terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Excessos? O que dizem juristas sobre 'superpoderes' de Alexandre de Moraes contra golpismo

À frente de inquéritos controversos abertos de ofício pelo próprio STF, o ministro já determinou centenas de prisões, suspensão de contas em redes sociais e até mesmo o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, sob a justificativa de conter ataques à Corte e ao Estado Democrático de Direito.

Alexandre de Moraes chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017 após acidente que matou Teori Zavascki (Reuters)

Alexandre de Moraes chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017 por obra do acaso, quando uma inesperada vaga na Corte foi aberta após um acidente fatal vitimar o ministro Teori Zavascki. De lá pra cá, se tornou, possivelmente, a autoridade mais temida e poderosa da República.

Para alguns, Moraes se tornou o herói da República, entendimento que ganhou mais apoio após o dia 8 de janeiro, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro inconformados com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva invadiram as sedes dos três Poderes. Para outros, porém, é visto como um ministro que acumulou poderes demais e tem desrespeitado garantias constitucionais, ferindo o sistema democrático que pretende preservar.

A origem dos 'superpoderes'

As investigações concentradas no gabinete de Moraes tiveram origem no chamado inquérito das Fake News, alvo de controvérsia jurídica já no seu início, por ter sido aberto no início de 2019 por decisão direta do então presidente do STF, Dias Toffoli. Isso foi feito à revelia da Procuradoria-Geral da República - ou seja, sem a participação do Ministério Público, que é a instituição responsável por investigar e denunciar criminalmente no país, segundo a Constituição Federal.

No entanto, julgamento do STF de junho de 2020 considerou o inquérito legal. A avaliação foi que o Supremo pode abrir investigação quando ataques criminosos forem cometidos contra a própria Corte e seus membros, representando ameaças contra os Poderes instituídos, o Estado de Direito e a democracia.

A partir daí, outros inquéritos foram instaurados, como os que investigam atos antidemocráticos ou a atuação de milícias digitais. Em vez de a relatoria dessas investigações serem sorteadas entre os ministros do STF, elas foram mantidas com Moraes, sob a justificativa de apurarem possíveis crimes relacionados ao inquérito inicial.

Para críticos, como o professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua, isso estaria concentrando muitos poderes nas mãos do ministro.

"A lógica do Estado de Direito foi criada lá no século 18, principalmente contra o absolutismo monárquico, que era o símbolo da concentração de poder. Então, a lógica do Estado de Direito é dividir poder, evitar que uma autoridade só, por mais poderosa que ela seja, decida sobre tudo. Porque se essa autoridade falhar, e é previsível que ela vá falhar, ninguém mais tem proteção em lugar nenhum", argumenta o professor.

Especialistas dizem que ataque a Brasília foi maior atentado à democracia desde a Constituição de 1988 (Getty Images)

O professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Emilio Peluso considera difícil avaliar no curso das investigações, que em boa parte tramitam em sigilo, se de fato há conexão em todos os inquéritos que justifiquem sua manutenção nas mãos de Moraes.

Ele reconhece que a concentração dos casos com um único ministro traz riscos, mas avalia que uma recente mudança no regimento interno do Supremo, obrigando que todas as medidas cautelares adotadas individualmente por ministros sejam imediatamente submetidas ao plenário ou a uma das duas turmas da Corte, reduz a possibilidade de abusos. Medidas cautelares são aquelas que visam preservar o andamento de uma investigação ou processo, como prisões temporárias, monitoramento eletrônico e suspensão da função pública.

"Com isso, você mantém um ministro que já tem conhecimento de toda a investigação e já sabe aquilo que pode levar a uma eventual responsabilização no futuro, que conhece o processo como um todo e que pode continuar dirigindo esse processo de uma maneira eficaz dali em diante. E, ao mesmo tempo, você exige que todos esses atos sejam fiscalizados pelo plenário ao exigir essa submissão imediata das decisões cautelares", nota Peluso.

Para o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei, é natural que haja controvérsias quando se trata de um volume tão grande de decisões. No entanto, ele avalia que, de modo geral, o ministro tem agido corretamente para enfrentar o que vê como o maior ataque ao sistema democrático estabelecido pela Constituição de 1988.

"Evidentemente, se a gente for olhar uma por uma, é muito difícil - e isso vale para Alexandre de Moraes, para qualquer outro magistrado - que haja consenso sobre todas as decisões que tomou num universo tão grande de casos, porque as pessoas têm mesmo interpretações divergentes, seja sobre os fatos, as provas, ou a (aplicação da) lei", afirma.

Medidas fora da Constituição?

Na visão de Pádua, porém, a atuação de Moraes para proteger a Constituição tem usado medidas extraordinárias sem base na própria Constituição e nas leis brasileiras. E, na sua avaliação, o grave cenário político não autoriza essa atuação, mesmo que ele venha recebendo apoio do Supremo, com medidas referendadas pelo plenário.

Pádua ressalta que a própria Constituição prevê situações extraordinárias em que pode haver supressão de direitos e aumentos dos poderes de certas autoridades provisoriamente, como a decretação de Estado de Defesa ou do Estado de Sítio pelo presidente, com aprovação do Congresso.

"Nenhum Poder, nem mesmo o Supremo Tribunal Federal, poderia invocar situações excepcionais para aumentar os seus poderes, exceto nos casos que a própria Constituição prevê", defende Pádua.

"A despeito dos atos anômalos do dia 8 de janeiro, do cenário político que vemos no Brasil, ninguém, que eu saiba, propôs a sério a decretação de algum Estado de Sítio ou de Defesa no Brasil", disse ainda.

Na sua avaliação, é possível enfrentar as ameaças autoritárias com mecanismos constitucionais.

Pádua cita como exemplo o afastamento de Ibaneis Rocha por 90 dias, que foi determinado por Moraes sem que houvesse um pedido da Procuradoria-Geral da República ou mesmo de outra instituição. Ele ressalta que o artigo 36 da Constituição permite ao STF determinar intervenção em uma unidade da federação para "assegurar o regime democrático", desde que haja uma representação da PGR.

Apoiadores da atuação de Moraes, por outro lado, argumentam que o procurador-geral da República, Augusto Aras, no cargo desde setembro de 2019, é aliado de Bolsonaro e tem sido omisso na repressão aos movimentos antidemocráticos.

Para o professor da UFF, isso também não justifica ações que vê como anticonstitucionais. Ele questiona também se havia de fato necessidade de afastar Rocha quando Lula já havia determinado a intervenção federal na área de segurança pública do DF até 31 de janeiro. Essa medida adotada pelo presidente está prevista na Constituição e foi rapidamente referendada pelo Congresso, seguindo o que determina a lei.

Apoiadores de Jair Bolsonaro quebram vidro do Supremo Tribunal Federal durante invasão do edifício (Getty Images)

Emilio Peluso, por sua vez, defende a legitimidade da decisão. Ele nota que o afastamento foi determinado dentro de um requerimento apresentado pela Advocacia Geral da União (AGU), órgão que representa os interesses do Poder Executivo federal.

Embora não houvesse uma solicitação direta para afastar o governador, o requerimento pedia de forma ampla que Moraes adotasse providências para impedir a repetição dos crimes, as chamadas medidas cautelares.

É o que diz esse trecho do requerimento, apresentado dentro de um dos inquéritos presididos por Moraes: "Prisão em flagrante de todos os envolvidos nos atos criminosos decorrentes de prédios públicos federais em território nacional, inclusive do Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e demais agentes públicos responsáveis por atos e omissões, avaliando, até mesmo, a adoção de outras medidas cautelares que impeçam a prática de novos atos criminosos".

Ao determinar o afastamento com base nesse pedido, Moraes avaliou que "a omissão das autoridades públicas, além de potencialmente criminosa, é estarrecedora, pois os atos de terrorismo se revelam como verdadeira 'tragédia anunciada', pela publicidade da convocação das manifestações ilegais pelas redes".

Peluso ressalta também que a decisão de Moraes foi referendada por ampla maioria do STF. Apenas os ministros indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro se opuseram ao afastamento. Para Nunes Marques, não houve omissão dolosa (intencional) por parte de Ibaneis Rocha. Já André Mendonça considerou que o Supremo não era a Corte adequada para decidir, já que governadores têm foro especial no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Prisões em massa?

Outro ponto alvo de questionamentos foi a decisão de Moraes de determinar a prisão de todos que estavam no acampamento em frente ao Quartel General (QG) do Exército, no dia seguinte aos ataques antidemocráticos.

Esse acampamento teve início logo após a eleição de Lula e pedia a ação das Forças Armadas para barra a posse do presidente eleito.

O local serviu de ponto de concentração para os vândalos que atacaram as sedes dos três Poderes, muitos deles vindos de ônibus de diferentes cantos do país nos dias anteriores. Na noite de 8 de janeiro, após os ataques, quando parte deles havia retornado ao QG, a Polícia Militar tentou entrar no acampamento para efetuar prisões, mas o próprio Exército teria impedido.

Alexandre de Moraes decretou prisão de centenas de invasores (Getty Images)

"Soldados da Polícia do Exército, equipados com escudos, formaram um cordão que impediu a passagem da PM. Foram posicionados três blindados para reforçar o bloqueio", noticiou o jornal Folha de S.Paulo, que esteve no local.

Após isso, ainda na madrugada do dia 9 de janeiro, Moraes determinou a dissolução em até 24 horas dos acampamentos que continuavam em frente a quartéis em diversas cidades do país, sob pena de responsabilização das autoridades civis e militares responsáveis pela retirada dos acampados.

Ele decretou também a "prisão em flagrante de seus participantes pela prática dos crimes previstos nos artigos 2ª, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016 e nos artigos 288 (associação criminosa), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado), 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III (perseguição), 286 (incitação ao crime)".

Com isso, na manhã do dia 9, a polícia do DF encaminhou cerca de 1.200 pessoas da área do QG do Exército para averiguação na Academia Nacional de Polícia, segundo relatório da Defensoria Pública da União (DPU). Somadas a outras prisões, como as efetuadas da noite anterior durante os atos de vandalismo, cerca de 1400 pessoas foram detidas.

Depois, essas pessoas foram submetidas a audiências de custódia com juízes, direito que é garantido aos presos para que seja avaliada a legalidade da prisão. Essas audiências devem ser realizadas em 24 horas, mas diante do número elevados de presos, levaram alguns dias.

