sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Ibaneis Rocha: quem é o governador afastado alvo de operação da PF

A Polícia Federal cumpriu na sexta-feira (20/1) cinco mandados de busca e apreensão contra o governador afastado do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha (MDB), e o ex-secretário executivo da Segurança Pública do DF Fernando Oliveira.

Operação da PF buscou provas em inquérito que apura suposta omissão de Ibaneis Rocha nos atos em Brasília (Reuters)

Ambos são alvo de um inquérito do Ministério Público Federal (MPF) que apura se autoridades do DF que se omitiram durante a invasão das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro.

A operação da PF foi em busca de provas para instruir essa investigação. A defesa do governador disse à imprensa que a ação foi inesperada porque ele vem colaborando com as investigações e acrescentou que isso irá provar definitivamente que ele não teve qualquer responsabilidade pelo ocorrido.

O ex-ministro Anderson Torres, que era o secretário de Segurança do DF na data, e o coronel Fábio Augusto Vieira, ex-comandante-geral da Polícia Militar do DF (PM-DF), também são alvo do inquérito. Ambos estão presos.

Demissões de militares e policiais: o efeito da 'limpa' de Lula após invasões

A operação da PF teve como alvo a casa de Ibaneis em Brasília, o Palácio do Buriti, sede do governo do DF, um escritório ligado ao governador, a sede da Secretaria de Segurança do DF e a casa do ex-secretário.

Ela foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Ibaneis Rocha foi afastado do governo por 90 dias por decisão de Moraes após as invasões em Brasília.

No dia 8 de janeiro, as forças de segurança do DF não contiveram apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que invadiram e destruíram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF.

A decisão de Moraes diz que houve "omissão e conivência de diversas autoridades da área de segurança e inteligência".

Segundo o ministro, "a escalada violenta dos atos criminosos" que resultou na invasão dos três prédios públicos "somente poderia ocorrer com a anuência, e até participação efetiva, das autoridades competentes pela segurança pública e inteligência, uma vez que a organização das supostas manifestações era fato notório e sabido, que foi divulgado pela mídia brasileira".

Com o afastamento de Ibaneis, quem assumiu o governo do DF foi a vice, Celina Leão (PP).

Até o momento, três pedidos de impeachment de Ibaneis já foram protocolados na Câmara Legislativa do DF por sua conduta durante os atos de domingo.

Governador reeleito, Ibaneis declarou apoio 'de coração' a Bolsonaro antes do segundo turno da eleição presidencial (Reuters)

Antes da decisão do Supremo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já tinha decretado a intervenção federal na segurança do DF até 31 de janeiro, colocando a União no comando das competências do DF nessa área. A intervenção foi aprovada pelo Congresso.

Em depoimento à PF, Ibaneis afirmou acreditar que houve "algum tipo de sabotagem" na atuação das forças de segurança do DF.

O governador afirmou ainda que a responsabilidade de garantir a segurança na capital federal era integralmente da Secretaria de Segurança, chefiada por Anderson Torres, que foi exonerado do cargo por Ibaneis Rocha logo após os atos.

Em seu depoimento à polícia, Torres preferiu se manter em silêncio. Segundo sua defesa, o ex-secretário agiu assim porque seus advogados ainda não haviam tido acesso aos detalhes da investigação. Torres deve ser ouvido de novo na segunda-feira (23/1).

À PF, Ibaneis Rocha acrescentou que foi "absolutamente surpreendido com a falta da resistência exigida para a gravidade da situação por parte da PM-DF", e que ficou revoltado quando viu cenas de alguns policiais se confraternizando com manifestantes.

Fernando Oliveira, que estava à frente da secretaria de Segurança do DF porque Torres havia viajado de férias para os Estados Unidos na data, também prestou depoimento à PF e disse que seu ex-chefe aprovou o plano de segurança para o dia 8 de janeiro e não passou nenhuma orientação específica para inibir os atos.

Oliveira afirmou ainda que Torres não o "apresentou aos comandantes das forças policiais" antes de viajar. Ele foi demitido pelo interventor da Segurança Pública do Distrito Federal, Ricardo Cappelli, em 10 de janeiro.

Quem é Ibaneis Rocha, que apoiou Bolsonaro 'de coração'?

Ibaneis esteve ao lado de Bolsonaro durante o mandato de ambos. Bolsonaro disse que Ibaneis "teve harmonia" com o governo federal durante sua presidência e chamou o governador de "amigo" em outubro de 2022.

Na ocasião, antes do segundo turno da eleição, Ibaneis declarou apoio a Bolsonaro. Ele afirmou que seu apoio era "de coração" e "natural" — apesar de divergências durante a pandemia, quando Ibaneis contrariou o chefe do Executivo promovendo restrições à circulação de pessoas.

Em 2022, Ibaneis conseguiu ser reeleito ainda no primeiro turno da eleição, com pouco mais de 50% dos votos (Ag.  Brasil)

O agora governador afastado era novidade na política em 2018, quando se candidatou pela primeira vez ao governo do Distrito Federal e conseguiu ser eleito — na esteira do discurso de renovação da política e com apoio em igrejas evangélicas da região. Ele derrotou o então ocupante do cargo, Rodrigo Rollemberg (PSB), e figuras tradicionais da política brasiliense.

Em 2022, Ibaneis conseguiu ser reeleito ainda no primeiro turno da eleição, com pouco mais de 50% dos votos. Em sua posse, disse que o momento é de "união pelo Brasil".

Na semana passada, Ibaneis publicou nas redes sociais fotos com ministros do governo Lula em cerimônias de posse em Brasília, inclusive com Flávio Dino (Justiça).

Ele, que é brasiliense e formado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), abriu seu escritório de advocacia em 1990 e, de 2013 a 2015, foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF).

'Desculpas': o que disse Ibaneis após invasão

Forças de segurança do DF não contiveram apoiadores de Bolsonaro que invadiram e destruíram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF (Reuters)

Na tarde de domingo, Ibaneis anunciou a exoneração do secretário de Segurança DF, Anderson Torres, que foi ministro da Justiça de Bolsonaro. A medida foi lida como uma tentativa de se afastar do que, nas palavras do governador foi uma "baderna antidemocrática na Esplanada dos Ministérios".

Depois, no entanto, foi decretada a intervenção na segurança do DF pelo Executivo. E, em seguida, Moraes decidiu pelo afastamento do governador.

Ibaneis havia divulgado vídeo nas redes sociais pedindo "desculpas" aos chefes dos três poderes pelo que ocorreu em Brasília. "O que aconteceu na nossa cidade foi inaceitável."

"São verdadeiros terroristas, que terão de mim todo o efetivo combate para que sejam punidos", disse o governador, antes de ser afastado.

Após dizer que monitorava a situação, disse: "Não acreditávamos em momento nenhum que manifestações tomariam as proporções que tomaram".

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 09.01.23,

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

O STF e a democracia inabalada

Covardemente atacado no dia 8, o STF vem sendo vandalizado há anos por ameaças e ataques a seus ministros e à Corte. É preciso reconstruir seu edifício e reafirmar sua autoridade

A sede do Supremo Tribunal Federal (STF) foi o prédio mais atacado pela barbárie de 8 de janeiro. Os golpistas quebraram vidros, móveis e antiguidades, além de terem depredado vários ambientes e instalações. Ao assegurar a imediata reconstrução da sede do STF, a presidente do Supremo, ministra Rosa Weber, lembrou que o edifício é “patrimônio histórico dos brasileiros e da humanidade” e “símbolo do Poder Judiciário, um dos três pilares da democracia constitucional brasileira”.

A resposta do STF aos atos de 8 de janeiro, disse Rosa Weber, “passa também por difundir a mensagem de que esta Suprema Corte, assim como a defesa que a instituição faz da democracia e do Estado de Direito, seguem inabaláveis”. Nesse sentido, o Supremo lançou, no dia 17, a campanha Democracia Inabalada, que inclui vídeos na TV e publicações nas redes sociais. Segundo o tribunal, o objetivo é “chamar a atenção para o lamentável episódio, para que ele nunca seja esquecido e nem se repita, e destacar que a democracia e a Suprema Corte saem fortalecidas desses acontecimentos”.

Trata-se de iniciativa muito oportuna. É preciso comunicar a importância do STF para a democracia brasileira. Não há Estado Democrático de Direito sem uma Corte Constitucional independente. Não há proteção a direitos e garantias individuais sem um Judiciário forte e autônomo.

Covardemente atacado no dia 8 de janeiro, o STF vem sendo vandalizado há anos por ameaças e ataques a seus ministros e à Corte. Vale lembrar que não é apenas quebrando vidraças ou destruindo móveis que se ataca o STF. Nos últimos quatro anos, o bolsonarismo afrontou e enfrentou de forma reiterada a Corte e seus ministros, com ameaças, insinuações e muitíssima desinformação.

Tanto é assim que, em março de 2019, o então presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, se viu obrigado a determinar a abertura de um inquérito, com base no art. 43 do Regimento Interno do STF, a respeito de “notícias fraudulentas (...), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de ânimo caluniante, difamante e injuriante que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo, de seus membros e de familiares”, precisamente para proteger as prerrogativas do tribunal. Ironicamente, os atos de 8 de janeiro explicitaram, com luzes novas e aterrorizantes, a plena legalidade do inquérito, repetidamente questionada pelos bolsonaristas. Os ataques e ameaças ao Supremo não eram uma invenção, como também não eram um singelo exercício da liberdade de expressão. Eram atos criminosos com o objetivo de vandalizar o STF, deslegitimando-o aos olhos dos cidadãos.

Depois de quatro anos de desinformação contra o Supremo, é necessário reconstruir a imagem pública da Corte Constitucional. É necessário reunir novamente a população em torno da Corte Constitucional, que é aliada, e não inimiga, dos direitos e liberdades individuais. As gravações com os atos de vandalismo dentro da sede do STF podem ajudar nessa tarefa, revelando a grande falácia do bolsonarismo, com sua pretensa defesa da liberdade. Os golpistas atacam o Supremo porque querem impor sua vontade sobre os demais e sobre a própria lei. Não almejam a liberdade, mas a barbárie.

