segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Democracias não morrem de ataque cardíaco

É importante estar ciente de que esse perigo existe e que a única vacina é o fortalecimento das instituições e uma cidadania vigilante

Apoiadores do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro durante o assalto à sede do Congresso do país em Brasília no domingo.(Foto de André Borges, Ag. EFE)

Mesmo as tentativas de golpe, que acabamos de ver no Brasil, estão imbuídas do espírito da época. Chamada pelas redes e toda essa gestualidade tão passível de ser vista na televisão e no ciberespaço: estetização banal —lembre-se do personagem dos chifres sentado à mesa da presidência da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos tirando selfies ou do uniforme amarelo dos brasileirosSalta do mundo virtual para o real como se fosse sua extensão natural. A consequência imediata é que, uma vez reprimida, a confusão se espalha entre seus protagonistas. Mas não éramos os mocinhos, os que iriam salvar o país? É aqui que se manifesta o seu aspecto mais pós-moderno. Cada um acredita em sua verdade tribal; a realidade objetiva desapareceu atrás de relatos interessados. Il n'y a pas hors de texte , como diria o bom e velho Derrida. Tudo consiste em contar milongas e depois infantilizar as pessoas a ponto de acreditar, como é o caso das teorias da conspiração. Tudo é fala. Se então o mundo da realidade não se adapta a ele, pior para o mundo, mesmo que se vingue mais tarde.

Se não fosse uma coisa tão grave —lembremos que na captura do Capitólio houve até várias mortes—, a reflexão anterior estaria justificada. Não, embora não sejam comparáveis ​​aos motins "modernos" anteriores, não podemos deixar de apontar os seus perigos. No entanto, acredito que não é assim, através da invasão das instituições pelas massas, que as democracias morrem. Além do mais, quase até facilitam o fortalecimento de seus anticorpos. As democracias de hoje não morrem de ataques cardíacos ou derrames, mas de câncer; não por choque, mas por uma metástase progressiva em todo o corpo político até ocorrer a falência de múltiplos órgãos. É um golpe a fogo lento, quase imperceptível, mas que está bem claro no manual populista. O primeiro objetivo é assumir o Estado, assim como o Governo. E isso pressupõe a eliminação ou patrimonialização de todo o sistema de contrapoderes, especialmente o judiciário. Colonizar instituições e instrumentalizá-las para fins partidários. A maioria, sempre circunstancial, pode assim aspirar a tornar-se permanente. Em seguida, ou paralelamente, o objetivo é desacreditar toda oposição, seja de outras forças políticas ou de meios de comunicação desfavoráveis; ignorando o pluralismo, que o povo fala "a uma só voz", aquela emitida pelo líder ou seus capangas; silenciar o dissidente.

Alguns o fazem de forma mais ou menos sutil, como na Hungria e na Polônia; outros de forma flagrante, como vimos na América Latina ou na Turquia de Erdogan , onde seus possíveis adversários eleitorais estão presos. E outros, enfim, os que não conseguem, recorrem às travessuras com que começamos. O importante é ter consciência de que esse perigo existe e que a única vacina é o fortalecimento das instituições e uma cidadania vigilante. Somos avisados.

Fernando Vallespin escreveu este artigo originalmente para o EL PAÍS. Publicado em 15.01.23.

'Lula terá que tomar cuidado, sem baixar a cabeça', diz especialista sobre troca no comando do Exército

"Não podemos cair na armadilha de achar que o general (Tomás) Paiva é um dissidente [do alto comando do Exército], que é simpático ao governo petista, que é um democrata. Eu sugeriria que a gente esperasse um tempo para ver, mas acho difícil que ele seja qualquer uma dessas três coisas."

Lula, acompanhado do comandante do Batalhão da Guarda Presidencial, durante a cerimônia de posse (Geraldo Magela / Agência Senado)

A troca no comando do Exército ordenada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com apenas 20 dias de governo pode ser um caminho para estabilizar as tensas relações com os militares, mas o petista terá que "tomar cuidado extraordinário, sem baixar a cabeça", diz o cientista social João Roberto Martins Filho, que estuda as Forças Armadas desde a década de 1980.

Ele se refere ao fato de que o bolsonarismo "calou fundo" e permanece com bastante adesão não só no Exército como na Marinha e na Aeronáutica, nos mais variados escalões.

Para o professor sênior da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é preciso cautela nas avaliações de que o novo comandante, o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, tem espírito democrático e sintonia total com Lula.

"Não podemos cair na armadilha de achar que o general Paiva é um dissidente [do alto comando do Exército], que é simpático ao governo petista, que é um democrata. Eu sugeriria que a gente esperasse um tempo para ver, mas acho difícil que ele seja qualquer uma dessas três coisas."

Novo comandante do Exército conseguirá maior distensão entre Lula e militares, diz especialista

Na semana passada, dias antes de sua nomeação, Paiva fez um discurso em que classificou de "terremoto político" as invasões de Brasília que vandalizaram a sede dos Três Poderes e pregou respeito ao resultado da última eleição presidencial.

"Quando a gente vota, tem que respeitar o resultado da urna. Não interessa. Tem que respeitar. É essa a convicção que a gente tem que ter, mesmo que a gente não goste", disse, em fala no Quartel-General Integrado (QGI), em São Paulo.

Também afirmou na ocasião que as Forças Armadas são "uma instituição de Estado. Apolítica, apartidária. Não interessa quem está no comando: a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito. Isso é ser militar. É não ter corrente."

Martins Filho disse que o general falou "exatamente aquilo que é música para o ouvido do governo atual".

Lula e o general Tomás Paiva em foto divulgada após sua nomeação como o novo comandante do Exército(Ricardo Stckert/PR)

"Mas está muito em cima do fato para tirar essas conclusões, é preciso tomar um pouco de cuidado."

O cientista social destaca que Paiva chefiava a Academia Militar das Agulhas Negras, instituição que gradua oficiais de carreira do Exército, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro lançou sua candidatura a presidente durante um evento de formatura de aspirantes em 2014.

Paiva também já foi chefe de gabinete do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército que costuma usar as redes sociais para insuflar movimentos antidemocráticos, inclusive com posts em que colocou dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral após a derrota de Bolsonaro no segundo turno.

Jogo de xadrez

No entanto, o professor sênior da UFSCar enxerga que há espaço para retomar a normalização institucional após confrontos com o general Júlio César de Arruda, o comandante do Exército demitido por Lula.

Durante a transição, no que foi interpretado como um gesto de distensão em relação às Forças Armadas para o começo de governo, Lula indicou para chefiar a Defesa José Múcio, um nome bem visto pelos militares.

O ministro Múcio então escolheu Arruda para comandar o Exército usando o critério de antiguidade.

Mas quando forças de segurança foram até o acampamento bolsonarista em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, na noite dos distúrbios do dia 8 de janeiro, o general disse ao ministro Flávio Dino (Justiça): "Você não vai prender as pessoas aqui". O relato foi dado por dois oficiais militares, de acordo com reportagem do jornal The Washington Post.

A gota d'água que culminou na saída de Arruda foi sua recusa, segundo o site Metrópoles, em exonerar de um posto sensível do Exército em Goiânia o tenente-coronel Mauro Cid — que foi ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Múcio declarou em entrevista coletiva após o anúncio da demissão de Arruda que "as relações, principalmente no comando do Exército, sofreram uma fratura no nível de confiança" e que "precisávamos estancar isso logo de início".

"Usando uma analogia com o xadrez, eu acho que o Lula avançou uma peça [com a troca no comando do Exército]", afirma Martins Filho.

"Todo mundo ficou em suspenso e com a demissão agora parece que o Lula vai normalizando as coisas. É como se ele falasse 'Eu sou o comandante [o Presidente da República é oficialmente o Comandante Supremo das Forças Armadas]: eu demito, eu nomeio'. E com certeza o alto comando [do Exército] já tinha dado sinais de que ele poderia fazer isso. Acho que o general Paiva consultou os colegas do alto comando e aceitou o cargo."

Ele diz que existe uma razoável coesão nos comandos militares desde a redemocratização e que não vê evidência de divisões internas atualmente.

Na visão de Martins Filho, também não interessa ao Exército provocar uma nova crise com Lula e a tendência, nesse primeiro momento, é de estabilizar a relação entre as duas partes.

"O 8 de janeiro unificou o governo e fortaleceu Lula. Ele teve que cuidar da questão militar precocemente e até agora tem acertado."

Shin Suzuki, originalmente, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 23.01.23.

