terça-feira, 15 de novembro de 2022

'Elite brasileira se propõe a pagar por um governo autoritário', diz analista político

Professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor de diversos livros, b'Sáber se dedica a analisar o cenário político brasileiro há anos.


Professor Tales b´Sáber

Apesar do governo Bolsonaro ter estourado as metas de inflação e os tetos previstos para gastos públicos, o mercado em nenhum momento reagiu tão negativamente como reagiu na semana passada a declarações do presidente eleito Luis Inácio Lula da Silva defendendo leniência quanto às responsabilidades fiscais. Para o psicanalista, escritor e analista político Tales Ab'Sáber, isto é uma mostra de que "talvez o ranço antissocial seja tão importante no Brasil a ponto de a elite se propor a pagar por um governo autoritário."

Professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor dos livros Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica (2012), Dilma Rousseff e o Ódio Político (2015) e Michel Temer e o Fascismo Comum (2018, todos pela editora Hedra), há anos Ab'Sáber se dedica a analisar o cenário político brasileiro.

"Homens que se têm como modernos agenciadores do capitalismo de hoje abriram mão de suas referências, de seus critérios matemáticos, racionais e competitivos para dar aval a um governo que estourou a inflação e um teto de gastos que antes diziam ser fundamental. Sem planejamento, sem horizonte de crescimento, tudo sob aplauso dos 'faria limers'", diz ele, referindo-se aos operadores que trabalham na avenida Faria Lima, em São Paulo, o centro financeiro do país.

Desde 2019, o governo Bolsonaro já alterou por cinco vezes o teto de gastos, principal regra fiscal que limita o crescimento das despesas públicas.

"E é aí que entra uma questão que os psicanalistas podem levantar: há um desejo arcaico, autoritário, sádico que é tão forte quanto os cálculos racionais e que pode relativizar o lucro em nome de uma afirmação antipopular? Existe isso? Eu acredito que sim."

"Se você pega [o livro] Raízes do Brasil, [o historiador] Sérgio Buarque de Hollanda fala de uma mentalidade antimoderna que persistia no país. Porque ela estava totalmente estruturada na lógica da época da escravidão", afirma.

O professor de filosofia da psicanálise na Unifesp publicou neste ano o livro O Soldado Antropofágico: Escravidão e Não-Pensamento no Brasil (N-1 Edições) no qual defende que o regime escravista do passado continua a marcar a sociedade brasileira por meio de exploração social e da ideia do "ponha-se em seu lugar" entre as classes.

"No meu livro eu sustento que existe sim, como dizem os psicanalistas, um gozo de não-pensamento na elite brasileira. O que ocorreu sob o bolsonarismo foi suspender os critérios de pensamento econômico quando houve o estouro da inflação, dos gastos públicos e a degradação do orçamento. Os critérios foram contornados por um traço identificador de classe", diz Ab'Sáber.

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Estado de 'paranoia de guerra'

O psicanalista diz que o bolsonarismo teve adesão nas mais variadas camadas sociais da sociedade brasileira porque ativou um estado de "paranoia de guerra" no qual se inculca a ideia de que valores como a família e a religião estão sob ameaça e há a necessidade de sua defesa a qualquer custo.

Segundo ele, isso pôde ser observado nos protestos em frente a comandos militares nas últimas semanas.

"Não é por acaso que há o pedido constante de 'exército, exército, exército'. Há uma ideia de guerra. Mas, além disso, há a fantasia de que o Exército é o agente civilizatório do caos brasileiro. O Exército é uma instituição que funciona assim historicamente no Brasil e às vezes se vê no direito de intervir", afirma.

"Por isso é perigoso. Se o Exército considera que há solo social para reproduzir essa fantasia, ele pode sim destruir a democracia."

Ab'Sáber compara esse espírito de guerra de um grupo que se vê o tempo todo sob risco à dinâmica de uma seita.

"O grupo identitário em estado de guerra vai se isolando. E essa também é a lógica da seita, em que todo o resto está contaminado e a pureza só está lá. É um sistema desejante-delirante. Talvez uma seita apenas introduza nesse sistema de autoproteção em grupo um valor teológico, um valor transcendental a algum Deus, mas que está sempre nomeado por um líder. Numa seita se segue o desejo do líder."

Teorias da conspiração nos grupos

Além de golpe militar como uma espécie de redenção salvadora para o país, outros elementos do imaginário de grupos conservadores brasileiros foram reunidos em um documentário dirigido por Ab'Sáber ao lado de Gustavo Aranda e Rubens Rewald e lançado em 2018.

Intervenção: Amor Não Quer Dizer Grande Coisa compila vídeos de 2015 e 2016 — um momento ainda pré-bolsonarismo — nos quais aparecem discursos sobre a "ameaça comunista" no país e teorias da conspiração dos mais variados tipos.

"Eu, como psicanalista, quis fazer esse documentário porque as ideias que estão lá têm uma lógica que convida à conversão, à identificação. Se você passa a acreditar naquilo, você passa a funcionar daquele jeito. Tudo o que a gente vê hoje em dia já estava lá nas falas do documentário, mas sem Bolsonaro. Ninguém toca no nome do Bolsonaro. É uma realidade psíquica, uma formação psicológica."

