segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Atuação de Alexandre de Moraes põe à prova teoria da 'democracia militante'

Tese foi proposta por alemão em 1937; para estudiosos, STF e TSE terão que rever ações de 2022 em momento de normalidade

O presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, em reunião com procuradores para tratar de protestos antidemocráticos - Pedro Ladeira - 8.nov.2022/Folhapress

Pouco discutido no Brasil até dois anos atrás, um princípio idealizado na Alemanha há mais de oito décadas tem sido usado no meio jurídico para analisar as ações dos tribunais superiores, em especial do ministro Alexandre de Moraes, diante dos ataques às instituições e ao sistema eleitoral no Brasil.

Vista como necessária por muitos, a teoria da "democracia militante" também é avaliada com receio por outros, pelo risco de servir de pretexto para eventuais abusos.

Exposta por Karl Loewenstein (1891-1973) em texto de 1937, ela defende que o sistema democrático tenha mecanismos de defesa para garantir sua própria sobrevivência —entre eles, a restrição de direitos políticos de pessoas que atentem contra a democracia e a repressão a atividades que façam o mesmo.

Por trás da ideia, criada no contexto da ascensão do nazismo e do fascismo na Europa, está o entendimento de que a própria democracia, por excesso de tolerância, viabiliza a chegada ao poder de líderes que acabam por miná-la.

Mais de 80 anos após a publicação do texto, a ideia de democracia militante passou a aparecer no debate público brasileiro diante da reação do Judiciário aos ataques do presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores a outros Poderes e ao sistema eleitoral.

Entre as ações do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que suscitaram a comparação com a teoria alemã, estão os inquéritos das milícias digitais e dos atos antidemocráticos, as determinações de bloqueios de contas em redes sociais e a ampliação dos poderes do tribunal eleitoral no combate à desinformação.

A teoria de Loewenstein já foi citada explicitamente pelos ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes nos últimos anos. Não se tem notícia de que Moraes, conhecedor da obra do alemão, tenha feito o mesmo.

O fato é que, conscientemente ou não, ele está claramente aplicando o princípio da democracia militante ao contexto atual, diz João Gabriel Madeira Pontes, autor de "Democracia militante em tempos de crise" (ed. Lumen Juris, 2020), fruto de seu mestrado em direito público pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Pontes tem críticas pontuais a decisões que considera desproporcionais, como a operação que mirou empresários que se manifestaram a favor de um golpe em um grupo de WhatsApp. Ainda assim, de forma geral ele avalia como adequadas as ações de Moraes.

Para o advogado, a democracia no país estaria em situação muito mais delicada sem inquéritos como o das milícias digitais e dos atos antidemocráticos. Mas "como o Supremo Tribunal Federal vai aplicar esses precedentes num cenário de normalidade é uma preocupação legítima", pondera.

Em sua opinião, o STF terá que fazer esforço no futuro de requalificar esses precedentes como "jurisprudência de crise", para evitar que sirvam de justificativa para abusos.

Sua principal preocupação é com restrições à liberdade de expressão.

"Princípios constitucionais não são ponderados no vácuo. Entre liberdade de expressão e sobrevivência da democracia, a democracia ganha mais peso na ponderação", diz. "Mas, em período de normalidade, é preciso muito cuidado com a regulação de discurso."

Professor de direito penal da Universidade Humboldt, no país berço da teoria da democracia militante, o brasileiro Alaor Leite avalia que o STF, o TSE e Moraes, em particular, aplicaram uma versão bem brasileira do conceito, que ele prefere chamar de "democracia combativa".

A primeira especificidade do caso brasileiro, afirma, é que o princípio foi usado como defesa a ataques e ameaças de alguém que já estava no poder e não como originalmente pensado, para prevenir a ascensão de um autocrata.

Outra singularidade é o fato de as decisões do Judiciário terem sido tomadas em meio a um processo eleitoral em curso.

Até por isso, ele afirma que ainda é cedo para definir se elas foram de todo legítimas ou não, uma vez que as manifestações de caráter golpista ainda ocorrem, bem como questionamentos ao processo eleitoral, e ainda não se sabe tudo o que está por trás desse movimento, como financiadores e o papel de autoridades.

"A democracia alemã foi ao inferno e voltou com uma mensagem de nunca mais repetir o que aconteceu, reconstruir as instituições e conjugar a proteção com os pilares do Estado de Direito", diz. "No Brasil, estamos assistindo a uma democracia combativa ser construída diante de uma ameaça real ainda em curso", diz.

Isso não o impede de afirmar sua concordância com a necessidade da aplicação de princípios da democracia militante no contexto atual.

Entre as razões para isso, ele cita as ameaças de Bolsonaro ao sistema de votação, a tentativa de tumultuar o processo com o duvidoso monitoramento das inserções de rádio na campanha e, em especial, a atuação da Polícia Rodoviária Federal no dia da eleição, com abordagens a ônibus concentradas na região onde o adversário do presidente era o favorito.

Necessária ou não, a teoria da democracia militante também é vista como perigosa por alguns estudiosos.

Em artigo de 2017, Carlo Accetti e Ian Zuckerman, professores respectivamente da City University of New York (Cuny) e da Universidade Stanford, nos EUA, argumentam que a definição de quem são os inimigos da democracia é por demais arbitrária, e que restringir a liberdade deles dá margem a autoritarismo e não a mais democracia.

"Nossa democracia não milita", escreveu em maio do ano passado o colunista da Folha Demétrio Magnoli ao criticar a aplicação da teoria no Brasil e apontar riscos na então recém-aprovada legislação dos crimes contra o Estado de Direito, que substituiu a Lei de Segurança Nacional.

É por causa do risco de que a democracia militante possa abrir margem para abusos que mesmo acadêmicos que concordam com seu uso defendem que o país reexamine em algum momento a jurisprudência criada na atual conjuntura.

Para Leite, alguns entendimentos vieram para ficar, como a limitação da imunidade parlamentar entendida no caso Daniel Silveira e o veto a portar armas perto de seções eleitorais.

Já as questões relativas à remoção de conteúdo em redes sociais, em sua opinião, devem ser de preferência objeto de um arcabouço legal mais claro a ser definido pelo Congresso.

Outra medida para evitar concentração de poder no Judiciário, sugerida por Pontes, é estabelecer para a Procuradoria-Geral da República mesma regra que vale para ministérios públicos estaduais: indicações de arquivamento são analisadas por um conselho superior. Ela evitaria a inação do órgão, vista durante o processo eleitoral.

Além disso, eventual interposição de quarentena para nomeação do procurador-geral como ministro do STF poderia reduzir o incentivo para uma atuação alinhada com o governo por razões não republicanas.

Ex-subprocuradora-geral da República e defensora da aplicação da democracia militante, Deborah Duprat também avalia ser necessário, no caso de volta à normalidade, um reexame das decisões proferidas no atual contexto, para que sejam usadas como justificativa de precedente para abusos.

"A noção de precedente pressupõe um ambiente que se reproduz", afirma.

Bolsonaristas promovem atos antidemocráticos em SP, Rio e Brasília

Angela Pinho para a Folha de S. Paulo (edição impressa), 21.11.22

Entenda a escalada golpista de Bolsonaro e suas possíveis consequências

Especialistas veem banalização nas ameaças, sem reação à altura dos Poderes, e avaliam que é preciso levá-las a sério


No começo, em frente ao Forte Apache, o QG do Exército, em Brasília, discursando contra o Centrão. À sua frente, os primeiros ensaios dos atos antidemocráticos.

Apesar de ser conhecido o modus operandi do presidente Jair Bolsonaro, que radicaliza seu discurso sempre que se vê sob pressão, suas repetidas declarações de ameaças à realização das eleições de 2022 têm gerado cada vez mais preocupação de uma tentativa de golpe.

Especialistas em direito e ciências sociais consideram negativa a banalização e a escalada deste tipo de discurso golpista sem que haja uma reação à altura por parte das demais instituições democráticas.

Por um lado, há incerteza quanto a se Bolsonaro teria ou não apoio suficiente para ser bem-sucedido em eventual tentativa de se manter no poder ao arrepio da lei.

Por outro lado, torna-se cada vez mais próxima da unanimidade a avaliação de que é preciso levar a sério o risco de que, em um cenário desfavorável, ele saia da retórica e chegue às vias de fato.

Entenda a escalada do discurso de Bolsonaro e como especialistas avaliam a situação.

Relembre dias de fúria de Bolsonaro

Quais falas recentes subiram a temperatura da crise? Pressionado pela CPI da Covid, pelas ruas e por pesquisas que mostram aumento de sua reprovação no Planalto e derrota no cenário eleitoral de 2022, Bolsonaro subiu a aposta e intensificou seu discurso golpista.

Na última sexta-feira (9), além de atacar diretamente o presidente do TSE, a quem chamou de "idiota" e "imbecil", Bolsonaro disse que a fraude está na corte eleitoral e, em tom de ameaça, acrescentou que poderia não haver eleições em 2022.

"Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar, no voto auditável e confiável. Dessa forma [atual], corremos o risco de não termos eleição no ano que vem."

No dia anterior, o mandatário já havia feito uma ameaça semelhante: "Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições".

Diretor da Faculdade de Direito da USP e professor de direito do Estado, Floriano de Azevedo Marques Neto afirma que a frase não pode ser tolerada.

“Uma fala como essa é absolutamente inaceitável vinda de um chefe de um dos Poderes, que jura à Constituição e jura, portanto, assegurar a permanência do Estado de Direito. É uma declaração sem precedentes, tanto do ponto de vista da sua inconsistência, quanto da sua gravidade”, diz.

Falas desacreditando o sistema eleitoral já faziam parte da retórica do presidente desde 2018, quando dizia ter sido eleito no 1º turno, declaração que repetiria outra vezes, mas sem nunca apresentar provas. Em janeiro deste ano, o presidente afirmou que sem o voto impresso, o Brasil poderia viver, em 2022, algo pior do que os Estados Unidos —onde apoiadores insuflados por Trump invadiram o Congresso.