A continência e a mentalidade militar

Felizes são os militares das democracias. A esses é dado saber a que seus concidadãos, em sua maioria, aspiram


General Tomás, novo Comandante do Exército

Desde o término das eleições, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro vêm questionando a prestação de continência pelos militares ao presidente Lula da Silva. Projetando sobre os militares da ativa as severas restrições que possuem em relação ao novo presidente, eles escolheram a continência para simbolizar submissão e comunhão de ideias entre aqueles que a prestam e seu destinatário. Entretanto, esse uso metafórico da continência é equivocado, pois ela não convém ao propósito visado. De qualquer modo, o tema é instigante e merece ser explorado.

A continência é um gesto singelo. Trata-se, segundo o regulamento militar, de um ato pelo qual os membros das Forças Armadas manifestam respeito por seus superiores, dignitários e símbolos nacionais. Define ainda o regulamento que a continência é um procedimento impessoal, ou seja, destinado à autoridade, e não à pessoa dela investida. Assim, o verdadeiro objeto do questionamento dos partidários do ex-presidente não deveria ser a continência em si, mas o que passa pela cabeça de quem a realiza. Essa abordagem procede, pois a História é cheia de exemplos de militares que prestavam garbosas continências ao mesmo tempo que conspiravam contra o chefe do Estado.

Com relação a esse assunto, os preceitos da disciplina e da ética militar são claros. Os militares se obrigam a respeitar os superiores como autoridades legalmente constituídas. Na presença do presidente da República, que é o comandante supremo das Forças Armadas, eles devem guiar-se pelo respeito funcional devido e considerá-lo pela “autoridade” que representa, mesmo que, como cidadãos, tenham restrições a sua pessoa ou atuação política. É como se o militar possuísse dois “papéis” – um profissional e outro igual ao de qualquer cidadão civil – e tivesse que representar cada um de acordo com o momento.

Lidar com essa situação é algo difícil, que requer formação apurada e entendimento claro. Mas é também uma exigência crucial. No momento em que estão exercendo suas atribuições, soldados, marinheiros e aviadores são “profissionais militares” e devem abdicar de opiniões políticas. Do mesmo modo, na presença de uma autoridade política ou tratando com ela assuntos de sua profissão, eles precisam ser apolíticos.

Várias instituições militares se esmeram em educar seus integrantes para cumprir bem a servidão de alternância de papéis. Dentre elas, eu destacaria as Forças Armadas da República Federal da Alemanha.

As Forças Armadas alemãs foram criadas em 1955, alicerçadas em dois conceitos filosóficos que visavam a moldá-las a um Estado Democrático de Direito: o militar como “cidadão em uniforme” e a “liderança interior”, ou Innere Führung. Os militares alemães se consideram cidadãos fardados, ou seja, são, antes de tudo, cidadãos. Além disso, eles têm a obrigação adicional de defender os valores e normas da Constituição de seu país. Para tanto, eles são educados, orientam-se e comportam-se segundo as premissas da Innere Führung. Os militares são estimulados a pensar criticamente; a identificar os critérios éticos, morais e legais que legitimam suas atribuições; e a tomar decisões de consciência, inclusive a decisão de obedecer. O próprio soldado, com seus pensamentos e consciência moral, torna-se assim a derradeira instância a determinar seus comportamentos e ações. Por conta disso, os cidadãos alemães reconhecem os militares como pares envergando uniformes e, sabendo-os preparados para ter entendimentos baseados nos valores e leis da Alemanha, confiam neles e os apoiam. O exemplo da Alemanha é ainda mais interessante porque, além de abranger a questão dos dois papéis, coloca em evidência o ente superior que os concilia: a Constituição alemã. A Lei Maior constitui um imperativo para o cidadão fardado, seja como militar, seja como cidadão. Desse modo, a sistemática alemã de estruturação militar e de relações civis-militares é moderna e eficiente. A despeito da história e cultura peculiares daquele país, ela deve merecer a atenção de outras Forças Armadas.

Enfim, a competência funcional do militar e sua mentalidade profissional, a qual inclui a neutralidade política no exercício de suas atribuições, são de fundamental importância para uma sólida identidade profissional e a vida normal da sociedade. O envolvimento indiscriminado e sem critério de oficiais e praças com a política tem sérias consequências, como turvar seu julgamento técnico-profissional, comprometer as relações civis-militares e, talvez o mais grave de todos, prejudicar o necessário apoio da sociedade em caso de crise ou guerra. Portanto, tal disfunção deve ser evitada a todo custo.

Em O Soldado e o Estado, Samuel Huntington sugere que o senso profissional militar tem fundamento no exercício de uma vocação elevada, a de servir à sociedade. Nesse sentido, felizes são os militares das democracias. A esses é dado saber a que seus concidadãos, em sua maioria, aspiram.

Fernando Rodrigues Goulart, o autor deste artigo, é General de Divisão na reserva e doutor em relações internacionais pela Universidade de Brasília. (UNB). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22.02.23.

O presidente exerce sua autoridade

Ao demitir o comandante do Exército por evidente insubordinação e substituí-lo por militar comprometido com a democracia, Lula reafirma a soberania do poder civil no País

General Arruda, ex- Comandante do Exército

O presidente Lula da Silva, conforme as prerrogativas previstas no artigo 84 da Constituição, que lhe confere o comando supremo das Forças Armadas, demitiu o comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, por atos de insubordinação que, nas palavras do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, provocaram uma “fratura no nível de confiança” que o presidente deve ter em seus comandantes militares.

Lula tomou a decisão correta, no momento mais que oportuno. Caso não o fizesse, o presidente abriria um perigoso flanco para a quebra da hierarquia e restaria vulnerável, antes de completar um mês de mandato, a toda sorte de chantagens por parte de militares pouco ciosos de suas obrigações estatutárias e constitucionais.

No breve período em que esteve à frente do Exército, o general Arruda impediu que a Polícia Militar de Brasília prendesse golpistas que se homiziaram num acampamento em frente ao quartel-general do Exército após a invasão das sedes dos Poderes. A inaceitável tolerância do general Arruda com o golpismo, para dizer o mínimo, ajudou a transformar os arredores da sede do Exército em um valhacouto de sediciosos.

O ex-comandante ainda opôs resistência à exoneração, do 1.º Batalhão de Ações de Comando, do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro na Presidência. Houve muitos pedidos do governo Lula para que a nomeação de Cid fosse cancelada, não só por se tratar de notório bolsonarista, mas porque sobre ele recaem suspeitas de transações obscuras com o cartão corporativo da Presidência. O Palácio do Planalto, contudo, foi olimpicamente ignorado pelo general Arruda.

Além disso, Lula nutria fundada desconfiança de que, sob o comando do general Arruda, o Exército não agiu para impedir nem para repelir a intentona de 8 de janeiro. Ou seja, não havia alternativa ao presidente que não fosse a substituição imediata do comandante da Força Terrestre. Era isso ou o derretimento de sua autoridade.

Um dos mais prementes desafios de Lula é a despolitização das Forças Armadas, o que significa impedir que saiam dos trilhos da Constituição. O poder militar se submete ao poder civil, eleito pelo povo, mas durante o governo Bolsonaro esse pilar democrático foi posto à prova por uma espécie de mutualismo antirrepublicano. Bolsonaro usou os militares para ameaçar a Nação em defesa de seus interesses, com a pretensão de fazer das Forças Armadas sua guarda pretoriana; e por alguns militares Bolsonaro foi usado em troca de poder e privilégios que em nada se coadunam com a República.

Nos últimos quatro anos, alguns integrantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica se deixaram seduzir por uma ideia de ascendência sobre os rumos do País que nenhuma das três Forças tem à luz da Constituição. Eis o buraco em que o bolsonarismo nos meteu, do qual só será possível sair tendo à frente das três Forças militares inequivocamente comprometidos com os ditames da Lei Maior.

A escolha do general Tomás Miguel Ribeiro Paiva para comandar o Exército, anunciada pelo governo, parece respeitar esse imperativo. Dez dias depois da intentona golpista em Brasília, o general Tomás, em discurso para a tropa no Comando Militar do Sudeste, declarou, com todas as letras, que o resultado da eleição presidencial deve ser acatado e que o Exército, como instituição de Estado que é, deve se manter afastado das lides políticas, próprias da vida civil.

A democracia, lembrou o general, “é o regime do povo”, com “alternância de poder”. Referindo-se aos militares, disse que “nem sempre a gente gosta” do resultado da eleição, mas “tem que respeitar” – e acrescentou: “Esse é o papel da instituição de Estado, da instituição que respeita os valores da pátria. Somos Estado”. Trata-se de uma obviedade, mas, nos dias que correm, tal declaração é um alento.

Além de convicção democrática, o general Tomás demonstra ter profundo respeito ao Exército. Sob seu comando, a instituição decerto estará menos exposta à nefasta influência de Bolsonaro, alguém que antes de tudo foi um mau militar, e continuará a servir ao País nas estritas atribuições que lhe são dadas pela Constituição.