Esse conjunto de ideias que se descolam da realidade, na visão de Ab'Sáber, também está relacionado à instabilidade atual no mundo, cuja complexidade é rejeitada por meio de uma fuga em direção ao arcaico.

"Veja, tudo isso responde também a uma crise contemporânea em que o mundo se torna extremamente complexo e que o entendimento presente nesses grupos não consegue dar conta. Existe uma instabilidade geral e mundial em que se oferecem a esses grupos respostas arcaicas como solução desses problemas."

O psicanalista também vê se desenhando um impasse em que crises de diferentes naturezas, incluindo a ambiental, precisarão ser encaradas para evitar uma catástrofe final.

"O futuro está sobre a crise do trabalho, da renda e a ideia de que uma nova rodada de expansão do capital e da riqueza pode ser também uma rodada final de dissolução do planeta. O horizonte de destrutividade apocalíptica coloca um impasse em que, das duas uma, ou a continuidade, a repetição das mesmas práticas leva à destruição ou são gerados espaços de mediação e pensamento globais para dar conta da crise", diz.

"Essa é a grande complexidade. Essa mediação e esse pensamento têm que ultrapassar a própria lógica da crise. Observar os direitos ambientais, de outros seres vivos e dos biomas é uma revolução na lógica em que a única razão é a produção de mercadoria e de valor. O capitalismo está chegando no seu teto. E esse teto pode ser a catástrofe universal ou o espaço da consciência transformadora."

Shin Suzuki - Da BBC News Brasil em São Paulo, em 15.11.22, às 09:00hs. / Publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63605227

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

‘Democracia foi atacada no Brasil, mas sobreviveu’, diz Alexandre de Moraes

Em evento nos EUA, presidente do TSE afirma não ser possível que ‘redes sociais sejam terra de ninguém e milícias digitais ataquem impunemente’

 Apoiadores de Jair Bolsonaro hostilizam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) durante evento em Nova York Foto: Pedro Venceslau/Estadão

No momento em que apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) fazem protestos pelo Brasil contra o resultado das eleições e em defesa da intervenção militar, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre Moraes, afirmou nesta segunda-feira, 14, em Nova York, que a “democracia foi atacada no Brasil, mas sobreviveu”.

A declaração foi dada durante o Brazil Conference, evento promovido pelo Grupo de Líderes Empresariais (Lide), organização criada pelo ex-governador de São Paulo João Doria, que reuniu também os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli.

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Primeiro a falar, Moraes pautou seu discurso na falta de regulamentação das redes sociais, nos ataques à democracia e nos questionamentos em torno da credibilidade do sistema eleitoral. “A desinformação e o discurso de ódio vêm corroendo a democracia”, afirmou.

Para Moraes, o fato de não haver regulamentação das redes sociais é um “problema mundial”. “Não é possível que redes sociais sejam terra de ninguém e milícias digitais ataquem impunemente”, avaliou, acrescentando que é necessária “liberdade com responsabilidade”.

“Sob falso manto de liberdade sem limites o que se pretende é corroer a democracia”, criticou Moraes.

O presidente do TSE comentou ainda sobre o impacto desse ambiente e das fake news na imprensa profissional. Segundo ele, “supostos jornalistas se misturam à imprensa tradicional e hoje a população não sabe mais o que é notícia verdadeira”.

Ao falar sobre os questionamentos em torno do sistema eleitoral, o ministro destacou que “pouco importa se o voto é impresso, se são urnas eletrônicas ou voto por correio, o que importa é desacreditar o voto”. Segundo Moraes, o poder Judiciário é, hoje, o principal alvo desses ataques. “O Judiciário é o grande cliente de milícias digitais. No Brasil, o poder Judiciário não foi cooptado, foi barreira para qualquer ataque à democracia e à liberdade.”

No domingo, Moraes, Lewandowski e Gilmar foram hostilizados por manifestantes na porta do hotel onde estão hospedados em Nova York. Barroso foi perseguido na Time Square.

Nesta segunda-feira, um grupo de manifestantes se posicionou em frente a entrada do Harvard Club, onde acontece a conferência, o que levou os ministros a usarem uma entrada lateral. A segurança foi reforçada.

Em sua fala, Gilmar Mendes também foi enfático contra manifestações antidemocráticas. “É preciso perguntar se não há um cenário de absoluta dissociação cognitiva, principalmente quando lunáticos pedem intervenção militar e a prisão do inventor da tomada de três pinos”, disse.

O ministro alertou para a necessidade de se questionar o que há por trás dos pedidos de intervenção militar em manifestações que acontecem após o fim das eleições presidenciais no Brasil. Ele chamou a atenção para a necessidade de união em prol da democracia no País e ainda para o foco na inclusão no “novo capítulo sobre responsabilidade fiscal”.

”A erosão constitucional revelou que o Brasil é resiliente. É preciso indagar se há algo mais por trás dos discursos lunáticos e histéricos que pedem intervenção militar”, enfatizou Mendes. Para o ministro, a democracia precisa recrutar esses cidadãos para “lutar pela democracia e não destruí-la”. “Estamos no mais longo período de normalidade democrática do Brasil”, avaliou.

Ao comentar sobre a situação fiscal do País, jogou luz ainda no lado social. “O novo capítulo sobre responsabilidade fiscal deve conter ideia de inclusão.”