Qual é a discussão atual sobre o voto impresso? Em maio deste ano, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), instalou uma comissão especial para debater uma proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre o tema.

Na prática, não se trata do voto impresso diretamente, mas de um comprovante do voto dado na urna eletrônica e com o qual o eleitor não poderia ter contato. O comprovante impresso seria uma forma extra de auditoria (as urnas eletrônicas já são auditadas em todas as eleições).

Independentemente do mérito da proposta, implementá-la em 100% das urnas até as eleições de 2022 já seria pouco provável, devido à complexidade da tarefa. Além disso, é improvável que a PEC avance na Câmara e no Senado.

Dado o contexto atual e as diferentes medidas de auditoria existentes na urna eletrônica, além da inexistência de indícios de fraudes, especialistas veem a discussão da pauta neste momento como meio de jogar combustível na movimentação golpista de Bolsonaro.

O presidente, insistindo em afirmar que houve fraudes em eleições anteriores, considera a medida a única forma de ter no país o que chama de eleições limpas.

Ele, no entanto, não se utiliza dos meios institucionais para questionar as eleições, seja apresentando as supostas provas que afirma ter ou por um pedido de auditoria.

Qual o histórico de falas de Bolsonaro sobre golpe e democracia? Não é de hoje que o presidente flerta com o golpismo ou faz declarações contrárias à democracia. Como governante, ele mantém este tipo de discurso.

"Alguns acham que eu posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E apesar de tudo eu represento a democracia no Brasil”, afirmou em uma formatura de cadetes em fevereiro deste ano.

Em 2020, Bolsonaro participou de manifestações que defendiam a intervenção militar.

O então chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, chegou a dar uma entrevista à revista Veja em que negou a possibilidade de um golpe, mas disse para não “esticar a corda".

No passado, em uma entrevista em 1999 quando ainda era deputado, Bolsonaro disse expressamente que, se fosse presidente, fecharia o Congresso.

"Não há menor dúvida, daria golpe no mesmo dia! Não funciona! E tenho certeza de que pelo menos 90% da população ia fazer festa, ia bater palma, porque não funciona", afirmou.

Quais outros elementos têm acendido um alerta? Um questionamento central e que já vinha sendo feito é o de se as Forças Armadas dariam ou não sustentação a uma eventual tentativa de golpe por parte de Bolsonaro.

Se a avaliação geral vinha sendo de que elas não ultrapassariam tal linha —mesmo estando fortemente presentes na composição do governo— a nota emitida contra o presidente da CPI, assinada pelos comandantes das três Forças e pelo ministro da Defesa, seguida pela entrevista do comandante da Aeronáutica ao jornal O Globo foram vistas como ameaças.

Para o presidente da ABED (Associação Brasileira de Estudos de Defesa) e professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Eduardo Munhoz Svartman, o episódio é bastante grave.

“Não é admissível numa democracia que o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas emitam ameaças dessa natureza. Isso não é admissível. Em outros países eles seriam exonerados imediatamente”.

O tom crítico da nota à atuação da CPI, mas sem menção às suspeitas de corrupção em negociações de vacinas envolvendo militares, chama atenção por si só, no entanto, ela ganha outros tons dado o contexto em que os autores da carta assumiram seus postos.

Em março, em atitude inédita, os então comandantes das Forças Armadas pediram renúncia conjunta, um dia depois de Bolsonaro demitir o general Fernando Azevedo do posto de ministro da Defesa.

A saída teria ocorrido justamente por Azevedo se contrapor à pressão de Bolsonaro, que queria apoio político das Forças, inclusive em relação a medidas de governadores no combate à pandemia.

Quais as ameaças de Bolsonaro envolvendo a pandemia? Bolsonaro por diversas vezes fez discursos ameaçando baixar um decreto e fazendo inclusive menção a estado de sítio, ainda que tal medida não comporte nenhuma comparação com as medidas de isolamento de governadores.

Em abril, durante entrevista em Manaus, afirmou: “O nosso Exército, as nossas Forças Armadas, se precisar iremos para a rua não para manter o povo dentro de casa, mas para reestabelecer todo o artigo 5º da Constituição. E se eu decretar isso vai ser cumprido".

Como explica a professora de direito Heloisa Fernandes Câmara, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), as situações para as quais Bolsonaro ameaçava utilizar instrumentos excepcionais da Constituição não correspondem àquelas previstas na lei.

Quais seriam possiveis caminhos de um golpe? É difícil prever o que poderia levar a uma quebra do Estado de Democrático de Direito, considerando que os caminhos são diversos.

“Golpe é ruptura do Estado Democrático. Ela pode se dar tanto do ponto de vista das forças militares nas ruas, de uma crescente corrosão das liberdades democráticas ou por uma intervenção parlamentar, ou do próprio presidente da República, baixando uma norma dizendo que não tem mais eleição”, diz Marques Neto (USP).

Segundo Heloisa (UFPR), dificilmente o presidente se valeria das medidas excepcionais da Constituição, como o estado de sítio e estado de defesa, para 2022, já que ambas dependem da aprovação do Congresso, e ela não vê os congressistas aprovando tal instrumento com o fim de impedir as eleições.

A professora afirma que, se o presidente tivesse de fato apoio suficiente para dar um golpe, não faria ameaças e alardes toda vez que está em baixa nas pesquisas, mas mesmo assim considera que o teor das falas não pode ser ignorado.

"É não achar que não é possível, mas tampouco considerar que tem mais força do que tem."

Bolsonaro em atos antidemocráticos em Brasília

Bolsonaro conseguiria colocar em prática seu plano golpista? Entre os especialistas entrevistados, é consenso de que as ameaças de Bolsonaro não podem ser tratadas como mera retórica. Apesar disso, eles questionam se Bolsonaro teria apoio suficiente para implementar um golpe e se manter no poder.

A organização das eleições é tarefa conferida pela Constituição à Justiça Eleitoral, não cabendo ao presidente decidir se elas serão ou não realizadas.

O professor de direito público da FGV-Rio Wallace Corbo aponta, por exemplo, que, no cenário hipotético de o presidente buscar anular os resultados das eleições por meio de um decreto ou de algum outro ato normativo, caberia aos demais Poderes agir.

"Se o presidente tomar qualquer ato que implique um exacerbamento das suas competências, o Congresso tem a função de fiscalizar e controlar o presidente."

Ele vê como fator importante a queda de popularidade de Bolsonaro e ressalta ainda a importância da manifestação popular, de modo a demonstrar o custo que as instituições, como o Congresso e as Forças Armadas, estariam assumindo ao apoiar um golpe.

"A única forma de garantir que uma decisão do STF ou do Congresso não vai ser desrespeitada, de garantir que os freios e contrapesos da nossa Constituição —que são os controles sobre um presidente— vão funcionar, isso só se garante numa democracia com o apoio do povo."

Considerando o golpe tradicional, com apoio das Forças Armadas, a questão é justamente se elas estariam a seu lado.

Para Svartman (Abed), ainda que parte das Forças Armadas estejam comprometidas com a retórica do presidente, há uma parcela de oficiais jovens preocupada com a crescente politização e insubordinação nas Forças Armadas e nas de segurança pública nos estados, o que torna o cenário preocupante.

Ele ressalta que, embora o presidente venha perdendo popularidade na população em geral, é preciso lembrar que Bolsonaro tem muitos apoiadores convictos que estão nas forças policiais e nas Forças Armadas e podem optar "por agir ou deixar de agir", a exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos.

Em relação às polícias, os sinais de alerta, no país, estão os episódios cada vez mais recorrentes de quebra da hierarquia e de politização.

Como sintetizou reportagem recente da Folha, predomina, entre cientistas políticos e estudiosos da segurança pública, a ideia de que hoje não existiria articulação nacional para uma insurreição orquestrada pelas polícias.

Apesar disso, a avaliação é de que, ainda que elas não embarquem como um todo em uma aventura disruptiva, episódios isolados de insubordinação podem ocorrer e provocar tumultos, confusão e mortes.

Sabendo que Bolsonaro tem pretensões de dar um golpe, o que é possível fazer? Entrevistados consideram que as instituições precisam levar a sério as ameaças de Bolsonaro. Uma das reações seria o próprio impeachment.

Na avaliação da socióloga e professora da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) Fabiana Luci de Oliveira, do ponto de vista institucional, o estrago já foi feito em boa medida, dada a estratégia de Bolsonaro de deslegitimar as instituições democráticas.

Para ela, é preciso que as instituições reajam para além do discurso. "Me parece que a gente chegou a um ponto em que a retórica não vai segurar essa pressão que o presidente tem feito."

Após a subida de tom de Bolsonaro, a fala mais contudente veio do presidente do TSE que disse que qualquer tentativa de impedir a realização de eleições em 2022 “configura crime de responsabilidade”.

Cabe unicamente a Arthur Lira criar uma comissão para analisar um dos mais de 120 pedidos de impeachment que esperam em sua gaveta. O presidente da Câmara, no entanto, tem feito declarações sinalizando que não deve agir nesse sentido.