A campanha Democracia Inabalada vem, portanto, em boa hora. Ao explicitar que a reconstrução do STF é muito mais do que reerguer um edifício, ela também é alerta para todos os ministros da Corte. Há um longo trabalho de resgate da legitimidade e do prestígio do STF perante a sociedade, trabalho este que é alicerçado por decisões técnicas e fundamentadas, rigorosamente contidas dentro dos limites de competência da Corte. Essa contenção é fundamental para preservar a autoridade do STF ao longo do tempo. O Judiciário aplica a lei. No caso, o Supremo defende e aplica a Constituição, que é extensa e aborda inúmeros temas. De toda forma, isso não autoriza o STF a tomar o espaço da política ou a abraçar atribuições funcionais que não lhe competem.

O País precisa do Supremo. É urgente reconstruir seu edifício e reafirmar sua autoridade. E que os golpistas, executores e mandantes, sejam punidos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 19.01.23

Ex-GSI, coronel pede golpe, ameaça Dino, ofende comandante da Marinha e o desafia: ‘Venha me punir’

No dia dos ataques às sedes do STF, Congresso e Planalto, em Brasília, oficial do Exército incentivou revolta de coronéis com comando de tropa; ele foi um dos militares que apoiou a ação dos extremistas contra o governo Lula

O coronel José Placídio Matias dos Santos, ex-GSI, atuou na equipe do general Augusto Heleno por três anos

Homem que exerceu função de confiança no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) sob o comando do general Augusto Heleno durante três anos, o coronel do Exército José Placídio Matias dos Santos defendeu no dia 8 de janeiro que coronéis com comando de tropa se rebelassem e “entrassem no jogo, desta vez do lado certo”. Mais ainda. O oficial se dirigiu diretamente ao comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, para que ele se colocasse à frente de um golpe de Estado.

(‘Bolsonaro esperava voltar para o Brasil na glória de um golpe’, diz Lula)

“General Arruda, o Brasil e o Exército esperam que o senhor cumpra o seu dever de não se submeter às ordens do maior ladrão da história da humanidade. O senhor sempre teve e tem o meu respeito. FORÇA!!”, escreveu em postagem em sua conta no Twitter. Placídio e outro oficiais, além de bolsonaristas civis, nos dias que antecederam e na data do ataque às sedes dos três Poderes, viam em coronéis com comando de tropa uma alternativa aos generais que se recusavam a agir para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.

Placídio, que foi nomeado em fevereiro de 2019 como assessor chefe militar da Assessoria Especial de Planejamento e Assuntos Estratégicos da Secretaria Executiva do GSI, escreveu no dia 8 em seu perfil no Twitter (19 mil seguidores): “Brasília está agitada com a ação dos patriotas. Excelente oportunidade para as FA (Forças Armadas) entrarem no jogo, desta vez do lado certo. Onde estão os briosos coronéis com tropa na mão?” Ainda no dia 8, o coronel da reserva fez outra postagem em que ameaçou o ministro da Justiça, Flávio Dino: “Sua purpurina vai acabar”. Placídio permaneceu no GSI até março de 2022.

Oficial da Arma de Infantaria, ele tem curso de forças especiais (FE), como outros suspeitos de incentivar a quebra de hierarquia e de disciplina. Dois dias antes, xingou o comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, e o desafiou publicamente. Escreveu o coronel: “Marinha do Brasil!! Sai um herói patriota, entra uma prostituta do ladrão, com o devido respeito a elas. Venha me punir, Almirante, e me distinga em definitivo da sua estirpe.” Placídio se referia ao fato de o almirante Almir Garnier ter se recusado a passar o comando da Marinha em protesto contra Lula. Na posse, Olsen agradeceu ao presidente.

Os apelos de Placídio e de outros coronéis não surtiram efeito. Na noite do dia 8, após os ataques às sedes dos três Poderes, o general Arruda se reuniu com Flávio Dino e outros dois ministros (José Múcio, da Defesa, e Rui Costa, da Casa Civil). No encontro se decidiu cumprir na manhã do dia 9 a ordem de prisão contra os cerca de 1,2 mil acampados em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília.

Naquele mesmo dia 9, em meio às prisões dos extremistas, Placídio afirmava que centenas de oficiais da ativa estiveram presentes nos eventos do dia anterior. Nenhum foi preso ou identificado. Até agora o Exército puniu o coronel da reserva Adriano Testoni, que participou dos atos e ofendeu generais e o Exército. Eles se indispô até com colegas de turma, como o general da reserva Ridauto Fernandes, um FE que marchou na Esplanada naquele domingo.

Outro oficial que incentivou a ação em Brasília é o coronel Fernando Montenegro. Com 41 mil seguidores no Twitter, ele fazia enquetes defendendo a “intervenção militar”. Dizia que ela era “uma iniciativa de militares da ativa que não se inicia pelo comandante”. Montenegro é mais um FE – assim como a maioria dos oficiais que cercam Jair Bolsonaro. Ele teve a conta bloqueada por decisão judicial, em 29 de dezembro, mas continuou ativo. No dia 8, enviou mensagem aos radicais em Brasília, dizendo que toda manifestação contra o establishment é noticiada como antidemocrática. E concluiu: “Façam o que deve ser feito”.

As manifestações dos coronéis ocorreram após o fracasso do assédio a generais da ativa. Desde novembro, o Comando do Exército foi alvo de pressões bolsonaristas para não reconhecer a eleição de Lula. Logo após a derrota de Bolsonaro no pleito, manifestantes inconformados passaram a acampar em frente aos quartéis. Havia militares pressionando os colegas da ativa. Queriam um golpe. Alguns comandantes de tropa proibiram todo contato entre seu pessoal e os acampados. Outros não.

A coluna apurou que a maioria dos integrantes do Alto Comando do Exército se mostrou contrária à contestação do resultado das urnas. Diante desse fato, os extremistas lançaram uma campanha, em parte difundida nas redes sociais, que tinha por objetivos assediar o maior número de generais. Comandantes receberam mensagens nos seus telefones celulares. Um deles foi Kurt Everton Werberich, comandante da 13.ª Brigada de Infantaria Motorizada, em Cuiabá (MT). “E agora, general? No dia 01/jan/2023, V. Exa. pretende prestar continência a quem? Ao povo brasileiro ou aos Comunistas?”

General Kurt Werberich foi alvo de assédio dos extremistas que tentaram convencê-lo a dar o golpe Foto: Reprodução

Em outra frente, generais legalistas passaram a ser alvo de outra campanha que os qualificava como traidores e melancias. Ela atingiu, entre outros, os comandantes militares do Sudeste (Tomás Ribeiro de Paiva), do Leste (André Luiz Novaes), do Nordeste (Richard Nunes) e o chefe do Estado-Maior do Exército, Valério Stumpf. Mesmo assim, ainda em sua maioria, o Alto Comando se manteve contrário à virada de mesa, bem como o então comandante da Força, Marco Antônio Freire Gomes.

Em 16 de novembro, Freire Gomes divulgou nota em defesa dos generais. De acordo com o informe do Exército, “ao tentarem de forma anônima e covarde disseminar desinformação no seio da Força e da sociedade, esses grupos ou indivíduos atestam a sua falta de ética e de profissionalismo”. E conclui: “O Exército Brasileiro permanece coeso e unido, sempre em suas missões constitucionais, tendo a hierarquia e a disciplina de seus integrantes o amálgama que o torna respeitado pelo povo brasileiro, seu fiador”.

Freire Gomes também rebateu acusações feitas pelo jornalista Paulo Figueiredo Filho contra Richard, Tomás e Stumpf. No dia 28 de novembro, Figueiredo Filho afirmara que os três impediam uma “ação mais direta” contra as eleições. Em outra nota, o Exército disse: “Em relação ao divulgado pelo comentarista Paulo Figueiredo Filho, nos dias 28 e 29 de novembro de 2022, o Comando do Exército repele as alegações que ferem a imagem da Instituição e de integrantes do seu Alto Comando”.

Informe do Exército enviado ao público interno em defesa de generais do Alto Comando chamados de comunistas Foto: Reprodução/WhatsApp

Por sua atuação na defesa dos colegas e por ter se recusado a dar o golpe pretendido pelos extremistas, o general Freire Gomes também acabaria se tornando alvo das “operações psicológicas”. Elas incluíam uma aposta dos inconformados: buscar a quebra da disciplina e da hierarquia. Ao mesmo tempo, surgiu um manifesto de oficiais endereçado aos comandantes das Forças Armadas.

Em 26 de novembro, 221 militares da reserva – entre os quais 46 oficiais generais (33 da FAB, dez da Marinha e 3 do Exército) –, todos do grupo autodenominado Guardiões da Nação, assinaram uma petição aos comandantes das três Forças na qual pediam que agissem contra as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, que afastara a contestação sem provas feita pelo PL contra a vitória de Lula. O primeiro nome da lista era o do general e deputado federal bolsonarista Eliéser Girão (PL-RN).

Dois dias depois, apareceu outra carta, que dizia trazer assinaturas da ativa. Horas antes de seu surgimento, o coronel da reserva Márcio Amaro (49,6 mil seguidores no Twitter) afirmou que o manifesto ganharia outra relevância se subscrito pelos colegas em atividade. “Vocês ficaram sabendo da carta antes. Se houver carta dos oficiais da Ativa, a coisa muda de figura. Quem pode precionar (sic) ? O povo! Não haverá liderança externa. O povo nas ruas é a única força capaz de evitar a vergonha de sermos governados por ladrões”.

Amaro não tem curso de Estado-Maior. Ele gravou lives com o comentarista Paulo Figueiredo Filho, referências do bolsonarismo. O documento acabou assinado por uma dúzia de oficiais da ativa e por centenas de civis bolsonaristas. O coronel tinha um objetivo: depor Lula. Em meio ao ataque do dia 8, ele escreveu: “Não há condições desse governo que ainda não completou uma semana no poder continuar.”