Pedro Venceslau e Aline Bronzati, de New Yotk (USA) para O Estado de S.Paulo, em 14.11.22, às 15h08.

Quando fazer o óbvio contra as drogas e outros problemas é impossível?

Por trás de cada má ideia se esconde algum interesse político, econômico, cultural ou religioso

Imigrantes ilegais tentam atravessar a fronteira entre os Estados Unidos e o México  Foto: REUTERS/Jose Luis Gonzalez

Por que as sociedades e seus governos toleram passivamente ideias ruins? Por que há tantas políticas públicas obviamente fracassadas impossíveis de erradicar? A lista de países cujos governos não conseguem ou não se atrevem a enfrentar seus próprios tabus é vasta, longeva e variada. Um bom exemplo disso é a política a respeito do tráfico e consumo de drogas.

Em 18 de junho de 1971, o então presidente Richard Nixon declarou a guerra contra as drogas. Elas eram “inimigo público número 1″, afirmou. Segundo a Aliança Contra a Política Antidrogas, ONG que se opõe às políticas prevalentes nesse campo, os EUA gastam US$ 51 bilhões ao ano na guerra contra o tráfico e o consumo de drogas.

Em 2015, a Comissão Global sobre Política de Drogas, formada por um respeitado grupo de ex-chefes de Estado, estudou a fundo o tema e concluiu que “a guerra contra as drogas fracassou e surte consequências devastadoras sobre indivíduos e sociedades em todo o mundo”.

É óbvio que enfrentar esse grave problema, principalmente por meio de interdição, erradicação e prisão, não funciona. Ainda que tenha havido mudanças, e a legalização da maconha, por exemplo, já seja realidade em muitos lugares, a guerra contra as drogas, segundo Nixon formulou mais de meio século atrás, segue sendo a norma. A defesa automática do regime atual fecha a possibilidade de explorar outras alternativas. Sabemos que não haverá nenhuma solução perfeita, mas muitas opções seriam mais desejáveis do que a prevalente neste momento.

Energia

O subsídio aos combustíveis é outro exemplo de onde fazer o óbvio é impossível. Ao mesmo tempo em que o mundo embarca em um esforço sem precedentes para “se descarbonizar”, reduzindo o consumo de petróleo, gás e carvão, os governos destinam cifras inimagináveis para reduzir o preço da gasolina e da eletricidade.

Segundo o FMI, mais de 6% do total da economia mundial se dedica a subsidiar consumo de combustíveis fósseis. Estima-se que esta cifra superará 7% em 2025. Assim, com um pé os governos pisam no acelerador do consumo de combustíveis fósseis e com o outro tentam freá-lo.

Ou consideremos o embargo econômico dos EUA a Cuba, que vigora desde 1962. O propósito original foi – e segue sendo – mudança de regime em Cuba. A ideia era que o embargo enfraqueceria a economia cubana até produzir uma alteração de governo que abriria caminho para o estabelecimento de um regime democrático.

Obviamente, isso não aconteceu, e Cuba segue sendo a ditadura mais antiga da América Latina. Desde 1992, a Assembleia-Geral da ONU adota em sua reunião anual uma resolução exigindo que os EUA levantem o embargo. Mais que enfraquecer a ditadura, porém, o embargo serviu como a desculpa do governo de Havana para justificar seu fracasso econômico.

E há mais exemplos. A política em relação aos imigrantes, a política agrícola comum da Europa, regras trabalhistas que inibem a criação de novos postos de trabalho, o livre e fácil acesso a armas de fogo nos EUA, as políticas educativas, a governança da ONU e o gasto militar americano estão impregnados de ideias ruins impossíveis de eliminar.

Origem

Por trás de cada má ideia se esconde algum interesse político, econômico, cultural ou religioso. Por exemplo, sabemos que a política energética é fortemente influenciada pelas grandes corporações. Um dado recente e revelador nesse sentido é a quantidade de lobistas que representam os interesses das empresas de energia fóssil participando da cúpula da ONU sobre o meio ambiente (a COP-27).

Este ano, há 25% mais “lobistas fósseis” (como os chamam a ONG Testemunha Global, ou “Global Witness”) em comparação ao ano passado, na COP-26, em Glasgow. Somente um país (os Emirados Árabes) enviou uma delegação mais numerosa do que a formada pelos lobistas.

A guerra contra as drogas criou uma enorme e bem financiada burocracia que depois de mais de meio século aprendeu a neutralizar os esforços que buscam encontrar alternativas mais eficazes e humanas de lidar com esse problema. O embargo econômico a Cuba é defendido pelos políticos americanos que buscam votos dos cubanos na Flórida.

São poucos os que se beneficiam dessas políticas, mas eles estão bem organizados. Os prejudicados são muitos mais, mas não conseguimos fazer valer nosso número. Nestes tempos, porém, o mundo nos apresenta surpresas diariamente. É provável que em um futuro próximo fazer o óbvio não seja tão impossível, que algumas dessas ideias ruins sejam finalmente enterradas. 

Moisés Naim, o autor deste artigo, é escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowmen. / Traduçao de Augusto Calil. Publicado originalmente no Brasil n'O Estado de S. Paulo, em 14.11.22.