Editorial / Por Notas & Informações, em 23.01.23

Cartão corporativo de Bolsonaro: Passeios custavam R$ 100 mil em média e reuniam 300 militares

Estadão’ e Fiquem Sabendo tiveram acesso a dois mil documentos classificados como reservados, anexados na prestação de contas do cartão corporativo

O então presidente Jair Bolsonaro em motociata no Rio de Janeiro em maio de 2021 Foto: Alan Santos/PR

Toda vez que Jair Bolsonaro decidia viajar a lazer ou passear de moto por capitais do País ele era acompanhado por até 300 militares ao custo médio de R$ 100 mil para os cofres públicos. É o que revelam as notas fiscais que descrevem gastos com cartão corporativo do ex-presidente. O Estadão teve acesso a dois mil documentos classificados como reservados, anexados na prestação de contas do cartão corporativo. Até então, apenas o somatório dos gastos com esse método de pagamento foi divulgado, sem a identificação do que foi adquirido.

Nota fiscal de compra de 534 lanches em São Paulo com cartão corporativo da Presidência no governo Bolsonaro. 

O Estadão não conseguiu contato com o ex-presidente. O ex-ministro das Comunicações Fabio Faria informou que Bolsonaro está recluso nos Estados Unidos. Durante o mandato, Bolsonaro disse ao menos 15 vezes em lives que não utilizava cartão corporativo.

As milhares de notas fiscais foram consultadas em parceria com a Fiquem Sabendo, agência de dados especializada no acesso a informações públicas. Os documentos detalham que as viagens de Bolsonaro para promoção pessoal representavam despesas volumosas, tanto com a hospedagem de cerca de 30 servidores públicos que partiam de Brasília, como com a alimentação de aproximadamente 300 pessoas que davam suporte no local de destino. Esses eventos, batizados de motociatas por Bolsonaro, tinham como único propósito promover a figura do ex-presidente sem qualquer ação pública a ser anunciada.

Gastos revelados

Presidente Bolsonaro com populares, e comendo pastel em Marechal Hermes. FOTO WILTON JUNIOR / ESTADAO

Cartão corporativo de Bolsonaro: na rua, presidente comia pastel; em casa, picanha e camarão

Notas fiscais mostram que até os medicamentos de Bolsonaro eram comprados com cartão corporativo. Medicamentos para depressão, ansiedade, problemas de pele e infecção de garganta constam nos documentos.

Interações

Bolsonaro gastou R$ 1,46 milhão em umúnico hotel e R$ 362 mil na mesma padaria

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Cartão corporativo: Bolsonaro gastou R$ 1,46 milhão num único hotel e R$ 362 mil na mesma padaria

Um passeio de moto de Bolsonaro no Rio, por exemplo, em maio de 2021, custou R$ 116 mil, contando com o suporte local de policiais militares, tropa de choque, socorristas e agentes do Exército. Em alguns deslocamentos, mais de 200 integrantes das Forças Armadas chegaram a ser empregados. Os nomes de cada um deles constam das prestações de contas.

Essa tropa explica, ao menos em parte, inclusive os gastos repetidos. Foi comum, por exemplo, a aquisição de 300 lanches a R$ 30 cada – totalizando R$ 9 mil por turno de trabalho. O kit consistia em um ou dois sanduíches de presunto e queijo, uma bebida, como suco ou refrigerante, e uma fruta. Como os funcionários chegavam a fazer mais de 9 horas de prontidão por dia, eram alimentados três vezes – café, almoço e jantar.

As padarias Tony e Thays, em São Paulo (102 compras no total de R$ 126 mil), e Santa Marta, no Rio (24 compras por R$ 364 mil) eram as preferidas para alimentar a tropa. Entre os funcionários estavam pilotos, motoristas, seguranças e integrantes do cerimonial. Geralmente as diárias tinham valores baixos – entre R$ 100 e R$ 250 – mas a quantidade de pessoas envolvidas e o tempo de estadia é que faziam disparar a conta.

Nas despesas do cartão corporativo não constam os gastos de combustível das aeronaves, custeados pela Força Área Brasileira (FAB). Mas o que é servido durante os trajetos, os chamados serviços de comissaria, como a alimentação a bordo do avião oficial, eram contratados, ficando na faixa de R$ 4 mil por viagem.

Nos registros analisados pelo Estadão, na maior parte das vezes Bolsonaro não pernoitava no local: saía de manhã de Brasília e voltava no mesmo dia. As exceções evidentes eram os períodos de férias e lazer. É o caso de uma das hospedagens em São Francisco do Sul (SC), em fevereiro de 2021. O então presidente ficou com familiares e assessores no Forte Marechal Luz, pertencente às Forças Armadas. Mas a hospedagem de quatro dias ficou em quase R$ 9 mil. Reparos em jet-skis e lanchas que ficaram avariadas durante o passeio custaram mais de R$ 5 mil. Também foi realizada a locação de serviços de antena parabólica e TV por assinatura. Durante essa viagem de quatro dias, as compras de supermercados chegaram a R$ 48 mil.

Bolsonaro costumava dizer que essas hospedagens em instalações militares tinham “custo zero” para os cofres públicos. O então secretário de Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Júnior, fez um tour pelo Forte Marechal Luz para mostrar que não tinha ar condicionado. “Hotel 5 estrelas”, ironizou. O custo para o erário é agora revelado pelas notas fiscais.

Carlos Bolsonaro

Além das viagens do próprio presidente, a equipe também era mobilizada nos deslocamentos de seus familiares. Um exemplo é uma visita que o filho Carlos Bolsonaro fez a Resende (RJ), em janeiro de 2021, e foi acompanhado por cinco pessoas, com os gastos de deslocamento, alimentação e hospedagem custeados pelo poder público. O mesmo filho era a presença mais frequente nas viagens do pai, de acordo com os registros consultados pelo Estadão.

Também quando a primeira-dama Michelle decidia fazer algo fora de Brasília, e não acompanhada pelo marido, tinha as despesas – suas e da equipe – bancadas pelo cartão corporativo. Mensagens nos processos de prestação de contas mostram que hotéis ofereciam cortesias para ela e também up grade (melhorias nas instalações).

Caixas

As notas fiscais dos cartões corporativos da Secretaria Geral da Presidência ficam armazenadas em um almoxarifado do Pavilhão de Metas, a 700 metros do Palácio do Planalto. No local, trabalham os servidores públicos que analisam os processos de prestação de contas dos gastos e, em seguida, alimentam o Portal da Transparência.

Arquivos com notas fiscais de gastos da Presidência no governo Bolsonaro Foto: Katia Brembatti

Os documentos não são digitalizados. Ficam dentro de pastas guardadas em caixas de plástico. A consulta às notas fiscais, possibilitada pela solicitação da Fiquem Sabendo via LAI, foi feita presencialmente. Um servidor foi deslocado para monitorar o trabalho de consulta. Ao longo de três dias de leitura dos documentos, foi possível analisar cerca de 20% do total arquivado.

Bolsonaro gastou R$ 40 milhões com cartão corporativo, em valores corrigidos. O valor apurado até agora é inferior ao usado por Luiz Inácio Lula da Silva nos seus dois primeiros mandatos e por Dilma Rousseff no seu primeiro mandato.

Katia Brembatti e Vinícius Valfré, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 23.01.23, às 9h32

sábado, 21 de janeiro de 2023

A rede de indícios

Jair Bolsonaro é cabeça da tentativa de golpe

Cenário de destruição no STF após a invasão de bolsonaristas - Pedro Ladeira - 13.jan.2023/Folhapress

O atentado de 8 de janeiro não existiria sem o comando político de Jair Bolsonaro.

A depredação dos palácios em Brasília, o financiamento do transporte e alimentação de golpistas acampados diante de quartéis ou a omissão de autoridades públicas, agentes policiais e militares, são parte de uma mesma cadeia.

O desafio jurídico é concatenar os acontecimentos, estabelecer a relação de causalidade entre o fato criminoso contra as instituições democráticas e a participação de Jair Bolsonaro, o cabeça do golpe.

Às vezes, a delinquência política e empresarial é camuflada. O crime organizado costuma ter vínculos ocultos de interesse e participação. Nem tudo se prova diretamente.

Para o contexto de dificuldade probatória, o Código de Processo Penal define "indício" como a "circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias". É o caso, por exemplo, do homicídio sem cadáver ou do mandante oculto.

No domingo, a Folha reconstituiu a "marcha do golpismo" e o Globo mostrou números do "legado golpista": uma ameaça de Bolsonaro a cada 23 dias, a maioria contra o Supremo. Não por acaso, o ataque ao plenário do STF é o ponto alto do teatro da destruição.