No mesmo dia, o oficial publicou: “Quando os que comandam perdem a vergonha, os que obdecem perdem o respeito”. Os extremistas buscavam emparedar o Alto Comando. Por fim, como último recurso, extremistas pretenderam “dar um bypass” nos generais, apelando aos coronéis com tropas para impedir a posse de Lula. A intentona falhou. Não se produziu nenhum coronel Mohamed Ali Seineldín ou mesmo um Tejero Molina no Brasil. Até ontem, Placídio, Montenegro e Amaro mantinham suas publicações nas redes sociais.

 Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo, em 19.01.23, às 11h36

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

A força da intolerância

A maioria dos brasileiros, diz pesquisa, não acredita no arrefecimento do sectarismo político, razão pela qual urge que as autoridades atuem para restabelecer um diálogo mínimo

Apenas três em cada dez brasileiros dizem acreditar que a tolerância política aumentará em 2023, de acordo com um levantamento feito pelo instituto de pesquisa Ipsos em dezembro. O resultado nacional é considerado baixo, mas não está distante da média global negativa (34%) aferida pelo instituto em 36 países. De fato, a percepção de aumento da intolerância política está longe de ser um problema exclusivo do Brasil.

A sociedade brasileira – e aqui não há novidade – está profundamente dividida no que concerne às afiliações ideológicas e partidárias dos cidadãos. Não há no País um centro político democrático, ao menos não como força eleitoral, capaz de conquistar corações e mentes da maioria pelo apelo a consensos mínimos. Sobressai a estridência dos polos. Prevalece o distúrbio comunicacional – muita gritaria e pouca escuta. Ambos com sequelas terríveis até para o ambiente privado dos indivíduos. Quantos laços familiares, de trabalho e de amizade foram desfeitos nos últimos anos em virtude de posições políticas tidas como irreconciliáveis?

A intentona perpetrada por radicais bolsonaristas no dia 8 passado só aumentou a percepção de que o Brasil virou uma terra de gente infensa ao diálogo e incapaz de respeitar diferenças de opinião. É evidente que não há diálogo possível com extremistas; menos ainda com extremistas criminosos. A eles, o isolamento e o peso da lei. Mas, em geral, essa percepção não só está errada, como deve ser ativamente desconstruída – desde a mais alta autoridade executiva da República, o presidente Lula da Silva, até o mais anônimo dos cidadãos.

A grande maioria dos brasileiros, incluindo muitos dos que votaram em Jair Bolsonaro, condena o emprego da violência como forma de ação política. Há, portanto, saídas para essa intolerância que paralisa o País, desde, é claro, que autoridades e cidadãos, imbuídos de boa-fé, ajam para superá-la. Como disse ao Estadão o cientista político Miguel Lago, “a capacidade de condenar essa atividade (o assalto contra as sedes dos Poderes) é um prenúncio de que é possível arregimentar forças em defesa da civilidade”.

O desafio do País não é superar as divergências políticas entre os cidadãos, mesmo as mais aferradas. Elas são próprias de qualquer democracia digna do nome. O desafio é voltar a trilhar um caminho de amadurecimento democrático no qual a coabitação seja possível. Para isso, há que reconstruir um consenso, entre tantos outros, em torno do respeito inarredável ao grande pacto que nos une como cidadãos: a Constituição. A Lei Maior protege a livre manifestação de divergências e, ao mesmo tempo, coíbe a intolerância.

A coabitação entre divergentes só é possível em um ambiente de tolerância e respeito às leis, vale dizer, quando ideias, valores e visões de mundo por vezes conflitantes – desde que não configurem crimes – não são desqualificados a priori por quem se acha o único portador da “verdade” ou de uma ideia do que seja o “bem”; tampouco seus defensores são tratados como inimigos de uma facção rival por aqueles que pensam diferente.

Idealmente, o encerramento da eleição deveria sobrestar essas diferenças, ao menos até o próximo ciclo eleitoral, e unir os cidadãos em torno de um projeto comum de País. Mas isso não aconteceu. Ao contrário.

Agora cabe ao vencedor, o presidente Lula, tomar a iniciativa de chamar todos os brasileiros ao diálogo, de mostrar, e não apenas com palavras, que, de fato, governará para todos. Na prática, isso significa ampliar as forças políticas presentes em seu governo, contemplando o maior número possível de interesses da sociedade. Dividindo poder entre uma frente realmente ampla e democrática.

A intolerância política não desaparece de uma hora para outra por força de vontade; é preciso ações concretas para isolar os extremistas e dialogar com os divergentes que “estão inseridos no jogo democrático”, como bem disse Miguel Lago.

Lula será um presidente bem-sucedido se entender que sua vitória eleitoral não foi apenas sua ou do PT. Que o presidente compreenda a dimensão de sua responsabilidade histórica.

Editorial /  Notas & Informações, O estado de S. Paulo, em 17.01.23

A direita de Bolsonaro

O 8 de janeiro expôs um golpismo inédito

Golpistas invadem o Palácio do Planalto em 8 de janeiro - Gabriela Biló /Folhapress

No dia 1º de novembro, logo depois da derrota eleitoral, Jair Bolsonaro (PL) gabou-se: "a direita surgiu de verdade em nosso país".

Na tarde de 8 de janeiro viu-se em Brasília o que é a direita de Bolsonaro. Direita o Pindorama sempre teve, mas a de Bolsonaro tem caraterísticas próprias e inéditas. É uma direita com bases populares, mobilizável para atos de delinquência. Noves fora George Washington de Oliveira Souza, gerente de um posto de gasolina no Pará, que está preso, 23 dos 1.500 presos de Brasília tinham antecedentes criminais. O George Washington bolsonarista planejava um Riocentro 2.0, explodindo um caminhão de combustível no pátio do aeroporto de Brasília, sincronizado com um corte de energia. Esse é o braço terrorista dessa direita.

No braço dos atentados de 8 de janeiro estavam duas figuras singulares.

Uma é Maria de Fátima Mendonça Jacinto Souza, a "Fátima de Tubarão" (SC), de 67 anos. Ela invadiu o Palácio do Planalto, avisando: "Vamos para a guerra, é guerra agora. Vamos pegar o Xandão agora." Xandão é o ministro Alexandre de Moraes. O outro é o paraense Antônio Geovane Sousa de Sousa, de 23 anos, preso quando tentava acender um explosivo.

Fátima foi condenada a três anos e dez meses de prisão por tráfico de drogas e cumpre a pena em regime aberto. Geovane foi preso em 2018, acusado de ter matado um homem a facadas. É um foragido. O que leva pessoas com antecedentes criminais a participar de atos como os atentados de 8 de janeiro só pode ser uma irresponsável sensação de impunidade. Mas essas poderiam ser histórias do andar de baixo.

No de cima, vai-se achar Creusa Buss Melotto. Duas semanas antes do fim do governo, a senhora recebeu do Gabinete de Segurança Institucional uma autorização para a exploração de garimpo de ouro numa área de 9,8 mil hectares na Amazônia. Na década de 90 ela cumpriu pena de seis anos de prisão por tráfico de drogas.

A direita de Jair Bolsonaro nada tem a ver com a de figuras como Roberto Campos ou a do ultramontano católico Gustavo Corção. Ela tem a cabeça sabe-se lá onde, mas seus pés estão nas milícias, na grilagem de terras, nas delinquências amazônicas, e até mesmo em casos de crimes.

(As ligações da ministra do Turismo, Daniela Carneiro, ou "Daniela do Waguinho" com milicianos da Baixada Fluminense são uma carga para o governo de Lula. Comparar o grosso da militância bolsonarista com a petista é chamar urubu de meu louro, mas tanto os urubus como os papagaios são aves.)

A direita mobilizada por Bolsonaro fez no dia 8 de janeiro coisas que nunca foram vistas na política nacional. Aqui e ali já foram cometidos atos violentos, mas nunca tiveram o apoio expresso e persistente de uma liderança nacional.

Queira-se ou não, Jair Bolsonaro teve 58,2 milhões de votos. Perdeu para Lula por uma margem de 2%. Num universo eleitoral que cresceu, em 2022 ele teve cerca de 400 mil votos a mais que em 2018.

O 8 de janeiro sugere que pode ter começado ocaso político de Bolsonaro. Sua direita é outra, nunca vista. Violenta e golpista, com base popular.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é Jornalista e também autor de cinco volumes sobre a história do regime militar no Brasil, entre eles "A Ditadura Encurralada". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.01.23


A radicalização dos idosos

Ao abraçarem seita bolsonarista, encontram novo propósito de vida e senso de pertencimento

Idoso bolsonarista no prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

É fácil desdenhar e afirmar que entre os golpistas há um bando de velhos que deveria voltar para o bingo. Falamos em delírio coletivo, saudosismo ou demência sobre gente que acampou em frente aos quartéis e participou da quebradeira, mas a radicalização dos idosos precisa ser olhada com lupa.

Manipulação, abuso e controle emocional são ingredientes usados pela extrema direita para cooptar seguidores, e os idosos foram alvo fácil da seita bolsonarista. Os não ativos digitais têm ainda mais dificuldade de lidar com notícias falsas, teorias da conspiração, trolls e deep fakes.

Não à toa "gaslighting" foi eleita a palavra de 2022 pelo dicionário Merriam-Webster, impulsionada pelo aumento de tecnologias usadas para dominar as pessoas, especialmente em contextos políticos. Sem tradução literal, pela definição é a prática de enganar alguém de forma rudimentar e ter alguma vantagem.

"Gaslighting" começou a ser usada há poucos anos para definir abuso em relacionamentos amorosos, inspirada na peça "Gas Light", de 1938. O personagem principal tenta convencer a mulher de que ela está ficando louca quando reclama que a luz está mais fraca —o marido diz que é sua imaginação.

