Casa Civil). No encontro se decidiu cumprir na manhã do dia 9 a ordem de prisão contra os cerca de 1,2 mil acampados em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília.

Naquele mesmo dia 9, em meio às prisões dos extremistas, Placídio afirmava que centenas de oficiais da ativa estiveram presentes nos eventos do dia anterior. Nenhum foi preso ou identificado. Até agora o Exército puniu o coronel da reserva Adriano Testoni, que participou dos atos e ofendeu generais e o Exército. Eles se indispô até com colegas de turma, como o general da reserva Ridauto Fernandes, um FE que marchou na Esplanada naquele domingo.

Outro oficial que incentivou a ação em Brasília é o coronel Fernando Montenegro. Com 41 mil seguidores no Twitter, ele fazia enquetes defendendo a “intervenção militar”. Dizia que ela era “uma iniciativa de militares da ativa que não se inicia pelo comandante”. Montenegro é mais um FE – assim como a maioria dos oficiais que cercam Jair Bolsonaro. Ele teve a conta bloqueada por decisão judicial, em 29 de dezembro, mas continuou ativo. No dia 8, enviou mensagem aos radicais em Brasília, dizendo que toda manifestação contra o establishment é noticiada como antidemocrática. E concluiu: “Façam o que deve ser feito”.

As manifestações dos coronéis ocorreram após o fracasso do assédio a generais da ativa. Desde novembro, o Comando do Exército foi alvo de pressões bolsonaristas para não reconhecer a eleição de Lula. Logo após a derrota de Bolsonaro no pleito, manifestantes inconformados passaram a acampar em frente aos quartéis. Havia militares pressionando os colegas da ativa. Queriam um golpe. Alguns comandantes de tropa proibiram todo contato entre seu pessoal e os acampados. Outros não.

A coluna apurou que a maioria dos integrantes do Alto Comando do Exército se mostrou contrária à contestação do resultado das urnas. Diante desse fato, os extremistas lançaram uma campanha, em parte difundida nas redes sociais, que tinha por objetivos assediar o maior número de generais. Comandantes receberam mensagens nos seus telefones celulares. Um deles foi Kurt Everton Werberich, comandante da 13.ª Brigada de Infantaria Motorizada, em Cuiabá (MT). “E agora, general? No dia 01/jan/2023, V. Exa. pretende prestar continência a quem? Ao povo brasileiro ou aos Comunistas?”

General Kurt Werberich foi alvo de assédio dos extremistas que tentaram convencê-lo a dar o golpe Foto: Reprodução

Em outra frente, generais legalistas passaram a ser alvo de outra campanha que os qualificava como traidores e melancias. Ela atingiu, entre outros, os comandantes militares do Sudeste (Tomás Ribeiro de Paiva), do Leste (André Luiz Novaes), do Nordeste (Richard Nunes) e o chefe do Estado-Maior do Exército, Valério Stumpf. Mesmo assim, ainda em sua maioria, o Alto Comando se manteve contrário à virada de mesa, bem como o então comandante da Força, Marco Antônio Freire Gomes.

Em 16 de novembro, Freire Gomes divulgou nota em defesa dos generais. De acordo com o informe do Exército, “ao tentarem de forma anônima e covarde disseminar desinformação no seio da Força e da sociedade, esses grupos ou indivíduos atestam a sua falta de ética e de profissionalismo”. E conclui: “O Exército Brasileiro permanece coeso e unido, sempre em suas missões constitucionais, tendo a hierarquia e a disciplina de seus integrantes o amálgama que o torna respeitado pelo povo brasileiro, seu fiador”.

Freire Gomes também rebateu acusações feitas pelo jornalista Paulo Figueiredo Filho contra Richard, Tomás e Stumpf. No dia 28 de novembro, Figueiredo Filho afirmara que os três impediam uma “ação mais direta” contra as eleições. Em outra nota, o Exército disse: “Em relação ao divulgado pelo comentarista Paulo Figueiredo Filho, nos dias 28 e 29 de novembro de 2022, o Comando do Exército repele as alegações que ferem a imagem da Instituição e de integrantes do seu Alto Comando”.