Após essas audiências, Moraes decidiu converter 942 prisões em flagrante em prisões preventivas (sem prazo para soltura), sob a justificativa de garantir a ordem pública e a efetividade das investigações. Os demais 464 obtiveram liberdade provisória e poderão responder a eventuais processos com a colocação de tornozeleira eletrônica entre outras medidas.

Segundo um levantamento da Defensoria Pública da União, em ao menos seis casos Moraes estabeleceu a prisão preventiva contrariando a posição do Ministério Público, que havia recomendado a liberação da pessoa ou outras medidas, como prisão domiciliar.

Em um relatório sobre os direitos humanos desses presos, a Defensoria Pública da União argumenta que a lei 13.964/2019, ao alterar o Código Processo Penal para eliminar a possibilidade de prisão "de ofício" pelo juiz, na prática "vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva, ou imposição de medidas cautelares diversas da prisão, sem o prévio requerimento do Ministério Público, seja no curso da investigação criminal ou do processo".

No entanto, a decisão de Moraes não é totalmente inovadora nesse ponto, pois há um precedente de 2022 do STJ estabelecendo que, se houver pedido do Ministério Público por outras medidas cautelares mais leves que a prisão, o juiz poderá optar por prender o investigado, sem que essa decisão seja considerada de "ofício".

Há ainda, porém, outras controvérsias na detenção massiva dos suspeitos de crimes no 8 de janeiro. Na avaliação da DPU, a ação contra centenas de pessoas a partir da decisão genérica de Moraes resultou em prisões que não cumpriram os trâmites previstos na lei e deveriam ser imediatamente revertidas.

"No decorrer das audiências de custódia realizadas, observa-se uma grande quantidade de autos de prisão em flagrante deficitários, isto é, não instruídos com a documentação indicada no artigo 304 e seguintes do Código de Processo Penal, tais como oitiva do condutor (autoridade que efetua a prisão), testemunhas e exame de corpo de delito", destaca o relatório da Defensoria.

"Assim, em atenção à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que reconhece o auto de prisão em flagrante como ato de formal documentação, a manutenção das privações de liberdade mesmo diante dos autos de prisão sem os documentos exigidos por lei, configura quadro que deve ser sanado pelo imediato relaxamento das prisões efetuadas em desacordo com a legislação", diz ainda o documento da DPU.

Já Rafael Mafei, da USP, considera que as centenas de prisões foram necessárias para identificar os potenciais criminosos, já que houve uma "turba de milhares de pessoas tentando um golpe de Estado".

Se não houvesse uma ação imediata, diz, as pessoas retornariam para suas casas em diferentes cantos do país, dificultando a ação da Justiça na apuração e punição dos graves crimes cometidos no 8 de janeiro.

"O correto a se fazer nesse caso, quando há suspeita de uma pessoa que está cometendo um crime ou que acabou de cometer o crime, é recolher essa pessoa, levar até um lugar onde ela fique à disposição das autoridades, até que se possa avaliar a participação dela naquele episódio, minimamente, e decidir se ela precisa ficar preventivamente presa ou não", afirma Mafei.

"O que você não pode é, depois de avaliar a participação daquelas pessoas, manter preso quem a lei manda que seja solto, que responsa o processo em liberdade", acrescentou.

Controvérsias anteriores

Apesar de defender a atuação de Moraes na reação ao 8 de janeiro e, de modo geral, na condução dos inquéritos que passaram a investigar ataques à Corte e ao Estado Democrático de Direito desde 2019, o professor da USP critica algumas decisões do ministro, como a operação contra empresários bolsonaristas em agosto de 2022.

Na ocasião, Moraes autorizou a apreensão de celulares e o bloqueio de contas bancárias e de perfis dos empresários nas redes sociais após uma reportagem do portal Metrópoles revelar que eles teriam apoiado um possível golpe de Estado em conversas em um grupo de WhatsApp.

Para Mafei, as medidas "parecem excessivas", já que não houve uma investigação prévia à operação que indicasse uma articulação concreta dos empresários para de fato empreender um golpe de Estado.

"Teve gente que sofreu restrições ou coações por condutas no grupo de Whatsapp que eram absolutamente insignificantes. Me pareceu uma medida principalmente com papel intimidatório em relação a pessoas que estivessem cogitando algum tipo de apoio mais explícito a iniciativas golpistas o que não é o uso próprio daquelas medidas legais", analisa o professor da USP.

No geral, porém, Mafei considera que a atuação de Moraes tem sido correta no enfrentamento de sérios ataques e ameaças ao Estado Democrático de Direito. E, na sua avaliação, há um apoio das instituições a essa atuação, já que o plenário do STF têm confirmado decisões do ministro e o Congresso não tomou medidas para contê-lo, como instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigá-lo ou abrir um processo de impeachment, embora haja dezenas de pedidos nesse sentido apresentados no Senado.

"Então, existiu uma ameaça real, a grande ameaça que já houve à ordem democrática de 1988, porque ela tem estrutura, tem financiamento, tem liderança política, tem uma articulação comunicacional, tem pessoas dispostas a agir e, inclusive, se submetendo às consequências mais graves", avalia o professor.

"E há um conjunto de dispositivos legais que está sendo interpretado não pelo Alexandre de Moraes (isoladamente), mas pelo Supremo, com apoio das outras instituições, de maneira a reagir a esses ataques", reforçou.

-Este texto de Mariana Schreiber (@marischreiber) foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64464312 / BBC News Brasil, em 31.01.23

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Os militares e a democracia

Se golpe não houve, isso se deve a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonismo, embora pouco tenha aparecido na imprensa

O Brasil esteve à beira de uma ruptura institucional, com o golpe espreitando a Nação. E não se trata apenas da violência bolsonarista do dia 8 de janeiro, com a destruição dos símbolos mesmos da República, mas da divisão reinante nas Forças Armadas e, em particular, no Exército. E isso data dos últimos meses do governo anterior e dos primeiros dias do novo. Uma vez que a política penetrou nos quartéis, a cisão interna se fez entre militares constitucionalistas e golpistas, alguns desses da reserva, com forte influência junto ao ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem eram próximos.

Se golpe não houve, isso se deve, entre outros, a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonismo, embora pouco ou nada tenha transparecido na imprensa senão recentemente. Agiram nos bastidores, entre outras razões, para resguardar a imagem do Exército enquanto força coesa, embora a realidade fosse diferente. São eles: general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, agora comandante do Exército, general Valério Stumpf, chefe do Estado-Maior do Exército, general Richard Fernandez Nunes, comandante do Comando Militar do Nordeste.

Foram eles considerados, nas redes sociais militares de extrema direita, generais “melancias”, verdes por fora, vermelhos por dentro, apesar de seu “vermelho” significar simplesmente a defesa da democracia e da Constituição. Outros epítetos foram “traíras”, “comunistas” e por aí afora. Conheço-os pessoalmente, dois deles são amigos próximos, e posso testemunhar sua alta capacitação, seu amor aos valores da liberdade e da democracia, além de nosso apreço comum pelos livros.

A vida deles foi nada fácil nas últimas semanas. Além das calúnias que se tornaram corriqueiras, foram também atingidos em suas respectivas famílias, objeto de ameaças, e isso tão somente por se posicionarem no respeito à Constituição. O presidente Lula da Silva errou, em suas primeiras manifestações, ao não fazer a necessária distinção entre generais democratas e golpistas, considerando-os em bloco como avessos à democracia. Essa foi, inclusive, a percepção militar. Agora, corrigiu em boa hora a sua orientação inicial, escolhendo o general Tomás como novo comandante do Exército. Acertou e deve ser parabenizado por isso.

Na quarta-feira, dia 18, diante da tropa reunida no Comando Militar do Sudeste, o general Tomás fez um contundente discurso, não lido, em defesa da democracia, do voto, da alternância de poder, do respeito à Constituição e da obediência à vontade popular, ou seja, à escolha do novo presidente. Uma coisa é o militar votar no candidato que melhor corresponder às suas convicções, outra muita diferente é, enquanto militar precisamente, prestar continência ao novo presidente da República. E isso vale para qualquer eleito, de esquerda ou de direita. Não lhe cabe fazer opções ideológicas, mas estritamente constitucionais.

Note-se que o general Tomás tomou três atitudes, vitais para a superação da crise atual: 1) dirigiu-se à tropa, exercendo efetivamente a sua função de comandante e não se restringindo a uma reunião de gabinete com seus pares; 2) gravou toda a sua manifestação, conferindo-lhe depois um caráter público, expondo para toda a população brasileira o compromisso do Exército com a democracia, apesar dos recentes percalços; 3) enviou uma mensagem aos seus pares, inclusive aos seus detratores, de que os valores militares e os compromissos democráticos seriam mantidos.

Sua coragem foi exemplar. Mostrou, inclusive, aos petistas recalcitrantes como as Forças Armadas possuem um compromisso inarredável com a Constituição, dela não se afastando apesar de alguns grupos militares desgarrados. E aprenderam isso nas escolas militares, seguindo os currículos que são tão menosprezados pelos petistas, como se fossem necessárias grandes alterações neles. Deveriam aprender que foi graças a esses currículos que comportamentos exemplares como os desses generais foram possíveis.

Embora pouco tenha sido noticiado, o Exército foi igualmente exemplar na validação das urnas eletrônicas graças a conversas de bastidores que contribuíram decisivamente para a harmonização entre os Poderes. Muita verborreia foi gasta em público e em lutas supostamente ideológicas, enquanto o verdadeiro trabalho foi feito na aproximação entre importantes atores políticos. O discurso da fraude eletrônica foi esvaziado, sendo somente sustentado pelos bolsonaristas radicais que viviam – e vivem – em suas próprias bolhas, alheias à realidade. Foi, portanto, graças a alguns desses generais que a eleição transcorreu normalmente e os seus resultados foram acatados, sem nenhum atropelo institucional. O Exército e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) agiram em sintonia, cada um cedendo em nome do bem maior que é o Brasil.