Exatamente o que acontece sempre que Bolsonaro, parlamentares e blogueiros apoiadores dizem algo inacreditável para a maioria de nós, mas que passa a ser verdade entre seus seguidores. Ao contestarem encontrarão resistência em seus próprios grupos, então passam a aceitar o inaceitável.

Há, obviamente, gente mau-caráter, consciente do que faz, dos danos que provoca à democracia. Mas a massa de manobra, importante para manter o bolsonarismo ativo, não ficou alienada da noite para o dia. O que a extrema direita fez foi lhes dar a ilusão de que participam de algo grandioso. Ao abraçarem a seita bolsonarista, os idosos suprem carências afetivas, encontram um novo propósito de vida, o senso de pertencimento que muitos perderam à medida que envelheciam, inclusive pelo abandono da própria família.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é Jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.01.23.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

É preciso investigar Bolsonaro

Minuta de decreto é mais um elemento a indicar envolvimento do governo Bolsonaro em atos antidemocráticos. Não cabe impunidade a quem viola acintosamente as leis e a Constituição


Na pandemia, cloroquina até para as emas do Palácio

Jair Bolsonaro deixou o País no dia 30 de dezembro. Mas nem por isso está imune às leis brasileiras. Suas ações e omissões continuam passíveis de ser responsabilizadas juridicamente. No domingo passado, hordas de bolsonaristas – acampados desde o resultado do segundo turno das eleições – invadiram as sedes dos Três Poderes, destruindo e vandalizando o patrimônio público. Ainda que o ex-presidente tenha tentado se distanciar do caráter violento dos atos de 8 de janeiro, é evidente a conexão entre a ação dos vândalos no domingo passado e a reiterada campanha de Bolsonaro contra as instituições republicanas, em concreto contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Uma das autoridades cuja omissão se mostrou mais decisiva nos acontecimentos de domingo passado em Brasília foi o ministro da Justiça do governo Bolsonaro, Anderson Torres, que havia sido nomeado neste ano Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Na segunda-feira, Anderson Torres, que estava nos Estados Unidos, foi exonerado do cargo. No dia seguinte, a pedido da Polícia Federal, o ministro Alexandre de Moraes decretou sua prisão preventiva.

A reiterar o vínculo entre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro e o governo Bolsonaro, nas diligências de busca e apreensão na casa de Anderson Torres, agentes da Polícia Federal encontraram uma minuta de decreto presidencial a respeito de um estapafúrdio estado de defesa no TSE, com o objetivo de “garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022″. Segundo o texto, seria constituída uma “Comissão de Regularidade Eleitoral” composta por 17 membros, dos quais 8 seriam militares oriundos do Ministério da Defesa.

Uma rigorosa investigação se impõe. Se for confirmada, a tentativa de atropelar o processo eleitoral, usando as atribuições da Presidência da República, é algo muito grave, que viola os fundamentos da República. Não cabe impunidade a quem desrespeita tão acintosamente a Constituição e as leis do País.

Em novembro do ano passado, dissemos neste espaço e agora, diante de novos e mais graves indícios, reiteramos: “É preciso apurar a responsabilidade jurídica de Jair Bolsonaro e, nos casos cabíveis, aplicar as penas correspondentes. Toda impunidade é prejudicial ao País, mas ainda mais grave seria a eventual impunidade de quem ocupou o mais alto posto da República. Representaria um tremendo mau exemplo para toda a sociedade” (A responsabilidade jurídica de Bolsonaro, 14/11/2022).

A apreensão da minuta de um decreto de estado de defesa com o exclusivo propósito de alterar o resultado das eleições presidenciais é gravíssima. Expõe a audácia e prepotência da cúpula do governo Bolsonaro, que, pelo visto, não queria ser apeada do poder pelo voto popular. Mas é preciso reconhecer: o texto é absolutamente coerente com o espírito antidemocrático e antirrepublicano que Jair Bolsonaro vem demonstrando ao longo de toda sua vida pública.

Não se pode tapar o sol com peneira. A cada dia que passa, surgem mais elementos a indicar o envolvimento de Jair Bolsonaro e membros do primeiro escalão do seu governo no desenho e realização de atos que atentam contra o regime democrático. É preciso investigar, indo até o fim na apuração de tais condutas. O Estado Democrático de Direito – em concreto, o respeito aos direitos e liberdades de cada cidadão – merece esse cuidado.

Na trajetória de responsabilizar os agressores do regime democrático, há um aspecto especialmente importante. Seguindo o devido processo legal, todos aqueles que tiverem comprovada sua participação em atos criminosos e antidemocráticos devem ser alijados do processo eleitoral. Merecem tornar-se inelegíveis. A Constituição prevê essa possibilidade precisamente para que a defesa da democracia seja efetiva.

A barbárie de 8 de janeiro não foi fruto de geração espontânea. É preciso investigar não apenas os loucos acampados, mas também os graúdos – estejam onde estiverem.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.01.23

O contribuinte está mais indefeso

MP que dá à Fazenda superpoderes contra o contribuinte no Carf é problemática em sua forma, motivação e conteúdo

O governo Lula reinstituiu, pela Medida Provisória (MP) 1.160/2023, o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a última instância administrativa para contribuintes questionarem a validade de autuações fiscais. Vinculado ao Ministério da Fazenda, o Carf é formado por quatro conselheiros: dois indicados pela Receita e dois por setores econômicos. Originariamente, em caso de empate, prevalecia o “voto de qualidade”, ou seja, valia por dois o voto do presidente da Turma. Como ele é necessariamente um representante da Receita, na prática o voto de Minerva pesava sempre a favor do Fisco. Em 2020, esse modelo foi alterado: em caso de empate, a decisão passou a ser favorável aos contribuintes, conforme o princípio in dubio pro reo.

A medida é problemática em sua forma, motivação e conteúdo.

Segundo a Constituição, a edição de MPs exige relevância e urgência, sendo vedada em matérias de direito penal e processual civil. Muitos juristas afirmam que sanções administrativas, como as penas tributárias decididas pelo Carf, têm uma dimensão penal e que as leis disciplinadoras das funções e capacidades dos julgadores integram o sistema processual.

Ao justificar a MP 1.160/2023, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, alegou que o desempate pró-contribuinte gerou perdas para os cofres públicos, que o novo Carf tem ignorado jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em favor da União e que seu modelo é fonte de corrupção. Ora, os casos de malfeitos identificados pela Operação Zelotes envolviam justamente conselheiros da Fazenda durante a vigência do voto de qualidade. Além disso, não há evidências de que as decisões do Carf favoráveis ao contribuinte sejam antijurídicas. De resto, o apetite arrecadatório não pode se sobrepor aos princípios de justiça que devem reger a atuação do poder público.

A decisão do Congresso pelo fim dos superpoderes do conselheiro da Receita, com o desempate a favor do contribuinte, foi questionada na Justiça e o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria pela constitucionalidade. O julgamento está suspenso.

A MP 1.160/2023 traz ainda outra grave disfunção, permitindo que, em caso de o Carf dar razão ao contribuinte, a Fazenda recorra à Justiça. Tal possibilidade ignora que o Carf é um órgão da Fazenda. Não faz sentido que a Fazenda acione o Poder Judiciário contra uma decisão que ela mesma proferiu. Trata-se de evidente violação do princípio da unidade da administração pública.

A complexidade do sistema tributário brasileiro é uma das principais causas dos altos índices de litigância judicial. Não há dúvida de que o modelo do Carf pode ser avaliado e discutido no âmbito de uma reforma tributária. No entanto, não é gerando desequilíbrio a favor do Fisco, por meio de mudança abrupta imposta por medida provisória, que se aprimora o seu funcionamento. A representação do contribuinte no Carf não pode ser de fachada, como mero meio de dar ares de legitimidade ao apetite arrecadatório do Estado.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.01.23

Exército terá de reconstruir disciplina e controle da reserva após golpe bolsonarista

Simpatia pelos extremistas pode ter impedido análise correta do cenário de radicalização dos que tomaram a sede dos três Poderes, em Brasília

Blindado e tropa de choque do Exército cercam acampamento em frente ao QG, em Brasília, na noite do dia 8

Um dos piores dias da história do Brasil. É assim que generais ouvidos pelo Estadão classificaram o que houve na Esplanada dos Ministérios, no dia 8, em Brasília. Uma semana antes, o Comando Militar do Planalto (CMP) havia mobilizado 6 mil homens para garantir a segurança da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, sem que estes pudessem ser vistos ou simplesmente aparecer. E tudo saiu como planejado. Nada estragou a festa do presidente eleito.

O que houve, então, para que a segurança falhasse e a chamada “tomada de poder” levada a cabo pelos extremistas pudesse ser concluída com a invasão e depredação das sedes do três Poderes? Houve um apagão na área de inteligência, e o cenário que o CMP tinha era o de mais uma manifestação, como tantas outras levadas a cabo pelo bolsonarismo nos últimos dois anos. Todas, apesar de muitas de suas palavras de ordem serem manifestamente golpistas – intervenção militar, fechar o STF e o Congresso, etc – não haviam passado da palavra para a ação.

O cenário que a chefia da Segurança Pública do Distrito Federal e que os militares do Exército trabalhavam estava errado. Faltou aos responsáveis pela segurança e pelos órgãos de inteligência a correta leitura da tempestade que se avizinhava. E havia raios e trovoadas que a anunciavam nas últimas semanas. Episódios de violência haviam sido registrados em dezenas de atos e protestos dos que estavam inconformados com a eleição de Lula. Eles se repetiram na estradas, com tentativas de assassinato de policiais rodoviários, nas cidades com as agressões a estudantes e em outros atentados à ordem pública.

Até que, na véspera do Natal, bolsonaristas tentaram explodir uma bomba em um caminhão-tanque em Brasília. A tentativa frustrada podia causar caos e mortes no aeroporto de Brasília. Mas não foi suficiente para alertar as autoridades. Muitos dos que tinham responsabilidade institucional continuaram a escalar a crise, como o almirante Almir Garnier Santos, que se recusou a passar o comando da Marinha ao sucessor, o almirante Marcos Sampaio Olsen. Garnier empregara mulher e filho no governo Bolsonaro. E esqueceu que a continência se presta à Presidência e não ao presidente, adubando o extremismo.