Informe do Exército enviado ao público interno em defesa de generais do Alto Comando chamados de comunistas Foto: Reprodução/WhatsApp

Por sua atuação na defesa dos colegas e por ter se recusado a dar o golpe pretendido pelos extremistas, o general Freire Gomes também acabaria se tornando alvo das “operações psicológicas”. Elas incluíam uma aposta dos inconformados: buscar a quebra da disciplina e da hierarquia. Ao mesmo tempo, surgiu um manifesto de oficiais endereçado aos comandantes das Forças Armadas.

Em 26 de novembro, 221 militares da reserva – entre os quais 46 oficiais generais (33 da FAB, dez da Marinha e 3 do Exército) –, todos do grupo autodenominado Guardiões da Nação, assinaram uma petição aos comandantes das três Forças na qual pediam que agissem contra as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, que afastara a contestação sem provas feita pelo PL contra a vitória de Lula. O primeiro nome da lista era o do general e deputado federal bolsonarista Eliéser Girão (PL-RN).

Dois dias depois, apareceu outra carta, que dizia trazer assinaturas da ativa. Horas antes de seu surgimento, o coronel da reserva Márcio Amaro (49,6 mil seguidores no Twitter) afirmou que o manifesto ganharia outra relevância se subscrito pelos colegas em atividade. “Vocês ficaram sabendo da carta antes. Se houver carta dos oficiais da Ativa, a coisa muda de figura. Quem pode precionar (sic) ? O povo! Não haverá liderança externa. O povo nas ruas é a única força capaz de evitar a vergonha de sermos governados por ladrões”.

Amaro não tem curso de Estado-Maior. Ele gravou lives com o comentarista Paulo Figueiredo Filho, referências do bolsonarismo. O documento acabou assinado por uma dúzia de oficiais da ativa e por centenas de civis bolsonaristas. O coronel tinha um objetivo: depor Lula. Em meio ao ataque do dia 8, ele escreveu: “Não há condições desse governo que ainda não completou uma semana no poder continuar.”

No mesmo dia, o oficial publicou: “Quando os que comandam perdem a vergonha, os que obdecem perdem o respeito”. Os extremistas buscavam emparedar o Alto Comando. Por fim, como último recurso, extremistas pretenderam “dar um bypass” nos generais, apelando aos coronéis com tropas para impedir a posse de Lula. A intentona falhou. Não se produziu nenhum coronel Mohamed Ali Seineldín ou mesmo um Tejero Molina no Brasil. Até ontem, Placídio, Montenegro e Amaro mantinham suas publicações nas redes sociais.

 Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo, em 19.01.23, às 11h36

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

A força da intolerância

A maioria dos brasileiros, diz pesquisa, não acredita no arrefecimento do sectarismo político, razão pela qual urge que as autoridades atuem para restabelecer um diálogo mínimo

Apenas três em cada dez brasileiros dizem acreditar que a tolerância política aumentará em 2023, de acordo com um levantamento feito pelo instituto de pesquisa Ipsos em dezembro. O resultado nacional é considerado baixo, mas não está distante da média global negativa (34%) aferida pelo instituto em 36 países. De fato, a percepção de aumento da intolerância política está longe de ser um problema exclusivo do Brasil.

A sociedade brasileira – e aqui não há novidade – está profundamente dividida no que concerne às afiliações ideológicas e partidárias dos cidadãos. Não há no País um centro político democrático, ao menos não como força eleitoral, capaz de conquistar corações e mentes da maioria pelo apelo a consensos mínimos. Sobressai a estridência dos polos. Prevalece o distúrbio comunicacional – muita gritaria e pouca escuta. Ambos com sequelas terríveis até para o ambiente privado dos indivíduos. Quantos laços familiares, de trabalho e de amizade foram desfeitos nos últimos anos em virtude de posições políticas tidas como irreconciliáveis?

A intentona perpetrada por radicais bolsonaristas no dia 8 passado só aumentou a percepção de que o Brasil virou uma terra de gente infensa ao diálogo e incapaz de respeitar diferenças de opinião. É evidente que não há diálogo possível com extremistas; menos ainda com extremistas criminosos. A eles, o isolamento e o peso da lei. Mas, em geral, essa percepção não só está errada, como deve ser ativamente desconstruída – desde a mais alta autoridade executiva da República, o presidente Lula da Silva, até o mais anônimo dos cidadãos.