Bolsonaro depende do caos para emergir do esconderijo golpista –para impedir a posse de Lula ou, depois da posse, reverter o resultado da eleição e afastar o eleito. Quando é vitorioso, o golpista assume o poder. Tentativa é golpe que não dá certo, evento que se pune para desencorajar o delito.

Marco remoto da escalada golpista é o "acabou, porra", proferido em maio de 2020, depois de operação da PF envolvendo aliados e fake news.

É ardiloso. O presidente prega desobediência, mas finge respeito às instituições. A insubordinação é em nome da liberdade: "Estou com as armas da democracia nas mãos", resmunga o presidente alternando ataques, palavrões e falsos álibis. Atinge o ministro Alexandre de Moraes sem mencionar seu nome.

Em julho de 2021, amparado pelo então ministro da Justiça, Anderson Torres, Bolsonaro levanta suspeitas contra a urna eletrônica.

Torres, agora preso, não interrompe o jantar enquanto a malta bolsonarista tenta invadir a sede da Polícia Federal no dia da diplomação de Lula. Ele, oficiais militares e o cabeça da conspiração esperam o caos que não se concretiza. Em sua casa, tem minuta de decreto de intervenção no TSE para reverter o resultado eleitoral.

Torres é nomeado secretário de Segurança do Distrito Federal. O governador Ibaneis Rocha (afastado pelo Supremo) tenta se distanciar da cena do crime, mesmo sabendo que o golpe não aconteceria sem a sua desconfortável participação. Torres assume, desmancha o protocolo de proteção da Praça dos Três Poderes e deixa o país sorrateiramente, criando o álibi das férias na Florida, refúgio de Bolsonaro.

Em julho, tem o briefing golpista para embaixadores estrangeiros. Bolsonaro estimula a compra de armas e dissemina rebeldia nos quartéis. Para tumultuar o segundo turno, a Polícia Rodoviária Federal, hierarquicamente submetida a Torres, realiza operações para dificultar o deslocamento de eleitores.

Os indícios se acumulam. Mesmo depois de 8 de janeiro, o ex-presidente compartilha em seu perfil oficial um post que contesta o resultado da eleição.

O olhar de Bolsonaro para o quebra-quebra é silencioso, dúbio, cínico, sorridente.

 Luís Francisco Carvalho Filho, o autor deste artigo, é Advogado criminal e autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 21.01.23.

O PT não falha

Bastaram alguns dias para que os canais do Estado fossem usados para disseminar a ‘verdade’ do partido

Ao anunciar a nova diretoria da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), o site oficial do governo comunicou que “o ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom), Paulo Pimenta, indicou Rita Freire, presidente do Conselho Curador da EBC cassada após o golpe de 2016″, para um cargo de gerência da estatal.

O PT não falha. Bastaram alguns dias no poder para que o lulopetismo se assenhoreasse dos canais oficiais do Estado com o objetivo de transformá-los em porta-vozes do partido – e, por meio deles, espalhar sua “verdade oficial”. E nessa “verdade oficial” figura com destaque a versão segundo a qual o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 foi um “golpe”.

O PT tem direito de fazer a interpretação que quiser do processo constitucional que levou à cassação de Dilma por suas manobras contábeis criativas, digamos assim, com o propósito de ocultar da sociedade o real estado das finanças do País. O que o partido e seus membros com cargos no Executivo federal não podem fazer é usar canais oficiais de comunicação para impor a todos os brasileiros sua visão particular dos acontecimentos como revanche.

Um dos princípios da administração pública consagrados no artigo 37 da Constituição é o princípio da impessoalidade. Isso significa, na prática, que aos administradores públicos é vedado desempenhar suas funções privilegiando interesses privados de indivíduos ou grupos. Um partido político, naturalmente, é uma entidade privada. Portanto, a comunicação oficial do governo federal não se confunde nem remotamente com a comunicação do PT – ou de qualquer partido político –, ainda que a legenda tenha logrado ascender novamente ao Executivo federal. Triunfos eleitorais, circunstanciais por natureza, não autorizam reescrever a história.

Evidentemente, não é surpresa para ninguém essa interpretação que os petistas e seus aliados fazem do processo de cassação de Dilma. Pouco importa para o partido que, objetivamente, o impedimento da ex-presidente tenha seguido rigorosamente todos os ritos previstos na Constituição e na Lei 1.079/1950 – e sob a supervisão do então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski. Ao PT, interessa a versão, não os fatos.

O presidente Lula da Silva, contudo, já disse algumas vezes que seu terceiro mandato presidencial será o “mandato de sua vida”, e que deseja trabalhar para reunir famílias e reconciliar amigos que se afastaram por divergências políticas. Pois o presidente será tão bem-sucedido em seu desiderato auspicioso se, de fato, transformar suas intenções em gestos concretos no sentido da pacificação. Um bom começo é dissociar o interesse público dos interesses de seu partido.

Poucos hão de discordar: para poder avançar e levar o País de volta ao trilho do desenvolvimento político, econômico e social, a sociedade precisa, o quanto antes, cicatrizar as feridas abertas por ressentimentos cultivados entre os cidadãos pela polarização política extremada. Quando um canal oficial do governo chama o impeachment de Dilma de “golpe”, politiza a comunicação estatal, dissemina uma patranha e atiça a cizânia. Ou seja, nada de bom.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 21.01.23

Combate ao extremismo exige apoio mútuo de instituições

Extremismo político mostrado ao Brasil indica que vencê-lo será uma longa batalha. Ação conjunta de instituições pode fortalecer democracia e melhorar governabilidade.

(Foto de  Adriano Machado/REUTERS)

Forças de segurança disparam bombas de gás lacrimogêneo contra invasores dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. É possível ver uma bandeira do Brasil estendida no gramado e golpistas enfileirados na beirada da grama, no fundo da foto.Forças de segurança disparam bombas de gás lacrimogêneo contra invasores dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. É possível ver uma bandeira do Brasil estendida no gramado e golpistas enfileirados na beirada da grama, no fundo da foto.

Os recentes ataques aos Poderes da República brasileira representam a concretização de uma ameaça que ronda o país desde o surgimento do bolsonarismo: o uso da violência política para desestabilizar a democracia.

Não foram poucos os sinais de que esse dia poderia chegar, como de fato ocorreu no último domingo, 8 de janeiro. Ao nos depararmos com a destruição promovida pelas invasões criminosas, fomos expostos a uma realidade que vinha sendo esboçada ao longo dos últimos quatro anos, por meio de um governo que cultuou o negacionismo, a distopia, o desrespeito às instituições e às regras democráticas.

Os indícios que vinham sendo apresentados por esse fenômeno político de extrema direita, liderado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, culminaram na mais grave agressão ao Estado de direito e à democracia brasileira no pós-88.

A pacificação política do país e a responsabilização dos invasores impuseram-se como prioridades nacionais e passaram a ocupar o centro da agenda do Executivo, do Legislativo e do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas como se trata de um movimento em curso – e não um evento isolado, a desarticulação e a punição das redes de extremismo dependerão da capacidade de resposta coordenada dessas instituições.

Resposta coordenada dos Três Poderes

As primeiras medidas do recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos ataques apostaram nessa ação coordenada, evitando sinalizar qualquer apetite por poderes unilaterais.

Primeiro, recorreu ao seu poder emergencial, decretando a intervenção na segurança do Distrito Federal (DF), a partir de rápida articulação com os demais Poderes da República. Em seguida, anunciou medidas de contenção da violência de mãos dadas com o STF, Congresso e governadores de todas as unidades da Federação brasileira, incluindo aqueles que apoiaram o ex-chefe do Executivo, Jair Bolsonaro.

O presidente Lula assumiu seu mandato ciente dos desafios de governar com a sociedade dividida e polarizada, contexto no qual os resultados econômicos e sociais serão decisivos para tamponar ou aprofundar essas fendas. Mas apenas oito dias após sua posse, precisou compreender, e muito rapidamente, que os problemas resultantes dessa polarização são mais agudos e urgentes do que se supunha.

Se por um lado a gravidade dos eventos força a união das elites políticas e institucionais, por outro, ela exigirá sinais concretos do presidente sobre como superar isso juntos.

A coalizão governativa , apesar dos nove partidos integrantes e da diversidade de seus ministros, não tem a face de uma frente ampla. Isso porque não garante uma maioria parlamentar mínima, com 51% e 52% das cadeiras legislativas na Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente. É provável que a formação do governo ganhe novas rodadas e afete a agenda legislativa do Executivo. Logo, não só o Executivo, mas também o Congresso poderá sair fortalecido no atual cenário.