Está na hora de ser reconhecido o importante papel desses militares na defesa da democracia. O momento é de distensão e de pacificação nacional. O Brasil só poderá crescer no respeito às instituições democráticas. Conflitos não devem ser acirrados, sob pena de retrocedermos ao passado recente.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS. Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 30.01.23

O difícil caminho do não alinhamento do Brasil

 Com a guerra cada vez mais intensa, tudo leva a crer que o conflito contaminará a geopolítica ainda mais do que no ano passado

Imagem mostra tanques dos EUA sendo testados; governo Biden anunciou envio de armamento à Ucrânia  Foto: EFE/EPA/VALDA KALNINA

Com a decisão do Ocidente de fornecer mais de cem tanques à Ucrânia e o debate crescente sobre uma possível tentativa de reconquistar a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, o conflito na Europa entra em nova fase. Depois de o governo Biden ter fornecido quase US$ 30 bilhões em ajuda militar aos ucranianos desde o início do conflito, uma derrota ucraniana seria um desastre político dificilmente aceitável para o presidente americano, que já está se preparando para sua campanha de reeleição.

Equipamentos devem garantir superioridade tecnológica ao arsenal ucraniano, mas podem não ser suficiente para mudar rumos da guerra

Da mesma forma, uma conquista russa de Kiev – o que parece ser a meta da contraofensiva militar que o Kremlin prepara – causaria um terremoto político na Europa, onde o premiê alemão Olaf Scholz, depois de muita hesitação, decidiu aprovar o envio de tanques à Ucrânia, país a menos de 700 quilômetros da fronteira alemã. Há pouca dúvida de que avanços decisivos russos aumentariam a probabilidade de o Ocidente fornecer caças à Ucrânia, algo inimaginável no início do conflito.

Do lado russo, também aumentaram muito as apostas: com uma onda nacionalista varrendo o país, Vladimir Putin sabe que uma derrota militar na Ucrânia representaria grave ameaça política. Tudo indica que o presidente russo está disposto a fazer o máximo possível – inclusive uma mobilização geral, que implicaria o envio de centenas de milhares de soldados para o front – para vencer o conflito. O Kremlin admitiu que tomou a decisão pouco usual de recrutar presidiários, como mercenários do Grupo Wagner, 40 mil dos quais, segundo estimativas, estão lutando na Ucrânia.

Com a guerra cada vez mais intensa, tudo leva a crer que o conflito contaminará a geopolítica ainda mais do que no ano passado, tornando-se um dos temas prioritários a ser discutidos nas principais plataformas multilaterais, como o G-7, o G-20, e o grupo Brics. Essa é uma notícia ruim para o Brasil, que deve participar de reunião dos três grupos, afinal, enquanto o País tem como brilhar na questão climática – tema que pode ajudar a reconquistar o status de ator indispensável no sistema internacional –, o conflito na Ucrânia dificulta a estratégia de não-alinhamento, pilar da política externa brasileira.

Tanto no encontro do G-7 quanto na cúpula do Brics, o Brasil estará em uma posição pouco confortável. Situações como a do recente pedido do governo alemão para o envio de munição brasileira – feito dias antes da visita do premiê a Brasília e declinado pelo presidente Lula – se tornarão mais comuns. Enquanto o G-7 fará uma declaração condenando a Rússia nos termos mais explícitos e buscará intensificar o isolamento econômico de Moscou – algo que o governo brasileiro não apoia –, o Brasil terá de se empenhar para evitar que a declaração final do grupo Brics vire um manifesto pró-Rússia. Afinal, com a postura cada vez mais pró-Moscou da África do Sul, o Brasil é o integrante que mais tem a perder com um posicionamento anti-ocidental do bloco.

Essa tensão intra-Brics não é nova: certa vez, em reunião preparatória para a cúpula do grupo em Moscou, um participante russo afirmou em discurso que o Brics deveria se posicionar como “bloco anti-ocidental”, ideia prontamente criticada por um representante brasileiro, o qual lembrou que o Brasil também faz parte do Ocidente e, portanto, rejeita a caracterização.

Com os dois lados dobrando as apostas na guerra, o Brasil precisa se preparar para o cenário de uma conversa global cada vez mais monotemática, a qual deverá levar a uma intensificação das sanções econômicas contra a Rússia, a mais volatilidade dos preços de alimentos e a espaço cada vez mais estreito para construir acordos em outras áreas. As negociações para se chegar a um acordo nuclear com o Irã são o melhor exemplo: com o regime em Teerã fornecendo drones à Rússia, é pouca a disposição ocidental de negociar com o país.

É impossível prever o percurso da guerra, mas tanto a queda de Kiev aos russos – forçando Zelenski a fugir – quanto a reconquista ucraniana da Crimeia, que provavelmente levaria a uma queda de Putin – são possibilidades reais ao longo dos próximos anos. Ambos produziriam transformações significativas no sistema internacional: uma derrota russa na Ucrânia aumentaria as chances de instabilidade na Ásia Central, antigo quintal de Moscou, além de um possível atrito na sucessão presidencial russa. A queda de Zelenski poderia causar uma onda de refugiados ucranianos com profundas consequências para a Europa. Todos os cenários teriam consequências amplas para a economia brasileira e sua inserção internacional.

Oliver Stuenkel, o autor deste artigo, é analista político e Professor de Relações Internacionais da Fundação Getílio Vargas - FGV-SP. Publicado riginalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.01.23

Copenhague entre o capitalismo e o socialismo

A Dinamarca aproveitou a boa condição econômica e conseguiu reduzir o abismo entre ricos e pobres

Capital da Dinamarca é bonita e tem ótima qualidade de vidaCapital da Dinamarca é bonita e tem ótima qualidade de vida Márcia Foletto

Passei uma semana em Copenhague, na Dinamarca, cidade que ainda não conhecia. Voltei maravilhado.

Fiquei hospedado no Hotel Sanders, do bailarino Alexander Kølpin. Na região do hotel ficam algumas galerias de arte, vários teatros de dança e uma loja chamada Ballet Boutique, que coloca a Capezio, de Nova York, no chinelo, ou na sapatilha, para usar uma linguagem mais adequada.

O Sanders é pequeno. Tem 54 quartos, num prédio de 1869, totalmente restaurado, que mistura contemporaneidade com nostalgia.

Os funcionários são poucos, bonitos e jovens. Todos fazem diversas atividades. O rapaz que cuida da portaria também se encarrega das malas, a moça que prepara o café da manhã também serve as mesas, e o pianista do bar, de vez em quando, faz o papel de barman. Ouve-se música boa naquele hotel: Billie Holiday, Chet Baker e João Gilberto é a trilha sonora dos corredores.

Na verdade, ouve-se música boa em toda a cidade. Há bares de jazz com música ao vivo que funcionam durante o dia, como o Jazzklubben, que abre de segunda a sexta-feira, às dez da manhã.

Em Copenhague, apesar do clima frio, as pessoas se comportam como se acabassem de chegar da praia. Todas num altíssimo astral.

Tudo é reciclável e sustentável.

As chaves magnéticas dos quartos do hotel são de madeira, e os cabos das escovas de dente também.

Copenhague — a capital mundial do movimento Hygge, que quer dizer “o segredo da felicidade” — é também a capital mundial do design. Tudo é bonito.

Podem ser joias do Georg Jensen, móveis coloridos desenhados especialmente para quartos de crianças ou aqueles tamancos com solados de madeira chamados clogs, que os chefs adoram.

Por falar em chefs, por causa de René Redzepi e seu restaurante Noma, eleito diversas vezes o melhor do mundo, a cidade passou a ter diversos restaurantes com estrelas Michelin, como o Selma, o Alchemist e o Kiin Kiin.

Mas, de todos eles, incluindo o Noma, o melhor é o Geranium, onde os pratos são mais saborosos, e as explicações sobre como eles foram preparados menos detalhadas.

Para quem prefere comida boa, mas sem estrelas e stars, Copenhague tem desde cachorros-quentes deliciosos como os de Düsseldorf, na feirinha próxima ao Canal Nyhavn, até pizzas saborosas como as de Nápoles.

No capítulo bibliotecas, museus e casas de espetáculo, a cidade também dá show. A biblioteca Black Diamond tem todos os livros possíveis e imagináveis, magníficos espaços de leitura e trabalho, belíssimas salas de exposições.

No dia em que estive lá, acontecia uma retrospectiva da fotógrafa Lee Miller, mostrando seu trabalho desde o movimento surrealista até sua atuação como correspondente de guerra e fotógrafa de amigos como Man Ray e Pablo Picasso.

O Louisiana Museum — em frente ao mar, com esculturas de Henry Moore, Calder, Miró e Giacometti nos seus pátios e um acervo onde Andy Warhol e Yves Klein são apenas dois dos muitos destaques — parece a Fundação Maeght, do sul da França, multiplicada por três.

E a esplêndida Ópera de Copenhague dá uma surra de arquitetura na belíssima Ópera de Sydney, na Austrália.

Em Copenhague existem carros a gasolina e elétricos, mas o transporte oficial é a bicicleta. As ciclovias são grandes, e ninguém jamais se atreve a atravessar com sinal vermelho, mesmo que não venha nenhum carro ou bicicleta de direção alguma. Todos esperam o sinal verde. Muitos ciclistas usam capacetes, a maioria deles bem desenhados e estilosos, com uma estética apelidada pelos usuários de cycle chic.

A Dinamarca — privilegiando-se de ter uma pequena população e uma condição econômica historicamente favorável — conseguiu reduzir o abismo entre ricos e pobres preservando benefícios típicos do socialismo. Educação e saúde de qualidade são gratuitas.

Seu sistema de governo — nem socialista nem capitalista — é chamado por alguns teóricos de capitalismo compassivo.

Na volta de Copenhague, fiquei pensando que, se Lula conseguir implantar na sua gestão um terço das coisas que prometeu na campanha, estará lançando no Brasil um embrião de capitalismo compassivo tropical.

Tomara que consiga.

Washington Olivetto, o autor deste artigo, é publicitário. Publicado originalmente por O GLOBO, em 30.01.23

domingo, 29 de janeiro de 2023

O respeito dos militares pela democracia

Apesar da trevosa era Bolsonaro, as Forças Armadas têm mostrado firme compromisso com a Constituição e com boas políticas públicas. É dever de todos preservar o bom histórico

Diante da inegável conivência de alguns militares com os atos de 8 de janeiro, ápice da aproximação, ocorrida ao longo dos últimos anos, de alguns setores das Forças Armadas com o bolsonarismo, tem sido frequente ouvir críticas simplistas às instituições militares, como se estivessem à margem dos limites constitucionais e necessitassem de uma generalizada reforma. Trata-se de avaliação injusta, que não corresponde aos fatos.