A grande maioria dos brasileiros, incluindo muitos dos que votaram em Jair Bolsonaro, condena o emprego da violência como forma de ação política. Há, portanto, saídas para essa intolerância que paralisa o País, desde, é claro, que autoridades e cidadãos, imbuídos de boa-fé, ajam para superá-la. Como disse ao Estadão o cientista político Miguel Lago, “a capacidade de condenar essa atividade (o assalto contra as sedes dos Poderes) é um prenúncio de que é possível arregimentar forças em defesa da civilidade”.

O desafio do País não é superar as divergências políticas entre os cidadãos, mesmo as mais aferradas. Elas são próprias de qualquer democracia digna do nome. O desafio é voltar a trilhar um caminho de amadurecimento democrático no qual a coabitação seja possível. Para isso, há que reconstruir um consenso, entre tantos outros, em torno do respeito inarredável ao grande pacto que nos une como cidadãos: a Constituição. A Lei Maior protege a livre manifestação de divergências e, ao mesmo tempo, coíbe a intolerância.

A coabitação entre divergentes só é possível em um ambiente de tolerância e respeito às leis, vale dizer, quando ideias, valores e visões de mundo por vezes conflitantes – desde que não configurem crimes – não são desqualificados a priori por quem se acha o único portador da “verdade” ou de uma ideia do que seja o “bem”; tampouco seus defensores são tratados como inimigos de uma facção rival por aqueles que pensam diferente.

Idealmente, o encerramento da eleição deveria sobrestar essas diferenças, ao menos até o próximo ciclo eleitoral, e unir os cidadãos em torno de um projeto comum de País. Mas isso não aconteceu. Ao contrário.

Agora cabe ao vencedor, o presidente Lula, tomar a iniciativa de chamar todos os brasileiros ao diálogo, de mostrar, e não apenas com palavras, que, de fato, governará para todos. Na prática, isso significa ampliar as forças políticas presentes em seu governo, contemplando o maior número possível de interesses da sociedade. Dividindo poder entre uma frente realmente ampla e democrática.

A intolerância política não desaparece de uma hora para outra por força de vontade; é preciso ações concretas para isolar os extremistas e dialogar com os divergentes que “estão inseridos no jogo democrático”, como bem disse Miguel Lago.

Lula será um presidente bem-sucedido se entender que sua vitória eleitoral não foi apenas sua ou do PT. Que o presidente compreenda a dimensão de sua responsabilidade histórica.

Editorial /  Notas & Informações, O estado de S. Paulo, em 17.01.23

A direita de Bolsonaro

O 8 de janeiro expôs um golpismo inédito

Golpistas invadem o Palácio do Planalto em 8 de janeiro - Gabriela Biló /Folhapress

No dia 1º de novembro, logo depois da derrota eleitoral, Jair Bolsonaro (PL) gabou-se: "a direita surgiu de verdade em nosso país".

Na tarde de 8 de janeiro viu-se em Brasília o que é a direita de Bolsonaro. Direita o Pindorama sempre teve, mas a de Bolsonaro tem caraterísticas próprias e inéditas. É uma direita com bases populares, mobilizável para atos de delinquência. Noves fora George Washington de Oliveira Souza, gerente de um posto de gasolina no Pará, que está preso, 23 dos 1.500 presos de Brasília tinham antecedentes criminais. O George Washington bolsonarista planejava um Riocentro 2.0, explodindo um caminhão de combustível no pátio do aeroporto de Brasília, sincronizado com um corte de energia. Esse é o braço terrorista dessa direita.

No braço dos atentados de 8 de janeiro estavam duas figuras singulares.

Uma é Maria de Fátima Mendonça Jacinto Souza, a "Fátima de Tubarão" (SC), de 67 anos. Ela invadiu o Palácio do Planalto, avisando: "Vamos para a guerra, é guerra agora. Vamos pegar o Xandão agora." Xandão é o ministro Alexandre de Moraes. O outro é o paraense Antônio Geovane Sousa de Sousa, de 23 anos, preso quando tentava acender um explosivo.

Fátima foi condenada a três anos e dez meses de prisão por tráfico de drogas e cumpre a pena em regime aberto. Geovane foi preso em 2018, acusado de ter matado um homem a facadas. É um foragido. O que leva pessoas com antecedentes criminais a participar de atos como os atentados de 8 de janeiro só pode ser uma irresponsável sensação de impunidade. Mas essas poderiam ser histórias do andar de baixo.