A responsabilidade jurídica de Bolsonaro

Não basta o juízo político das urnas. Se há indícios de que a lei penal foi descumprida, é preciso investigar. A paz não é fruto da impunidade, mas da efetiva igualdade de todos perante a lei

No regime democrático, o exercício do poder é submetido tanto ao controle político como ao jurídico. O presidente Jair Bolsonaro foi reprovado no controle político feito pelo eleitor. Nas urnas, a maioria da população rejeitou o modo como ele conduziu o Executivo federal, não lhe concedendo um segundo mandato presidencial.

Essa avaliação política feita pelo eleitor é elemento essencial do regime democrático, mas não é o único. Todo governante está submetido não apenas ao escrutínio popular, mas ao império da lei. Eventuais descumprimentos da legislação produzem consequências jurídicas. Na República, existe também uma responsabilização jurídica. Caso contrário, a lei seria inoperante, simplesmente inútil. Quem exerceu algum cargo público sabe, por exemplo, os muitos problemas que podem advir do desrespeito à Lei de Improbidade Administrativa. Literalmente, todo cuidado é pouco.

No caso de Jair Bolsonaro, os quatro anos de governo produziram um respeitável passivo jurídico, com incidência direta na esfera penal. Alguns inquéritos já foram abertos, por exemplo, com base nas suspeitas de interferência na Polícia Federal, denunciadas pelo ex-ministro Sergio Moro, e de prática do crime de prevaricação nas negociações da vacina Covaxin.

A partir do que a CPI da Covid apurou, uma comissão de juristas listou várias imputações penais potencialmente cabíveis por ações e omissões na pandemia: crimes de responsabilidade, crimes contra a saúde pública, crimes contra a paz pública, crimes contra a administração pública e crimes contra a humanidade. “O que restou evidente (...) é a ocorrência de uma gestão governamental deliberadamente irresponsável e que infringe a lei penal, devendo haver pronta responsabilização”, afirmou o parecer final, de setembro de 2021, assinado por Miguel Reale Júnior, Sylvia Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich.

Além disso, o comportamento de Jair Bolsonaro na Presidência da República motivou investigações envolvendo desinformação sobre as urnas eletrônicas e o processo eleitoral, ataques contra as instituições democráticas e vazamento de dados de investigação sigilosa da Polícia Federal.

Tudo isso não pode ser colocado debaixo do tapete, como se já fosse suficiente o juízo político do eleitor. É preciso apurar a responsabilidade jurídica de Jair Bolsonaro e, nos casos cabíveis, aplicar as penas correspondentes. Toda impunidade é prejudicial ao País, mas ainda mais grave seria a eventual impunidade de quem ocupou o mais alto posto da República. Representaria um tremendo mau exemplo para toda a sociedade.

É notório o pouco apreço de Jair Bolsonaro pela lei. Um exemplo aparentemente banal, mas muito significativo é a condução de motocicleta sem usar capacete, infração gravíssima à qual o Código de Trânsito Brasileiro atribui a penalidade de multa e de suspensão do direito de dirigir. O presidente da República simplesmente acha que a lei não vale para ele.

Em seu parecer, a comissão de juristas da CPI da Covid fez um diagnóstico a respeito da gestão da pandemia que pode ser aplicado a todo o governo de Jair Bolsonaro. “Não são poucas as situações que, ao ver da comissão de especialistas, merecem o aprofundamento das investigações pelos órgãos de controle do Estado brasileiro, assim como são bastante evidentes as hipóteses reais de justa causa para diversas ações penais”, disse o parecer.

O País precisa exatamente disso: investigação serena e criteriosa, dentro da mais estrita legalidade, respeitando as competências funcionais, para apurar os indícios de crime e as respectivas responsabilidades, de forma a permitir depois, quando for o caso, a aplicação, pelas vias judiciais competentes, das penas legais cabíveis.

Não se trata de perseguir ninguém. Mas não é plausível que, diante de tantos indícios – pequenos ou grandes, como, por exemplo, são as suspeitas envolvendo o MEC –, nada seja investigado. Jair Bolsonaro não está acima da lei. A tão necessária pacificação nacional não virá da impunidade, mas da efetiva percepção de que todos são iguais perante a lei.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 14.11.22, às 03h00

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Nas eleições, EUA desviaram de flechada fatal na democracia

Negacionismo eleitoral levou uma surra na eleição de terça-feira, mas nenhuma das coisas que estão corroendo os fundamentos da democracia americana foram embora


Eleitores americanos rejeitaram candidatos extremistas apoiados em discursos de negacionismo eleitoral. Foto: Julio Cortez/ AP

Pronto, pode adiar a sua mudança para o Canadá. Pode desistir da ligação para a Embaixada da Nova Zelândia sobre como se tornar um cidadão lá. A eleição de terça-feira foi realmente o teste mais importante desde a Guerra Civil para saber se o motor do nosso sistema constitucional – nossa capacidade de transferir poder de forma pacífica e legítima – permanece intacto. E parece ter sido aprovado – um pouco escangalhado, mas tudo bem.

Ainda não estou nem perto de dizer que estou aliviado, para declarar que nunca mais um político americano ficará tentado a concorrer com uma plataforma de negação eleitoral. Mas, dado o grau sem precedentes em que o negacionismo eleitoral foi elevado nestas eleições de meio de mandato, e a maneira como vários cabeças-de-bagre imitadores de Trump que tornaram o negacionismo central em suas campanhas foram esmagados nas urnas - podemos ter apenas desviado de uma das maiores flechas já apontadas para o coração da nossa democracia.