Na Presidência da República, Jair Bolsonaro – um mau militar, como acuradamente qualificou Ernesto Geisel – causou muitos danos às Forças Armadas. Nos quatro anos de governo, ele tentou de diversas maneiras desviar os militares de suas atribuições constitucionais; por exemplo, insistindo em que colaborassem nas manobras bolsonaristas contra a Justiça Eleitoral.

Tudo isso foi muito grave, com efeitos desastrosos em muitas áreas, e exigirá cuidadoso trabalho de reconstrução nos próximos anos. De toda forma, a contaminação de alguns militares com o bolsonarismo não foi fenômeno generalizado e, especialmente importante, não condiz com a atitude das Forças Armadas no período posterior à redemocratização do País. É um equívoco julgar as instituições militares pelo comportamento de alguns poucos nos últimos anos.

Em carta ao Estadão, a professora associada do Instituto de Química da USP Silvia Helena Pires Serrano lembrou um fato histórico que exemplifica a contribuição dos militares às políticas públicas nacionais. “Em maio de 1946, o vice-almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva (1889-1976), engenheiro de formação, então representante brasileiro na Comissão de Energia Atômica do Conselho de Segurança da recém-criada ONU, propôs ao governo brasileiro a criação de um Conselho Nacional de Pesquisa, o atual CNPq, quase destruído durante o último governo”, escreveu a professora. Diante de “fatos tão grotescos que nos encheram de tristeza e vergonha”, disse ela, referindo-se ao 8 de janeiro, “é sempre bom nos lembrarmos dos bons exemplos que fizeram e ainda fazem a diferença”.

Assim, não é correto tomar a desastrosa passagem do intendente Eduardo Pazuello pelo Ministério da Saúde, onde contrariou as evidências científicas para obedecer cegamente ao comando delirante de Bolsonaro, como se fosse o padrão militar. Pelo contrário: a trajetória das Forças Armadas se identifica, entre outros muitos casos honrosos, com o vice-almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, lembrado pela leitora. Basta ver o prestígio acadêmico de que desfrutam o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e o Instituto Militar de Engenharia (IME), instituições criadas e mantidas pela dedicação e seriedade de gerações de militares.

As Forças Armadas têm mostrado um firme compromisso com a Constituição de 1988. Em novembro de 2015, em um momento de grave crise política, social e econômica, escrevemos neste espaço: “Não é raro pôr-se a culpa por boa parte dos males nacionais nas Forças Armadas, tendo em vista o período que o País viveu sob a ditadura militar. A falta de democracia, a censura, a tortura, o desrespeito aos direitos humanos não são coisas para se orgulhar. Reconhecer essa realidade não significa, no entanto, fechar os olhos ao fato de que, nas últimas décadas, se operou uma profunda e positiva transformação dos militares e de sua mentalidade. Entenderam o seu papel institucional dentro de uma democracia, sabendo deixar a condução do País à sociedade civil” (ver o editorial Os militares e a democracia, de 15/11/2015). Os anos de Bolsonaro no Palácio do Planalto podem ter turvado essa compreensão por parte de alguns, mas não apagaram o bom histórico das Forças Armadas, tampouco as profundas convicções democráticas da grande maioria dos militares. Fato especialmente significativo da constitucional submissão das Forças Armadas ao poder civil se deu com a criação do Ministério da Defesa, em 1999.

Entre outros pontos, o cuidado com o Estado Democrático de Direito exige não ignorar décadas de respeito à Constituição de 1988 por parte dos militares. A resistência ao bolsonarismo é precisamente preservar, e não desprezar esse bom histórico.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.01.23

Golpistas para todos os lados

‘Isso tinha na casa de todo mundo’, disse o chefão do PL, que se tornou o maior partido do Brasil, sobre a minuta de decreto para dar um golpe de Estado. É de estarrecer

Com espantosa naturalidade e incrível ligeireza, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, disse ao jornal O Globo que a articulação de um golpe de Estado – nada menos – foi tema de conversas corriqueiras em Brasília após a eleição do presidente Lula da Silva.

“Isso tinha na casa de todo mundo”, disse o sr. Valdemar, decerto sem ruborizar, ao se referir à minuta de decreto de estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral, encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Ele acrescentou que propostas como aquela circulavam “direto” entre pessoas do governo e que pessoalmente recebeu “várias propostas, que vinham pelos Correios” ou então em eventos políticos. “Tinha gente que colocava (o papel) no meu bolso, dizendo que era como tirar o Lula do governo.”

Não se sabe se as declarações do sr. Valdemar devem ser levadas a sério ou se é apenas uma artimanha para tentar livrar a cara do ex-ministro Anderson Torres e, por extensão, do principal puxador de votos do PL, o ex-presidente Jair Bolsonaro; afinal, se “todo mundo” recebeu alguma sugestão de golpe, como disse o chefão do PL, então nem Anderson nem Bolsonaro poderiam ser particularmente responsabilizados.

Conhecendo o sr. Valdemar como o Brasil bem conhece, é difícil saber o que está por trás dessa declaração tão irresponsável. Mas isso não importa. O que interessa é que o líder do maior partido político do Brasil tratou uma suposta conspiração contra a soberania da vontade popular como algo banal, quase inconsequente. É como se o sr. Valdemar estivesse tratando de propostas para mudar o nome de uma avenida.

A rigor, a própria reabilitação do ex-mensaleiro Valdemar diz muito sobre o longo caminho que a sociedade ainda precisa percorrer até atingir um grau de maturidade política que impeça que os alicerces da República, a começar pelo respeito ao resultado das eleições, sejam carcomidos pela ação insidiosa dos cupins da democracia.

Mesmo assim, não deixa de ser estupefaciente que o golpismo escancarado seja tratado como uma agenda trivial pelo dirigente de um partido que terá 99 deputados federais e 14 senadores a partir da próxima quarta-feira, quando terá início a nova legislatura.

Portanto, é uma leviandade que o golpismo, ao invés de ser enfática e vigorosamente condenado pelo líder de uma bancada tão expressiva de parlamentares democraticamente eleitos, seja tratado pelo sr. Valdemar com essa inconsequência.

A pretexto de “defender” Bolsonaro, Valdemar Costa Neto ainda revelou que, por ser tido como alguém “muito valente, meio alterado, meio louco”, o ex-presidente recebeu muitas sugestões de medidas para impedir a posse de Lula da Silva. Só não o fez, disse o chefão do PL, “porque não viu maneira de fazer”. Que alívio.

A esta altura já está claro que só não houve um golpe de Estado no Brasil após a derrota de Bolsonaro por absoluta rejeição das forças vivas da Nação ao espírito golpista que sempre animou o ex-presidente e muitos de seus apoiadores, entre os quais Valdemar Costa Neto. E também, por óbvio, porque Bolsonaro não logrou reunir apoios e meios não apenas para dar um golpe de Estado, como para sustentá-lo.

Vindo de alguém que se mostrou capaz de afrontar as instituições democráticas do País com aquela molecagem de “auditoria independente” das urnas eletrônicas, com o único objetivo de tumultuar as eleições de outubro passado, as declarações do sr. Valdemar não chegam a surpreender, mas são lamentáveis. É inacreditável que alguém que já deu reiteradas mostras de que seu projeto pessoal de poder está muito acima dos interesses nacionais continue tendo não apenas voz ativa no debate público, mas, sobretudo, influência direta na definição dos rumos do País.

Valdemar Costa Neto pode estar quites com a Justiça. Todavia, seu prestígio político, empregado, entre outras coisas, para banalizar tentativas de golpes de Estado, decorre diretamente do apoio que ele e seus correligionários ainda recebem de muitos eleitores. Nesse ponto, a sociedade ainda tem muito a evoluir.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.01.23

Uma esquerda que é de direita

Fecha os olhos para Putin, como fecha os olhos para a repressão dos aiatolás contra a coragem cívica das mulheres iranianas

O presidente russo, Vladimir Putin, durante uma coletiva de imprensa em dezembro de 2021. (Crédito da foto: Yuri Kochetkov - Ag, EFE)

Assim como existe uma direita suicida, também existe uma esquerda ignorante. Ele não sabe nada e não quer aprender nada com o passado. Ele também não sabe que a guerra acontece com a política quando a política para de funcionar. Nem que a paz, tão almejada, não venha de um clamor , mas porque quem ganha a guerra tem poder e expertise para impor uma ordem mais justa, para que ninguém volte a usar a força para resolver as inevitáveis ​​disputas que ocorrem entre países e governos.

Ignora que a União Soviética foi o maior império da Europa , e talvez do mundo, entre 1945 e 1991. E que esteve sob a flagrante mentira da pátria socialista, defensora universal do proletariado. Ou que as liberdades européias se mantiveram e se mantêm no meio do continente, assim como se recuperaram da invasão hitleriana de 1945, graças à aliança com os Estados Unidos.

Acredite nas mentiras de Putin sobre a maior catástrofe do século 20, que não foi o desaparecimento da ditadura imperial comunista, mas sua persistência como um avatar paradoxal e monstruoso do czarismo reacionário e ortodoxo. Ele agarra como um prego selvagem a ameaça que representava para o capitalismo, como se as vitórias conquistadas pelos trabalhadores no Ocidente não fossem devidas às suas lutas, mas ao medo de Stalin. E, naturalmente, ele engole as farsas e as bolas do Kremlin sobre a desnazificação da Ucrânia, baseada na apropriação primeiro soviética e depois putinista da luta antifascista.

Essa esquerda, definitivamente, é a direita. E tão suicida quanto a direita. Suas simpatias estão com o populismo nacionalista de Putin e sua ideia ultramontana da Mãe Rússia, guardiã do cristianismo ortodoxo, contra a liberdade de costumes e casamentos homossexuais do Ocidente decadente. Fecha os olhos ao expansionismo autocrático e imperial, como os fecha à repressão selvagem dos aiatolás contra a coragem cívica das mulheres iranianas que não suportam nem mais um minuto o patriarcado totalitário e islâmico. E presta atenção, ao contrário, a esses incríveis argumentos que invertem a realidade da história, transformam as vítimas em carrascos e se apropriam do combate antifascista para defender o fascismo, seu inegável.

