segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Um lúmpen de extrema direita

O que aconteceu em Brasília nos fala de uma espécie de extrema-direita que, com um discurso de lei e ordem, dinamita o quadro institucional e gera imagens que rimam com a anarquia pura e simples.

Apoiadores de Bolsonaro durante o assalto ao Congresso, ao STF e ao Planalto neste domingo. (Adriano Machado, Reuters)

A era Bolsonaro havia terminado sem um fim verdadeiro. O presidente não organizou a esperada rebelião contra o parecer das urnas que deu a vitória a Luiz Inácio Lula da Silva por margem estreita, mas também não entregou a faixa presidencial “de forma republicana”. Ao contrário, o ex-presidente brasileiro apareceu em uma foto curiosa em Orlando comendo frango frito em uma famosa rede americana enquanto Lula se preparava para assumir seu terceiro mandato. Mas, ao final, Bolsonaro – que insistia em encarnar uma espécie de trumpismo sul-americano – teve sua versão brasileira do assalto ao Capitólio, dois anos depois daquele “ato”.

Além dos detalhes, que serão revelados, sobre quem fretou os ônibus, como foi organizada a mobilização, quais os recursos logísticos disponíveis e como operou o laxismo policial/militar inicial, a verdade é que o que aconteceu em Brasília nos fala de uma espécie de extrema-direita que, com um discurso de "lei e ordem", faz explodir as actuais instituições formais e informais e gera imagens que rimam com a anarquia pura e simples. Uma extrema direita “lumpen” que teve no bolsonarismo uma de suas expressões máximas. Esses direitos podem acabar sendo -ao contrário da opinião de muitos progressistas- mais uma ameaça do que uma garantia para o "sistema". A emoção insurrecional, o estranho folclore, a conspiração, substituem qualquer cálculo político. O que aconteceu no Brasil se encaixa em um clima da época,

Em 2020, vimos tentativas de tomada do Parlamento alemão por grupos ultra (o governo considerou esses eventos um ataque insuportável ao coração da democracia). Durante a violenta confusão, cânticos de direita foram entoados e bandeiras do antigo Reich alemão, faixas com o Q de QAnon (uma famosa plataforma de conspiração) e emblemas neonazistas foram exibidos, causando uma forte onda de indignação na opinião pública democrática alemã . E, recentemente, os serviços de segurança alemães fecharam uma rede de extrema-direita que planejava um golpe extravagante. Na Itália, grupos antivacinas infiltrados pela extrema direita tentaram tomar o Palazzo Chigi, sede do governo, em 2021. "Esta noite tomaremos Roma", ameaçou então o grupo neofascista Forza Nuova.

Em tom um pouco diferente, o fracassado ataque -quase- contra a vice-presidente argentina Cristina Kirchner , cometido por integrantes de uma quadrilha de vendedores de açúcar em flocos, mostrou vínculos entre haters e grupos políticos informais organizados por meio do WhatsApp, imersos em curiosas formas de radicalização.

Será necessário ver, num futuro próximo, como operam as tendências opostas à normalização/demonização e à ruptura do status quo que se aninham na extrema direita do século XXI; e a dinâmica de muitas forças desencadeadas que são difíceis de controlar.

No caso brasileiro, as imagens de Brasília parecem um bumerangue do bolsonarismo. O fato de a principal mídia brasileira ter se referido aos bolsonaristas radicais como terroristas mostra o quanto o país mudou desde os dias da prisão de Lula aos de sua volta triunfante ao poder ( O Estado de S. Paulo sustentou em editorial que "os golpistas se rebelam e aqueles que os apoiam devem ser punidos de forma exemplar"). E essa mudança operou graças ao próprio Bolsonaro. Com seu estilo vulgar de extrema direita de gangue, que, ao invés de construir um regime autoritário, degradava ad infinitumvida cívica, quebrou suas pontes com parte das elites e acabou isolando o Brasil do mundo, conseguiu que grande parte dos grupos de poder acabassem "anistiando" Lula após tê-lo demonizado impiedosamente. Enquanto isso, negociou uma frente democrática "até doer" para tirar Bolsonaro do poder.

O problema, no caso do Brasil, é que o bolsonarismo obteve quase a metade dos votos e deixou um rastro de lunáticos em ação. Aliás, hoje em dia vimos pessoas invocando o apoio de extraterrestres com as lanternas dos celulares voltadas para o céu, acampamentos na porta dos quartéis pedindo golpe, apelos à guerra santa... e até quem negou que Lula fosse o presidente e destacou que o general Augusto Heleno já estava no comando. Que o Brasil passa por grupos de poder locais, forças de segurança, igrejas, setores do agronegócio... e neste 8 de janeiro apareceu uma amostra disso vandalizando instituições como o Congresso; um Congresso onde os bolsonaristas terão uma grande representação.

O editor-chefe da revista Piauí resumiu a tensão atual: "Nunca foi tão fácil e nunca foi tão difícil organizar um golpe". Os golpistas conseguiram, aparentemente com a aquiescência de setores das forças de segurança, entrar em diversas instituições; mas um golpe é outra coisa. Precisamente o que surpreende neste novo tipo de movimento insurrecional, que tem como expressão máxima o assalto ao Capitólio, é a sua extrema incompetência estratégica. Algo que pode nos tranquilizar e nos inquietar ao mesmo tempo.

Pablo Stefafoni, originalmente, do Rio de Janeiro para o EL PAÍS, em 08.01.23, às 22:32 hs.

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