Com certeza, outra flecha pode nos atingir a qualquer momento, mas todo o sistema eleitoral dos EUA – em Estados republicanos e democratas – parece ter tido um desempenho admirável, quase ignorando os últimos dois anos de controvérsia, diminuindo-o ao que sempre foi: a fabricação vergonhosa de um homem e seus bajuladores e imitadores mais desavergonhados. Dada a ameaça representada pelos negacionistas de Trump à aceitação e legitimidade de nossas eleições, isso é um grande feito (e espero que dure até a contagem de votos no Arizona).

Apoiadora do ex-presidente Donald Trump usa camisa do grupo conspiracionista QAnon enquanto segura cartaz afirmando que Trump venceu a eleição presidencial de 2020, durante convenção do Partido Republicano na Carolina do Norte.

Apoiadora do ex-presidente Donald Trump usa camisa do grupo conspiracionista QAnon enquanto segura cartaz afirmando que Trump venceu a eleição presidencial de 2020, durante convenção do Partido Republicano na Carolina do Norte. Foto: Jonathan Drake/ Reuters - 05/06/2021

Não poderia vir em melhor hora, pois os líderes da Rússia e da China manipularam seus sistemas para se entrincheirar no poder além de seus mandatos previamente estabelecidos.

Um dos argumentos deles para seu próprio povo ao fazê-lo foi apontar para coisas como a insurreição de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos e o aparente caos de nossas eleições para dizer a seus cidadãos: “É assim que a democracia parece. É isso que vocês querem aqui?”.

De fato, em maio, durante seu discurso para a turma de formandos da Academia Naval dos EUA, o presidente Joe Biden lembrou quando o presidente chinês, Xi Jinping, o parabenizou em 2020 por sua eleição: “Ele disse que as democracias não podem ser sustentadas no século 21; as autocracias governarão o mundo. Por quê? As coisas estão mudando tão rapidamente. As democracias exigem consenso, e isso leva tempo, e você não tem tempo.”

Por essa razão, tanto Xi quanto o presidente da Rússia, Vladimir Putin – e o líder supremo no Irã, que agora enfrenta uma revolta liderada por mulheres – também perderam na noite de terça-feira. Porque quanto mais selvagem e instável nossa política, quanto menos capazes nos tornamos para transferir o poder pacificamente, mais fácil é para eles justificarem nunca fazê-lo.

Mas enquanto o negacionismo eleitoral levou uma surra esta semana, mandando uma mensagem vencedora, nenhuma das coisas que ainda estão corroendo os fundamentos da democracia americana – e nos impedindo de realmente realizar grandes coisas difíceis – foram embora.

As condições pareciam propícias para que os republicanos conquistassem importantes avanços nas eleições legislativas, mas o eleitorado tinha outros planos..

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Estou falando sobre a maneira pela qual nosso sistema de eleições primárias, com o gerrymandering, a manipulação dos distritos eleitorais, e as redes sociais se uniram para envenenar constantemente nosso diálogo nacional, polarizar constantemente nossa sociedade em tribos políticas e corroer constantemente os pilares de nossa democracia: verdade e confiança.

Sem poder concordar com o que é verdade, não sabemos qual caminho seguir. E sem poder confiar um no outro, não podemos ir para lá juntos. E tudo o que é grande e difícil precisa ser feito em conjunto.

Então, nossos inimigos seriam sábios em não nos deixar para morrer, mas seríamos ainda mais sábios em não concluir que, porque evitamos o pior, asseguramos o melhor caminho daqui pra frente.

Tudo não está bem.

Estamos tão divididos saindo desta eleição quanto estávamos ao entrar nela. Mas se a onda vermelha não se concretizou – particularmente em Estados-pêndulo como a Pensilvânia, onde John Fetterman ganhou uma cadeira no Senado sobre o candidato endossado por Trump, Dr. Oz – foi apenas porque republicanos e democratas moderados e eleitores independentes apareceram para colocar Fetterman e outros candidatos lá.

“Ainda há um grupo viável de eleitores centristas por aí, que, quando têm uma escolha válida – não em todos os lugares, nem sempre, mas em alguns distritos-chave – se impõem”, me disse Don Baer, que foi diretor de comunicação da Casa Branca na era Bill Clinton. “Acho que ainda há muitos eleitores dizendo: ‘Queremos um centro viável, onde possamos descobrir como fazer as coisas acontecerem, que possa realmente ajudar as pessoas, mesmo que não seja perfeito ou tudo de uma vez. Não queremos que todas as eleições sejam existenciais’.”

O desafio, acrescentou Baer, “é como você eleva esse sentimento e o faz funcionar em Washington regularmente?”.

Não sei. Mas se esta eleição é um sinal de que pelo menos estamos nos afastando do precipício é porque muitos americanos ainda se enquadram nesse campo independente ou centrista. Eles não querem ficar remoendo queixas, mentiras e fantasias de Donald Trump, e eles enxergam que elas estão deixando o Partido Republicano louco e agitando o país inteiro. Eles também não querem ser algemados pelos wokes identitários da extrema esquerda, e estão aterrorizados com a disseminação do tipo de violência política doentia que acabou de atingir o marido de Nancy Pelosi.