Você não sabe o que é guerra. Nem a paz, tão difícil, e os esforços que devem ser feitos para alcançá-la e mantê-la. Portanto, não se pode esperar que ela alcance a Ucrânia. Ele quer se ajoelhar diante de Putin como Chamberlain se ajoelhou diante de Hitler em 1938, às custas não apenas da Tchecoslováquia, mas também da República Espanhola em seu último suspiro. E o pouco que sabe sobre impérios não chega para condenar o único que persiste em solo europeu. Também não sabem que a liberdade e a democracia não são uma dádiva, mas que devem ser defendidas diariamente, às vezes até pagando o preço mais alto, como na Ucrânia, para não serem subjugadas e aniquiladas.

Luís Bassets, o autor deste artigo, escreve colunas e análises sobre política, especialmente política internacional, para o EL PAÍS. Ele também escreveu livros,  entre outros, 'O ano da Revolução' (Taurus), sobre as revoltas árabes, 'A grande vergonha. Ascensão e queda do mito de Jordi Pujol' (Península) e um diário pandêmico e confinado com o título de 'Les ciutats interiors' (Galaxia Gutemberg). Publicado originalmente no EL PAÍS, em 29.01.23

Pacote de leis pela democracia tem efeito incerto

Não foi por falta de policiais que vândalos atacaram em 8 de janeiro, mas porque houve negligência

Manifestantes golpistas invadem o Congresso Nacional Sérgio Lima/AFP

O governo federal apresentará ao Congresso um pacote de medidas para coibir novos ataques às instituições democráticas. O ministro da Justiça, Flávio Dino, entregou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva um documento com quatro propostas que, a partir de agora, serão debatidas. O governo segue um roteiro conhecido diante de fatos graves: a correria para criar instituições ou leis, como se o país tivesse sido vítima de um grande trauma devido à falta de ambas. Todos sabem que não foi bem assim.

Uma das propostas é descabida. Dino sugere criar uma guarda nacional para proteger a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes. A ideia parte de uma premissa falsa. Não foi por falta de policiais que ocorreram os ataques golpistas do dia 8 de janeiro. O problema foi a cooperação entre as forças de segurança e os vândalos. A simples criação de uma nova guarda não a tornaria imune ao golpismo. Tampouco eximiria as autoridades de restabelecer o comando nas instituições que falharam no dia 8. A guarda nacional ainda demandaria a contratação de cerca de 6 mil novos servidores, onerando os cofres públicos em momento de crise fiscal aguda.

Faz mais sentido outra proposta apresentada por Dino: obrigar as plataformas digitais a moderar o conteúdo que circula nas redes sociais com ameaças, tentativas de abolir o Estado Democrático de Direito ou incentivo a terrorismo. É fato que os golpistas se reuniram, se organizaram e se prepararam com a ajuda dos meios digitais.

Está certo Dino ao defender “uma congruência lógica” do que é autorizado nas ruas e nas redes. Não é permitido instalar um quiosque num shopping center para ensinar a montar uma bomba ou aliciar conspiradores para um golpe de Estado, então ninguém deveria poder fazer isso na internet. É um erro acreditar que as plataformas tomarão medidas na base da autorregulação, já que nada fizeram até agora, escoradas na visão peculiar que confunde liberdade de expressão com liberdade de agressão. Essa constatação, porém, não significa que o caminho sugerido por Dino seja o mais adequado.

O governo faria melhor se incluísse suas propostas no Projeto de Lei 2.630, o PL das Fake News, atualmente na Câmara, e trabalhasse pela sua aprovação. “O PL é a chance de a sociedade dar uma resposta mais ampla e forte. A desinformação de todo tipo é o que cria o terreno favorável para reações condenáveis nas mais diferentes áreas, inclusive na política”, afirma o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do projeto.

O pacote de Dino inclui ainda dois projetos de lei. Um criminaliza financiadores e organizadores de atos antidemocráticos, estabelecendo sanções a pessoas físicas e a empresas, como a proibição de participar de licitações ou receber benefícios fiscais. O outro aumenta a pena de quem atentar contra a integridade física ou a vida de chefes dos Três Poderes.

As duas medidas podem ajudar a dissuadir radicais, mas seu efeito é incerto. Mais importante seria o Congresso derrubar vetos do ex-presidente Jair Bolsonaro à Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/21) que a enfraqueceram. Um dos itens vetados aumenta a pena para militares que cometerem crimes contra a democracia, com perda de patente ou do posto. O trecho deveria ser restaurado na lei.

Editorial de O GLOBO, em 29.01.23

Abrace um bolsonarista

Por conhecer e amar muitos negacionistas, me forço a tentar entendê-los. Quase sempre fracasso

Funcionário da equipe de limpeza do STF limpa estátua que foi pichada por manifestantes Cristiano Mariz/Agência O Globo

Levanta a mão quem conhece algum bolsonarista que acredita que a eleição foi roubada. Um vizinho, um irmão, uma tia, um porteiro, um sogrão... De alguns deles, você gosta. Outros, talvez até ame. Tem uns que acreditam em fábulas tão incríveis que parecem de outro planeta.

Mas reduzir os sentimentos dos negacionistas aos absurdos em que eles acreditam é má ideia. Primeiro, porque uma das belezas da democracia é que até bolsonarista pode votar. (Mesmo que alguns discordem.) Segundo, porque os negacionistas raiz foram, realmente, enganados. De verdade.

Por mais surreal que nos pareça, para muitos negacionistas, a libertação de Lula da prisão, sua candidatura e retorno ao poder são parte de uma conspiração para instaurar o comunismo no Brasil. Acreditam nisso com a mesma certeza que nós temos de que a Terra é… redonda?

Hoje em dia é praticamente impossível não conhecer pelo menos um negacionista que, no fundo, a gente ama. Não falo dos que atacaram Brasília. Falo dos parentes e amigos que a gente até evita para não se aborrecer.

Na minha família tem um monte. Logo depois da eleição, um dos meus irmãos trocou a foto dele no WhatsApp por um logotipo que dizia: “Eu apoio a intervenção militar”. Sangue do meu sangue — golpista.

A gente não escolhe parente. Entre os amigos, a situação é bem diferente: não tenho um que seja bolsonarista.

Isso pode até parecer motivo de orgulho, mas, na verdade, é sinal de um problema sério: as bolhas sociais — essa condição moderna em que a gente só ouve e fala com quem concorda com a gente. Precisamos estourar essas bolhas.

Por conhecer e amar muitos negacionistas, me forço a tentar entendê-los. Quase sempre fracasso. Mesmo assim, convido você a tentar também.

Falar com quem acredita nessas mentiras pode parecer um esforço em vão. E talvez seja mesmo. Mas mudar o jeito como pensam não é a única coisa boa que pode acontecer. Vou dar um exemplo.

Adoro uma das minhas cunhadas. É uma pessoa maravilhosa, honesta, trata meu irmão bem e, nunca vou esquecer, cuidou com muito carinho do meu pai quando ele estava perto de morrer. Ela é também bolsonarista raiz.

Depois dos ataques em Brasília, mandei mensagem para saber a opinião dela. Como a maioria de nós, ela se disse indignada com o que viu na televisão. Tanto que sua pressão arterial subiu. Mas sua indignação se dava também porque ela tinha certeza de que a depredação foi provocada por esquerdistas infiltrados:

— Todo mundo sabe disso.

Apesar da raiva com o quebra-quebra, contraditoriamente, ela acrescentou que, se estivesse em Brasília, talvez tivesse sido capaz de, ela mesma, atear fogo em tudo.

— Um lado meu não aprova. — ela disse com a voz embargada. — Mas o outro se mantém cheio de ódio. E me faz muito mal sentir raiva de alguém ou de alguma coisa — concluiu aos prantos.

Política sempre foi motivo de raiva, tristeza, confusão e desilusão para muita gente. Isso não é novidade. A novidade é que, agora, é mais fácil do que nunca espalhar mentiras para tirar vantagem dessas emoções.

É natural tentar ignorar quem cai nas mentiras dos Bolsonaros da vida. É uma forma de defesa que ajuda a preservar nossa sanidade. Mas isso não resolve o problema.

Minha proposta é: que tal se, em vez de nos afastarmos dessas pessoas, nos aproximássemos delas? Que tal se a gente falasse com elas com respeito?

A dor era evidente na voz da minha cunhada. Ela sentia ódio, medo. O sofrimento dela era real.

Em vez de desdenhar, tentei confortá-la como pude. Disse que não via a menor chance de o Brasil ser tomado por comunistas. E que, em quatro anos, ela poderia votar novamente em quem ela achar que merece.

Encerrei dizendo:

— Um beijão e te amo.

— Te amo — ela respondeu.

Sergio Peçanha, o autor deste artigo, é colunista de Opinião do Washington Post, onde publicou uma versão deste texto aqui publicado originalmente n'O GLOBO, em 29.01.23

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Lula ‘herda’ conta de R$ 255,2 bilhões do governo Bolsonaro e faz pente-fino em contratos

Valor é superior ao ‘herdado’ por outros presidentes e vai passar por revisão para determinar se será mantido; Tesouro Nacional já fez o bloqueio de R$ 33,7 bilhões

O governo Bolsonaro deixou R$ 255,2 bilhões de despesas contratadas e não pagas para 2023. Chamadas na linguagem orçamentária de Restos a Pagar (RAPs), essas despesas são herdadas de um ano para outro e acabam se transformando num verdadeiro “orçamento paralelo”, competindo por espaço com os novos gastos.

Ao Estadão, o Tesouro Nacional antecipou que já bloqueou R$ 33,7 bilhões de Restos a Pagar depois que um decreto do governo Lula determinou que os ministérios e órgãos públicos façam uma avaliação da necessidade de manter ou não esses contratos. O decreto faz parte do conjunto de medidas de ajuste de fiscal anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, há duas semanas.