Desafios administrativos

Os desafios não são só legislativos, mas também administrativos. Os órgãos do poder executivo foram instrumento central na radicalização e polarização política liderada por Bolsonaro.

A aproximação de alguns deles com o bolsonarismo já mostrou seus efeitos, como na operação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) durante o segundo turno das eleições do ano passado e nas tensões entre os militares e o novo governo desde a transição presidencial.

Novas estruturas de governança

Lula enfrentará o desafio de realinhar as estruturas do Executivo, o que é razoável no início de um novo governo, mas em um ambiente polarizado em demasia e com potencial de aprofundar conflitos no interior de suas burocracias. Mais do que redesenho dessas estruturas, como já iniciado, a reversão disso requer novas estruturas de governança internas ao Executivo.

Desde a aprovação célere da PEC da Transição, o Congresso tem sinalizado disposição de cooperar com o governo, se contempladas as suas demandas. O desafio agora é forjar um alinhamento interno capaz de tornar governo e oposição democrática no eixo organizador das batalhas legislativas.

As chances de reeleição dos atuais presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado aumentam nesse cenário, dado o apelo mais forte à continuidade e à celeridade das medidas de defesa da democracia e do Estado de direito.

Esses alinhamentos e pactos podem restringir o espaço e a voz da extrema direita no Congresso, mas certamente os desfechos das investigações e dos inquéritos sobre o 8 de janeiro serão decisivos. Retraídos agora diante da violência e do rechaço popular às invasões, logo os que sobreviverem, em mandato e reputação, disputarão o espólio de Bolsonaro na condução da extrema direita.

O papel do STF

Protagonista no combate aos movimentos antidemocráticos nos anos recentes, o STF adotou fortes medidas para a investigação e responsabilização dos envolvidos nos atos, como o afastamento do governador do DF, pedidos de prisão de autoridades e detenção de mais de mil envolvidos nas invasões. A gravidade da crise elevou a fervura das pressões contra o imobilismo dos demais órgãos do sistema de Justiça. Com isso, o Supremo sai, parcialmente, da posição isolada na contenção dos movimentos antidemocráticos e extremistas – que o transformou em alvo principal de desconfiança institucional.

As vitórias contra o extremismo violento dependem não só do acionamento desses órgãos, mas do seu engajamento ostensivo na defesa do Estado de direito e da democracia. Em alguns casos, a reconstrução e o realinhamento de suas estruturas e burocracias serão cruciais, particularmente onde "simpáticos" aos movimentos extremistas podem se tornar focos de resistências ou inação deliberada.

A face do extremismo político mostrada ao Brasil no último domingo indica que vencê-lo será uma longa batalha, na sociedade e dentro das instituições. Logo, tornar essas medidas e ações iniciais dos três Poderes, adotadas logo após as invasões, em iniciativas coordenadas e de reforços mútuos é o desafio seguinte.

Se bem-sucedidas, elas podem ser potencializadoras da governabilidade e da institucionalidade democrática. Afinal, nada melhor para a democracia do que a governança efetiva e responsiva para deixar para trás quem quer desestabilizá-la.

Autoras deste artigo - Magna Inácio é doutora em ciência política, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais. É coordenadora do PexNetwork (https://pex-network.com/), grupo de pesquisa PEX (Executives, presidents and cabinet politics), vinculado ao Centro de Estudos Legislativos (CEL) da UFMG. / Alessandra Costa é mestre e doutora em Ciência Política pela UFMG, jornalista e pesquisadora do PEX (CEL-UFMG). Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, e 13.01.23. O texto reflete a opinião das autoras, não necessariamente a da DW.

Bolsonaro voltará para o Brasil?

Qual é o plano de Jair Messias Bolsonaro, ainda hospedado próximo aos parques da Disney? Será que ele está esperando um golpe no Brasil para voltar aos braços de seus seguidores como salvador da pátria?

        
Jair Bolsonaro (Foto: Sergio Lima/AFP/Getty Images)

O saguão do aeroporto estava lotado de pessoas com camisas verde e amarela e bandeiras do Brasil. Algumas até fantasiadas, e outras vestindo camisetas com a imagem de Lula preso.

Foi uma loucura quando Bolsonaro saiu da área de desembarque. Colocaram nele uma faixa presidencial (fake, claro) e o carregaram nas costas até a saída do terminal. Enquanto isso, o candidato Bolsonaro dava socos em um boneco inflável de Lula vestido de presidiário.

Presenciei essa chegada triunfal de Bolsonaro no aeroporto de Curitiba, em março de 2018. Naquela manhã, um ônibus da caravana de Lula tinha sido alvo de tiros a caminho da mesma cidade, Curitiba. Era a última caravana de Lula antes de, alguns dias depois, ser preso por corrupção e lavagem de dinheiro.

Como as coisas mudam. Agora, em janeiro de 2023, temos Lula novamente presidente, e Bolsonaro fora do país sendo investigado pelo envolvimento nos ataques aos prédios do Congresso, STF e Palácio do Planalto por parte de seus seguidores. Uma "versão brasileira da invasão do Capitólio”.

Enquanto isso, desde o dia 30 de dezembro Bolsonaro está hospedado em Orlando, na Flórida, próximo aos parques da Disney. Há registros do ex-presidente em restaurantes fast-food e supermercados. Isso é vida de um ex-presidente? E para passar férias existiriam lugares mais aconchegantes, imagino.

E aí, Bolsonaro, vai encarar?

Fica a pergunta: Bolsonaro voltará ao Brasil? Ele terá coragem de enfrentar a justiça? Em 2018, Lula não fugiu do país, mesmo sabendo que passaria um bom tempo na cadeia. No caso de Bolsonaro, há a discussão sobre uma possível perda dos direitos políticos, ou seja, ficar inelegível por oito anos. E aí, Bolsonaro, vai encarar?

Imagino que ele queira uma volta ao Brasil de forma triunfal, com milhares de seguidores esperando por ele num aeroporto brasileiro, assim como na campanha de 2018. E outra vez sendo carregado pelo povo, aclamado como salvador do Brasil.

Para isso, primeiro teria que acontecer um golpe para tirar o governo legítimo de Lula do poder. Ainda há inquéritos em andamento, mas os acontecimentos do dia 8 de janeiro em Brasília me parecem uma tentativa de golpe. Bastaria Lula assinar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para os militares assumirem. Mas Lula sacou isso.

O petista sabe do perigo que ele e seu governo estão correndo e já começou a exonerar militares da administração presidencial. Lula disse na semana passada: "Nós estamos em um momento de fazer uma triagem profunda, porque a verdade é que o Palácio estava repleto de bolsonaristas e militares, e nós queremos ver se a gente consegue corrigir”.

Especulava-se que, depois das eleições presidenciais de 2022, Bolsonaro poderia exercer o papel de líder da oposição ao governo petista. Ele teria uma maioria no Congresso para dificultar a vida de Lula e se preparar para, em 2026, voltar à presidência pela via democrática, ou seja: através de uma vitória nas urnas.

Mas parece que Bolsonaro tem outros planos. Ele quer ser como a espada de Dâmocles: uma ameaça, um perigo iminente à democracia brasileira. O Brasil deve ter tempos sombrios pela frente.

Thomas Milz , o autor deste artigo, saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 21.01.23. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A bobagem de Lula sobre o Banco Central

Fiel ao primitivismo petista, Lula ataca a autonomia do BC, como se a alta dos juros não fosse necessária para conter a inflação e preservar o poder de compra sobretudo dos pobres

Lula da Silva declarou, numa entrevista, que não gosta do Banco Central (BC) autônomo. E não gosta porque, para o lulopetismo clássico, o governo deve mandar na autoridade monetária para definir, conforme critérios políticos, quais devem ser os juros básicos da economia. A autonomia, segundo os petistas, “afeta a soberania popular e nacional” ao “transferir o controle do BC aos bancos privados”, como se lê em um comentário do partido a respeito do projeto de lei que conferiu independência ao BC, em 2021. Nada muito diferente dos manifestos radicais do PT primevo.

De volta ao poder, o presidente Lula mostrou que continua incapaz de compreender que, sem autonomia, o Banco Central depende da boa vontade do governante para fazer seu trabalho de preservação do poder de compra da moeda. A mão pesada de Dilma Rousseff no BC para forçar uma queda dos juros logo no início de seu primeiro mandato, em 2011, a título de impulsionar o crescimento, abriu a picada para o desastre que estava por vir – inflação descontrolada, instabilidade econômica e recessão. Mas Lula e o PT são teimosos.