O CAMINHO DO IMPEACHMENT

O presidente da Câmara dos Deputados é o responsável por analisar pedidos de impeachment do presidente da República e encaminhá-los

O atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é aliado de Jair Bolsonaro. Ele pode decidir sozinho o destino dos pedidos e não tem prazo para fazê-lo

Nos casos encaminhados, o mérito da denúncia deve ser analisado por uma comissão especial e depois pelo plenário da Câmara. São necessários os votos de pelo menos 342 dos 513 deputados para autorizar o Senado a abrir o processo

Iniciado o processo pelo Senado, o presidente é afastado do cargo até a conclusão do julgamento e é substituído pelo vice. Se for condenado por pelo menos 54 dos 81 senadores, perde o mandato

Os sete presidentes eleitos após a redemocratização do país foram alvo de pedidos de impeachment. Dois foram processados e afastados: Fernando Collor (1992), que renunciou antes da decisão final do Senado, e Dilma Rousseff (2016)

Renata Galf e Géssica Brandino, de São Paulo e Mogi das Cruzes (SP) para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 14.07.21.

domingo, 20 de novembro de 2022

Liberdade de expressão não é vale-tudo

Após quatro anos de bolsonarismo, é preciso recompor noção e exercício da liberdade de expressão. Há uma ideia equivocada sobre a palavra, como se fosse território da impunidade

Fanáticos de Bolsonaro nas portas dos quartéis pedem ditadura militar

Em 1988, o País restabeleceu, por meio da Constituição, a liberdade de expressão, de imprensa e de opinião. A censura da ditadura militar – definindo o que podia e o que não podia ser publicado, exposto ou escrito – ficava, assim, definitivamente extinta. Para impedir eventuais retrocessos no futuro, inseriu-se no texto constitucional uma cláusula pétrea sobre o tema: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.

Dessa forma, no Estado brasileiro, sempre será “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5.º, IV), como sempre será “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5.º, IX). A garantia dessas liberdades de forma permanente é fonte de paz e tranquilidade. Que cada um possa se expressar, comunicando aos outros o que acredita, é aspiração humana fundamental: é parte essencial da dignidade humana, é elemento necessário do regime democrático.

Mas, justamente para que todos possam exercer suas liberdades fundamentais, a liberdade de expressão não é uma autorização para dizer impunemente o que bem entender. Há limites. A Constituição assegura, por exemplo, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” – ou seja, a liberdade de expressão não dá direito a ofender. Por isso, o Código Penal prevê os crimes de calúnia, injúria e difamação. Todos têm direito a expressar sua opinião política, mas ninguém tem direito a caluniar, injuriar ou difamar quem quer que seja.

Outros exemplos de crimes previstos na lei penal envolvendo a comunicação são a injúria racial, a incitação ao crime, a comunicação falsa de crime e o ultraje ao culto religioso. Nada disso significa reduzir a liberdade de expressão. É antes o reconhecimento de que a palavra é importante e produz efeitos.

Todo esse arcabouço jurídico sobre a liberdade de expressão – suas garantias, seus limites e suas consequências – vem sofrendo um intenso e, em certa medida, inédito ataque nos últimos anos. A ameaça não é fruto de tentativas de emenda constitucional, inviáveis de prosperar em função da cláusula pétrea. O ataque é mais sutil e mais perigoso. Ele decorre de uma compreensão equivocada da ideia de liberdade de expressão, como se a palavra fosse território sem lei, isto é, como se houvesse um direito a falar o que bem entender, em um contexto de irrestrita irresponsabilidade.

O quadro atual é desafiador. Essa compreensão equivocada da liberdade de expressão não está mais restrita a pequenos grupos extremistas. Ela se difundiu. Fez-se cultura. A própria expansão da internet e das redes sociais, com a oferta de novos espaços de expressão, gerando novas percepções de liberdade, contribuiu para reforçar a ideia de que a palavra estaria imune não apenas a um controle prévio, mas à própria lei.

Tudo isso foi intensificado por Jair Bolsonaro ao longo de seus quatro anos na Presidência da República, ao transformar essa equivocada compreensão da liberdade de expressão em bandeira eleitoral. Não haveria limites, tampouco parâmetros objetivos. Sob o pretexto de liberdade, estaria assegurada ampla impunidade. Inúmeros, os exemplos envolvem desde negação de dados científicos e insinuações criminosas contra inimigos políticos até desinformação contra o regime democrático e o sistema de votação.

Agora, o País tem pela frente o desafio de resgatar a liberdade de expressão em sua dimensão de garantia e direito de todos. Ela não é instrumento de ataque de alguns que se acham mais espertos ou violentos. Nessa tarefa de recompor a noção e o exercício dessa garantia fundamental, o Poder Judiciário tem um papel especial, seja para evitar a impunidade de quem cometeu crimes, seja para ater-se aos limites de sua jurisdição – sempre lembrando que ao Estado não cabe organizar o debate público ou ser árbitro das ideias presentes numa sociedade. A liberdade de expressão é para valer, sem exceções.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 20.11.22, às 03h00

A democracia como desafio global

Diante de nós está a evidente tarefa de desagregar o consenso nacional-populista, esvaziando a base de massas do autoritarismo.

Fanáticos de Trump invadem e depredam a séde do Congresso Nacional

Menos desglobalizada do que parece, a política de diferentes países continua atravessada por riscos, tensões e até conjunturas críticas que podem ser comparadas, como as que, nas últimas semanas, marcaram as duas maiores democracias das Américas. Por aqui nos livramos da ameaça do segundo mandato do governante nacional-populista, quando costuma tomar forma não propriamente uma tradicional ditadura militar, mas um regime de controle estrito das alavancas do Estado e das instâncias da sociedade civil. Mais ao norte, nos Estados Unidos, desmentindo previsões sombrias, Joe Biden e seu partido ganharam tempo precioso até as eleições de 2024, livrando-se o presidente do destino que se reserva aos lame ducks, os governantes enfraquecidos em final de mandato.

Trata-se de dois países cujas circunstâncias, segundo insight do cientista político Jairo Nicolau, estão no ponto máximo de proximidade, a começar pela radical divisão da sociedade – e dos eleitores – e pela presença de atores com vocação subversiva. Em ambos os casos, líderes de extrema direita, com séquito de massas e traços de um fascismo reformulado, ou de um pós-fascismo, tomaram o lugar da direita constitucional, ameaçando sem nenhum pudor o mecanismo da alternância. Voto eletrônico ou impresso, eleições centralizadas ou descentralizadas, nada disso importa. O script é monotonamente previsível, os resultados só valem se o autocrata vencer.

Em cada um dos países ocorreram eleições diversas. Deixando de lado governos e Legislativos estaduais, observemos que a tarefa do presidente Biden consistia, essencialmente, em reduzir danos na Câmara dos Deputados e no Senado. Num tempo de antipolítica ou, em outras palavras, de política pretensamente “antissistema”, Biden teve a coragem de colocar no seu núcleo discursivo o tema da democracia. Coragem cívica, havemos de convir.

Ainda que sob pressão, a democracia de Biden não é frágil nem incapaz de iniciativas audaciosas, bastando ver o enfrentamento da crise econômica, do desafio climático ou de tragédias contemporâneas, como a selvagem agressão à Ucrânia. O modelo de Biden será – por ora e por algum tempo mais – inatingível, mas pode-se entrever a inspiração rooseveltiana que mostrou ser possível compatibilizar regulação progressista dos mercados e requisitos da sociedade aberta.

Se o dinamismo norte-americano vem do centro político – e não da esquerda de Bernie Sanders ou de versões mais novas, como a que Alexandria Ocasio-Cortez representa –, entre nós dá-se um movimento relativamente diferente, mas também promissor, sob a condição de ser trilhado com rigor e sem ambiguidade de nenhum tipo. Não por acaso, tiramos o pó de expressões como “frente ampla” e “frente democrática”, de largo emprego na época do regime ditatorial. E passamos a usá-las como recurso valioso para indicar a expectativa de uma nova atitude da esquerda petista e, consequentemente, vencer a disputa contra a direita populista de massas.

A frente ampla, em meados dos anos 1960, sinalizava que personalidades fortemente antagônicas podiam se unir na luta pela restauração do regime civil. Era o caso, com toda a certeza, de Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart. E a frente democrática que viria a se firmar alguns anos mais tarde, já nos anos 1970, pressupunha que a esquerda isolada não teria êxito naquela luta, menos ainda se estabelecesse como meta um quimérico “socialismo”. Ao contrário, sua parte mais clarividente iria aliar-se aos expoentes do liberalismo político, quem sabe deflagrando – imaginavam alguns – um processo interno de reavaliação de categorias e mesmo de partes consideráveis da sua visão de mundo.

Aqui e agora, no entanto, a iniciativa da frente só pode vir da esquerda política. Esta última é que, indo ao centro, deve assumir como missão existencial restaurar a República democrática gravemente ofendida a partir de 2019. A pergunta a que deve responder, sem descanso, gira em torno da possibilidade de haver, ou não, uma normal dialética política com a Nação partida ao meio. E, mais ainda, com esta “outra” metade constituída por concidadãos que se deixam em boa medida fanatizar por mitos arcaicos – como o “Deus, Pátria, família” da tradição fascista ou o medo-pânico de um comunismo fantasmagórico – e, por óbvio, se mostram avessos aos princípios liberal-democráticos que se propõem a todos os moradores da nossa casa comum, seja qual for o cômodo que nela queiram ocupar.

Posta a questão nestes termos, a resposta só pode ser perturbadora. Diante de nós está a evidente tarefa de desagregar o consenso nacional-populista, esvaziando a base de massas do autoritarismo. Mas, pensando bem, este é um desafio que hoje se coloca aproximadamente nos mesmos termos no Brasil, nos Estados Unidos e em muitas outras partes, pois vivemos um tempo de política irreversivelmente globalizada – um fato que serve de estímulo não só para a busca de alianças inéditas, como também para a obra urgente de estabilização das democracias e aprofundamento da democratização social.

Luiz Sérgio Henriques, o autor deste artigo, é tradutor  e ensaísta. É um doso organizadores das obras de Gramsci no Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.11.22, às 03h00

Nova provocação: Valdemar Costa Neto diz que PL vai pedir ao TSE invalidação de votos em urnas antigas

Presidente do partido de Jair Bolsonaro questiona modelos produzidos antes de 2020, mas afirmou que o PL não quer nova eleição

Valdemar Costa Neto na cerimônia de filiação de Jair Bolsonaro ao PL, em novembro de 2021. Foto: Neto Sousa/Estadão

Em vídeo divulgado nas redes sociais, o presidente do PL de Jair Bolsonaro, Valdemar Costa Neto, afirmou que a sigla vai buscar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para tentar invalidar votos registrados em urnas produzidas até 2020. “Pelo estudo que nós fizemos, tem várias urnas que não podem ser consideradas”, disse ele neste sábado, 19. Costa Neto garantiu que o PL, vai propor essa análise ao TSE até a terça-feira, 22.