Chamadas na linguagem orçamentária de Restos a Pagar (RAPs), essas despesas são herdadas de um ano para outro e acabam se transformando num verdadeiro 'orçamento paralelo'

Chamadas na linguagem orçamentária de Restos a Pagar (RAPs), essas despesas são herdadas de um ano para outro e acabam se transformando num verdadeiro 'orçamento paralelo' Foto: Mauro Pimentel/AFP

O Tesouro informou que um alerta será disparado na próxima semana pelos ministérios da Fazenda, Planejamento e Gestão com as orientações técnicas e de governança fiscal aos seus gestores orçamentários para que façam o pente-fino da necessidade de manter essas despesas ou cancelá-las. O governo conta com essa medida para reduzir as despesas deste ano e tirar as contas publicas do vermelho.

“Independentemente do bloqueio já feito, todos os órgãos terão de fazer uma revisão de contratos e convênios”, explicou o subsecretário de Contabilidade Pública do Tesouro, Heriberto Henrique Vilela do Nascimento. “É uma medida de ajuste fiscal porque esperamos que boa parte dessas despesas bloqueadas sejam canceladas”, acrescentou ele.

Nascimento explica que a medida pode ter um impacto “substancial” para reduzir as despesas neste ano. O bloqueio dos Restos a Pagar é combinado com outro decreto do pacote que determina um pente-fino nos contratos de fornecedores do governo superiores a R$ 1 milhão. No pacote do ministro Haddad, está previsto um potencial de R$ 50 bilhões de diminuição de despesas em 2023, R$ 25 bilhões com efeito permanente de revisão de contratos e programas.

O subsecretário explicou que, por restrições legais, nem todos os Restos a Pagar podem ser bloqueados. Nada também pode ser feito com gastos que já foram processados e liquidados –ou seja, já houve a entrega do produto ou do serviço, mas nem tudo foi pago. As despesas desse grupo somam R$ 81,8 bilhões.

Também não podem ser bloqueadas despesas obrigatórias, emendas parlamentares impositivas, do Ministério da Saúde e das fundações e autarquias da administração pública indireta.

Herança

A herança de gastos deixada pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro mostrou, na virada de 2022 para 2023, um aumento de R$ 21,6 bilhões. De 2021 para 2022, último ano do governo anterior, os restos a pagar estavam em R$ 233,6 bilhões.

A razão principal desse salto foi que, faltando poucos dias para o final do ano passado, o governo Bolsonaro editou R$ 20 bilhões de crédito orçamentário autorizando novas despesas. Como não houve tempo para executá-las, elas foram “carregadas” para 2023, inflando o Orçamento desde ano.

A edição desses novos créditos, no apagar das luzes do governo Bolsonaro, só foi possível porque a Proposta Emenda à Constituição (PEC) da Transição, negociada pelo governo Lula, abriu brecha para gastar R$ 23 bilhões fora teto de gastos (a regra que impõe um limite anual ao crescimento de despesas) ainda em 2022 e permitiu ao governo empenhar as emendas de relator do orçamento secreto – esquema revelado pelo Estadão de transferência de verbas a parlamentares em troca de apoio político.

Em 2018, o ex-secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, adotou uma medida que obrigava o cancelamento dos Restos a Pagar depois de três anos. A medida reduziu o estoque inicialmente, mas ele voltou a crescer na pandemia da covid-19, quando o governo voltou a aumentar os gastos com o chamado “orçamento de guerra”.

No final do ano passado, o Congresso também aprovou uma medida para proibir que Restos a Pagar fossem cancelados no final de 2022. O prazo foi estendido para o final deste ano.

O presidente Lula, ao final do segundo mandato, deixou R$ 246,8 bilhões (valores corrigidos a preços de dezembro de 2021) de Restos a Pagar para a ex-presidente Dilma Rousseff. Sem a correção, a herança de Lula para Dilma foi de R$ 128,5 bilhões. Dilma não completou o seu segundo mandato. Já o presidente Michel Temer deixou R$ 189,6 bilhões, que com a correção da inflação resultam em R$ 227,4 bilhões.

Por Adriana Fernandes, O Estado de S. Paulo, em 27.01.23

Tudo assim e fica por isso mesmo?

Lira distribui R$ 70 milhões em pacote de benesses a Deputados por vitória esmagadora na Câmara

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tem usado o cargo para distribuir um pacote de benesses aos deputados que irão escolher, em 1º de fevereiro, quem comandará a Casa no biênio 2023/2025. Candidato à reeleição, Lira deu aos deputados, em menos de um mês, R$ 9 mil para gastar com combustível e R$ 4 mil para outras despesas, além de aprovar reajuste salarial de mais de R$ 7 mil a partir de abril. Os rendimentos serão de R$ 41.650,92. O total de desembolso para os cofres públicos chega a R$ 70 milhões.

O aumento do auxílio moradia, que dobrou de R$ 4 mil para R$ 8 mil, beneficiará os 513 deputados, até mesmo aqueles que já moram em apartamento funcional, graças a uma manobra articulada pelo presidente da Câmara. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) impede esse tipo de reajuste. O cálculo sobre os valores a mais foi feito pelo Estadão com base nos aumentos publicados pela própria Casa.

Expoente do Centrão, Lira é favorito para ganhar novo mandato, mas toda sua estratégia vem sendo montada para obter o maior número de votos e se tornar o candidato mais bem votado da história da Câmara. Não sem motivo: quanto mais apoio ele conquistar, mais poder de barganha terá o Centrão nas negociações com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para exigir o que quiser, em troca de apoio nas votações.

Sem orçamento secreto, Lira vem sendo pressionado pelo baixo clero a conceder privilégios aos colegas. O deputado tem apoio de Lula, do PT e de partidos do Centrão. Nos bastidores, porém, os petistas torcem para que o tamanho da possível vitória do presidente da Câmara não seja muito maior do que a de 2021, quando ele obteve 302 votos na disputa contra Baleia Rossi (MDB). A avaliação no Palácio do Planalto é a de que, se isso ocorrer, Lira e o Centrão vão criar muito problema para o governo, vendendo dificuldades para ter facilidades.

O único candidato lançado para desafiar Lira, até agora, é o deputado eleito Chico Alencar (PSOL-RJ), que já foi filiado ao PT e deixou o partido após o escândalo do mensalão. “Essas medidas tomadas por Arthur Lira fogem à regra. Poderiam ser discutidas pela nova Mesa Diretora da Câmara e também pelo colégio de líderes”, disse Alencar. “Alguns itens do pacote ficaram acima da inflação. Nesse momento do País, precisamos ter austeridade. A Câmara quer um presidente democrático, e não um imperador”, completou. Levantamento do PSOL indica que os valores reajustados por Lira subiram “acima da inflação acumulada entre 2019 até 2022?.

Disputa no TCU

Até mesmo uma vaga no Tribunal de Contas da União (TCU) entrou nas negociações de Lira, empenhado em eleger o deputado Jonathan de Jesus (Republicanos-RR) para ter um aliado na Corte. A votação para a vaga aberta com a aposentadoria da ministra Ana Arraes no TCU deve ocorrer na próxima quinta-feira, 2, um dia depois das eleições para a presidência da Câmara e também do Senado, hoje comandado por Rodrigo Pacheco (PSD-MG). São os deputados empossados no dia 1.º que escolherão o ministro do TCU.

Lira fez acordo com o partido de Jonathan de Jesus para obter apoio à sua reeleição. O presidente do Republicanos, Marcos Pereira (SP), também pleiteia a primeira vice da Câmara, cargo disputado com o PL de Jair Bolsonaro e com o PT. Além de Jonathan, concorrem à vaga no TCU a deputada Soraya Santos (PL-RJ) e Fábio Ramalho (MDB), que não foi reeleito e pode ser lançado por outro partido, o Patriota.

O deputado Hugo Leal (PSD-RJ) desistiu do páreo após assumir a Secretaria de Óleo e Gás do governo fluminense. Lira quer que Soraya também retire a candidatura, com o objetivo de deixar o caminho aberto para Jonathan. Ela resiste.

As benesses concedidas pelo presidente da Câmara aos deputados têm o objetivo de “fidelizar” o apoio de seus pares. Os gastos com combustíveis e auxílio-moradia valem a partir do próximo dia 1º e podem custar até R$ 32,6 milhões. Com o aumento salarial dos deputados, a Casa vai gastar R$ 36,4 milhões.

O auxílio moradia é composto por um valor fixo de R$ 4.253, somado a um adicional, por meio da cota parlamentar, de R$ 1.747. Lira elevou o valor adicional para R$ 4.148,80 a partir de 1º de fevereiro. Assim, o benefício poderá chegar a R$ 8.401. Ao mexer no complemento do auxílio moradia - que teve um reajuste de 137% - e não na quantia fixa, o presidente da Câmara beneficiou todos os parlamentares, inclusive quem já mora em imóveis funcionais.

A Câmara tem 432 apartamentos nas asas Norte e Sul de Brasília, mas alguns edifícios estão sem condições de uso e foram interditados. O benefício fixo de R$ 4.253 pode ser pago em espécie, com desconto de Imposto de Renda, ou mediante pedido de reembolso após apresentação de nota fiscal de hotel ou de aluguel.

Além disso, como mostrou o Estadão, Lira também garantiu a seus pares o reembolso de até quatro passagens aéreas por mês, de ida e volta. O valor será computado fora da cota parlamentar, que já leva em consideração o preço dos bilhetes. A assessoria da Câmara foi procurada, mas não se manifestou até o fechamento desta reportagem.

As benesses de Lira

- Reajuste de deputados: salários passaram de R$ 33.763,00 para R$ 39.293,32 em 1º de janeiro. A partir de 1º de abril, os valores vão a R$ 41.650,92. Em 1º de fevereiro de 2024, alcançam R$ 44.008,52. Subsídios serão de R$ 46.366,19 a partir de 1º de fevereiro de 2025. Reajuste total é de 37,32%.

- Reajuste de servidores da Câmara: aumento de 6% a cada fevereiro de 2023, 2024 e 2025.

- Reajuste de 6% da Verba de Gabinete para abarcar o aumento dos servidores. Cada deputado tem R$ 111.675,59 por mês para pagar salários de até 25 secretários parlamentares, que trabalham em Brasília ou nos Estados. Os salários individuais vão de R$ 1.025,12 a R$ 15.698,32.

- Reajuste da Cota Parlamentar, com aumento dos limites para gastos com combustíveis e com o complemento do auxílio-moradia. A cota pode custear despesas do mandato, como passagens aéreas e conta de celular.