Em entrevista à GloboNews, o presidente disse que a autonomia formal do BC é “uma bobagem”. Além disso, Lula sugeriu que, se autonomia fosse eficiente, a inflação não estaria tão alta. “Por que, com um banco independente, a inflação está do jeito que está?”, questionou, ignorando o fato, óbvio, de que a inflação só não está mais alta porque o BC tomou as providências necessárias. Aliás, pode-se dizer que, não fosse a autonomia do BC, o então presidente Jair Bolsonaro teria usado a autoridade monetária para seus propósitos eleitoreiros, mandando criar artificialmente um aumento momentâneo do poder de compra dos brasileiros para ganhar votos. Talvez até se reelegesse – vejam só os petistas do que a autonomia do BC nos livrou.

As declarações de Lula, portanto, não surpreendem ninguém, mas são dignas de lamento. É inacreditável que o presidente hesite em reconhecer a importância de um marco institucional tão relevante para o País.

Ao longo de sua história, o PT sempre defendeu o combate à inflação por meio do controle de preços de combustíveis, incentivos setoriais e uma política cambial que reduza a volatilidade da moeda. Não são propostas de um passado distante, mas as diretrizes expressas do programa apresentado por Lula na campanha eleitoral de 2022.

Esse receituário heterodoxo foi testado e reprovado no governo de Dilma, quando o BC ignorou os sinais de deterioração da economia e abriu mão da defesa da moeda, sua função primordial, perdendo o controle da inflação e da ancoragem das expectativas. A combinação entre juros em patamares artificialmente baixos e os efeitos de uma política fiscal expansionista mergulharam o País em uma profunda crise econômica até hoje não totalmente superada.

Foi após esse contexto que ressurgiu o debate sobre a autonomia do Banco Central. Um dos pilares do projeto de lei complementar aprovado pelo Congresso foi o estabelecimento de mandatos fixos para os diretores e o presidente da instituição em períodos não coincidentes com os do presidente da República. Longe de representar privilégio aos membros da autarquia, a proposta deu a eles a blindagem necessária para executar suas atividades sem pressões políticas do governo de plantão, independentemente de seu viés político.

Tema completamente superado, a autonomia do BC é mais um dos vários dogmas aos quais o PT mantém um apego visceral. Quando Lula a critica, trai a si mesmo, pois sabe que a independência que deu ao BC lhe garantiu um primeiro mandato tranquilo. Pior: amplia as incertezas e a volatilidade da economia, desancora as expectativas do mercado e cria um ambiente propício para que um BC sobre o qual ele não tem qualquer poder ou ascendência volte a aumentar a taxa básica de juros. Com o enorme desafio de pacificar o País após os violentos ataques à democracia, Lula deveria abandonar essa retórica inconsequente. Com esse discurso, ele boicota seu próprio governo e castiga justamente os mais pobres, que ele diz tanto defender.

Editorial / Notas & Informações, em 20.01.23

A hora e a vez da despolitização das Forças, para o bem do Brasil e dos militares

Punir os oficiais que tiveram atuação golpista e organizar a volta integral aos quartéis são as duas únicas decisões que cabem ao comando das Forças Armadas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com os chefes das Forças Armadas nesta sexta-feira, 20, no Palácio do Planalto (Foto: RICARDO STUCKERT/PR)

As Forças Armadas vivem hoje a maior crise de sua história. É uma crise de legitimidade perante o sistema político, a sociedade e a ordem internacional. Houve outros momentos difíceis para a instituição, como no conturbado mandato de Floriano Peixoto ou no final da ditadura militar, mas em nenhum deles se teve tanto consenso sobre a imprescindível despolitização das Forças Armadas.

(Comandantes ‘estão cientes de que vamos tomar providências’, diz Múcio sobre punição a golpistas)

O cume dessa crise foi a Intentona do dia 8 de janeiro, quando se constatou que a ação dos militares tinha sido, no mínimo, conivente com golpistas que praticaram um ato terrorista sem paralelo na história democrática brasileira. Mas o processo não se iniciou naquele trágico evento. As origens estão na adesão de boa parte dos integrantes das três Forças ao bolsonarismo, deixando-se politizar em episódios como o desastroso combate à covid-19 e em eventos públicos de apoio ao presidente Bolsonaro, que prometeu benesses materiais e, sobretudo, um projeto de poder a integrantes ou à própria instituição militar.

Embora a cúpula militar tenha rechaçado a adesão ao plano de golpe preparado por Bolsonaro, uma parcela importante da instituição fez discursos ou agiu de modo golpista, como se estivéssemos ainda em 1964. Mas o mundo mudou. Os três Poderes e a Federação são mais fortes hoje e a maioria dos políticos defende firmemente a democracia. Setores sociais e econômicos importantes vão reagir a qualquer Intentona, como ficou claro nos últimos dias. E, mais do que isso, os países mais relevantes, especialmente os Estados Unidos, isolariam completamente o Brasil e vão pressionar por uma despolitização das Forças Armadas brasileiras.

Punir os militares que tiveram atuação golpista e organizar a volta integral aos quartéis, colocando a profissionalização e a excelência de seus quadros acima da política, são as duas únicas decisões que cabem ao comando das Forças Armadas. É isso que deveria ter sido feito desde a redemocratização, e foi adiado indefinidamente até Bolsonaro vender uma ilusão autoritária de poder. A hora e a vez da mudança é agora, pois evitá-la poderia levar a um questionamento maior de suas funções, inclusive de seu padrão de gastos.

Vale frisar que se submeter ao comando civil é algo mais do que obedecer ao presidente Lula. Os militares devem obediência à democracia e não podem colocar o Brasil em risco geopolítico e econômico. O papel permanente das Forças Armadas é muito importante para ser destruído por integrantes seduzidos pelo discurso de um “mau militar”, tal qual Bolsonaro foi definido exemplarmente por Geisel.

Fernando Luiz Abrucio, o autor deste artigo, é Doutor em Ciência Política pela USP, professor e pesquisador da FGV-Eaesp. Publicado originalmente n'O Estado de SA. Paulo, em 20.01.23.

Tem de respeitar o resultado da urna’, diz comandante do Sudeste

General Tomás Miguel Ribeiro Paiva fez pronunciamento com tropa formada no quartel general do CMSE na quarta-feira; vídeo mostra discurso de dez minutos do general

O comandante militar do Sudeste, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva discursa em defesa da democracia Foto: Reprodução/CMSE

O comandante militar do Sudeste, general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, afirmou que o resultado das urnas deve ser respeitado. É a primeira manifestação pública de um comandante militar desde os ataques à sede dos três Poderes, em Brasília, no dia 8. “Vamos continuar garantindo a nossa democracia, porque a democracia pressupõe liberdade e garantias individuais e públicas. E é o regime do povo, de alternância de poder. É o voto. E, quando a gente vota, tem de respeitar o resultado da urna.”

Um dos três mais antigos oficiais generais do Alto Comando do Exército (ACE), Tomás, como é conhecido, foi um dos comandantes que se opuseram a qualquer tentativa de virada de mesa após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na eleição presidencial. Por isso, tornou-se alvo, ao lado de outros integrantes do ACE, de uma campanha difamatória de bolsonaristas.

Na quarta-feira, dia 18 de janeiro, no quartel-general do Comando Militar do Sudeste (CMSE), com a tropa formada, o general discursou durante cerca de dez minutos. Na ocasião, ele lembrava os militares mortos na missão de paz das Nações Unidas no Haiti, onde o Brasil permaneceu de 2004 a 2017. Dezoito militares morreram no terremoto de 12 de janeiro de 2010, que destruiu parte do país caribenho em 2010. Quando coronel, Tomás comandou um batalhão no Haiti.

No meio do discurso, o general passou a tratar de outro “terremoto”, que atingiu recentemente o País. “Nós últimos dias, nós estamos vivendo um outro tipo de terremoto no País: um terromoto político, que não causou mortes” Esse terremoto, segundo ele, é movido pelo ambiente virtual, que não tem freio. “Todo nós somos hoje hiperinfomados. Para excesso de informação só tem um remédio: mais informação. É se informar com qualidade e buscar fontes fidedignas.”

De acordo com ele, essa violência, “essa intolerância tem nos atacado”. “Esse terremoto não está matando gente, mas está tentando matar a nossa coesão, a nossa hierarquia e a nossa disciplina, o nosso profissionalismo e o orgulho que a gente tem de vestir essa farda. E não vai conseguir.” Logo em seguida, o general reafirmou o Exército como instituição de Estado. “Ser militar é ter uma instituição de Estado, apolitica, apartidária; não interessa quem está no comando, a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito. Isso é ser militar.”

O general disse ainda que os militares não devem ter correntes políticas e devem permanecer coesos. “(Ser militar) é não ter corrente. Isso não significa que ele não pode ter sua opinião. Ele pode ter, mas ele não pode se manifestar. Ele pode ouvir muita coisa: ‘faço isso, faça aquilo’, mas ele faz o que é correto, mesmo que o correto seja impopular.”

