domingo, 20 de novembro de 2022

A democracia como desafio global

Diante de nós está a evidente tarefa de desagregar o consenso nacional-populista, esvaziando a base de massas do autoritarismo.

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Menos desglobalizada do que parece, a política de diferentes países continua atravessada por riscos, tensões e até conjunturas críticas que podem ser comparadas, como as que, nas últimas semanas, marcaram as duas maiores democracias das Américas. Por aqui nos livramos da ameaça do segundo mandato do governante nacional-populista, quando costuma tomar forma não propriamente uma tradicional ditadura militar, mas um regime de controle estrito das alavancas do Estado e das instâncias da sociedade civil. Mais ao norte, nos Estados Unidos, desmentindo previsões sombrias, Joe Biden e seu partido ganharam tempo precioso até as eleições de 2024, livrando-se o presidente do destino que se reserva aos lame ducks, os governantes enfraquecidos em final de mandato.

Trata-se de dois países cujas circunstâncias, segundo insight do cientista político Jairo Nicolau, estão no ponto máximo de proximidade, a começar pela radical divisão da sociedade – e dos eleitores – e pela presença de atores com vocação subversiva. Em ambos os casos, líderes de extrema direita, com séquito de massas e traços de um fascismo reformulado, ou de um pós-fascismo, tomaram o lugar da direita constitucional, ameaçando sem nenhum pudor o mecanismo da alternância. Voto eletrônico ou impresso, eleições centralizadas ou descentralizadas, nada disso importa. O script é monotonamente previsível, os resultados só valem se o autocrata vencer.

Em cada um dos países ocorreram eleições diversas. Deixando de lado governos e Legislativos estaduais, observemos que a tarefa do presidente Biden consistia, essencialmente, em reduzir danos na Câmara dos Deputados e no Senado. Num tempo de antipolítica ou, em outras palavras, de política pretensamente “antissistema”, Biden teve a coragem de colocar no seu núcleo discursivo o tema da democracia. Coragem cívica, havemos de convir.

Ainda que sob pressão, a democracia de Biden não é frágil nem incapaz de iniciativas audaciosas, bastando ver o enfrentamento da crise econômica, do desafio climático ou de tragédias contemporâneas, como a selvagem agressão à Ucrânia. O modelo de Biden será – por ora e por algum tempo mais – inatingível, mas pode-se entrever a inspiração rooseveltiana que mostrou ser possível compatibilizar regulação progressista dos mercados e requisitos da sociedade aberta.

Se o dinamismo norte-americano vem do centro político – e não da esquerda de Bernie Sanders ou de versões mais novas, como a que Alexandria Ocasio-Cortez representa –, entre nós dá-se um movimento relativamente diferente, mas também promissor, sob a condição de ser trilhado com rigor e sem ambiguidade de nenhum tipo. Não por acaso, tiramos o pó de expressões como “frente ampla” e “frente democrática”, de largo emprego na época do regime ditatorial. E passamos a usá-las como recurso valioso para indicar a expectativa de uma nova atitude da esquerda petista e, consequentemente, vencer a disputa contra a direita populista de massas.

A frente ampla, em meados dos anos 1960, sinalizava que personalidades fortemente antagônicas podiam se unir na luta pela restauração do regime civil. Era o caso, com toda a certeza, de Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart. E a frente democrática que viria a se firmar alguns anos mais tarde, já nos anos 1970, pressupunha que a esquerda isolada não teria êxito naquela luta, menos ainda se estabelecesse como meta um quimérico “socialismo”. Ao contrário, sua parte mais clarividente iria aliar-se aos expoentes do liberalismo político, quem sabe deflagrando – imaginavam alguns – um processo interno de reavaliação de categorias e mesmo de partes consideráveis da sua visão de mundo.

Aqui e agora, no entanto, a iniciativa da frente só pode vir da esquerda política. Esta última é que, indo ao centro, deve assumir como missão existencial restaurar a República democrática gravemente ofendida a partir de 2019. A pergunta a que deve responder, sem descanso, gira em torno da possibilidade de haver, ou não, uma normal dialética política com a Nação partida ao meio. E, mais ainda, com esta “outra” metade constituída por concidadãos que se deixam em boa medida fanatizar por mitos arcaicos – como o “Deus, Pátria, família” da tradição fascista ou o medo-pânico de um comunismo fantasmagórico – e, por óbvio, se mostram avessos aos princípios liberal-democráticos que se propõem a todos os moradores da nossa casa comum, seja qual for o cômodo que nela queiram ocupar.

Posta a questão nestes termos, a resposta só pode ser perturbadora. Diante de nós está a evidente tarefa de desagregar o consenso nacional-populista, esvaziando a base de massas do autoritarismo. Mas, pensando bem, este é um desafio que hoje se coloca aproximadamente nos mesmos termos no Brasil, nos Estados Unidos e em muitas outras partes, pois vivemos um tempo de política irreversivelmente globalizada – um fato que serve de estímulo não só para a busca de alianças inéditas, como também para a obra urgente de estabilização das democracias e aprofundamento da democratização social.

Luiz Sérgio Henriques, o autor deste artigo, é tradutor  e ensaísta. É um doso organizadores das obras de Gramsci no Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.11.22, às 03h00

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