Temos uma enorme dívida por manter este centro vivo para com os deputados republicanos Liz Cheney e Adam Kinzinger e a deputada democrata Elaine Luria. Os três ajudaram a liderar a investigação sobre o 6 de janeiro no Congresso e acabaram sendo forçados a deixar o cargo como resultado. Mas a mensagem que o comitê enviou a um número suficiente de eleitores – que nunca, nunca, nunca, devemos deixar algo assim acontecer novamente – certamente contribuiu para a ausência de uma onda pró-Trump nesta eleição de meio de mandato.

Em suma, não recebemos um atestado de saúde. Recebemos um diagnóstico de que nossos glóbulos brancos políticos se saíram bem em derrotar a infecção metastática que ameaçava matar todo o nosso sistema eleitoral. Mas essa infecção ainda está aqui, e é por isso que o médico aconselhou: “Comporte-se de maneira saudável, recupere sua força e retorne em 24 meses para outro exame”.

Thomas L. Friedman, o autor deste artigo, é colunista do New York Times. Publicado no Brasil pelo O Estado de São Paulo, em 10.11.22, às 10h20.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Após reunião com integrantes do Judiciário e Congresso, Lula diz que 'é possível recuperar harmonia entre Poderes'

Presidente eleito teve maratona de encontros em Brasília com membros do Supremo Tribunal Federal e da Câmara e do Senado

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, se reuniu no final da tarde desta quarta-feira com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes. Na saída, em entrevista coletiva, o petista afirmou que é possível recuperar harmonia entre poderes.

— Instituições foram atacadas, violentadas com linguagem nem sempre recomendável por certas autoridades - afirmou, fazendo referências às investidas de Jair Bolsonaro à Justiça eleitoral.

O presidente eleito reforçou a confiança na urna eletrônica, que chamou de "conquista do povo brasileiro", e disse que o Brasil vai "voltar à normalidade".

— Eu ainda nem sei quem é oposição. Nós tivemos apenas uma conversa com o presidente da Câmara, uma conversa com o presidente do Senado. Há muita disposição dos dois com concordância daquilo que estamos propondo. não foi especificado ainda tudo que nós queremos — disse ainda.

Reunião no STF

Antes de se encontrar com Moraes, Lula esteve no Supremo Tribunal Federal (STF), onde se reuniu com a presidente, Rosa Weber, e demais ministros da Corte, exceto Luís Roberto Barroso, que está viajando.

A reunião contou com a presença do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, a deputada federal e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o senador Randolfe Rodrigues, o senador eleito Flávio Dino, o deputado federal eleito Paulo Teixeira, o ex-ministro Aloizio Mercadante, os advogados Eugênio Aragão e Cristiano Zanin e o procurador da Fazenda Nacional Jorge Messias, que é cotado para assumir a Advocacia-Geral da União (AGU).

No encontro, foram tratados temas como a necessidade de reaproximação entre o Executivo e o Judiciário, em contraposição aos constantes ataques do presidente Jair Bolsonaro (PL) ao STF. Além disso, Lula e os ministros da Corte falaram sobre a importância da participação do Judiciário em temas relacionados à proteção ao meio ambiente e ao desarmamento.

Atualmente tramitam no Supremo, por exemplo, ações que questionam medidas ambientais tomadas pelo atual governo, o marco temporal das terras indígenas e as ações que questionam os decretos de armas editados por Bolsonaro.

Após a reunião, o senador eleito Flávio Dino afirmou que o encontro entre Lula e os ministros do Supremo simboliza um "marco histórico" no restabelecimento da harmonia entre os poderes. O ex-governador do Maranhão também disse que todos os magistrados, inclusive os indicados por Bolsonaro, falaram com o presidente eleito.

— Essa visita é um sinal histórico de que o momento de confronto entre os poderes ficou para trás e que nós estamos restabelecendo a harmonia entre os poderes — disse.

Ainda segundo Dino, o caminho que deve ser adotado pela equipe de transição para garantir as promessas de campanha feitas pelo governo eleito deve ser uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Segundo ele, a prioridade é dar margem fiscal para compromissos em torno do sla'rio mínimo, da merenda escolar, da farmácia popular e do Bolsa Família ampliado.

Em nota divulgada após o encontro, o STF informou que "os ministros apontaram preocupações para o Brasil, como a necessidade de investimentos em educação e meio ambiente". E que o presidente eleito, por sua vez, afirmou que "atuará pela reconstrução da união do Brasil".

Após a reunião no STF, Lula seguiu com a comitiva para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde se reuniria com o presidente da Corte, Alexandre de Moraes.

Mariana Muniz e Gabriel Shinohara, de Brasília - DF para O Globo, em 09.11.22, às 18h33

Entenda como Gal Costa se tornou símbolo forte de rebeldia das mulheres

Cantora, morta nesta quarta, é um marco incontornável da música e desafiou o conservadorismo no auge da ditadura

A cantora Gal Costa / Arquivo Nacional

Uma das poucas mulheres a integrar a tropicália, Gal Costa, que morreu nesta quarta-feira, foi um marco não só na música brasileira, como também nas camadas sociais do país, sendo responsável por chacoalhar a cultura dos anos 1960 e 1970, ao virar um símbolo de liberdade feminina.

