segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Democracias não morrem de ataque cardíaco

É importante estar ciente de que esse perigo existe e que a única vacina é o fortalecimento das instituições e uma cidadania vigilante

Apoiadores do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro durante o assalto à sede do Congresso do país em Brasília no domingo.(Foto de André Borges, Ag. EFE)

Mesmo as tentativas de golpe, que acabamos de ver no Brasil, estão imbuídas do espírito da época. Chamada pelas redes e toda essa gestualidade tão passível de ser vista na televisão e no ciberespaço: estetização banal —lembre-se do personagem dos chifres sentado à mesa da presidência da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos tirando selfies ou do uniforme amarelo dos brasileirosSalta do mundo virtual para o real como se fosse sua extensão natural. A consequência imediata é que, uma vez reprimida, a confusão se espalha entre seus protagonistas. Mas não éramos os mocinhos, os que iriam salvar o país? É aqui que se manifesta o seu aspecto mais pós-moderno. Cada um acredita em sua verdade tribal; a realidade objetiva desapareceu atrás de relatos interessados. Il n'y a pas hors de texte , como diria o bom e velho Derrida. Tudo consiste em contar milongas e depois infantilizar as pessoas a ponto de acreditar, como é o caso das teorias da conspiração. Tudo é fala. Se então o mundo da realidade não se adapta a ele, pior para o mundo, mesmo que se vingue mais tarde.

Se não fosse uma coisa tão grave —lembremos que na captura do Capitólio houve até várias mortes—, a reflexão anterior estaria justificada. Não, embora não sejam comparáveis ​​aos motins "modernos" anteriores, não podemos deixar de apontar os seus perigos. No entanto, acredito que não é assim, através da invasão das instituições pelas massas, que as democracias morrem. Além do mais, quase até facilitam o fortalecimento de seus anticorpos. As democracias de hoje não morrem de ataques cardíacos ou derrames, mas de câncer; não por choque, mas por uma metástase progressiva em todo o corpo político até ocorrer a falência de múltiplos órgãos. É um golpe a fogo lento, quase imperceptível, mas que está bem claro no manual populista. O primeiro objetivo é assumir o Estado, assim como o Governo. E isso pressupõe a eliminação ou patrimonialização de todo o sistema de contrapoderes, especialmente o judiciário. Colonizar instituições e instrumentalizá-las para fins partidários. A maioria, sempre circunstancial, pode assim aspirar a tornar-se permanente. Em seguida, ou paralelamente, o objetivo é desacreditar toda oposição, seja de outras forças políticas ou de meios de comunicação desfavoráveis; ignorando o pluralismo, que o povo fala "a uma só voz", aquela emitida pelo líder ou seus capangas; silenciar o dissidente.

Alguns o fazem de forma mais ou menos sutil, como na Hungria e na Polônia; outros de forma flagrante, como vimos na América Latina ou na Turquia de Erdogan , onde seus possíveis adversários eleitorais estão presos. E outros, enfim, os que não conseguem, recorrem às travessuras com que começamos. O importante é ter consciência de que esse perigo existe e que a única vacina é o fortalecimento das instituições e uma cidadania vigilante. Somos avisados.

Fernando Vallespin escreveu este artigo originalmente para o EL PAÍS. Publicado em 15.01.23.

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