No de cima, vai-se achar Creusa Buss Melotto. Duas semanas antes do fim do governo, a senhora recebeu do Gabinete de Segurança Institucional uma autorização para a exploração de garimpo de ouro numa área de 9,8 mil hectares na Amazônia. Na década de 90 ela cumpriu pena de seis anos de prisão por tráfico de drogas.

A direita de Jair Bolsonaro nada tem a ver com a de figuras como Roberto Campos ou a do ultramontano católico Gustavo Corção. Ela tem a cabeça sabe-se lá onde, mas seus pés estão nas milícias, na grilagem de terras, nas delinquências amazônicas, e até mesmo em casos de crimes.

(As ligações da ministra do Turismo, Daniela Carneiro, ou "Daniela do Waguinho" com milicianos da Baixada Fluminense são uma carga para o governo de Lula. Comparar o grosso da militância bolsonarista com a petista é chamar urubu de meu louro, mas tanto os urubus como os papagaios são aves.)

A direita mobilizada por Bolsonaro fez no dia 8 de janeiro coisas que nunca foram vistas na política nacional. Aqui e ali já foram cometidos atos violentos, mas nunca tiveram o apoio expresso e persistente de uma liderança nacional.

Queira-se ou não, Jair Bolsonaro teve 58,2 milhões de votos. Perdeu para Lula por uma margem de 2%. Num universo eleitoral que cresceu, em 2022 ele teve cerca de 400 mil votos a mais que em 2018.

O 8 de janeiro sugere que pode ter começado ocaso político de Bolsonaro. Sua direita é outra, nunca vista. Violenta e golpista, com base popular.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é Jornalista e também autor de cinco volumes sobre a história do regime militar no Brasil, entre eles "A Ditadura Encurralada". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.01.23


A radicalização dos idosos

Ao abraçarem seita bolsonarista, encontram novo propósito de vida e senso de pertencimento

Idoso bolsonarista no prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

É fácil desdenhar e afirmar que entre os golpistas há um bando de velhos que deveria voltar para o bingo. Falamos em delírio coletivo, saudosismo ou demência sobre gente que acampou em frente aos quartéis e participou da quebradeira, mas a radicalização dos idosos precisa ser olhada com lupa.

Manipulação, abuso e controle emocional são ingredientes usados pela extrema direita para cooptar seguidores, e os idosos foram alvo fácil da seita bolsonarista. Os não ativos digitais têm ainda mais dificuldade de lidar com notícias falsas, teorias da conspiração, trolls e deep fakes.

Não à toa "gaslighting" foi eleita a palavra de 2022 pelo dicionário Merriam-Webster, impulsionada pelo aumento de tecnologias usadas para dominar as pessoas, especialmente em contextos políticos. Sem tradução literal, pela definição é a prática de enganar alguém de forma rudimentar e ter alguma vantagem.

"Gaslighting" começou a ser usada há poucos anos para definir abuso em relacionamentos amorosos, inspirada na peça "Gas Light", de 1938. O personagem principal tenta convencer a mulher de que ela está ficando louca quando reclama que a luz está mais fraca —o marido diz que é sua imaginação.

Exatamente o que acontece sempre que Bolsonaro, parlamentares e blogueiros apoiadores dizem algo inacreditável para a maioria de nós, mas que passa a ser verdade entre seus seguidores. Ao contestarem encontrarão resistência em seus próprios grupos, então passam a aceitar o inaceitável.

Há, obviamente, gente mau-caráter, consciente do que faz, dos danos que provoca à democracia. Mas a massa de manobra, importante para manter o bolsonarismo ativo, não ficou alienada da noite para o dia. O que a extrema direita fez foi lhes dar a ilusão de que participam de algo grandioso. Ao abraçarem a seita bolsonarista, os idosos suprem carências afetivas, encontram um novo propósito de vida, o senso de pertencimento que muitos perderam à medida que envelheciam, inclusive pelo abandono da própria família.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é Jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.01.23.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

É preciso investigar Bolsonaro

Minuta de decreto é mais um elemento a indicar envolvimento do governo Bolsonaro em atos antidemocráticos. Não cabe impunidade a quem viola acintosamente as leis e a Constituição