Os vocalizes agudos da baiana vieram, muitas vezes, embalados por performances dominadas por rebeldia, que inspiraram uma legião de mulheres a se verem fora da caixinha fru-fru da Barbie Girl.

Fosse pelas roupas espalhafatosas, os decotes ousados, as danças sensuais, o típico cabelo hippie, o espírito libertário de curtir a vida, os solos vocais que encantaram ouvidos de norte a sul do Brasil, ou pela presença marcante num dos principais movimentos culturais do país, Gal foi na contramão de estereótipos machistas.

Até mesmo o jeito que a cantora segurava o violão revelava sua forma inovadora de lotar casas de shows. Nada de pernas cruzadinhas. Em muitas das apresentações, Gal apoiou o instrumento em joelhos afastados entre si. Pode até parecer um gesto pequeno, mas é só se perguntar, por acaso, quantas mulheres cantam, até mesmo nos dias atuais, com as pernas escancaradas.

O guarda-roupa da cantora também endossava a rebeldia, sobretudo na sua fase tropicalista, que contou com looks espalhafatosos e ousados.

Nos anos 1980, Gal chegou a posar nua para uma revista e ganhou, na época, fama de vulgar. Ela já havia aparecido seminua na capa de "Índia", um de seus maiores discos. Nenhuma nudez, claro, faz de alguém feminista —ou antifeminista—, mas o que chama a atenção é como Gal desafiou, sem pudores, normas conservadoras de um Brasil regido pela ditadura militar.

Em "Índia", Gal aparece de calcinha vermelha, cocares e mamilos à mostra. O álbum traz um sentimento de revolta social, com letras contestadoras e, acima de tudo, subversivas, como em "Presente Cotidiano" —composta por Luiz Melodia—, na qual a artista debocha da ideia propagada pelos militares de milagre econômico.

Talvez o álbum que melhor sintetiza a tropicália, "Gal a Todo Vapor" é outra obra transgressora da baiana. A começar pelo fato de que é o primeiro disco do Brasil gravado ao vivo —não à toa, dá para ouvir ruídos, improvisos e vários detalhes. Depois, pela brasilidade arranhada nas guitarras agressivas. E, claro, pela performance de Gal.

No show que gerou o disco, a cantora traduz bem o desbunde da contracultura brasileira, com brilhos pelo corpo, roupas hippies, sensualidade, psicodelia, rebeldia e enaltecimento de vários Brasis. Tudo isso acompanhado de seu vocal agudo, que ora surgia violento, ora doce.

Até mesmo a boca que estampa a capa de "Gal a Todo Vapor" reflete a faceta contraventora da artista. Tingidos por um forte batom vermelho, os lábios da baiana emulam uma imagem diferente da de mulher recatada e do lar.

Foi também na época de "Fa-Tal" que a cantora se tornou símbolo dos encontros da elite carioca hippie, mais especificamente do píer de Ipanema, no Rio de Janeiro. Conhecidas como as dunas de Gal, o local virou um point psicodélico da contracultura, onde jovens se reuniam para conversar, usar drogas e compor músicas.

Na época, Gal era vista como "a musa do tropicalismo", apelido que até hoje é usado para se referir à cantora. Há de se considerar o teor sexualizado do termo —afinal, nenhum dos músicos do movimento teve fama desse tipo—, mas a popularidade de diva nunca incomodou Gal, como ela mesma disse a este jornal, em 2015.

Ainda que não erguesse a bandeira feminista, o legado que Gal deixa para as mulheres é do espírito que encarnou dentro e fora dos palcos, o de alguém que quis ser livre.

Marina Lourenço, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição on line, em 09.11.22, às 15h28.

Biden resiste

O ataque à democracia pelo republicanismo extremista não atinge seus objetivos e o Partido Democrata continua

Joe Biden, em um comício a favor dos candidatos democratas da Pensilvânia no dia 5 na Filadélfia. (DPA Via Europa Press)

O tsunami trumpista não chegou. Os Estados Unidos passaram por eleições momentosas nas quais estava em jogo muito mais do que a eleição de senadores, deputados, governadores e milhares de cargos estaduais e locais. O próprio futuro da democracia estava parcialmente em jogo. O resultado eleitoral mostra um país dividido, mas também há alguns sinais de rejeição às posições mais extremistas, o que dá esperança de que a democracia tenha passado no teste.

A esmagadora “onda vermelha” prevista por Donald Trump ficou aquém porque os democratas resistiram muito melhor do que o esperado. Eles têm uma forte chance de manter o controle do Senado e perderam por pouco a Câmara dos Representantes. Se os republicanos queriam que isso fosse um referendo sobre Joe Biden, ele alcançou uma vitória moral, já que dados provisórios sugerem que ele é o presidente menos punido em uma eleição legislativa nos últimos 20 anos, apesar de lidar com a inflação mais alta em quatro décadas e uma forte erosão de sua popularidade.

Biden aproveitou o fato de ter Trump à sua frente para fazer uma árdua defesa da democracia que parece ter dado certo. Mas esse tipo de doce derrota não pode esconder que será suficiente para os republicanos controlarem a Câmara dos Deputados por uma estreita maioria, como indicam os primeiros resultados, para tentar impossibilitar a vida de Biden com um bloqueio legislativo, comissões de investigação e políticas processos judiciais justificados ou não, bem como um questionamento do apoio econômico e militar à Ucrânia diante da agressão russa.