- Reembolso de até quatro passagens áreas, de ida e volta, por mês, fora da cota parlamentar.

- Estrutura adicional de 65 comissionados e de cargos de natureza especial para Lideranças de Partidos Políticos e Federações Partidárias.

Para cada deputado

- R$ 5.793,80: aumento na cota parlamentar a partir de 1º de fevereiro de 2023

- R$ 7.887,92: aumento salarial a partir de abril de 2023. O rendimento total será de R$ 41.650,92.

Total do aumento: R$ 13.681,72 para cada parlamentar.

Por Julia Affonso e Vera Rosa, O Estado de S. Paulo, em 27.01.23


Falta grandeza a Lula

Ao insistir em chamar de ‘golpe’ o impeachment constitucional de Dilma, Lula investe no rancor, como sempre fez ao longo de sua trajetória, mas o momento do País clama por um estadista

Num evento público na Argentina, o presidente Lula da Silva chamou de “golpe de Estado” – nada menos – o impeachment da então presidente Dilma Rousseff em 2016. Ou seja: não contente em classificar de “golpe de Estado” uma decisão soberana do Congresso, com respaldo do Supremo Tribunal Federal e em estrito cumprimento da Constituição, Lula o fez no exterior, enxovalhando as instituições democráticas do Brasil perante uma audiência estrangeira. Foi, portanto, uma dupla ofensa ao País

De Lula, é claro, não se podia esperar outra coisa. É da sua natureza investir no rancor como ativo eleitoral. Foi assim que, desde a fundação do PT, e de modo mais acentuado durante o mandarinato lulopetista, Lula alimentou a cizânia nacional, dividindo o País em “nós” e “eles”. “Nós”, no léxico lulopetista, designa todos aqueles que, sendo petistas, são considerados naturalmente bons, justos e tradutores juramentados dos desejos do “povo”; já “eles”, nesse mesmo dicionário, representam todos os que ousam criticar o PT e, portanto, são naturalmente maus, injustos e inimigos do “povo” – e, agora, golpistas.

Se o comportamento de Lula não causa surpresa, provoca desânimo: justamente no momento em que o País mais precisa de um estadista, capaz de reconstruir pontes e fomentar o diálogo, o que temos na Presidência, até o momento, é o agressivo líder sindical que só se interessa pelos seus e desmerece quem não integra sua patota.

Lula recebeu um País imerso numa profunda crise, mas não uma crise qualquer: há risco real de ruptura, como testemunhamos, estarrecidos, no dia 8 de janeiro, com a tentativa de golpe em Brasília. Seu antecessor deixou como principal legado a desconfiança generalizada em tudo – seja em relação a vacinas e às urnas eletrônicas, seja em relação aos políticos, à imprensa e ao Judiciário. Relações familiares foram irremediavelmente rompidas, e todos os aspectos da vida cotidiana foram politizados.

Ora, ao qualificar como “golpe de Estado” um processo rigorosamente constitucional, em que nenhum direito foi violado, Lula colabora decisivamente para manter em carne viva o tecido social, alimentando o descrédito nas instituições, exatamente como fazia Jair Bolsonaro na Presidência.

Ao longo da campanha eleitoral e em seus primeiros discursos, Lula transmitiu a esperança de que agiria para retomar o diálogo entre os cidadãos em torno de objetivos comuns, a começar pela defesa do regime democrático. Mas não é isso o que o presidente tem feito até agora. O Lula da “frente ampla”, está cada vez mais claro, era só um personagem inventado pelo marketing político. O Lula que está na Presidência certamente satisfaz os petistas que desejam vingança pelos anos em que o partido virou sinônimo de corrupção e incompetência, mas está longe de satisfazer as demandas de um dos mais graves momentos da história nacional. Depois de ser presidido por um anão moral, o Brasil esperava, se não um gigante, ao menos um presidente minimamente empenhado em restabelecer a grandeza da Presidência da República.

É claro que as soluções para os imensos problemas do País não dependem apenas da ação do governo, pois demandam uma concertação de interesses e o engajamento da sociedade civil organizada. Tudo isso, no entanto, só será possível sob a liderança de alguém disposto a sobrepor o interesse público a outros interesses de natureza ideológico-partidária – e o interesse público nem remotamente se confunde com a agenda retrógrada e rancorosa do PT. A história nacional não é aquilo que o partido do presidente diz que é.

O País precisa de entendimento sobre suas prioridades e clama por uma condução altiva e responsável. É em momentos de turbulência, como o que ora o Brasil atravessa, que estadistas são forjados. Lula, portanto, tem de decidir se quer ser visto como o líder certo para essa quadra desafiadora de nossa história ou se pretende seguir como um dos grandes beneficiários do jogo de soma zero com o bolsonarismo, retroalimentando o círculo vicioso que nos trouxe até aqui.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.01.23

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

A ‘verdade oficial’

Lula falou uma fake news quando afirmou que impeachment de Dilma foi golpe

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva posa ao lado do par argentino, Alberto Fernández, e do ex-presidente boliviano, Evo Morales, durante evento cultural na segunda-feira em Buenos Aires ESTEBAN COLLAZO/AFP

Não bastassem comunicados oficiais do PT afirmando que a então presidente Dilma Rousseff foi tirada do governo por um golpe — o que poderia ser atribuído a uma das muitas facções petistas radicais —, o presidente Lula deu seu aval oficial a tal absurdo, afirmando, na presença do presidente da Argentina, Alberto Fernández, e do ex-presidente da Bolívia Evo Morales:

— Vocês sabem que, depois de um momento auspicioso no Brasil, quando governamos de 2003 a 2016, houve um golpe de Estado — disse Lula na Argentina.

Incluindo os anos Dilma no “momento auspicioso”, Lula, além de imodesto, fugiu da verdade.

Se houve alguma coisa fora da legalidade no impeachment de Dilma, foi a manobra do senador Renan Calheiros, referendada pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, para evitar a perda de direitos políticos da presidente derrubada, com uma leitura distorcida do artigo constitucional que transforma automaticamente a autoridade impedida em inelegível. Coube ao eleitorado mineiro cassar pela segunda vez a ex-presidente, candidata ao Senado derrotada nas urnas pelo voto direto.

Como é possível que um governo que pretende acabar com as fake news e combater a desinformação comece, ele mesmo, a tentar transformar mentira em verdade? O que Lula disse foi fake news. Vários órgãos, em diversos ministérios e secretarias governamentais, se preparam para divulgar a “verdade oficial”. Diz-se que a História é escrita pelos vencedores. A verdade, porém, é que Dilma foi deposta por um fato concreto.

Impeachment é sempre um processo político, e ela não escapou porque tinha relacionamento político frágil no Congresso. Deixou atrás um rabo grande de pedaladas fiscais, que foi devidamente punido. Mas não há como evitar a versão dos vitoriosos. Imaginemos o que fizeram com Lula: anularam as condenações por causa de atitudes do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores que, algumas vezes, realmente saíram das regras. Moro, durante anos, foi um herói nacional, com sentenças, inclusive as de Lula, referendadas por juízes de segunda e terceira instâncias e pelo próprio plenário do Supremo Tribunal Federal, embora alguns ministros tenham mudado de posição no meio do caminho.

Do jeito como as coisas acontecem no Brasil, se volta um governo de direita, Moro poderá ser reabilitado, e os petistas voltarão a ser acusados e presos novamente. O país precisa entrar numa normalidade de alternância de poder democrática, com projetos de Estado que possam ser continuados, sem revisionismos.

No romance “1984”, de George Orwell, o protagonista trabalha para o Ministério da Verdade, responsável pelo revisionismo histórico. Reescreve artigos de jornais do passado, destrói documentos não revisados, para não deixar prova de que o governo mente. Além de tentar emplacar uma versão mentirosa do impeachment, uma série de medidas legislativas está sendo proposta para que a verdade oficial prevaleça, como a retirada das redes sociais de conteúdos considerados perniciosos pelo governo, antes mesmo de intervenção judicial.

O “Pacote da Democracia” do Ministério da Justiça, uma nomenclatura orwelliana que é uma contradição em termos, está em preparação. A criminalização de postagens que incitem a violência contra as instituições pela internet seria feita sem nem mesmo passar pelo crivo do Judiciário. Se as ações do ministro Alexandre de Moraes, respaldadas posteriormente pelo plenário do Supremo, já são criticadas por parte da sociedade, o que dizer de uma decisão governamental sem a interferência desse mesmo Supremo já acusado — na maior parte das vezes injustamente — de politização?

Não é apenas no Ministério da Justiça que se engendra essa “orwellização”. Também na Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República foi instituído um “Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão”, para fiscalizar peças de desinformação e promover políticas de igualdade social. Parece brincadeira, mas é grave e sério.

Merval Pereira, o autor deste artigo é Jornalista e Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 26.01.23

Uso indecente do cartão corporativo

Em mais um insulto aos princípios republicanos, Bolsonaro bancou motociatas com o cartão da Presidência, que só existe para pequenas despesas e cujo uso deve ser impessoal


Motociatas - Mussolini já fazia na Itália fascista

A violação dos princípios da impessoalidade e da moralidade na administração pública, previstos no caput do artigo 37 da Constituição, foi uma constante no governo de Jair Bolsonaro. A rigor, desde muito antes de ser eleito presidente da República, Bolsonaro jamais deu sinais de que sabia separar bem as questões de interesse público de seus interesses particulares, como se suas vitórias eleitorais tivessem o condão de transformar assuntos de Estado, de governo e de sua família em uma coisa só. Alçado à Presidência, o mau uso por Bolsonaro do Cartão de Pagamentos do Governo Federal (CPGF), conhecido popularmente como “cartão corporativo”, é corolário dessa mixórdia.

Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o Estadão analisou detidamente, em parceria com a agência Fiquem Sabendo, milhares de notas fiscais apresentadas pelo governo federal a título de prestação de contas pelo uso do cartão corporativo, tanto por Bolsonaro como por alguns de seus auxiliares. Foi uma faina, pois o papelório é armazenado fisicamente em pastas contidas em dezenas de caixas trancadas em um almoxarifado.

O resultado da análise desses papéis é de estarrecer qualquer cidadão que tenha a mínima noção dos fundamentos sobre os quais se erigiu esta República.