Ele afirmou que as urnas inválidas seriam as que foram produzidas até o ano de 2020, que supostamente teriam o mesmo número de patrimônio, o que, segundo ele, inviabilizaria uma fiscalização urna por urna. Ele alegou ainda que, de acordo com o estudo do partido, o problema pode ter atingido até 250 mil urnas.

Não há qualquer indício de fraude ou problema técnico no pleito, conforme já atestaram o Tribunal de Contas da União e as próprias Forças Armadas. Três missões internacionais de observação eleitoral também emitiram relatórios preliminares atestando a segurança das urnas eletrônicas, logo depois do primeiro turno.

Questionado no evento deste sábado sobre o porquê de essa demanda não ter sido avaliada antes das eleições, Costa Neto alegou que isso seria “culpa” dos funcionários do TSE e que a direção da Corte não teria conhecimento da questão.

O dirigente negou, entretanto, que o PL queira rever o pleito. “Não queremos nova eleição, não queremos agitar a vida do País, mas eles (TSE) têm que decidir o que vão fazer”, alegou.

Ao Estadão, a assessoria de imprensa do PL não deu detalhes sobre a intenção do partido, mas confirmou as afirmações feitas pelo presidente da sigla neste sábado.

Costa Neto menciona todas as urnas produzidas até 2020. Contudo, os aparelhos mais antigos, utilizados inclusive na eleição de 2018 em que Bolsonaro foi eleito, já haviam sido submetidos ao chamado Teste Público de Segurança (TPS) em anos anteriores. O modelo de 2020, por sua vez, foi submetido pelo TSE à análise de peritos de universidades federais neste ano.

Relatório do PL

Como o Estadão mostrou na semana passada, o PL preparou um relatório preliminar a ser apresentado ao TSE pedindo a invalidação de todos os resultados gerados em urnas eletrônicas de modelos produzidos antes de 2020. No entanto, segundo o engenheiro Carlos Rocha, do Instituto Voto Legal, envolvido na fiscalização, o estudo não estaria pronto. “O trabalho de fiscalização do PL termina em dezembro, está em andamento”, afirmou.

O texto do partido alega que o log — isto é, os registros eletrônicos — de modelos de urna de 2009, 2010, 2011, 2013 e 2015 não possui valor correto no campo de código de identificação da urna, o que tornaria impossível a ligação dos arquivos com a urna física, diferente dos modelos de 2020.

Os argumentos são similares os apresentados em uma live realizada por um canal argentino controlado por um apoiador de Bolsonaro no início do mês. O Estadão mostrou que é falso que o relatório apresentado prove fraude eleitoral.

Insistência de Bolsonaro

Em sua fala deste sábado, Valdemar da Costa Neto disse que “tinha tranquilidade” a respeito dos resultados das urnas eletrônicas. “Eu disputo eleições desde 1990 e as urnas estão aí desde 94. Nunca tive preocupação com isso”, alegou. Contudo, seu posicionamento mudou depois do que ele chamou de “insistência de Bolsonaro para ver esse assunto”. O presidente, derrotado no segundo turno das eleições deste ano, teria pressionado o partido para completar o estudo.

“Eles insistiram comigo, aí insisti com o pessoal, eles foram lá e descobriram isso aí”, disse Costa Neto sobre o suposto problema nas urnas fabricadas até 2020.

Rubens Anater para o Estado de S. Paulo, em 19.11.22, à 21h06

PRF registra 11 interdições totais e 19 parciais no Mato Grosso

Caminhoneiros bolsonaristas sugerem greve e novas interrupções de tráfego em estradas federais; atos ocorrem após decisão do STF contra empresas suspeitas de financiar atos antidemocráticos; número abaixou em relação à parcial anterior e representantes da categoria negam apoiar movimento


Caminhoneiros fecharam o lado brasileiro da fronteira com a Bolívia, em Corumbá, a 419 km de Campo Grande.Trecho na fronteira é bloqueada em novo protesto. (Crédito: Anderson Gallo/Diário Corumbaense) 

Após a retomada dos protestos contra o resultado da eleição presidencial em rodovias, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) identificou aumento no número total de bloqueios desde a sexta-feira, 19. Boletim divulgado na tarde deste domingo, 20, lista 11 interdições totais e 19 parciais em estradas federais, todas no Mato Grosso. As manifestações, que se somam aos atos promovidos por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) em frente de quartéis, chegaram a 30. A corporação também informou que foram desfeitas 1.227 manifestações.

Bolsonaristas organizaram novas interdições em estradas após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinar o bloqueio de contas de empresários suspeitos de financiar os atos antidemocráticos do início de novembro. Segundo a PRF, não há obstruções em rodovias federais de São Paulo. A concessionária CCR Via Oeste informou não ter bloqueios nas rodovias Castello Branco, Raposo Tavares e Castelinho.

Bolsonaro não fez 'Carta à Nação' para respaldar manifestações, ao contrário do que afirma vídeo

Na sexta-feira, manifestantes incendiaram um carro na rodovia BR-163, em Dourados, no Mato Grosso do Sul. O automóvel passava pelo local quando o grupo colocou fogo em uma barricada de pneus. O motorista não ficou ferido, mas o carro foi destruído pelo incêndio.

Após a divulgação do resultado das eleições, no dia 30 de outubro, manifestantes bolsonaristas fecharam rodovias em todo o País, causando diversos transtornos. Os bloqueios chegaram a afetar o fornecimento de supermercados e até o transporte de insumos de medicamentos e vacinas. A prefeitura de Limeira decretou situação de emergência pública devido à escassez de combustíveis acarretada pelos protestos. A PRF informou que no dia 9 de novembro já não havia mais nenhuma ocorrência de interdição em estradas.

Caminhoneiros bolsonaristas sugerem greve, mas representantes da categoria negam apoiar movimento

Áudios que circulam em grupos bolsonaristas dão conta de caminhoneiros que sugerem “trancar” as rodovias e, inclusive, resistir à eventual ação policial. Os áudios sugerem obstruir vias em municípios de Mato Grosso, como Sinop e Campo Novo do Parecis.

As ameaças, no entanto, têm sido vistas por muitos outros caminhoneiros como piada. Nem todos estão dispostos a entrar nessa briga, sobretudo porque são empresários que estão bancando o movimento. Um dos caminhoneiros diz em uma das mensagens: “Eles compraram muitos caminhões para não depender de terceiros. Enquanto isso, os heróis (autônomos) só têm uma casinha de lata para morar.”

O presidente da Associação Brasileira de Condutores de Veículos Automotivos (Abrava), Wallace Landim (conhecido como Chorão), afirmou ao Estadão que a categoria não apoia os bloqueios, que, segundo ele, são planejados por uma pequena parcela de caminhoneiros. “Não é um movimento dos caminhoneiros, é uma ala extremista (...) está sendo cometido um crime”, disse.

Bolsonaristas fazem bloqueios rodovias em São Paulo. 

Há, ainda, a suspeita de que os bloqueios estejam sendo encorajados pelos empregadores desses motoristas, no caso daqueles que trabalham para as empresas que tiveram suas contas bloqueadas pelo STF. Se confirmada, a prática caracteriza locaute e prevê responsabilização legal.

A Abrava admitiu acionar a Justiça para pedir indenização aos caminhoneiros autônomos que sejam impedidos de circular pelas rodovias. “Eu já ouvi caminhoneiro autônomo falando que ‘vai passar por cima’, isso é perigoso”, afirmou Chorão.

Controvérsia

Nos grupos de caminhoneiros, há controvérsia em relação à paralisação. Alguns entendem que estão sendo usados para outros interesses que não o do setor. Muitos não querem aderir aos protestos com medo de multas e também dos prejuízos que se acumulam.

Entre os que estão convocando a greve de agora, está o presidente da Cooperativa de Transportadores e Profissionais da Área de Logística e Transporte de Cargas de Sinop (Cooperlog), Cleomar José Immich. Em vídeo que circula nas redes sociais, ele chama os caminhoneiros para aderir ao movimento.

Ele alega que foi protocolado um documento para “cancelar as eleições”. O prazo para darem um posicionamento seria na sexta-feira. “Se não tivermos resposta, temos de parar os caminhões até o STF julgar o assunto.” Ele e outro colega que fazem o vídeo pedem que os empresários deixem os caminhões no pátio para não tomar multa. “Deixem os caminhões em casa.”

A reportagem procurou Cleomar, que afirmou apenas que não é líder do movimento.

Davi Medeiros e Renée Pereira para O Estado de S. Paulo, em 20.11.22, às 12h38 /  /COLABOROU LAVÍNIA KAUCKZ

sábado, 19 de novembro de 2022

Casos de coronavírus aumentam em 12 estados brasileiros

Dados do Boletim Infogripe, da Fiocruz, apontam que covid-19 responde por 47% das infecções por vírus respiratórios no Brasil.

Conforme o mais recente Boletim Infogripe, divulgado nesta sexta-feira (18/11) pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), tem ocorrido um aumento de casos de coronavírus em 12 estados brasileiros: Alagoas, Amazonas, Ceará, Goiás, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.

De acordo com os dados, levantados nas últimas quatro semanas pela Fiocruz, a covid-19 responde atualmente por 47% de todos os resultados positivos para vírus respiratórios. No fim de outubro, o coronavírus era responsável por 26,4% dos pacientes.

A estatística baseia-se em números inseridos no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica até o dia 14 de novembro. Há uma semana, comparativamente, o Boletim Infogripe apontava aumento de diagnósticos de doenças respiratórias em apenas quatro estados: Amazonas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.