O general concluiu o discurso para a tropa com uma defesa enfática da democraia e do respeito ao resultado das urnas. “Essa é a mensagem que quero trazer para vocês. Em que pese o turbulhão, o terremoto, o tsunami, nós vamos continuar íntegros, coesos e respeitosos e vamos continuar garantindo a nossa democracia, porque a democracia pressupõe liberdade e garantias individuais e públicas. E é o regime do povo, da alternância de poder. É o voto. E, quando a gente vota, tem de respeitar o reusltado da urna. Essa é a convicção que eu tenho, mesmo que a gente não goste do resultado – nem sempre é o que a gente queria. Mas essa é o papel da instituição de Estado, que respeita os valores da Pátria.”

Marcelo Godoy, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 20.01.23, às 20h23

Rodrigo Rangel, Exclusivo no Metrópoles: o caixa 2 de Jair Bolsonaro no Planalto

TRANSAÇÕES FINANCEIRAS DO MILITAR DO EXÉRCITO QUE ATUAVA COMO AJUDANTE DE ORDENS DO EX-PRESIDENTE FORAM MAPEADAS PELA POLÍCIA FEDERAL POR ORDEM DO STF

O tenente coronel do Exercito, Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro - MetrópolesDida Sampaio/Estadão

MILITAR PAGAVA CONTAS DO CLÃ PRESIDENCIAL EM DINHEIRO VIVO AO MESMO TEMPO QUE OPERAVA UMA ESPÉCIE DE “CAIXA PARALELO” NO PLANALTO QUE INCLUÍA RECURSOS SACADOS DE CARTÕES CORPORATIVOS

PAGAMENTOS ERAM FEITOS EM AGÊNCIA DO BANCO DO BRASIL LOCALIZADA DENTRO DO PALÁCIO

ENTRE AS CONTAS PAGAS ESTAVA A FATURA DE UM CARTÃO DE CRÉDITO USADO PELA EX-PRIMEIRA-DAMA MICHELLE BOLSONARO, MAS EMITIDO EM NOME DE UMA AMIGA DELA

ÁUDIOS COM A VOZ DE BOLSONARO REUNIDOS PELA INVESTIGAÇÃO, SOB COMANDO DO MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES, INDICAM QUE O PRESIDENTE CONTROLAVA E TINHA CIÊNCIA DE TUDO

As investigações que correm no Supremo Tribunal Federal sob o comando do ministro Alexandre de Moraes avançam sobre um personagem-chave que, por tudo o que se descobriu até agora e por sua estreita proximidade com Jair Bolsonaro, deixará o ex-presidente ainda mais encrencado.

As descobertas conectam o antigo gabinete de Bolsonaro diretamente à mobilização de atos antidemocráticos e lançam graves suspeitas sobre a existência de uma espécie de caixa 2 dentro do Palácio do Planalto, com dinheiro vivo proveniente, inclusive, de saques feitos a partir de cartões corporativos da Presidência e de quartéis das Forças Armadas.

O personagem em questão é o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, o “coronel Cid”, ajudante de ordens de Jair Bolsonaro até os derradeiros dias do governo que acabou em 31 de dezembro.

O militar compartilhava da intimidade do então presidente. Além de acompanhá-lo em tempo quase integral, dentro e fora dos palácios, Cid era o guardião do telefone celular de Bolsonaro. Atendia ligações e respondia mensagens em nome dele. Também cuidava de tarefas comezinhas do dia a dia da família. Pagar as contas era uma delas – e esse é um dos pontos mais sensíveis do caso.

Entre os achados dos policiais escalados para trabalhar com Alexandre de Moraes estão pagamentos, com dinheiro do tal caixa informal gerenciado pelo tenente-coronel, de faturas de um cartão de crédito emitido em nome de uma amiga do peito de Michelle Bolsonaro que era usado para custear despesas da ex-primeira-dama.


Vinícius Schmidt/Metrópoles

QUEBRA DE SIGILO PERMITIU MAPEAR TRANSAÇÕES

Já era sabido, há tempos, que Cid se tornara alvo dos inquéritos tocados por Moraes, em diferentes frentes. Ainda no ano passado, o jornal Folha de S.Paulo noticiou que mensagens de texto, imagens e áudios encontrados no celular do oficial do Exército levaram os investigadores a suspeitar das transações financeiras realizadas por ele.

Pois bem. Depois disso, Moraes autorizou quebras de sigilo que permitiram revirar pelo avesso as operações realizadas pela equipe do tenente-coronel, muitas delas com dinheiro em espécie, na boca do caixa de uma agência bancária localizada dentro do Palácio do Planalto (foto acima).

As primeiras análises do material já apontavam que Cid centralizava recursos que eram sacados de cartões corporativos do governo ao mesmo tempo que tinha a incumbência de cuidar do pagamento, também com dinheiro vivo, de diversas despesas do clã presidencial, incluindo contas pessoais de familiares da então primeira-dama Michelle Bolsonaro.

Durante a investigação, os policiais se depararam com um modus operandi que lembrava em muito aquele adotado pelo clã bem antes da chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto e que, anos depois, seria esquadrinhado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro nas apurações das rachadinhas do hoje senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do ex-presidente. Dinheiro manejado à margem do sistema bancário. Saques em espécie. Pagamentos em espécie. Uso de funcionários de confiança nas operações. As semelhanças levaram a um apelido inevitável para as transações do tenente-coronel do Exército: “rachadinha palaciana”.

A certa altura do trabalho, os investigadores enxergaram indícios fortes de lavagem de dinheiro. Chamou atenção, em especial, a origem de parte dos recursos que o oficial e seus homens da ajudância de ordens manejavam.

Para além do montante sacado a partir de cartões corporativos que eram usados pelo próprio staff da Presidência, apareceram indícios de que valores provenientes de saques feitos por outros militares ligados a Cid e lotados em quartéis – sim, quartéis – de fora de Brasília eram repassados ao tenente-coronel. Os detalhes dessas transações ainda estão sendo mantidos sob absoluto sigilo, trafegando entre o gabinete de Moraes e o restrito núcleo de policiais federais que o auxilia nas apurações.

NA BOCA DO CAIXA, DENTRO DO PLANALTO

As investigações desceram à minúcia das transações. A partir dos primeiros sinais de que várias delas haviam sido feitas em espécie, os policiais esquadrinharam as fitas de caixa e pediram até as imagens do circuito de segurança da agência bancária onde os pagamentos eram feitos – a agência 3606 do Banco do Brasil, que funciona no complexo do Palácio do Planalto.

Da mesma forma que o MP do Rio conseguiu documentar o notório Fabrício Queiroz, operador das rachadinhas, pagando em dinheiro vivo contas de Flávio Bolsonaro, os policiais a serviço de Alexandre de Moraes foram buscar os registros em vídeo de que pessoas da equipe de Cid, o ajudante de ordens do presidente, eram as responsáveis por quitar – também em espécie, assim como Queiroz – os boletos do presidente, da primeira-dama e de seus familiares.

Michelle Bolsonaro e Rosimary Cardoso Cordeiro (Reprodução)

MICHELLE E O CARTÃO DA AMIGA

Entre os pagamentos, destacavam-se faturas de um cartão de crédito adicional emitido por uma funcionária do Senado Federal de nome Rosimary Cardoso Cordeiro. Lotada no gabinete do senador Roberto Rocha, do PTB do Maranhão, Rosimary é amiga íntima de Michelle Bolsonaro desde os tempos em que as duas trabalhavam na Câmara assessorando deputados.

Rosi, como os mais próximos a chamam, é apontada como a pessoa que aproximou Jair Bolsonaro e Michelle quando o ex-presidente ainda era um deputado do baixo clero que nem sonhava um dia chegar ao Palácio do Planalto. Moradora de Riacho Fundo, cidade-satélite de Brasília distante pouco mais de 20 quilômetros do centro do Plano Piloto, até hoje ela mantém laços estreitos com o casal.

Veja galeria:

Amiga do peito: Rosi no casamento de Bolsonaro com Michelle, em 2013Reprodução/Facebook

Rosimary Cordeiro com Jair Bolsonaro e o general Augusto Heleno Ribeiro no avião presidencial (Reprodução/Redes sociais)


Rosi com Michelle em evento da campanha de Bolsonaro no Maranhão

Rosimary Cordeiro viajou com a então primeira-dama em um jato privado (Reprodução/Redes sociais)

Amiga do peito: Rosi no casamento de Bolsonaro com Michelle, em 2013 (Reprodução/Facebook)

A antiga amizade ganhou toques de glamour depois que a senhora Bolsonaro virou primeira-dama do Brasil – passou a contar, por exemplo, com viagens a bordo de jatinhos e até do avião presidencial. Em maio do ano passado, Rosi acompanhou Michelle em um tour por Israel que contou, ainda, com a participação da então ministra Damares Alves. As duas também foram juntas, em voos fretados pagos pelo PL, para eventos da campanha de Jair Bolsonaro à reeleição.