Era evidente que a radicalização dos perdedores na eleição lentamente deixava o campo das palavras para passar ao das ações. Saía da arena política para “continuá-la” nas ações armadas. Foi assim que se convocou a intentona do dia 8. Chamada pelos radicais de “tomada do poder”, seus organizadores pediam a participação de militares da reserva que tivessem experiência para enfrentar policiais na manifestação. Deixavam claro que a intenção era acampar na sede dos três Poderes para forçar a ação das Forças Armadas a fim de derrubar Lula. Seguiam o modelos dos golpes registrados recentemente na Bolívia e no Sri Lanka.

Para ter sucesso, a intentona bolsonarista contava com a simpatia que o movimento despertava nos quartéis. Assim também outros radicais no passado tentaram tomar o poder por meio de insurreições armadas nos anos 1920 e 1930. A última vez que um partido político tentara usar essa fórmula foi em 1938, quando o tenente Severo Fournier liderou os fascistas da Ação Integralista Brasileira no assalto ao Palácio da Guanabara, no Rio, então residência oficial da Presidência. Três anos antes, os comunistas, liderados por Luiz Carlos Prestes, haviam tentado tomar o poder, rebelando unidades militares no Rio e no Nordeste.

Fournier e Prestes apostavam no apoio que teriam no Exército e na Armada. E falharam. O mesmo se passou agora com a intentona bolsonarista. É possível que a simpatia pelos acampados na frente dos quartéis tenha levado muitos dos generais a subestimar a ameaça representada pelos extremistas, o que os impediu de analisar corretamente o processo de radicalização acelerada desse grupo. A ideia de que os episódios de fanatismo se reproduziam sem maiores consequências ajudou a criar a avaliação errada.

Agora, confrontados com o fracasso da estratégia para desmobilizar os acampamentos na frente dos quartéis, os generais se veem diante da desconfiança de que teriam sido lenientes com os extremistas. Trata-se de julgamento açodado. Se alguém queria dar um golpe – e a minuta apreendida na casa do ex-ministro Anderson Torres mostra que havia sim quem desejasse isso –, é necessário dizer que a ruptura constitucional só não ocorreu porque os criminosos não obtiveram o apoio que esperavam nas Forças Armadas.

É necessário ainda estabelecer as responsabilidades sobre o que aconteceu em Brasília. E as Inteligências Policial e Militar são as principais responsáveis pelo que houve. Ou por incompetência de ver o que qualquer jornalista já sabia desde sexta-feira, dia 6 – os planos violentos do bolsonarismo –, ou por conivência criminosa. Em qualquer dos casos, o bom senso exige que seus chefes sejam mudados. É preciso apurar as responsabilidades e isolar os extremistas.

Mas também se deve fazer Justiça. O golpe só não teve sucesso também porque, desde os coronéis até o Alto Comandos das Forças, os chefes militares não aceitaram a ruptura desejada pelos extremistas. Eles cumpriram com seu dever. Em tempos extremos, de polarização, a decisão desses homens deve ser reconhecida. Por mais que a simpatia passada dos generais pelo que hoje é chamado de bolsonarismo exista e por mais que esse projeto de poder tenha se mostrado um desastre, é preciso dizer que, no dia 8, só os que se deram bem no governo ou que se fanatizaram aderiram ao projeto de tomada de poder dos radicais.

Os militares têm, agora, a missão de reconstruir as relações com os civis e a disciplina entre os milhares de integrantes da reserva. O caso do coronel Adriano Testoni não é único. Após ofender o Exército e seus generais no dia 8, o coronel bolsonarista foi indiciado em Inquérito Policial Militar (IPM), concluído em 3 dias, depois de ter sido aberto por ordem do general Gustavo Henrique Dutra Menezes, comandante do CMP. Enfrentar o extremismo será uma das principais missões da atual geração de oficiais. Com o devido processo legal, mas sem passar a mão na cabeça ou anistiar os bandidos que envergonharam o País.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é Jornalista especializado em assuntos militares. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.01.23

A democracia militante

Na ascensão de Hitler houve uma extrema complacência em nome de um formalismo jurídico ancorado na defesa das liberdades

Situações de exceção exigem medidas excepcionais. Não se combate a violência, especialmente de cunho autoritário ou totalitário, com instrumentos paliativos, como se se tratasse de um mero acidente de percurso de pessoas inocentes ou supostamente bem-intencionadas. A defesa da democracia requer atitudes firmes, que não compactuem com o crime, a desordem e, enfim, com a sublevação ou insurreição. Houve sim uma tentativa de golpe conduzida pela extrema direita, pelo bolsonarismo e seus apoiadores, que se insurgiram contra o resultado das eleições, o que vale dizer contra a própria Constituição.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tomou as medidas acertadas dada a gravidade da crise institucional que se armou. Não compactuou com a violência e chamou à responsabilidade os agentes políticos e policiais, assim como apoiadores financeiros, que sustentaram a tentativa de subversão das instituições. Alguns o fizeram por convicção, outros por omissão, outros ainda por mero oportunismo. Não importa. Puseram assim a democracia em risco, sob o manto de uma suposta tolerância com as “manifestações”.

Na ascensão de Adolf Hitler ao poder, houve uma extrema complacência com um projeto liberticida que já mostrava toda sua face aterradora, e o fizeram em nome de um formalismo jurídico ancorado na defesa das liberdades. Os liberticidas foram sustentados pelos defensores das liberdades e do Estado Democrático de Direito. A democracia marcha para a sua extinção quando se curva a formalidades carentes de substância, que assumem, então, a função de desintegração das instituições republicanas. Projetos autoritários e totalitários frequentemente se utilizam de instrumentos democráticos para minar a própria democracia.

O roteiro estava claro, só não viu aquele que não quis ver. Ato primeiro, a suposta defesa das liberdades e da Constituição, o jogar dentro daquelas quatro linhas, quando todo o jogo era já instrumentalizado de fora. A defesa das liberdades se delineava como liberdade para transgredir. Ato segundo, manifestações ditas democráticas em todo o País e, em particular, no entorno dos quartéis, como se fosse próprio da democracia acolher discursos cujo único objetivo consiste em destruir essa mesma democracia. Um regime que transige com seus fundamentos cessa progressivamente de existir. Ato terceiro, sentindo-se suficientemente fortes e apoiados, os “manifestantes” abandonaram a sua máscara democrática e assumiram a sua verdadeira natureza autoritária e golpista. Vandalizaram e destruíram os símbolos mesmos da República: o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

Cabiam sim medidas excepcionais, como as tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes e pelo presidente Lula da Silva. Manifestantes/golpistas devem ser sim presos e julgados, não podendo haver aqui nenhuma tergiversação. Se isso não for feito, dá-se ainda mais força para que tais atos se repitam. Ou se para agora, ou o futuro se tornará ainda mais incerto. Que mais de mil pessoas sejam presas, é da natureza da defesa democrática, fundada na responsabilização desses supostos “revolucionários”, boa parte deles já solta uma vez identificados, sobretudo crianças e idosos. A analogia com campos de concentração é literalmente grotesca. Alguém foi morto? Alguém foi torturado? Quem são esses pais e mães que levam seus filhos a manifestações golpistas? Não deveriam ser eles também responsabilizados? Quando a polícia cumpre o seu dever, procura-se denunciá-la.

Os dirigentes do Distrito Federal, governador, secretário de Segurança Pública e comandantes militares, foram responsabilizados. É propriamente intolerável que golpistas tenham sido protegidos, se não apoiados, pela Polícia Militar. Responsabilidades devem ser apuradas e, em particular, o governador deveria ser reinstituído em suas funções se nada for provado contra ele. Dito isso, não se deve tomá-los como bodes expiatórios, pois a responsabilidade é compartilhada, pois, dentre outras questões, convém destacar: onde estava o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável pelos palácios presidenciais? Por que não reforçou ou chamou o Batalhão da Guarda Presidencial antes de a violência ganhar aquela proporção? Onde estava a Agência Brasileira de Inteligência (Abin)? Onde estava a Polícia Rodoviária Federal (PRF) quando ônibus de todo o País levavam os golpistas para Brasília?

Como muito bem lembrado por Marcelo Godoy, em artigo neste jornal, citando Karl Loewenstein, a propósito de seu texto clássico Democracia militante e direitos fundamentais, publicado em 1937, a defesa da democracia não pode transigir com a destruição de seus fundamentos utilizando-se de meios democráticos e de mero formalismo jurídico. Judeu alemão, teve ele de fugir de sua terra natal, refugiando-se nos EUA, onde se tornou professor universitário e consultor do Departamento de Estado. Sob os auspícios deste, escreveu dois livros que merecem ser lidos para melhor compreendermos o Brasil atual: Brasil sob Vargas e A Alemanha de Hitler.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.01.23

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Atos terroristas aumentam riscos de prisão de Bolsonaro, avaliam aliados

Os atos terroristas que culminaram com a invasão e a depredação das sedes dos três poderes da República elevaram os temores entre aliados de Jair Bolsonaro de que o ex-presidente vai acabar preso em algum momento ao longo dos próximos meses.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (Alexandre Cassiano/O Globo)

Antes de centenas de extremistas bolsonaristas invadirem e depredarem as instalações do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso, interlocutores de Bolsonaro avaliavam que havia um risco médio de prisão.

Mais de 200 bolsonaristas radicais foram presos em flagrante durante intento golpista em Brasília — Foto: Uelsei Marcelino/Reuters

Agora, a leitura compartilhada por aliados do ex-presidente e por ministros de tribunais superiores ouvidos pela equipe da coluna é de que a situação de Bolsonaro ficou delicadíssima.

“Eu acho que, a médio prazo, ele não escapa”, avalia um magistrado que acompanhou perplexo os desdobramentos em Brasília.