Bolsonaro gastou milhões de reais por meio do cartão corporativo em eventos de pura autopromoção, como as tais motociatas que o então presidente promoveu País afora. Em nenhum desses passeios, realizados às expensas dos contribuintes, havia interesse público envolvido. Apenas o interesse político-eleitoral do então incumbente, em campanha permanente e ilegal pela reeleição.

Em média, cada passeio de moto do sr. Bolsonaro com seus amigos e apoiadores – e foram muitos ao longo do mandato, inclusive em dias e horários em que o então presidente deveria estar trabalhando – custava R$ 100 mil aos cofres públicos. Nesse montante estão incluídas as despesas com deslocamento, alimentação e hospedagem de um séquito de servidores mobilizados exclusivamente para atender aos interesses privados do ex-presidente, pois nenhuma promoção de política pública esteve remotamente envolvida nessas motociatas.

Nesses eventos privados, era comum o dispêndio de milhares de reais em lanches não só para os servidores do governo federal que acompanham o presidente da República durante viagens, como também para policiais que cuidavam da segurança das motociatas, militares baseados nas cidades onde ocorriam os passeios e socorristas.

O cartão corporativo não foi criado para isso. O uso do CPGF é regulamentado pelo Decreto 6.370/2008. Esse meio de pagamento se presta ao suprimento de fundos para a realização de “despesas eventuais que exijam pronto pagamento”. Em geral de pequena monta, essas despesas, até por seu imediatismo, não passam por licitação. O cartão corporativo também pode ser usado para o pagamento de despesas que precisam ser sigilosas, como, por exemplo, as realizadas por agentes públicos durante processos de investigação. Mas, conforme a Controladoria-Geral da União, “embora não exista a obrigatoriedade de licitação, devem ser observados os mesmos princípios que regem a Administração Pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. As motociatas de Bolsonaro desrespeitam todos esses critérios.

Ilegal e indecente por si só, o uso do cartão corporativo para custear as motociatas pode ser o menor dos problemas de Bolsonaro. O Decreto 6.370/2008 veda o uso do CPGF na modalidade saque, salvo casos excepcionalíssimos. Mas paira sobre o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, a suspeita de realizar uma série de saques em dinheiro que, entre outros gastos, teriam bancado despesas pessoais do clã Bolsonaro e de familiares da então primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

Portanto, além da flagrante violação da Lei Eleitoral, há indícios robustos de ato doloso de improbidade administrativa. Bolsonaro terá de ser criativo para se explicar.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.01.23

Exércitos refletem as respectivas sociedades

Trabalha-se para juntar cacos e superar a desconfiança mútua. Vai depender das circunstâncias


Mas todo mergulho no redemoinho político é incontrolável e o das Forças Armadas trouxe para elas duas graves consequências: a corrosão da disciplina e hierarquia promovida por um ex-capitão que via no caos suas melhores chances políticas. Foto: Wilton Junior/Estadão

Não há nada de original acontecendo com as Forças Armadas brasileiras. Vale lembrar o que escreveu em 1921 o fundador do Exército Vermelho, Leon Trotsky, intelectual que virou comissário da Guerra na revolução bolchevista: “Todos sabemos que um exército não é algo externo a uma sociedade dada, mas reflete todos os seus aspectos, tanto os fracos quanto os fortes”.

Os eventos em torno do 8 de janeiro são parte de um aspecto mais abrangente, o de que indivíduos conduzindo instituições mergulhadas na luta política acabam atuando ao sabor das circunstâncias. É o que vale também para o STF (e o TSE): vendo-se num confronto “existencial”, pois enxergavam (com razão) no bolsonarismo a intenção de destruí-los, tribunais superiores engalfinharam-se na luta política de curtíssimo prazo, ainda que ministros digam que só obedeciam a “princípios jurídicos”.

Mas todo mergulho no redemoinho político é incontrolável e o das Forças Armadas trouxe para elas duas graves consequências: a corrosão da disciplina e hierarquia promovida por um ex-capitão que via no caos suas melhores chances políticas.

Mas todo mergulho no redemoinho político é incontrolável e o das Forças Armadas trouxe para elas duas graves consequências: a corrosão da disciplina e hierarquia promovida por um ex-capitão que via no caos suas melhores chances políticas. Foto: Wilton Junior/Estadão.

O que levou ao engajamento político do Exército especialmente a partir de 2018 (ainda antes das eleições) não era o intuito de “tutelar” a Nação. Mas, sim, a noção entre seus principais comandantes de que o tecido social se esgarçava perigosamente em função da corrupção dos dirigentes políticos, da disfuncionalidade e da baixa representatividade do sistema político – sem que os militares tivessem nem sequer o contingente necessário para eventualmente garantir lei e ordem.

Nesse sentido, Jair Bolsonaro não foi uma escolha mas uma circunstância considerada então “fortuita” pelos comandantes militares para estabilizar o País que, na visão deles, estava à mercê de decisões monocráticas do Judiciário e à beira do caos (greves de caminhoneiros e PMs), e vivendo a indignação causada pelos escândalos de corrupção dos governos petistas. Não foi à toa que às vésperas do pleito de 2018 o então chefe de Estado-Maior do Exército virou assessor do presidente do STF.

Mas todo mergulho no redemoinho político é incontrolável e o das Forças Armadas trouxe para elas duas graves consequências: a corrosão da disciplina e hierarquia promovida por um ex-capitão que via no caos suas melhores chances políticas. Com danos inevitáveis à própria imagem, pois a credibilidade reconquistada a partir de 1985 baseava-se numa percepção de “neutralidade” institucional das Forças Armadas que o “fortuito” Bolsonaro arrasou.

A tal “volta à normalidade” e “pacificação” se dão agora num ambiente no qual se reitera o respeito às instituições, o que pressupõe o controle civil sobre os militares – mas sem que se enxergue em Lula a autoridade proporcionada por uma efetiva liderança nacional. Trabalha-se para juntar cacos e superar a desconfiança mútua.

William Waack, o autor deste artigo é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O estado de S. Paulo, em 26.01.23

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

‘Carinho’ com ditadores

Diplomacia com Venezuela e Cuba é do interesse do Brasil. Mas tratamento privilegiado a suas ditaduras perpetua sofrimento de seus povos e, de quebra, pode lesar o bolso dos brasileiros

O presidente Lula da Silva anunciou que vai restabelecer a “normalidade diplomática” com a Venezuela em dois meses. Faz muito bem. No entanto, coisa muito diferente é sua promessa de “tratar Venezuela e Cuba com muito carinho”.

Países não têm amigos, têm interesses. Com a Venezuela, em especial, o Brasil compartilha mais de 2 mil km de fronteiras e tem relações comerciais históricas: a Venezuela importa quase 80% de tudo o que consome, incluindo muitos produtos agropecuários brasileiros, e tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo, exportando ao Brasil toda uma série de derivados petroquímicos. Além de seus interesses comerciais, o Brasil precisa de uma representação na Venezuela que resguarde os direitos dos mais de 20 mil brasileiros que lá vivem, assim como de uma representação da Venezuela que ajude a resguardar os direitos dos cerca de 340 mil imigrantes e refugiados venezuelanos no Brasil.

Mas normalidade diplomática não significa tratar como normais ditaduras militares, comandadas por caudilhos e seus clãs, que mergulham seus povos a cada dia mais na opressão e na miséria. Se a ideia é respeitar os povos venezuelano e cubano, o melhor começo é reconhecer que vivem sob Estados de exceção. Mas Lula, que já disse que a Venezuela tem “excesso” de democracia, insiste em tratar esses regimes totalitários não só como democracias plenas, mas como vítimas do imperialismo norte-americano. Afinal, como disse recentemente, não fosse pelo embargo dos EUA, Cuba seria uma “Holanda”, ou seja, uma democracia capitalista com irretocável histórico de tolerância civil, política e religiosa.

“O que eu quero para o Brasil, quero para a Venezuela: respeito à minha soberania e respeito à autodeterminação do meu povo”, disse Lula. Afora os delírios bolsonaristas à época de Donald Trump, que não encontraram um mínimo respaldo nos poderes civis e militares brasileiros, o Brasil nunca representou qualquer ameaça à soberania da Venezuela. Já invocar a autodeterminação do povo venezuelano ou cubano – como se tivessem livremente se autodeterminado a serem oprimidos pelas tiranias mais brutais da América Latina – é um insulto.

Lula poderia criticar os embargos, como fazem muitos analistas geopolíticos, por serem contraproducentes. Se retirados, eles poderiam dinamizar a economia desses países, insuflar o anseio por mais liberdade e eliminar o pretexto de seus déspotas para sustentar seu Estado policialesco. Mas é no mínimo curioso que ele considere que esses países são oprimidos por um regime “imperialista” que se autodeterminou a não fazer negócios com eles. Afinal, se o socialismo é tão superior ao capitalismo, por que eles precisariam da maior potência capitalista do mundo para serem livres e prósperos?

Acrescentando insulto à injúria, Lula não só escarnece do sofrimento dos venezuelanos e cubanos, como dá sinais de que pode sobrepor suas amizades aos interesses do Brasil – de novo.

Lula diz que o BNDES voltará a financiar projetos para “ajudar” países vizinhos. Como se sabe, nas mãos do PT, o BNDES torrou dinheiro público em projetos sem relevância para o interesse nacional, liberando financiamentos a empresas brasileiras contratadas por governos estrangeiros para grandes obras. Muitos desses financiamentos foram mantidos sob sigilo e praticamente todos foram dados a empresas envolvidas nos esquemas investigados pela Lava Jato. Na prática, o BNDES se tornava credor do contratante a juros camaradas subsidiados com o dinheiro do contribuinte.

Só os calotes de Cuba e Venezuela somam mais de US$ 529 milhões – quase R$ 2,7 bilhões. Como o risco foi assumido inteiramente pelo governo brasileiro, o BNDES acionou o Fundo de Garantia à Exportação do Tesouro. Ou seja, quem quitou a dívida não foram nem as empreiteiras nem os governos estrangeiros, mas o contribuinte brasileiro.

Em outras palavras, o “carinho” de Lula com ditadores companheiros não só ajuda a perpetuar a miséria e a opressão das populações sob seu tacão, mas pode custar muito caro ao bolso dos brasileiros.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.01.23