A maior parte dos diagnósticos foi registrada em adultos, apresentando tendências de curto prazo (últimas três semanas) e longo prazo (últimas seis semanas).

Conforme a Fiocruz, o crescimento de infecções por coronavírus em pessoas acima dos 60 anos foi registrado no Amazonas, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.

Em Alagoas, Ceará, Goiás, Piauí e Rio Grande do Norte, por outro lado, o crescimento dos números está mais concentrado em crianças.

Outras doenças registradas no boletim foram o vírus sincicial respiratório, que responde por 24,2% dos doentes, o influenza A (10,4%) e o influenza B (0,3%).

Conforme a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), as taxas de testes positivos de covid-19 também subiram em outubro. Na estatística consolidada do mês, foram 7.986 resultados positivos, 44% a mais do que em setembro.

A Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) também apontou crescimento na taxa de positividade, no período entre o começo de outubro e a primeira semana de novembro: de 3,7% para 23,1%.

Em laboratórios particulares, os exames positivos para o coronavírus passaram de 3% para 17% em menos de um mês, de acordo com dados do Instituto Todos pela Saúde.

Devido a essa tendência de alta de infecções, especialistas indicam o uso de máscara em locais fechados, como no transporte público e em áreas com grande aglomeração de pessoas, além da vacinação.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 19.11.22

Lula 'toma posse' no exterior em meio a vácuo deixado por Bolsonaro

Mais de 40 dias antes de assumir o Palácio do Planalto e com Jair Bolsonaro recolhido, Luiz Inácio Lula da Silva é tratado, na prática, como se já fosse presidente em compromissos no exterior e consegue atenção internacional com pauta ambiental.

Lula no Palácio de Belém, em Lisboa, em encontro com o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, e o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi (Crédito da foto: BBC News Brasil)

Após participar da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), Lula tem encontros em Lisboa, nesta sexta-feira (18/11), com o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, e com o primeiro-ministro, António Costa. Na manhã de sábado (19/11), Lula tem previsto encontro com a comunidade brasileira no Instituto Universitário de Lisboa.

Na COP27, no Egito, Lula teve encontros com autoridades de outros países e foi aguardado por um grande público internacional - o que levou a imprensa francesa, por exemplo, a dizer que o brasileiro foi recebido "como uma estrela de rock" (jornal econômico Les Echos) e a descrever que foi "acolhido com um imenso fervor" (Le Monde).

Lula em Sharm el-Sheikh, no Egito, para COP27 (Reuters)

O diplomata Rubens Ricupero avalia que Lula tem dominado a agenda "um pouco pelo acerto dele, um pouco pela omissão de Bolsonaro".

"Para todos os efeitos, é como se (Lula) já fosse presidente, até porque o outro esvaziou. Nunca vi isso antes, é como se não tivesse mais presidente, há não sei quantos dias. A agenda (de Bolsonaro) está completamente abandonada", disse o ex-embaixador e ex-ministro à BBC News Brasil ao comentar a viagem de Lula.

O silêncio de Bolsonaro e a escassez de compromissos oficiais vêm sendo destacados na imprensa brasileira. Além de poucos compromissos na agenda em Brasília e de um ritmo baixo de postagens no Twitter, Bolsonaro também não participou da cúpula do G20, na Indonésia.

'Legitimidade reforçada'

Ricupero diz que o fato de Lula ter conseguido imprimir um tratamento de presidente no exterior antes da posse "reforça a legitimidade em um momento em que aqui há um movimento muito grande de pessoas que contestam as eleições", em referência aos protestos de parte dos apoiadores de Bolsonaro.

Jornal francês Le Monde disse que Lula foi "acolhido com um imenso fervor" na COP27 (EPA)

O diplomata considera que Lula acertou no momento da viagem, no início do período de transição. Agora, ele diz, "o calendário tende a favorecer o Lula", já que há a Copa do Mundo e as festas de fim de ano até a posse.

"Com a Copa do Mundo, eu acho que boa parte desse sentimento de mobilização política (contra as eleições) vai abrandar. Terminando a Copa do Mundo, entra nas festas de Natal. Aí Ano Novo e posse, e é outra história", diz. "O momento mais crucial era agora."

Ao deixar o Brasil no início do governo de transição, Lula também se distancia, em certa medida, da disputa por espaço entre partidos aliados na formação do novo governo.

Ricupero, que já foi ministro do Meio Ambiente e da Fazenda lembra, ao mencionar viagens de Tancredo Neves e de Juscelino Kubitschek em momentos semelhantes, que "esse período de transição no Brasil é sempre muito carregado de risco, porque há muita intriga, além da chateação dos pedidos de todo tipo, porque todo mundo cai em cima do presidente".

O destaque negativo ficou para a carona que Lula pegou, para chegar ao Egito, no jato do empresário José Seripieri Filho, fundador da Qualicorp e dono da QSaúde, que chegou a ser preso em 2020 em operação que investigava supostas irregularidades na campanha de José Serra (PSDB-SP) ao Senado, em 2014.

"Eles deveriam ter calculado que cairia mal. Não creio que terá desdobramentos maiores, mas foi um descuido", diz Ricupero.

Ao lembrar que viagens de Tancredo foram feitas em aviões comerciais, Ricupero pondera que "naquela época não havia ameaça à segurança que há hoje" e diz que, no atual contexto, "também seria penoso pegar um avião comercial e ser vítima de manifestações de bolsonaristas, como essas contra os ministros do supremo em Nova York".

O diplomata Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington, diz que não há problema jurídico na carona de Lula no avião particular. "Há um problema ético aí, se você quiser. Um problema ético de você aceitar um oferecimento de um empresário para viajar num avião privado."

Barbosa destaca problemas de segurança em uma eventual viagem em voo comercial e diz que, idealmente, o presidente eleito teria se deslocado de carona em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que tivesse viajado para o Egito.

Lula em Portugal

Ao noticiar a previsão de visita de Lula a Portugal, a imprensa portuguesa destacou que Bolsonaro nunca esteve no país enquanto presidente e que, no Brasil, cancelou um encontro com Marcelo Rebelo de Sousa em julho deste ano porque o português encontraria Lula.

O jornal Expresso escreveu que a visita de Lula "marca uma nova etapa das relações luso-brasileiras, que tinham sido objeto de um distanciamento institucional durante a Presidência de Jair Bolsonaro". O jornal Público disse que há "carga simbólica" na visita de Lula "por decorrer no ano do bicentenário da independência brasileira e por acontecer meses depois de Bolsonaro ter rejeitado receber o chefe de Estado português".

A visita do presidente português ao Brasil no 7 de setembro deste ano, que marcou o bicentenário, também é lembrada.

Rubens Barbosa diz que houve uma "desconsideração" com o presidente português no desfile. "Ele estava ao lado do presidente, o presidente não falava com ele, entrou o cara da Havan (Luciano Hang), ficou no meio... Isso foi uma coisa, diplomaticamente, muito ruim".

Bolsonaro, Luciano Hang e presidente de Portugal no centro da primeira fila da tribuna de honra do 7 de setembro (Reprodução TV Brasil)

Ricupero já havia declarado que considera que o tratamento dado ao presidente de Portugal no governo Bolsonaro foi "inqualificável" e voltou a defender uma reparação.

"Os portugueses fizeram tudo o que nós pedimos, mandaram até aquela coisa do coração de Dom Pedro 1º, com aquele aspecto um pouco lúgubre... Colaboraram em tudo para que se pudesse comemorar o bicentenário, que acabou sendo um fracasso por culpa nossa, não deles".

Ricupero diz que "os portugueses foram maltratados". "Quando houve o 7 de Setembro, ele (Bolsonaro) deixou o presidente Portugal ao lado dele no palanque, mas não deu atenção nenhuma. E fez um tipo de discurso completamente fora do espírito da celebração", diz o diplomata.

E a falta de uma visita de Bolsonaro aos portugueses?

Para Rubens Barbosa, a ausência de uma visita de Bolsonaro a Portugal diz mais sobre a política externa do governo Bolsonaro em geral do que sobre a relação entre os dois países em si.

"Bolsonaro não visitou quase país nenhum, não tem nada de discriminação contra Portugal. Ele tem uma política externa muito complicada", disse. "A relação com Portugal é muito intensa e eu acho que o Lula, passando por lá, vai retomar essa tradição de contato estreito entre os dois países."

No 7 de Setembro, 'Bolsonaro deixou o presidente Portugal ao lado dele no palanque, mas não deu atenção nenhuma', diz Ricupero (Getty Images)

Lula na COP27: meio ambiente e a atenção internacional

A atenção internacional que Lula conseguiu logo após sua eleição também tem a ver com o tema central da viagem, já que a pauta ambiental é o maior interesse internacional no Brasil, devido principalmente à Amazônia.

"Lula foi para uma conferência que é, nesse momento, a mais importante da agenda internacional e na qual o Brasil é relevante", destaca Ricupero.

Na COP27, Lula disse que "não medirá esforços para zerar o desmatamento de nossos biomas até 2030" e afirmou que todos os crimes ambientais vão ser combatidos "sem trégua". Ele também propôs que a COP de 2025 ocorra na Amazônia.

5 destaques do discurso de Lula na COP27

Ricupero, que conta ter se filiado à Rede Sustentabilidade, diz que a pauta ambiental "deveria dominar grande parte da política externa" do novo governo Lula. "Tem outros aspectos da política externa do PT que são mais controversos - por exemplo, ele vai ter em algum momento que se posicionar em relação à Nicarágua, Cuba e Venezuela. No passado, sempre teve simpatia ideológica do PT (a governos desses países) e eu não sei o que ele vai fazer", disse.

"(A pauta ambiental) é um assunto que pode render enormes retornos ao Brasil a curto prazo, sem muito custo. O custo que tem é interno, de enfrentar os grileiros, mineradores, garimpeiros ou os madeireiros. De qualquer forma, ele é obrigado a enfrentar, porque são todas atividades criminosas, ilegais", diz.