Esses aliados de Bolsonaro e magistrados avaliam que os protestos golpistas farão desmoronar o capital político do ex-chefe do Executivo, já desgastado pela viagem dele aos Estados Unidos enquanto centenas de extremistas ficaram acampados debaixo de chuva na frente de quartéis contra o resultado das urnas.

No cálculo político de fiéis aliados, quanto mais vulnerável Bolsonaro estiver e menos apoio popular reunir, maiores as chances de ele se tornar uma “presa fácil” para o Judiciário e acabar na cadeia.

O maior temor no círculo bolsonarista é com duas investigações que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF), ambos nas mãos de Alexandre de Moraes: o inquérito das fake news e o das milícias digitais.

Foi no âmbito desses dois inquéritos que a Advocacia-Geral da União (AGU), comandada por Jorge Messias, pediu a Moraes a prisão de todos os envolvidos na invasão de prédios públicos federais, inclusive a do ex-secretário de segurança pública do DF Anderson Torres.

“Depois de hoje, Alexandre vai ter todo o respaldo de que precisar”, afirma um colega de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O sinal de alerta soou mais forte entre bolsonaristas nos últimos dias, depois que Moraes determinou a quebra de sigilo telefônico e de dados de apoiadores de atos antidemocráticos e permitiu a extensão da medida a todos os que tiveram contato com eles, conforme revelou o site Metrópoles.

Só na noite de domingo, depois de horas de quebra-quebra e tumulto em Brasília, Bolsonaro rompeu o silêncio e escreveu no Twitter que “depredações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017, fogem à regra”.

Antes disso, ainda, os canais e redes sociais do ex-presidente seguiam fazendo publicações sobre sua gestão, como se nada de anormal estivesse acontecendo.

Ao comparar os protestos de agora com os do passado, Bolsonaro buscou uma falsa equivalência. Nos atos do passado, ao contrário dos deste domingo, a polícia estava presente para conter os invasores, o que não se viu desta vez.

“Multidão sem líder vira turba, vão surgir ‘lideranças’ mais malucas. Este sempre foi o meu medo”, avalia um influente interlocutor de Bolsonaro, temeroso sobre o futuro do ex-chefe. “Se Bolsonaro virar um avestruz e fingir que nada disso que está acontecendo é com ele, vai ter problemas.

Rafael Moraes Moura, originalmente, para O Globo, em 09.01.23, às 04h00

Até onde irão os órfãos de Bolsonaro?

Dependerá da diplomacia e firmeza do governo Lula que as tentativas nada pacíficas dos últimos golpes do bolsonarismo radical sejam diluídas ou fortalecidas com o consentimento de parte das Forças Armadas.

Um homem com uma bandeira brasileira se manifesta contra Lula no Planalto neste domingo durante a tomada de várias instituições por apoiadores de Bolsonaro. (Adriano Machado, Reuters)

Quando tudo parecia uma lua de mel para o novo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vencedor das eleições, e quando as forças democráticas do país comemoravam a notícia de seu governo , de repente a mais radical serpente de Bolsonaro ergueu a cabeça e ousou contra todas as proibições e ameaças de tentar invadir o Congresso Nacional no estilo Trump .

O mais estranho é que tudo parecia em paz e que até ontem políticos partidários de Bolsonaro, após sua nada gloriosa decisão de deixar o país , abordavam Lula e seu novo governo sem xales. Sua vitória parecia completa e os dirigentes de seu Gabinete consideravam as escaramuças brasilienses dos fanáticos de Bolsonaro que se recusavam a deixar a capital um resíduo inócuo que acabaria cansando seus protestos e desistindo de seus ares golpistas.

O que aconteceu neste domingo em Brasília, contrariando todas as expectativas e desafiando as ameaças do novo governo, acabou alarmando, porém, pois ainda não se sabe quem está por trás desses milhares de bolsonaristas que chegaram à capital em uma centena de ônibus, especialmente de o sul rico do país, aparentemente pago por empresários ainda leais a Bolsonaro do grupo conservador e fascista do agronegócio.

É possível que o novo governo e as boas relações de Lula com os militares acabem por dissipar os temores e as tentativas dos manifestantes que querem que os militares deem um golpe para derrubar o novo governo progressista. É a hipótese dos mais otimistas que veem nas manifestações o último golpe do descontentamento que vai desembocar nas águas da borragem.

Há, porém, latente, desde antes da vitória de Lula, uma teoria sutil e perigosa sobre os limites entre protestos de rua e liberdade de expressão. É o argumento que os militares mais simpatizantes dos bolsonaristas abraçam que alegam que o direito aos protestos, desde que não sejam violentos, é garantido pela Constituição. E aí reside neste momento o difícil equilíbrio entre o protesto democrático e as tentativas de derrubar nas urnas o novo governo democraticamente sancionado.

Daí a importância de como podem terminar as tentativas de invadir o Congresso, ainda que hoje vazio, e continuar com atos de violência física e peticionar aos militares que declarem a ilegalidade das eleições e atuem contra o novo governo. Um governo ao qual não emprestam autoridade, pois continuam com a ladainha de que as eleições não foram justas e a vitória de Bolsonaro foi roubada, nada mais parecido com o que já vimos nos Estados Unidos com a derrota de Donald Trump.

Tudo isso indica que Bolsonaro segue na ativa desde seu exílio voluntário nos Estados Unidos e daqui, no Brasil, por meio de seus mais fiéis seguidores, principalmente o mundo dos empresários que desaprovaram a volta de Lula, a quem seguem. ".

Na hora de despachar essa análise, toda a atenção está voltada para o que os militares mais próximos de Bolsonaro podem pensar e decidir. Se não houver surpresas, a esperança do novo governo, disposto a usar a força contra os golpistas, é que ajam com pés de chumbo para que, sem ter que enfrentar os manifestantes com a força das armas, consigam convencê-los a voltem para suas casas.

Tudo isto para evitar um confronto violento com as forças policiais que poderia manchar o clima de diálogo e paz política e social criado pela esperança de que se abre a chegada de um novo Governo, no qual, pela primeira vez, representantes de todas as fazendas do país, mesmo aquelas até agora sempre deixadas na sarjeta. Entre os 37 ministros do novo governo de Lula há, de fato, representantes das camadas mais baixas da sociedade que nunca haviam feito parte de um governo nacional no passado.

O resultado da diplomacia e da firmeza do governo Lula vai depender se as tentativas nada pacíficas dos últimos golpes do bolsonarismo radical, que já começam a se espalhar de Brasília a São Paulo e que podem se multiplicar nos próximos dias, acabem se diluindo sem consequências maiores ou podem ser fortalecidas com o consentimento da parte das Forças Armadas que continuam, ainda que nas sombras, apoiando o apetite golpista do bolsonarismo. Um bolsonarismo que não se confunde com a direita que, embora com nojo, aceitou democraticamente o resultado das urnas.

Juan Árias, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS no Rio de Janeiro. Publicado originalmente em 08.01.23, às 18:39hs

Brasil precisa da ação dos três poderes para erradicar o sectarismo de Bolsonaro

Além de parasitar a democracia, a extrema direita brasileira se apoderou da República e dos símbolos nacionais, abrigada por uma falsa sensação de onipotência

A polícia brasileira detém uma série de apoiadores de Bolsonaro após o assalto à Presidência, no Brasil, neste domingo. (Ueslei Marcelino, Reuters)

A versão brasileira do atentado ao Capitólio , ocorrido há exatos dois anos, é tão aviltante para a política, cínica para a república e prejudicial para a democracia quanto o original americano, mas contém elementos ainda mais alarmantes no caso do Brasil.

O populismo de extrema direita que levou Bolsonaro ao poder em 2018 tem uma relação parasitária com a democracia. Bolsonaro e seus seguidores dizem defender a liberdade e a têm usado para embalar a população com desinformação; Dizem que defendem a democracia e elogiam o regime militar. No Brasil de Bolsonaro, como nos Estados Unidos de Trump , as palavras liberdade e democracia não são mais bens comuns: são instrumentos desse novo tipo de fascismo. Basta ver como rejeitam os resultados das pesquisas, como atacam seus adversários, como não aceitam o que os contradiz. As cenas deste domingo falam por si.

Além de parasitar a democracia, a extrema direita se apoderou da República e de seus símbolos. A bandeira brasileira tornou-se o símbolo de uma festa; Os uniformes camuflados, restritos ao uso militar pela legislação brasileira, viraram fetiche. O hino nacional é interpretado não como símbolo de uma comunidade imaginada, mas como afirmação moral de um grupo que exclui outros nacionais. A tentativa de tomada da República encontra eco vergonhoso entre os militares da reserva que querem usá-la para ver as Forças Armadas envolvidas em um golpe. É, sem dúvida, uma corrupção de uma ordem moral.

O bolsonarismo apresenta vários elementos sectários: o culto à personalidade, o estado de graça expresso no carisma, a percepção de um ambiente hostil, a leitura religiosa extremista, a ilusão de acesso à verdade. A camada social do bolsonarismo atinge uma parcela da população que não está acostumada a sentir o rigor da lei em um país desigual como o Brasil: geralmente brancos, pertencentes às camadas médias-altas, muitos deles militares da ativa e na reserva das Armadas Forças, da polícia.

Isso dá aos bolsonaristas uma falsa sensação de onipotência e a percepção delirante de serem a reserva moral da nação. Neste domingo, em Brasília, alguns deles confraternizaram com os policiais e publicaram fotos e vídeos comemorando o feito . Eles não têm medo de serem punidos, porque para eles a lei só se aplica aos outros. Historicamente, e infelizmente, eles não estão errados.

Apoiadores do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, durante assalto ao Palácio do Planalto, sede do Executivo federal. (Stringer, Reuters)

Desde o fim das eleições, grupos de extrema-direita se mobilizaram para protestar em Brasília. Em dezembro, a capital foi palco de um incêndio criminoso e quase foi alvo de um ataque a bomba. Pouco foi feito. Centenas de pessoas permaneceram semanas em frente ao quartel, sob a omissão dos comandantes militares, alimentando seus corpos com churrasco e seus espíritos com o canto de falsas notícias sobre uma possível intervenção. Sob a proteção dos policiais uniformizados, outros grupos chegaram neste fim de semana em uma caravana de 100 ônibus.