Em uma viagem oficial de Bolsonaro ao Maranhão, Rosi foi convidada a integrar a comitiva presidencial e registrou fotos ao lado dele na cabine principal do Airbus que serve à Presidência. A ascensão de Michelle fez a amiga também ascender no Congresso. No início do governo, era telefonista no gabinete de Rocha, aliado de Bolsonaro. Logo depois, foi promovida e viu seu salário aumentar. No fim do ano passado, ela ocupava um dos cargos comissionados mais altos da equipe, com salário de R$ 17 mil brutos. Como o mandato de Rocha está a dias do fim, Rosi já tem a promessa de ganhar uma função no futuro gabinete de Damares, eleita senadora pelo Distrito Federal. Michelle, claro, deu uma força.

ÁUDIOS DE BOLSONARO E CONEXÃO COM RADICAIS

O material reunido nas investigações sobre o tenente-coronel o coloca na cena da sucessão de atos antidemocráticos que já vinham sendo investigados por Moraes e que culminaram com a invasão das sedes dos três poderes, em 8 de janeiro. Pela proximidade com Bolsonaro e pela função que o militar exercia no Planalto, o ex-presidente é peça indissociável dos movimentos que ele fazia.

Em mensagens de texto e áudio, o tenente-coronel funcionava como elo entre Bolsonaro e vários dos radicais que há tempos vinham instigando a militância bolsonarista a atentar contra as instituições. Há fartas evidências nesse sentido. Um dos contatos frequentes de Cid era Allan dos Santos, o blogueiro que vive nos Estados Unidos e em outubro de 2021 teve a prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Jair Bolsonaro terá sérias dificuldades para se desvencilhar, ele próprio, das provas que engolfam seu ex-ajudante de ordens. O material compromete os dois. O ex-presidente aparece como interlocutor em várias das mensagens que Cid mantinha em seus aplicativos e foram copiadas pelos investigadores com autorização de Moraes. Uma série de áudios enviados por Bolsonaro ao subordinado indicam que ele tinha conhecimento e controle de tudo o que Cid fazia — seja na seara financeira, pagando as contas do clã em dinheiro vivo, seja na interlocução com os bolsonaristas radicais.

CID PAI, CID FILHO E BOLSONARO

Jair Bolsonaro e o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid têm uma relação que transcende a carreira militar do ex-ajudante de ordens. O pai de Cid, general Mauro Cesar Lourena Cid, foi colega do ex-presidente no curso de formação de oficiais do Exército. Lourena Cid tornou-se amigo de Bolsonaro. Em 2019, ano em que foi para a reserva, ele ganhou do governo a confortável posição de chefe do escritório da Apex, a agência brasileira de promoção de exportações, em Miami. Com salário em dólares, o cargo lhe garantiu uma bolada mensal equivalente a mais de R$ 80 mil.

Cid filho, o ajudante de ordens, também ascendeu na carreira durante o governo passado. Era major e foi promovido a tenente-coronel. Tido como um dos mais radicais auxiliares do ex-presidente, o oficial já havia aparecido em várias das frentes de investigação a cargo de Moraes no STF.

Veja galeria:

Bolsonaro embarca para a Suíça, em janeiro de 2019: Cid estava sempre ao lado (Alan Santos/PR)

Cid com Bolsonaro em viagem aos Estados Unidos em março de 2020 (Alan Santos/PR)

Acompanhado do ajudante de ordens, Bolsonaro visita museu em Dallas, em 2019 (Marcos Corrêa/PR)

Cid com Bolsonaro na Assembleia Geral da ONUAlan Santos/PR

Cid com Bolsonaro no debate da TV Globo, na antevéspera do segundo turno das eleições de 2022 (Reprodução/TV Globo)

A dupla Bolsonaro-Cid em viagem ao Catar, em 2021Isac Nóbrega/PR

O ajudante de ordens carregava a pasta e era o guardião do telefone do presidente (Isac Nóbrega/PR)


Ele foi investigado, por exemplo, por suspeita de atuar no vazamento de informações de um inquérito sigiloso sobre ameaças às urnas eletrônicas — parte do velho movimento bolsonarista destinado a descredibilizar o sistema eleitoral. Em dezembro passado, a Polícia Federal concluiu que o tenente-coronel Cid e Bolsonaro cometeram crime ao associar falsamente, durante um live, as vacinas anticovid com o vírus da Aids.

CID ESTÁ NOMEADO PARA CHEFIAR COMANDO DE FORÇAS ESPECIAIS

Antes de deixar o poder, Bolsonaro dispensou o tenente-coronel Mauro Cid da função de ajudante de ordens. O ato foi publicado em 31 de dezembro. O futuro do militar, porém, ficou encaminhado — e de uma forma não muito agradável para o novo governo. Com a bênção do então presidente, o comando do Exército o designou para comandar nada menos que o 1º Batalhão de Ações e Comandos, o 1º BAC, uma das unidades do prestigiado e temido Comando de Operações Especiais, com sede em Goiânia.

O batalhão reúne as mais bem treinadas tropas de elite do Exército e seus homens têm por atribuição, por exemplo, realizar operações de emergência para debelar ameaças a Brasília e, em eventuais situações de guerra, cumprir missões delicadas contra alvos tidos como difíceis. Textos publicados pelo próprio Exército dizem que cabe às tropas do BAC atuar em “ações contra alvos de alto valor” em “áreas hostis ou sob controle do inimigo”.

Mais cedo ou mais tarde, a designação de Cid para o posto será motivo de mais dor de cabeça para o novo governo na delicada relação com o alto comando do Exército — a quem, teoricamente, caberia uma eventual decisão capaz de reverter o ato assinado no apagar das luzes do governo Bolsonaro. Depois das invasões das sedes dos poderes, em 8 de janeiro, nas quais Lula já disse abertamente ter visto o dedo de militares, manter uma unidade tão sensível sob comando de um oficial sabidamente bolsonarista e reconhecidamente radical certamente será um problema para o atual chefe do Planalto.

Indagado pela coluna, o Exército informou nesta quinta-feira que a designação de Mauro Cid está mantida. O staff de imprensa da corporação disse não saber, porém, a data em que ele assumirá o comando do batalhão. O tenente-coronel viajou com Jair Bolsonaro para a Flórida, nos Estados Unidos, nos últimos dias de 2022.

“É PESSOAL”, DIZ AMIGA DE MICHELLE

A coluna tentou por mais de uma vez ouvir Rosimary, a amiga que cedia um cartão para Michelle Bolsonaro. Ela se negou a falar sobre o assunto. Primeiro, disse que estava em um almoço. “Bom, querido, quando eu for (informada da investigação) aí eu falo sobre o assunto, tá bom? Mas nesse momento eu não posso falar. Estou em almoço, estou com meu chefe aqui em reunião”, disse (ouça abaixo).

Horas depois, abordada novamente, desta vez no Senado, ela respondeu o seguinte: “É um assunto tão pessoal… Não quero falar. Até porque eu acho que não preciso dar satisfação para entrevista. É uma coisa minha, pessoal. (…) Eu não tô sabendo (da investigação), não, mas se tiver (sic) eu já vou resolver com os advogados, né? (…) Eu não quero tocar nesse assunto que não seja com advogado”.

A coluna tentou contato com Jair e Michelle Bolsonaro e com o tenente-coronel Mauro Cid nesta sexta-feira, sem sucesso.

Interlocutores do ex-presidente e da ex-primeira-dama disseram que Cid precisava lidar com dinheiro em espécie porque muitas das despesas, especialmente as que envolviam a primeira-dama, “tinham valor ínfimo” e precisavam ser pagas diretamente a fornecedores que “prestavam serviços informalmente”.

Apesar de admitirem haver “confusão” com os valores em espécie, esses mesmos interlocutores negaram que contas pessoais do clã e de parentes de Michelle fossem pagas com os recursos que eram provenientes de saques corporativos do governo.

Não houve resposta sobre o pagamento dos boletos, especialmente os do cartão que era cedido pela amiga de Michelle Bolsonaro, e das contas de familiares da ex-primeira-dama. Tampouco houve explicação sobre as razões pelas quais os tais “serviços de fornecedores”, por exemplo, não poderiam ser quitados por transferência bancária.

RODRIGO RANGEL E SARAH TEÓFILO, originalmente para o Metrópoles, em 20.01.23