Na pandemia, cloroquina até para as emas do Palácio

Jair Bolsonaro deixou o País no dia 30 de dezembro. Mas nem por isso está imune às leis brasileiras. Suas ações e omissões continuam passíveis de ser responsabilizadas juridicamente. No domingo passado, hordas de bolsonaristas – acampados desde o resultado do segundo turno das eleições – invadiram as sedes dos Três Poderes, destruindo e vandalizando o patrimônio público. Ainda que o ex-presidente tenha tentado se distanciar do caráter violento dos atos de 8 de janeiro, é evidente a conexão entre a ação dos vândalos no domingo passado e a reiterada campanha de Bolsonaro contra as instituições republicanas, em concreto contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Uma das autoridades cuja omissão se mostrou mais decisiva nos acontecimentos de domingo passado em Brasília foi o ministro da Justiça do governo Bolsonaro, Anderson Torres, que havia sido nomeado neste ano Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Na segunda-feira, Anderson Torres, que estava nos Estados Unidos, foi exonerado do cargo. No dia seguinte, a pedido da Polícia Federal, o ministro Alexandre de Moraes decretou sua prisão preventiva.

A reiterar o vínculo entre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro e o governo Bolsonaro, nas diligências de busca e apreensão na casa de Anderson Torres, agentes da Polícia Federal encontraram uma minuta de decreto presidencial a respeito de um estapafúrdio estado de defesa no TSE, com o objetivo de “garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022″. Segundo o texto, seria constituída uma “Comissão de Regularidade Eleitoral” composta por 17 membros, dos quais 8 seriam militares oriundos do Ministério da Defesa.

Uma rigorosa investigação se impõe. Se for confirmada, a tentativa de atropelar o processo eleitoral, usando as atribuições da Presidência da República, é algo muito grave, que viola os fundamentos da República. Não cabe impunidade a quem desrespeita tão acintosamente a Constituição e as leis do País.

Em novembro do ano passado, dissemos neste espaço e agora, diante de novos e mais graves indícios, reiteramos: “É preciso apurar a responsabilidade jurídica de Jair Bolsonaro e, nos casos cabíveis, aplicar as penas correspondentes. Toda impunidade é prejudicial ao País, mas ainda mais grave seria a eventual impunidade de quem ocupou o mais alto posto da República. Representaria um tremendo mau exemplo para toda a sociedade” (A responsabilidade jurídica de Bolsonaro, 14/11/2022).

A apreensão da minuta de um decreto de estado de defesa com o exclusivo propósito de alterar o resultado das eleições presidenciais é gravíssima. Expõe a audácia e prepotência da cúpula do governo Bolsonaro, que, pelo visto, não queria ser apeada do poder pelo voto popular. Mas é preciso reconhecer: o texto é absolutamente coerente com o espírito antidemocrático e antirrepublicano que Jair Bolsonaro vem demonstrando ao longo de toda sua vida pública.

Não se pode tapar o sol com peneira. A cada dia que passa, surgem mais elementos a indicar o envolvimento de Jair Bolsonaro e membros do primeiro escalão do seu governo no desenho e realização de atos que atentam contra o regime democrático. É preciso investigar, indo até o fim na apuração de tais condutas. O Estado Democrático de Direito – em concreto, o respeito aos direitos e liberdades de cada cidadão – merece esse cuidado.

Na trajetória de responsabilizar os agressores do regime democrático, há um aspecto especialmente importante. Seguindo o devido processo legal, todos aqueles que tiverem comprovada sua participação em atos criminosos e antidemocráticos devem ser alijados do processo eleitoral. Merecem tornar-se inelegíveis. A Constituição prevê essa possibilidade precisamente para que a defesa da democracia seja efetiva.

A barbárie de 8 de janeiro não foi fruto de geração espontânea. É preciso investigar não apenas os loucos acampados, mas também os graúdos – estejam onde estiverem.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.01.23

O contribuinte está mais indefeso

MP que dá à Fazenda superpoderes contra o contribuinte no Carf é problemática em sua forma, motivação e conteúdo

O governo Lula reinstituiu, pela Medida Provisória (MP) 1.160/2023, o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a última instância administrativa para contribuintes questionarem a validade de autuações fiscais. Vinculado ao Ministério da Fazenda, o Carf é formado por quatro conselheiros: dois indicados pela Receita e dois por setores econômicos. Originariamente, em caso de empate, prevalecia o “voto de qualidade”, ou seja, valia por dois o voto do presidente da Turma. Como ele é necessariamente um representante da Receita, na prática o voto de Minerva pesava sempre a favor do Fisco. Em 2020, esse modelo foi alterado: em caso de empate, a decisão passou a ser favorável aos contribuintes, conforme o princípio in dubio pro reo.