Laís Alegretti, enviada especial da BBC News Brasil a Lisboa, em 18.11.22

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63649594

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Talvez no ocaso a ‘ditadura do Judiciário’

Concluída a eleição, é desejável que ocorra uma acomodação e os antagonismos se resolvam sem a necessidade de recorrer ao Poder Judiciário.

Ministro Alexandre de Moraes, Presidente do TSE

Com a eleição de um novo governo para o Brasil e a caminhada para desejáveis e melhores relações políticas, é possível que a ideia de existência, entre nós, de uma “ditadura do Judiciário” seja progressivamente revista e abandonada. Até mesmo pessoas de reconhecidas inteligência e cultura se deixaram contaminar por essa ideia equivocada.

A nossa Constituição federal e o Direito dela decorrente não admitem que um juiz ou ministro intervenha nos fatos por própria iniciativa. Tome-se, por exemplo, o todo-poderoso ministro Alexandre de Moraes: se não houver provocação, se não houver um pedido expresso, ele não poderá intervir nem mesmo numa briga de galo.

A nossa Constituição e o nosso Direito adotaram o princípio nemo iudex sine actore, que vem do Direito romano, ou seja, não pode haver juiz sem autor ou sem que algum interessado requeira a sua intervenção. Mas, em face dos antagonismos políticos nos últimos quatro anos, centenas de pessoas e até mesmo agremiações partidárias passaram a demonstrar seu inconformismo da forma mais cômoda: recorrer ao Poder Judiciário e jogar o abacaxi no colo dos juízes dos tribunais superiores.

Como, em geral, as partes envolvidas têm foro privilegiado, os seus antagonismos foram encaminhados não ao juiz do fórum mais próximo, mas para aquele que tem competência legal para julgá-los. É por essa única razão que centenas de processos envolvendo interesses político-partidários chegaram aos tribunais superiores nos últimos anos e geraram decisões de grande repercussão no País, tornando conhecidos juízes que, não fossem essas divergências políticas, seriam tão pouco conhecidos como um juiz de vara de família.

Em virtude da frequência dessas decisões, tomadas tão somente porque houve provocação dos interessados, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) passaram a figurar na primeira página dos jornais e a propagar a equivocada impressão de que são muito poderosos, além de interessados no desfecho das demandas políticas.

Essa visão é equivocada e levou a equívoco ainda maior: o de que existe uma “ditadura do Judiciário”, quando o que ocorre é tão somente a prestação da atividade jurisdicional requerida pela parte e sobre a qual o juiz ou ministro não poderia negar resposta formal e escrita. Não existe a possibilidade de inércia, ou seja, não pode o juiz ficar lambendo o processo, ao invés de decidir.

Está claro no nosso Direito, por força do que dispõe a Constituição federal de 1988, que a Justiça não funcionará se não houver um autor. Infelizmente, essa verdade não está clara perante a maioria da população, levando até mesmo pessoas de boa cultura e inteligência a ver nas decisões judiciais dos tribunais superiores interesse de influir nos acontecimentos, quando o que os juízes e ministros mais desejariam é estar longe de tudo isso.

Os antagonismos políticos nos últimos quatro anos foram frequentes e estridentes, em razão do choque de interesses e do desejo de chegar a ou proteger um bem maior: o poder. Com a eleição do novo presidente da República e a tomada do poder por seu grupo político, é desejável que ocorra uma acomodação e os antagonismos se resolvam sem a necessidade de recorrer ao Judiciário.

Quem mais deseja essa paz são os próprios ministros dos tribunais superiores, porque nenhum deles se alegra por tomar decisões que muito repercutem e causam a ideia de interesse pessoal da parte daquele que decidiu. Veja-se o caso do ministro Alexandre de Moraes e de seu reconhecido conhecimento em Direito Constitucional e Penal.

Quando está em São Paulo, o que ele mais gosta é de atravessar a rua de sua casa e fazer exercícios no Clube Pinheiros, do qual é sócio há anos e onde é muito estimado. Mas, muitas vezes, nem se arrisca a isso, porque decisões judiciais suas, tomadas unicamente em atenção a quem as requereu, ferem interesses políticos ou de grupos, gerando inconformismos e até grosserias de quem se sentiu prejudicado.

É possível que os antagonismos de natureza política tenham se tornando maiores e mais frequentes nos últimos quatro anos em virtude do estilo pessoal do presidente Jair Bolsonaro, a quem sempre se atribuiu bastante coragem, mas também traços de arrogância. Sua conduta com essa característica lhe rendeu milhões de seguidores e o deixou bem perto da vitória na eleição.

Em virtude de seus atos administrativos ou políticos, ele foi repetidamente combatido por meio de ações judiciais propostas por seus adversários, e quase sempre apareceu como vítima. Agora, que a fase eleitoral já passou, é interessante observar que Jair Bolsonaro, se não tivesse afugentado as mulheres com atitudes grosseiras e entupido o Brasil com armas de fogo, poderia ter vencido a eleição. Para as mulheres, armas de fogo significam a morte de filhos, pais e maridos, e por isso são contrárias ao seu porte. Por isso milhões delas deixaram de votar nele.

Aloisio de Toledo Cesar, o  autor deste artigo, é Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de S. Paulo. Foi Secretário estadual da Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22.11.22, às 03h:00

A eleição acabou, o novo governo nem começou e a República continua ameaçada por fanáticos

Saber perder ou ganhar é para quem tem grandeza política e de alma

Pedir o fechamento do STF e a volta da ditadura militar em torno de quartéis não é democrático, não é constitucional e não é legal. Foto: Jason Szenes/EFE/EPA

A capital da República está isolada, com bloqueio das pistas de acesso à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Poderes, onde ficam o Planalto, o Supremo e o Congresso. E não é por causa do feriado da Proclamação da República, mas para evitar ataques justamente à República com caminhões e motociatas antidemocráticas. A eleição acabou, o novo governo nem começou e os bolsonaristas não sossegam.

Saber perder ou ganhar é para quem tem grandeza política e de alma, mas o Brasil assiste a um triste espetáculo em que grupos de fanáticos, surpreendentemente grandes, se enrolam na bandeira, usam o hino e os símbolos nacionais para baderna, insulto, ataques às instituições e à democracia. E para cenas de um ridículo inacreditável.

Ministros da mais alta Corte de Justiça do País são constrangidos e ameaçados com gritos e impropérios por irresponsáveis e inconsequentes que defendem volta dos militares e ditadura, ou seja, fim da liberdade, torturas, mortes e desaparecimentos. Luís Roberto Barroso teve de sair às pressas de um restaurante em Santa Catarina e seus colegas de toga estão sendo importunados por brasileiros em Nova York.

Isso não é liberdade de expressão e de manifestação. A Constituição, as leis e até os bons costumes permitem que cidadãos e cidadãs se unam para ir às ruas protestar, defender suas causas, exigir seus direitos e cobrar deveres de governantes. Mas pedir o fechamento do STF e a volta da ditadura militar em torno de quartéis? Financiar caminhoneiros para parar o País, causar desabastecimento, inflação e caos? Não é democrático, não é constitucional, não é legal.

Falta uma voz firme de comando e essa voz deveria ser do ainda presidente da República, Jair Bolsonaro, que se encastelou, parou definitivamente de trabalhar e parece estar torcendo para o circo pegar fogo. Danem-se a Pátria e a família? Deus está de olho.

De outro lado, é também preciso que os vitoriosos ajam como vitoriosos e parem de guerra pela internet, contra tudo e todos que não atrapalham, mas se reservam o direito de crítica e não lhes dizem amém. O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva fez uma campanha pacífica e um discurso de vitória pedindo união, pacificação, inclusão e esperança. Ataque, ódio e arrogância de parte de sua base e de sua militância digital não têm nada a ver com isso.

Mais de 60 milhões votaram em Lula e 58 milhões em Bolsonaro, e o Brasil está, objetivamente, dividido ao meio e com problemas gigantescos. Quer e precisa de paz, crescimento, emprego, barriga cheia, inclusão, igualdade e respeito à maioria e ao voto. A quem interessa a guerra?

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.11.22, às 03h:00

Uma chance de paz

A recuperação de Kherson pela Ucrânia abre credivelmente as portas para uma possível negociação

O presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, ontem em Kherson. (DPA Via Europa Press)

Vladimir Putin só conhece batalhas perdidas. Com a de Kherson, é a terceira derrota sofrida por seu exército desgovernado, depois da ofensiva fracassada que ele queria incendiar em Kiev e da vergonhosa perda de Kharkov. Atrocidades contra civis na dissolução de seus exércitos nunca faltam, somadas às atrocidades de ataques aéreos a infraestruturas vitais e edifícios residenciais, que não cessam nem mesmo em retiradas. Segundo o presidente da Ucrânia, Volodímir Zelenski, isso aconteceu em Kherson, onde foram registrados pelo menos 400 crimes de guerra.

A retirada desta capital da província de mesmo nome, verdadeiro centro estratégico de acesso à Crimeia e ao Mar Negro, é especialmente amarga para o Kremlin, que declarou sua anexação à Federação Russa e fracassou não apenas militarmente, mas principalmente politicamente. Kherson foi preservado quase intactoporque era a única grande cidade nas mãos dos russos desde o início da guerra, mas os ocupantes não conseguiram atrair a população, apesar do peso dos cidadãos de língua russa, nem oferecer outra alternativa senão a repressão, a tortura e a morte . A recepção calorosa dada às tropas ucranianas e o entusiasmo com que Zelensky foi recebido nesta nova viagem a poucos quilômetros da frente não é surpreendente, algo que nenhum líder do Kremlin ousou imitar e ao mesmo tempo desafia a bravata anexionista russa . As imagens de Zelensky pelas ruas de Kherson, incluindo as selfies que ele tirou, transmitem uma estranha mistura de horror de guerra e pacificação ao mesmo tempo.

