segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A democracia militante

Na ascensão de Hitler houve uma extrema complacência em nome de um formalismo jurídico ancorado na defesa das liberdades

Situações de exceção exigem medidas excepcionais. Não se combate a violência, especialmente de cunho autoritário ou totalitário, com instrumentos paliativos, como se se tratasse de um mero acidente de percurso de pessoas inocentes ou supostamente bem-intencionadas. A defesa da democracia requer atitudes firmes, que não compactuem com o crime, a desordem e, enfim, com a sublevação ou insurreição. Houve sim uma tentativa de golpe conduzida pela extrema direita, pelo bolsonarismo e seus apoiadores, que se insurgiram contra o resultado das eleições, o que vale dizer contra a própria Constituição.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tomou as medidas acertadas dada a gravidade da crise institucional que se armou. Não compactuou com a violência e chamou à responsabilidade os agentes políticos e policiais, assim como apoiadores financeiros, que sustentaram a tentativa de subversão das instituições. Alguns o fizeram por convicção, outros por omissão, outros ainda por mero oportunismo. Não importa. Puseram assim a democracia em risco, sob o manto de uma suposta tolerância com as “manifestações”.

Na ascensão de Adolf Hitler ao poder, houve uma extrema complacência com um projeto liberticida que já mostrava toda sua face aterradora, e o fizeram em nome de um formalismo jurídico ancorado na defesa das liberdades. Os liberticidas foram sustentados pelos defensores das liberdades e do Estado Democrático de Direito. A democracia marcha para a sua extinção quando se curva a formalidades carentes de substância, que assumem, então, a função de desintegração das instituições republicanas. Projetos autoritários e totalitários frequentemente se utilizam de instrumentos democráticos para minar a própria democracia.

O roteiro estava claro, só não viu aquele que não quis ver. Ato primeiro, a suposta defesa das liberdades e da Constituição, o jogar dentro daquelas quatro linhas, quando todo o jogo era já instrumentalizado de fora. A defesa das liberdades se delineava como liberdade para transgredir. Ato segundo, manifestações ditas democráticas em todo o País e, em particular, no entorno dos quartéis, como se fosse próprio da democracia acolher discursos cujo único objetivo consiste em destruir essa mesma democracia. Um regime que transige com seus fundamentos cessa progressivamente de existir. Ato terceiro, sentindo-se suficientemente fortes e apoiados, os “manifestantes” abandonaram a sua máscara democrática e assumiram a sua verdadeira natureza autoritária e golpista. Vandalizaram e destruíram os símbolos mesmos da República: o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

Cabiam sim medidas excepcionais, como as tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes e pelo presidente Lula da Silva. Manifestantes/golpistas devem ser sim presos e julgados, não podendo haver aqui nenhuma tergiversação. Se isso não for feito, dá-se ainda mais força para que tais atos se repitam. Ou se para agora, ou o futuro se tornará ainda mais incerto. Que mais de mil pessoas sejam presas, é da natureza da defesa democrática, fundada na responsabilização desses supostos “revolucionários”, boa parte deles já solta uma vez identificados, sobretudo crianças e idosos. A analogia com campos de concentração é literalmente grotesca. Alguém foi morto? Alguém foi torturado? Quem são esses pais e mães que levam seus filhos a manifestações golpistas? Não deveriam ser eles também responsabilizados? Quando a polícia cumpre o seu dever, procura-se denunciá-la.

Os dirigentes do Distrito Federal, governador, secretário de Segurança Pública e comandantes militares, foram responsabilizados. É propriamente intolerável que golpistas tenham sido protegidos, se não apoiados, pela Polícia Militar. Responsabilidades devem ser apuradas e, em particular, o governador deveria ser reinstituído em suas funções se nada for provado contra ele. Dito isso, não se deve tomá-los como bodes expiatórios, pois a responsabilidade é compartilhada, pois, dentre outras questões, convém destacar: onde estava o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável pelos palácios presidenciais? Por que não reforçou ou chamou o Batalhão da Guarda Presidencial antes de a violência ganhar aquela proporção? Onde estava a Agência Brasileira de Inteligência (Abin)? Onde estava a Polícia Rodoviária Federal (PRF) quando ônibus de todo o País levavam os golpistas para Brasília?

Como muito bem lembrado por Marcelo Godoy, em artigo neste jornal, citando Karl Loewenstein, a propósito de seu texto clássico Democracia militante e direitos fundamentais, publicado em 1937, a defesa da democracia não pode transigir com a destruição de seus fundamentos utilizando-se de meios democráticos e de mero formalismo jurídico. Judeu alemão, teve ele de fugir de sua terra natal, refugiando-se nos EUA, onde se tornou professor universitário e consultor do Departamento de Estado. Sob os auspícios deste, escreveu dois livros que merecem ser lidos para melhor compreendermos o Brasil atual: Brasil sob Vargas e A Alemanha de Hitler.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.01.23

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