A medida é problemática em sua forma, motivação e conteúdo.

Segundo a Constituição, a edição de MPs exige relevância e urgência, sendo vedada em matérias de direito penal e processual civil. Muitos juristas afirmam que sanções administrativas, como as penas tributárias decididas pelo Carf, têm uma dimensão penal e que as leis disciplinadoras das funções e capacidades dos julgadores integram o sistema processual.

Ao justificar a MP 1.160/2023, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, alegou que o desempate pró-contribuinte gerou perdas para os cofres públicos, que o novo Carf tem ignorado jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em favor da União e que seu modelo é fonte de corrupção. Ora, os casos de malfeitos identificados pela Operação Zelotes envolviam justamente conselheiros da Fazenda durante a vigência do voto de qualidade. Além disso, não há evidências de que as decisões do Carf favoráveis ao contribuinte sejam antijurídicas. De resto, o apetite arrecadatório não pode se sobrepor aos princípios de justiça que devem reger a atuação do poder público.

A decisão do Congresso pelo fim dos superpoderes do conselheiro da Receita, com o desempate a favor do contribuinte, foi questionada na Justiça e o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria pela constitucionalidade. O julgamento está suspenso.

A MP 1.160/2023 traz ainda outra grave disfunção, permitindo que, em caso de o Carf dar razão ao contribuinte, a Fazenda recorra à Justiça. Tal possibilidade ignora que o Carf é um órgão da Fazenda. Não faz sentido que a Fazenda acione o Poder Judiciário contra uma decisão que ela mesma proferiu. Trata-se de evidente violação do princípio da unidade da administração pública.

A complexidade do sistema tributário brasileiro é uma das principais causas dos altos índices de litigância judicial. Não há dúvida de que o modelo do Carf pode ser avaliado e discutido no âmbito de uma reforma tributária. No entanto, não é gerando desequilíbrio a favor do Fisco, por meio de mudança abrupta imposta por medida provisória, que se aprimora o seu funcionamento. A representação do contribuinte no Carf não pode ser de fachada, como mero meio de dar ares de legitimidade ao apetite arrecadatório do Estado.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.01.23

Exército terá de reconstruir disciplina e controle da reserva após golpe bolsonarista

Simpatia pelos extremistas pode ter impedido análise correta do cenário de radicalização dos que tomaram a sede dos três Poderes, em Brasília

Blindado e tropa de choque do Exército cercam acampamento em frente ao QG, em Brasília, na noite do dia 8

Um dos piores dias da história do Brasil. É assim que generais ouvidos pelo Estadão classificaram o que houve na Esplanada dos Ministérios, no dia 8, em Brasília. Uma semana antes, o Comando Militar do Planalto (CMP) havia mobilizado 6 mil homens para garantir a segurança da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, sem que estes pudessem ser vistos ou simplesmente aparecer. E tudo saiu como planejado. Nada estragou a festa do presidente eleito.

O que houve, então, para que a segurança falhasse e a chamada “tomada de poder” levada a cabo pelos extremistas pudesse ser concluída com a invasão e depredação das sedes do três Poderes? Houve um apagão na área de inteligência, e o cenário que o CMP tinha era o de mais uma manifestação, como tantas outras levadas a cabo pelo bolsonarismo nos últimos dois anos. Todas, apesar de muitas de suas palavras de ordem serem manifestamente golpistas – intervenção militar, fechar o STF e o Congresso, etc – não haviam passado da palavra para a ação.

O cenário que a chefia da Segurança Pública do Distrito Federal e que os militares do Exército trabalhavam estava errado. Faltou aos responsáveis pela segurança e pelos órgãos de inteligência a correta leitura da tempestade que se avizinhava. E havia raios e trovoadas que a anunciavam nas últimas semanas. Episódios de violência haviam sido registrados em dezenas de atos e protestos dos que estavam inconformados com a eleição de Lula. Eles se repetiram na estradas, com tentativas de assassinato de policiais rodoviários, nas cidades com as agressões a estudantes e em outros atentados à ordem pública.