Inteligência, segurança ou polícia? A capital do maior país do hemisfério sul foi entregue. O secretário de Segurança do Distrito Federal, o ex-policial Anderson Torres, estava nos Estados Unidos. Ministro da Justiça do Governo de Bolsonaro, Torres acabou sendo exonerado do novo cargo nesta tarde pelo governador de Brasília, Ibaneis Rocha.

Enquanto a população assistia ao show de terror pela televisão, o presidente Lula esteve na cidade de Araraquara, interior de São Paulo, devastada pelas fortes chuvas dos últimos dias, prestando apoio ao prefeito Edinho Silva. Ao saber o que estava acontecendo em Brasília, rapidamente se formou um gabinete de crise. Em breve e tensa coletiva de imprensa, o novo presidente informou que havia decretado a intervenção federal na capital. Sem pedir o apoio das Forças Armadas, Lula terá que contar com a ajuda dos demais governadores, que deverão fornecer policiais, e da Força Nacional de Segurança.

A reação das outras potências será decisiva para conter esse novo fascismo. O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, e os ministros do STF já se posicionaram a favor de Lula. Se a extrema direita pretender uma estratégia de desgaste e tensão permanente com o governo eleito, caberá aos três poderes culpar os patrocinadores, influenciadores e agentes públicos envolvidos na tentativa de golpe. Ou a república e a democracia brasileira sairão fortalecidas, ou ficarão à mercê do sectarismo de Bolsonaro.

Eduardo Heleno, o autor deste artigo. é cientista político e professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST-UFF) no Brasil. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 08.01.23, às 21:43hs

Um lúmpen de extrema direita

O que aconteceu em Brasília nos fala de uma espécie de extrema-direita que, com um discurso de lei e ordem, dinamita o quadro institucional e gera imagens que rimam com a anarquia pura e simples.

Apoiadores de Bolsonaro durante o assalto ao Congresso, ao STF e ao Planalto neste domingo. (Adriano Machado, Reuters)

A era Bolsonaro havia terminado sem um fim verdadeiro. O presidente não organizou a esperada rebelião contra o parecer das urnas que deu a vitória a Luiz Inácio Lula da Silva por margem estreita, mas também não entregou a faixa presidencial “de forma republicana”. Ao contrário, o ex-presidente brasileiro apareceu em uma foto curiosa em Orlando comendo frango frito em uma famosa rede americana enquanto Lula se preparava para assumir seu terceiro mandato. Mas, ao final, Bolsonaro – que insistia em encarnar uma espécie de trumpismo sul-americano – teve sua versão brasileira do assalto ao Capitólio, dois anos depois daquele “ato”.

Além dos detalhes, que serão revelados, sobre quem fretou os ônibus, como foi organizada a mobilização, quais os recursos logísticos disponíveis e como operou o laxismo policial/militar inicial, a verdade é que o que aconteceu em Brasília nos fala de uma espécie de extrema-direita que, com um discurso de "lei e ordem", faz explodir as actuais instituições formais e informais e gera imagens que rimam com a anarquia pura e simples. Uma extrema direita “lumpen” que teve no bolsonarismo uma de suas expressões máximas. Esses direitos podem acabar sendo -ao contrário da opinião de muitos progressistas- mais uma ameaça do que uma garantia para o "sistema". A emoção insurrecional, o estranho folclore, a conspiração, substituem qualquer cálculo político. O que aconteceu no Brasil se encaixa em um clima da época,

Em 2020, vimos tentativas de tomada do Parlamento alemão por grupos ultra (o governo considerou esses eventos um ataque insuportável ao coração da democracia). Durante a violenta confusão, cânticos de direita foram entoados e bandeiras do antigo Reich alemão, faixas com o Q de QAnon (uma famosa plataforma de conspiração) e emblemas neonazistas foram exibidos, causando uma forte onda de indignação na opinião pública democrática alemã . E, recentemente, os serviços de segurança alemães fecharam uma rede de extrema-direita que planejava um golpe extravagante. Na Itália, grupos antivacinas infiltrados pela extrema direita tentaram tomar o Palazzo Chigi, sede do governo, em 2021. "Esta noite tomaremos Roma", ameaçou então o grupo neofascista Forza Nuova.

Em tom um pouco diferente, o fracassado ataque -quase- contra a vice-presidente argentina Cristina Kirchner , cometido por integrantes de uma quadrilha de vendedores de açúcar em flocos, mostrou vínculos entre haters e grupos políticos informais organizados por meio do WhatsApp, imersos em curiosas formas de radicalização.

Será necessário ver, num futuro próximo, como operam as tendências opostas à normalização/demonização e à ruptura do status quo que se aninham na extrema direita do século XXI; e a dinâmica de muitas forças desencadeadas que são difíceis de controlar.

No caso brasileiro, as imagens de Brasília parecem um bumerangue do bolsonarismo. O fato de a principal mídia brasileira ter se referido aos bolsonaristas radicais como terroristas mostra o quanto o país mudou desde os dias da prisão de Lula aos de sua volta triunfante ao poder ( O Estado de S. Paulo sustentou em editorial que "os golpistas se rebelam e aqueles que os apoiam devem ser punidos de forma exemplar"). E essa mudança operou graças ao próprio Bolsonaro. Com seu estilo vulgar de extrema direita de gangue, que, ao invés de construir um regime autoritário, degradava ad infinitumvida cívica, quebrou suas pontes com parte das elites e acabou isolando o Brasil do mundo, conseguiu que grande parte dos grupos de poder acabassem "anistiando" Lula após tê-lo demonizado impiedosamente. Enquanto isso, negociou uma frente democrática "até doer" para tirar Bolsonaro do poder.

O problema, no caso do Brasil, é que o bolsonarismo obteve quase a metade dos votos e deixou um rastro de lunáticos em ação. Aliás, hoje em dia vimos pessoas invocando o apoio de extraterrestres com as lanternas dos celulares voltadas para o céu, acampamentos na porta dos quartéis pedindo golpe, apelos à guerra santa... e até quem negou que Lula fosse o presidente e destacou que o general Augusto Heleno já estava no comando. Que o Brasil passa por grupos de poder locais, forças de segurança, igrejas, setores do agronegócio... e neste 8 de janeiro apareceu uma amostra disso vandalizando instituições como o Congresso; um Congresso onde os bolsonaristas terão uma grande representação.

O editor-chefe da revista Piauí resumiu a tensão atual: "Nunca foi tão fácil e nunca foi tão difícil organizar um golpe". Os golpistas conseguiram, aparentemente com a aquiescência de setores das forças de segurança, entrar em diversas instituições; mas um golpe é outra coisa. Precisamente o que surpreende neste novo tipo de movimento insurrecional, que tem como expressão máxima o assalto ao Capitólio, é a sua extrema incompetência estratégica. Algo que pode nos tranquilizar e nos inquietar ao mesmo tempo.

Pablo Stefafoni, originalmente, do Rio de Janeiro para o EL PAÍS, em 08.01.23, às 22:32 hs.

Ibaneis se isola no MDB e tem pedido de prisão defendido por membros do Judiciário

Governador do DF teve poderes esvaziados com decreto de Lula de intervenção na segurança pública

Os atos golpistas em Brasília neste domingo (8) deixaram o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), isolado, inclusive dentro do seu partido.

A omissão das autoridades na capital, que não conseguiram impedir os ataques a prédios públicos, gerou críticas abertas entre correligionários e, até mesmo, a defesa da prisão do emedebista por ministros de tribunais superiores.

Para esses magistrados, a percepção é de que as cenas de barbárie vistas neste domingo são resultado da leniência com a qual as forças de segurança vêm tratando as manifestações golpistas, não só em Brasília. Eles defendem a prisão de Ibaneis e criticam o Ministério Público Federal, que não agiu com mais contundência para coibir a escalada da violência.

No MDB, algumas críticas a Ibaneis são públicas. "O chefe da Segurança do GDF [Anderson Torres] e a leniência local do governo exigem uma intervenção federal imediata. Os golpistas não passarão e a ordem prevalecerá", escreveu o senador Renan Calheiros (MDB-AL) em uma rede social.

Juliana Braga no Painel da Folha de S. Paulo, em 08.01.23, às 19h26

Punhado de idiotas

Líderes da malta golpista de Brasília precisam ser punidos no limite da lei

Vândalos bolsonaristas atacam o Palácio do Planalto - Ueslei Marcelino/Reuters

O punhado de imbecis criminosos que vandalizou prédios da cúpula dos três Poderes em Brasília não conta com o apoio da imensa maioria da sociedade brasileira, que endossa os valores democráticos e respeita o resultado das urnas.

Sua causa, um golpismo tacanho, não dispõe de respaldo político entre as forças legitimamente eleitas e representadas no Parlamento. Vociferam em nome de si mesmos e, quando muito, de um ex-presidente que se escafedeu em silêncio para o exterior.

Os celerados talvez acreditem que atacar monumentos de concreto, esvaziados num domingo, signifique alguma conquista sinistra. Na realidade, apenas manifestam covardia, estupidez e espírito de manada. As instituições do Estado de Direito, que se fortalecem há quatro décadas, estão a salvo da boçalidade de poucos vândalos.

A capital federal já foi palco de protestos violentos, do badernaço de 1986 às jornadas de 2013. Nunca antes, porém, manifestantes chegaram com tal ferocidade aos interiores de palácios, e por motivo tão vil. Afrontam a democracia, perturbam a paz e depredam patrimônio público por nada além de terem suas taras rejeitadas pela maioria dos concidadãos.

A marcha dos idiotas será em um futuro próximo apenas um parágrafo vexatório da história do país. Não pode, no entanto, ser minimizada agora. O que fizeram os arruaceiros de Brasília, por patéticos que se mostrem, foi gravíssimo.