Essa nova derrota para Putin permitiu que Zelensky falasse novamente de paz e insinuasse que a guerra pode estar se aproximando de um desfecho favorável. Os fatos no terreno, que são o que governam a guerra, devem levar os derrotados diretamente à mesa de negociações. A Rússia perdeu cem mil homens e seu melhor equipamento militar em oito meses por quase nada. Tem um exército diminuído, desmotivado e desacreditado, mal treinado e suspeito de graves e numerosos crimes de guerra. A geografia fluvial poderia protegê-lo de perdas maiores e rápidas, já que com o inverno chegando é mais difícil para os exércitos de Kiev cruzar o amplo Dnieper e continuar sua contra-ofensiva.

Há consciência em Washington e Bruxelas de que o momento da negociação está se aproximando. A Ucrânia está agora em plena contra-ofensiva. Ninguém pode exigir honestamente que a vítima pare de defender sua casa invadida com toda a sua energia. Quem tem a mão na aposta das negociações é o Kremlin. Com um quinto da Ucrânia ainda em suas mãos e simpatias residuais de países que jogam equidistância, esta é sua chance, embora o orgulho imperial e sua própria retórica expansionista o impeçam de aproveitá-la por enquanto.

O clamor pela paz encontrou um ponto de apoio, embora em nenhum caso essa paz possa e deva vir pela força e ameaças. O acordo ocidental é claro sobre quando Putin terá que se sentar: não cabe a Washington ou Bruxelas apontar ou estabelecer as condições, mas sim ao governo legítimo da soberana Ucrânia, com o apoio de seu Parlamento. São eles que devem contar com a mesma solidariedade e ajuda na construção da paz que seus aliados europeus e americanos agora destinam à guerra.

Editorial do EL PAÍS, em 15.11.22, às 01:00hs.

O novo Brasil de Lula e sem Bolsonaro

O presidente eleito não pode esquecer que não foi eleito apenas pela força de seu partido, mas porque criou um bloco de forças capaz de enfrentar o bolsonarismo

Lula da Silva, presidente do Brasil, durante evento em Brasília, em 10 de novembro. (Foto: Andressa Anholete /Bloomberg)

O turbulento Brasil de Bolsonaro desapareceu com suas conotações fascistas? O Brasil luminoso de Lula voltou com suas conquistas sociais? Existe hoje um novo Brasil inédito cujo objetivo final ainda é desconhecido? Essas são algumas das perguntas feitas por brasileiros que tremiam diante de um possível golpe militar.

Ainda não é fácil responder a essas perguntas com certeza, pois a situação no Brasil está se desenvolvendo sob as areias movediças da incerteza. Bolsonaro perdeu as eleições, mas seus seguidores ainda são corajosos e não se contentam com a derrota. Isso é demonstrado pelas manifestações das centenas de caminhoneiros acampados em Brasília em frente ao bastião militar exigindo um golpe.

É verdade que os militares, dos quais mais de 6.000 foram colocados nas classes estaduais por Bolsonaro, aceitaram a derrota do ex-capitão de extrema-direita, mas continuam mantendo uma atitude um tanto ambígua.

Os seguidores do líder de direita confiavam que a vigilância que, mesmo contra a Constituição, o Exército mantinha antes das eleições poderia levar à anulação do plebiscito que conferia a derrota do mito.

A reação dos militares era a última esperança de Bolsonaro e seus seguidores. Esperavam ter encontrado alguma veia para contestar o resultado da derrota eleitoral. Isso não aconteceu, pois o documento de 70 páginas elaborado pelas Forças Armadas revelou que não foram encontradas grandes falhas para anular o resultado das urnas. Os apoiadores de Bolsonaro não ficaram satisfeitos e exigiram uma nova posição dos militares, mobilizando centenas de caminhoneiros em Brasília.

Em um segundo documento, o Exército quis presentear os bolsonaristas desordeiros e declarou que, embora não tenham sido detectados erros nas urnas, isso não significa que não possam ser vulneráveis. Foi uma resposta diplomática, que não disse nada.

Tudo isso deu à equipe vencedora de Lula, assinada por dez partidos que abrangem desde a extrema esquerda até a direita liberal não golpista, uma nova força para se mostrar eufórica e com liberdade para realizar reformas, principalmente sociais. Assim, as verdadeiras lágrimas de Lula foram vistas com bons olhos quando ele afirmou que seu sonho é que ao final de seu mandato não haja um único brasileiro que não consiga comer três refeições por dia.

E se não há dúvidas de que o novo governo Lula será fortemente marcado por sua natureza social e não ideológica. Onde a polêmica ainda pode irromper é na formação de seu novo governo, que pode não ser fundamentalmente de seu partido, o PT, mas de uma gama de partidos que vão da esquerda ao centro e à direita liberal.

Daí as dificuldades que Lula está tendo na escolha de alguns de seus principais ministros, da Economia ao Meio Ambiente e Relações Exteriores, já que pretende restabelecer as relações com o resto do mundo após o isolamento a que Bolsonaro o condenou.

Daí a importância da recepção que Lula poderá ter nos próximos dias na Cúpula do Meio Ambiente no Egito. Será seu primeiro teste internacional, pois nessas cúpulas Bolsonaro foi bastante evitado pelos demais chefes de Estado para não se comprometer com suas alucinações golpistas e fascistas de extrema direita.

Tudo isso é importante neste momento para Lula, que não pode se enganar nem esquecer que não foi eleito apenas pela força de seu partido, mas por ter criado um bloco de forças, todas elas democráticas, capazes de enfrentar o bolsonarismo de raiz .

Como destacou Catarina Rochamonte em sua coluna para o jornal O Globo : “Não há carta branca para o novo governo. Se a maioria dos brasileiros fez tábula rasa dos enormes erros dos governos petistas, não foi por amor a Lula, mas por horror a Bolsonaro.”

Na verdade, é uma verdade que começa a se mostrar importante na formação do novo governo Lula. Nela, o que talvez menos importe neste momento é que o PT aproveite para colocar o maior número possível de anfitriões, mas para fazer uma frente forte contra o bolsonarismo, que é a grande ameaça à democracia.

São aqueles momentos da história em que surgem os verdadeiros estadistas capazes de afugentar os monstros da desintegração política e das tentações autoritárias. A verdade é que para Lula, que jura que esta será sua última aventura política, pode ser o momento em que se firma como um verdadeiro estadista capaz de tirar o Brasil do inferno.

João Árias, do Rio de Janeiro-RJ para o EL PAÍS,em 15.11.22, às 07:45hs

Júbilo e mísseis no recém-libertado Kherson: “Esperamos por isso há muito tempo”

Os habitantes da cidade recuperada pelas forças ucranianas voltam às ruas em um cenário de casas destruídas e cadáveres abandonados e com os militares russos a apenas um quilômetro de distância

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, encenou o último grande sucesso do avanço de seu exército com uma visita surpresa ao meio-dia desta segunda-feira à cidade-chave de Kherson, no sudeste do país, recuperada pela contra-ofensiva de Kiev na semana passada. após meses de ocupação russa. Na imagem, duas mulheres colocam flores em memória dos soldados que morreram na guerra, durante a visita de Zelensky a Kherson. (Foto: Oleg Petrasyuk - EFE)

Algo inédito está acontecendo nos dias de hoje em Kherson , a cidade ucraniana que se tornou o principal símbolo da retirada da Rússia da guerra. Os habitantes desta cidade no sul da Ucrânia, libertada na sexta-feira após mais de oito meses de ocupação russa, passeiam sorrindo pela avenida Ushakova, eixo principal do município. É a primeira vez desde fevereiro que eles se atrevem a dar um passeio, conversar com os amigos à luz do dia enquanto observam os filhos brincarem. Os moradores de Kherson estão felizes por terem deixado para trás o medo causado pelas tropas russas, mas a morte continua a assombrá-los: as posições russas estão a apenas um quilômetro de distância e o céu troveja constantemente com o som da artilharia.

A Plaza de la Libertad, onde se encontra a sede da Administração Provincial, é uma colmeia de cidadãos que querem partilhar a sua felicidade. ( Foto: Bernat Armangue - AP)

As bandeiras ucranianas e da União Européia que os guerrilheiros locais colocaram no mesmo dia em que os russos deixaram Kherson permaneceram lá para a posteridade. É também onde o governo regional instalou uma antena telefônica e conexão com a internet. Uma semana antes de se retirarem da única capital de província que haviam conquistado desde fevereiro, as forças russas sabotaram o abastecimento de água, eletricidade e rede telefônica. Os suprimentos não chegam às casas de Kherson, mas isso não é motivo para estragar a festa de Olena Dvornikova e Jana Gutnik. “Não nos importamos se não podemos tomar banho ou se não temos eletricidade, estamos esperando por esse momento há muito tempo, nosso moral estava no fundo do poço”, diz Dvornikova. Os dois amigos foram à praça na segunda-feira para ver o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky em uma visita surpresa carregada de simbolismo . Enquanto Zelensky falava, o barulho das armas ucranianas, localizadas a poucos quilômetros de distância, podia ser ouvido ao fundo.

A visita foi relâmpago, meia hora. O presidente teve tempo para responder algumas perguntas, presidir uma cerimônia de hasteamento da bandeira e cumprimentar os militares e pessoas presentes. Horas depois de partir, muitos moradores ainda não acreditavam que Zelensky estivesse na cidade, a poucos quilômetros das tropas russas. O presidente confirmou que assumiu um alto risco ao se aproximar tanto da linha de frente, mas explicou que devia seu apoio à população local e às tropas.