Até que, na véspera do Natal, bolsonaristas tentaram explodir uma bomba em um caminhão-tanque em Brasília. A tentativa frustrada podia causar caos e mortes no aeroporto de Brasília. Mas não foi suficiente para alertar as autoridades. Muitos dos que tinham responsabilidade institucional continuaram a escalar a crise, como o almirante Almir Garnier Santos, que se recusou a passar o comando da Marinha ao sucessor, o almirante Marcos Sampaio Olsen. Garnier empregara mulher e filho no governo Bolsonaro. E esqueceu que a continência se presta à Presidência e não ao presidente, adubando o extremismo.

Era evidente que a radicalização dos perdedores na eleição lentamente deixava o campo das palavras para passar ao das ações. Saía da arena política para “continuá-la” nas ações armadas. Foi assim que se convocou a intentona do dia 8. Chamada pelos radicais de “tomada do poder”, seus organizadores pediam a participação de militares da reserva que tivessem experiência para enfrentar policiais na manifestação. Deixavam claro que a intenção era acampar na sede dos três Poderes para forçar a ação das Forças Armadas a fim de derrubar Lula. Seguiam o modelos dos golpes registrados recentemente na Bolívia e no Sri Lanka.

Para ter sucesso, a intentona bolsonarista contava com a simpatia que o movimento despertava nos quartéis. Assim também outros radicais no passado tentaram tomar o poder por meio de insurreições armadas nos anos 1920 e 1930. A última vez que um partido político tentara usar essa fórmula foi em 1938, quando o tenente Severo Fournier liderou os fascistas da Ação Integralista Brasileira no assalto ao Palácio da Guanabara, no Rio, então residência oficial da Presidência. Três anos antes, os comunistas, liderados por Luiz Carlos Prestes, haviam tentado tomar o poder, rebelando unidades militares no Rio e no Nordeste.

Fournier e Prestes apostavam no apoio que teriam no Exército e na Armada. E falharam. O mesmo se passou agora com a intentona bolsonarista. É possível que a simpatia pelos acampados na frente dos quartéis tenha levado muitos dos generais a subestimar a ameaça representada pelos extremistas, o que os impediu de analisar corretamente o processo de radicalização acelerada desse grupo. A ideia de que os episódios de fanatismo se reproduziam sem maiores consequências ajudou a criar a avaliação errada.

Agora, confrontados com o fracasso da estratégia para desmobilizar os acampamentos na frente dos quartéis, os generais se veem diante da desconfiança de que teriam sido lenientes com os extremistas. Trata-se de julgamento açodado. Se alguém queria dar um golpe – e a minuta apreendida na casa do ex-ministro Anderson Torres mostra que havia sim quem desejasse isso –, é necessário dizer que a ruptura constitucional só não ocorreu porque os criminosos não obtiveram o apoio que esperavam nas Forças Armadas.

É necessário ainda estabelecer as responsabilidades sobre o que aconteceu em Brasília. E as Inteligências Policial e Militar são as principais responsáveis pelo que houve. Ou por incompetência de ver o que qualquer jornalista já sabia desde sexta-feira, dia 6 – os planos violentos do bolsonarismo –, ou por conivência criminosa. Em qualquer dos casos, o bom senso exige que seus chefes sejam mudados. É preciso apurar as responsabilidades e isolar os extremistas.

Mas também se deve fazer Justiça. O golpe só não teve sucesso também porque, desde os coronéis até o Alto Comandos das Forças, os chefes militares não aceitaram a ruptura desejada pelos extremistas. Eles cumpriram com seu dever. Em tempos extremos, de polarização, a decisão desses homens deve ser reconhecida. Por mais que a simpatia passada dos generais pelo que hoje é chamado de bolsonarismo exista e por mais que esse projeto de poder tenha se mostrado um desastre, é preciso dizer que, no dia 8, só os que se deram bem no governo ou que se fanatizaram aderiram ao projeto de tomada de poder dos radicais.

Os militares têm, agora, a missão de reconstruir as relações com os civis e a disciplina entre os milhares de integrantes da reserva. O caso do coronel Adriano Testoni não é único. Após ofender o Exército e seus generais no dia 8, o coronel bolsonarista foi indiciado em Inquérito Policial Militar (IPM), concluído em 3 dias, depois de ter sido aberto por ordem do general Gustavo Henrique Dutra Menezes, comandante do CMP. Enfrentar o extremismo será uma das principais missões da atual geração de oficiais. Com o devido processo legal, mas sem passar a mão na cabeça ou anistiar os bandidos que envergonharam o País.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é Jornalista especializado em assuntos militares. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.01.23