Os líderes da malta devem ser identificados, investigados e punidos nos limites máximos da lei. Eventuais financiadores e apoiadores instalados em cargos públicos, idem, com agravantes.

A desídia das forças de segurança, em particular do governo do Distrito Federal, é indesculpável e merece apuração rigorosa. O governador Ibaneis Rocha (MDB), um bolsonarista dissimulado, exonerou o secretário responsável, Anderson Torres, ex-ministro e sabujo de Jair Bolsonaro (PL). É pouco.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretou intervenção federal na segurança brasiliense, o que a esta altura não pode ser considerado um despropósito. Restam grupelhos acampados em frente a quartéis; deve-se supor que parte dos energúmenos tenha acesso a armas e nenhum escrúpulo.

O trabalho de desmobilização dos bandos precisa ser conduzido com inteligência e sem hesitação. O governo, que dispõe dos meios para tanto, deveria abster-se de proselitismo político na tarefa.

Cumpre demonstrar à população que a normalidade democrática está e será preservada, a despeito de rosnados de minorias raivosas que imitam os derrotados do Capitólio americano. O país tem problemas mais importantes a enfrentar.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 09.01.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

Fracasso bolsonarista na tomada dos palácios em Brasília beneficia Lula e Alexandre Moraes

Petista receberá apoio dos presidentes dos outros Poderes contra a tentativa de tomada do poder ensaiada por extremistas; Moraes deve ganhar fôlego para conduzir os polêmicos inquéritos no STF

Lula visita Palácio do Planalto após atos terroristas. Foto: Wilton Junior/Estadão 

O bolsonarismo deu um tiro no pé ao promover a chamada “tomada do poder” em Brasília, com a invasão e depredação dos prédios dos três Poderes da República. A ação dos extremistas que levaram o caos ao coração do Estado terá como consequência o fortalecimento, ainda que passageiro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de emprestar novo apoio aos atos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em seu polêmico inquéritos sobre os atos antidemocráticos.

Essa é a análise feita ontem por oficiais generais e coronéis consultados pelo Estadão. A repulsa deles ao que aconteceu em Brasília foi unânime. “O que aconteceu hoje é muito sério! Para mim, não é surpresa. Extremismo e fanatismo político sempre acabam em violência. Agora é aplicação da lei, com o devido processo legal, com muita presteza.”, afirmou à coluna o general Carlos Alberto dos Santos Cruz. “Isso é o resultado de longo tempo de tolerância, com irresponsabilidade, desrespeito, fanfarronice, indústria de fake news criminosas e impunidade.”, disse. Apesar disso, muitos em Brasília acreditam que o Exército precisa deixar claro de que lado está. Não haveria mais espaço para tergiversações.

Lula nesta segunda-feira, 9, se reunirá com os chefes dos outros dois Poderes – Legislativo e Judiciário – , que vão lhe dar apoio para medidas, como a intervenção na Segurança Pública do Distrito Federal (DF). Se antes o mundo político já desenhava um apaziguamento em torno do novo presidente que não se via na sociedade, esse fosso entre os dois tende a ficar maior ainda. A preservação da democracia no País será a força que deve selar essa união, da qual devem ficar de fora apenas os parlamentares que representam o bolsonarismo radical, como Carlos Jordy (RJ), que insiste na mentira de que a destruição em Brasília foi obra de infiltrados.

Trata-se de argumento não só escandalosamente mentiroso como, se levado a sério, poderia levar seu autor a ser alvo de investigação por obstrução de Justiça. É que no mundo das investigações criminais os testemunhos têm efeito – ninguém tem liberdade para mentir sobre autoria de crimes, ainda mais quem, potencialmente, pode conhecer fatos relacionados à investigação, sob a pena de ser acusado de falso testemunho ou de obstrução da Justiça.

Como o deputado tem a coragem de defender ladrões e vândalos do patrimônio público? Bandidos que roubaram armas, destruíram prédios. Quo usque tandem, Catilina abutere patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? Quem ad finem sese effrenata iactabit audacia? Até quando abusarás de nossa paciência?, perguntava Cícero na primeira oração contra Catilina. Por quanto tempo ainda esse teu comportamento faccioso nos enganará? Até que ponto você levará a tua desenfreada audácia? Cicero pensava em proteger a República contra os que pretendiam matá-la.

Os tempos são outros. É da fase de seus linossignos que Cassiano Ricardo escreveu a Pequena Saudação ao Ano 2000, série de cinco poemas dedicada ao diplomata e amigo José Guilherme Merquior. Ricardo abre o segundo poema da série com os versos: “Ícaro morreu,/ não por voar/ junto ao sol/ mas de obsoleto”. Os mitos de então conversavam com o poeta na rua e o convidavam a assistir a Antonioni no cinema. Ele conclui com outros três versos geniais, uma antevisão de nossos tempos: “Tudo o que foi/ ontem é/ outra era”. A ação dos bolsonaristas teve esse condão. E é Moraes quem parece anunciar uma outra era no despacho em que decretou o afastamento do governador distrital Ibaneis Rocha.

“A Democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a ser portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois como ensinava Winston Churchill, ‘um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado’”, escreveu Moraes.

O ministro Alexandre de Moraes deu seu mais duro despacho no inquérito dos atos antidemocráticos 

Moraes aproveitou o momento. Não apenas afastou Ibaneis. Também determinou o desmonte de todos os acampamentos na frente de quartéis, coisa que o Exército relutou fazer até domingo, bem como a prisão em flagrante de todos os acampados com base na lei antiterror, por tentativa de golpe de estado e de abolição do estado democrático de direito, além dos delitos de formação de quadrilha, ameaça e incitação ao crime. Se for levada ao pé da letra, a ordem poderá pôr na cadeia milhares de pessoas.

Também pôs a corda no pescoço das autoridades responsáveis para que sua ordem não se torne letra morta. Mandou intimar a todos os governadores, prefeitos e comandantes militares, que devem se envolver nessa operação. Os governadores devem cuidar para que suas polícias cumpram a ordem, os prefeitos devem auxiliar as polícias e os militares não devem se opor. Quem não obedecer ao ministro será responsabilizado. Também mandou apreender todos os ônibus usados nas caravanas dos extremistas, proibiu novos protestos até o dia 31 em Brasília e mandou retirar do ar 17 contas, páginas e perfis de bolsonaristas das redes sociais.

É o mais duro despacho do ministro até hoje no inquérito dos chamados atos antidemocráticos. “Com as imagens das câmeras de segurança, esse pessoal vai ser identificado e vai responder processo.... e os incitadores covardes estão longe. Tenho certeza que nenhum que estimulou a violência estava lá”, afirmou Santos Cruz. “Agora é inquérito, identificação de autoria de quem fez incitação à violência, financiamento, planejamento, execução e omissões. Isso é crime. Isso não é oposição política”, disse o general.

A reação de Moraes demorou poucas horas para se fazer sentir. Hoje, ela deve ser referendada pelos demais ministros do Supremo, todos horrorizados com o atentado contra o prédio da Corte, o vilipêndio de seus armários e cadeiras, onde um manifestante chegou a defecar. O ultraje à Justiça nunca chegou a esse ponto, nem quando o regime militar aposentou compulsoriamente ministros da Corte.


HR SÃO PAULO/SP 09/11/2019 - INTEGRALISMO ESPECIAL DOMINCAL POLITICA - Integrantes do Movimento Integralista Brasileiro se reunem no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo. FOTO: HÉLVIO ROMERO / ESTADÃO

O mesmo pode se dizer sobre o Palácio do Planalto. A última vez que um Palácio presidencial fora atacado por golpistas ligados a um movimento político foi em 1938, quando a Ação Integralista do Brasil (AIB) atacou o Palácio da Guanabara, no Rio, com seu lema Deus, Pátria e Família, ressuscitado 80 anos depois pelo bolsonarismo. O putsch comandado pelo tenente Severo Fournier estourou no dia 11 de maio. Naquela madrugada, o então ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, recebeu um telefonema do chefe de polícia, Filinto Muller. Estavam assaltando o palácio, residência do presidente da República, Getulio Vargas.

Ao lado de Muller estava o então coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, então interventor no Rio Grande do Sul. Foi Cordeiro de Farias quem socorreu o ditador Vargas com cinco policiais armados – mais tarde receberia outros 40 soldados. Às cinco horas da manhã, conseguiu entrar pelos fundos do palácio e encontrou o presidente. “Vá descansar. Deixe o resto por minha conta.” Cordeiro tinha homens suficientes para resistir. No fim, os atacantes foram rendidos – acabaram fuzilados nos fundos do palácio. Seu líder, o tenente Furnier, fugiu. E se asilou na embaixada da Itália. O integralismo foi esmagado.

Após os atos de domingo, o general Santos Cruz afirmou que “a responsabilização rigorosa também tem que ser acompanhada de uma política de resolução de conflito. O Brasil não pode continuar em conflito, com baixíssimo nível de responsabilização (impunidade) e desunido”. De fato, o que não se sabe ainda é quais serão todas as medidas e passos do presidente Lula após a derrota da insurreição bolsonarista. Ele pode usar o episódio para tentar pacificar o País e obter consenso em torno da defesa da democracia, das instituições e de seu governo. O povo quer paz, não quer viver sob contínuos atropelos e sobressaltos.

Em seu despacho do domingo à noite, Moraes citou Churchill uma segunda vez. “A defesa da Democracia e das Instituições é inegociável, pois como ainda lembrado pelo grande primeiro-ministro inglês, ‘construir pode ser a tarefa lenta e difícil de anos. Destruir pode ser o ato impulsivo de um único dia’.” Tem razão o ministro. Mas essa é uma lição que deve ser dada não só aos que se deixaram iludir pelos extremismos, mas também a todas as autoridades, inclusive às que se dizem comprometidas com a democracia.

Marcelo Godoy, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 09.01.23, às 7h20