Junto com Zelenski, uma delegação de duzentos jornalistas de diferentes meios de comunicação de todo o mundo, incluindo o EL PAÍS, viajou. O Estado-Maior ucraniano está restringindo draconicamente o acesso da mídia à frente de Kherson e, nos últimos dois dias, retirou o credenciamento para trabalhar na Ucrânia de vários repórteres que entraram na província sem autorização militar, incluindo profissionais de televisão CNN e Sky News. A viagem exigiu fortes medidas de segurança que se mostraram justificadas: dois projéteis atingiram a apenas 100 metros dos ônibus da imprensa durante uma parada no caminho.

Kherson ainda é marcada pelos meses sob controle russo. Ainda há muitos cartazes de propaganda de Moscou pendurados nas ruas proclamando a unidade nacional da Rússia e da Ucrânia, bem como anúncios das companhias telefônicas do país invasor ou avisos recomendando que a população solicite passaportes. Alguns monumentos, como o do almirante czarista Ushakov, foram arrancados de seu pedestal e transferidos para a margem leste do rio Dnieper, onde o invasor colocou suas linhas de defesa.. A rota para Kherson é pontilhada de ataques de mísseis, nuvens de fumaça, casas destruídas e restos queimados de veículos blindados. Esquadrões de soldados vasculham a área em busca de munição russa abandonada para ser usada, e equipes de desminagem estão trabalhando sem parar. Também é fácil encontrar cenas macabras, como um posto de gasolina bombardeado na abordagem oeste de Kherson, onde estava um cadáver abandonado.

A cidade é agora a frente de guerra e um porta-voz do Alto Comando Sul das Forças Armadas Ucranianas confirmou a este jornal que a evacuação dos bairros próximos ao rio é uma possibilidade: "Vai depender do momento das operações militares". Essa mesma fonte alegou não saber qual a porcentagem da população ainda está em Kherson. No verão, o exército ucraniano afirmou que metade de seus 300.000 habitantes havia deixado o município, embora o número possa ser maior devido à transferência de 60.000 pessoas para território controlado pela Rússia. O governo de Kyiv afirma que milhares deles foram levados à força. Dvornikova e Gutnik, que têm filhos na Alemanha, negam conhecer quem se mudou compulsoriamente para o território russo, embora assegurem que tenha sido assim.

Oleksander Koshkin tem parentes que se refugiaram voluntariamente na Crimeia neste outono, à medida que os bombardeios se intensificavam à medida que as Forças Armadas ucranianas se aproximavam de Kherson. Koshkin e sua esposa prepararam chá, kompot quente (uma bebida caseira de frutas típica de alguns países orientais), pão com linguiça e queijo na segunda-feira para distribuir entre os soldados. As pessoas se aglomeravam ao redor das tropas para tirar fotos com elas e dar-lhes todos os presentes que pudessem. Koshkin admitiu ter medo do futuro deles, agora que estão na linha zero da guerra, mas disse que sofreu mais por sua irmã, na Crimeia: "Se nossas tropas conseguirem continuar com a ofensiva, cruzando o rio, a Crimeia será isolada da Ucrânia e ela não poderá retornar."

Na praça principal as pessoas se reúnem para carregar a bateria de seus celulares em geradores instalados pela Câmara Municipal. As crianças também correm atrás dos soldados para receber as identificações dos diferentes batalhões estacionados na cidade. Danil, um adolescente de 14 anos, ganhou 10 escudos de diferentes regimentos; seu favorito é o preto e branco de uma conhecida unidade de forças especiais que leva o nome e o símbolo de um personagem do filme, Predator, o alienígena caçador. Danil responde quando perguntado se encomendou os emblemas do exército russo: "Claro que não!"

Oleg Timkov, um jornalista e poeta local, conta que viu unidades chechenas, corpos de elite russos e multidões de batalhões das regiões asiáticas da Rússia. “Eu, como todo mundo, os evitava, os observava e os ouvia, mas me esquivava deles, eles instilavam terror.” O pior, diz Timkov, foram os ucranianos separatistas pró-Rússia em Donetsk. “Em Kherson eles tinham colaboradores que revelavam onde poderiam encontrar veteranos de guerra em Donbas, eles vieram ao meu prédio e levaram alguns; Não os vimos novamente." “As pessoas não saíam de casa por medo, principalmente mulheres e meninas da minha idade”, lembra Anna Voloshena, de 17 anos. Ela continuou seus estudos à distância; Apenas as escolas estabelecidas pelas autoridades ucranianas em colaboração com os russos, com currículo daquele país, podiam dar aulas presenciais. “Mas eles ficaram abertos apenas por um mês”, diz Voloshena, “porque ninguém foi lá, por medo e porque era estranho”. Os ucranianos que foram mais importantes em sua cooperação com a ocupação russaeles foram evacuados para a margem oriental do Dnieper , para áreas da província de Kherson ainda sob o controle das forças do Kremlin.

O inimigo, a um quilômetro de distância

Os vizinhos que moram perto do rio admitem que sofrem por suas vidas. Dvornikova e Gutnik fazem suas casas perto da ponte Antonov, dinamitadas pela retirada das tropas russas. Os dois amigos concordam que os dias de evacuação dos soldados invasores foram os piores porque as forças ucranianas bombardearam a área praticamente 24 horas por dia. Admitem que não se aproximam da costa; também o adolescente Danil admite que não tem permissão para se aproximar do Dnieper. Natalia Molchan, uma aposentada que mora nos bairros mais a oeste, explicou que no domingo foi passear nas praias do rio, para ver se via os russos na outra margem: "Eles estão muito longe, o rio está muito largo. , Um quilômetro. Não há mais perigo lá do que no resto da cidade.”

Representantes do Exército e analistas militares vêm alertando desde a semana passada que Kherson corre sério risco de ser invadida se as defesas russas decidirem bombardeá-la. Thibault Fouillet, oficial militar francês e especialista da Fundação para Defesa Estratégica, detalha em entrevista por telefone que, se o Estado-Maior russo decidir bombardear Kherson, não será uma decisão lógica do ponto de vista da visita militar: "No núcleo urbano não há neste momento as forças ucranianas; se atacam a cidade, como fizeram em outros lugares durante a invasão, é por uma decisão política”. Fouillet conclui que o mais sensato, caso a Ucrânia decida continuar a contra-ofensiva do outro lado do Dnieper, será evacuar Kherson para evitar baixas civis e facilitar o movimento de unidades militares. “Mas leva vários meses,

"Se eu morasse em Kherson e não fosse militar, sairia de lá o mais rápido possível, essa cidade é a frente", acrescenta Fouillet. Seus cidadãos não pensam como ele. “Sofremos muito, vamos comemorar por um mês essa vitória”, afirmou a médica Marina Maksimchuk. Ela e sua filha agitavam bandeiras nacionais enquanto o trovão da artilharia ucraniana vinha dos arredores de Kherson: a guerra para eles continua à sua porta.

Christian Segura, o autor deste artigo, escreve para o EL PAÍS desde 2014. Formado em Jornalismo e diplomado em Filosofia, exerce sua profissão desde 1998. Foi correspondente do jornal Avui em Berlim e depois em Pequim. É autor de três livros de não-ficção e dois romances. Em 2011 recebeu o prêmio Josep Pla de narrativa. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 15.11.22, às 04:18hs.

No G20, Biden anuncia fundos para infraestrutura no Brasil

Presidente diz que EUA vão liberar US$ 30 milhões para plantas no Brasil de processamento de cobalto e níquel, no âmbito de iniciativa do G7 de apoio a infraestrutura em países em desenvolvimento.


O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou nesta terça-feira (15/11) novos investimentos em projetos no Brasil, em Honduras e na Índia, entre outras nações, com o objetivo de melhorar a infraestrutura de países em desenvolvimento.

Biden fez o anúncio durante num evento na cúpula do G20, realizada na ilha indonésia de Bali, juntamente com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e seu homólogo indonésio, Joko Widodo.

Biden anunciou um investimento de 30 milhões de dólares (cerca de R$ 160 milhões) da agência federal americana US Development Finance Corporation (DFC) para o desenvolvimento no Brasil de instalações para transformação de minerais como cobalto e níquel, essenciais para a fabricação de veículos elétricos, painéis solares e outras energias renováveis.

Contraponto do G7 à Nova Rota da Seda

O anúncio faz parte da Parceria para Infraestrutura e Investimento Global (PGII, na sigla em inglês), iniciativa liderada pelo G7 para investir em infraestrutura em países em desenvolvimento e que busca ser uma resposta ao megaprojeto de infraestrutura chinês conhecido como Nova Rota da Seda.

No contexto dessa iniciativa, Biden também anunciou outro investimento da DFC de cerca de 15 milhões de dólares em infraestrutura de saúde na Índia. Incluído no pacote estará dinheiro para a expansão de uma rede de clínicas oftalmológicas e para uma empresa indiana que fabrica produtos de higiene feminina acessíveis.

Um dos maiores projetos da PGII será desenvolvido em Honduras, onde serão instalados painéis solares com equipamentos americanos. Isso será possível graças a uma garantia de empréstimo de 52 milhões de dólares que o Export-Import Bank dos EUA, uma agência de crédito à exportação, dará à empresa J.P. Morgan, que acabará financiando a compra pelo Banco Atlantida de Honduras dos equipamentos necessários para os painéis solares.

Por fim, Biden anunciou outros investimentos para ajudar a Indonésia a acelerar sua transição para energia limpa e projetos para aumentar o acesso à internet na Libéria.

Energia renovável

Sobre a PGII, Ursula von der Leyen afirmou que a iniciativa permitirá que seus signatários unam forças para responder à "demanda muito crescente" por energia renovável, para a qual os países do Sul global podem contribuir com "abundância de recursos naturais e potencial de energia limpa".

Do bloco europeu, o aporte financeiro virá da sua Global Gateway Strategy, que promove projetos sustentáveis e de qualidade para as pessoas e o planeta e prevê 300 bilhões de euros em investimentos em países terceiros nos próximos cinco anos, embora Von der Leyen não tenha especificado um número específico.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 15.11.22,  às 09:30hs. (md/lf EFE, AFP)