Os republicanos ficaram muito aquém de suas expectativas. Alguns dos candidatos mais extremistas apoiados por Trump foram claramente derrotados, o que mostra as limitações eleitorais do ex-presidente. Devasta entre as bases mais fiéis do Partido Republicano, mas gera divisão e uma ampla rejeição no eleitorado como um todo. O panorama apocalíptico dos Estados Unidos que ele desenhou em sua campanha de linha grossa não atraiu os eleitores tanto quanto ele esperava. De fato, há quem considere que o resultado republicano teria sido melhor sem o protagonismo do ex-presidente.

Esta terça-feira marcou de várias maneiras o início da campanha presidencial de 2024, uma nomeação para a qual o magnata de Nova York deve concorrer na próxima semana. Suas chances de sucesso podem não ser tão grandes quanto ele mesmo acredita.

O secretário de Estado da Geórgia que se recusou a “encontrar” votos suficientes para Trump vencer as eleições presidenciais de 2020 foi reeleito. É outra boa notícia que, neste caso, não pode esconder o fato de que cerca de 200 negadores eleitorais, instalados em graus variados na farsa de que Trump foi roubado nas eleições, foram eleitos. Muitos deles serão parlamentares, mas outros também aspiram a cargos como secretário de Estado ou governador com responsabilidades diretas pela organização e supervisão de futuras eleições. Esse é outro motivo de preocupação, embora a contagem final ainda demore algumas horas ou até talvez, em alguns casos, dias. Nesses casos, o conspiracionismo pode reutilizar perigosamente as margens estreitas.

Embora a organização eleitoral de alguns Estados deixe muito a desejar, o dia transcorreu sem problemas graves e sem violência, um alívio da extrema tensão que o país vem enfrentando. Houve atrasos, falhas técnicas e pequenos incidentes que Trump e seu povo tentaram explorar, mas a normalidade democrática prevaleceu. Como a contagem de votos termina em alguns eleitorados apertados, resta saber se os candidatos a Trump que perderam são capazes, desta vez, de aceitar sua derrota.

Editorial do EL PAÍS, em 09.11.22.  Publicado originalmente às 16:21 hs. 

Democratas frustram as aspirações de um retorno triunfante de Trump

O ex-presidente, que planeja anunciar sua candidatura para 2024 na próxima terça-feira, toma corretivo nas urnas com o fracasso da maioria de seus candidatos

O ex-presidente Donald Trump, durante sua aparição ontem à noite na Flórida. (Foto: Joe Readle / Getty Images)

Donald Trump conseguiu mais uma vez o que procurava: colocar-se no centro das eleições [cujos resultados podem acompanhar aqui em direto ]. Mas desta vez não saiu como o esperado. O último sprint em sua penúltima corrida narcisista foi dado na segunda-feira em um comício em Dayton (Ohio), onde adiantou que no dia 15 de novembro preparou seu grande anúncio. Ninguém duvida de seu conteúdo: será a confirmação do lançamento de sua corrida à Casa Branca em 2024. O que o ex-presidente não suspeitava então é que os democratas, que, embora previsivelmente percam o controle da Câmara Deputados, o farão por muito menos do que o esperado, eles estavam prontos para conter a “onda vermelha” que Trump estava alardeando. O magnata de Nova York estava convencido de que essa cor, associada ao Partido Republicano nos Estados Unidos, varreria as pesquisas.

O ex-presidente convocou um partido para assistir às eleições na terça-feira em sua residência em Mar-A-Lago, em Palm Beach, onde votou pela manhã com sua esposa, Melania Trump. E lá ficou claro que, se ele e seu pessoal achavam que o retorno triunfante à Casa Branca em 2024 era um acordo feito, era melhor pensar nisso novamente.

Inexperiência e Extremismo

Alguns dos candidatos mais famosos que Trump apoiou nas primárias ficaram cara a cara em uma noite atípica com a realidade eleitoral. Lee Zeldin, em Nova York, Doug Mastriano e Mehmet Oz, na Pensilvânia, Tudor Dixon, em Michigan, e Don Bolduc, em New Hampshire, todos candidatos cujo maior crédito era o apoio de Trump, bateram contra o muro da sua inexperiência e do seu extremismo.

Quatro dos cinco (exceto Oz) pertencem à tribo dos negacionistas eleitorais que acreditam, como o próprio Trump, na falsa teoria da fraude maciça nas eleições presidenciais de 2020. Para outras duas novas faces do novo trumpismo mais extremista, Kari Lake e Blake Masters, as coisas também não pareciam boas, à medida que a contagem progredia no Arizona.

O anúncio do ex-presidente na segunda-feira ocorreu no final de um dia em que os candidatos republicanos de todo o país temiam um golpe de última hora em suas expectativas, que pareciam favoráveis ​​a menos de 24 horas da data de encerramento. eleições, as mais importantes da memória recente nos Estados Unidos. Deles virá a composição do Congresso (cujas 435 cadeiras são renovadas) e do Senado (um terço das cadeiras são votadas lá). Também está em jogo a segunda metade do mandato de Joe Biden, o futuro de Trump e a eleição de 2024, cuja pré-campanha foi inaugurada na terça-feira.

Trump, que perdeu em 2020, apesar de ainda não ter aceitado essa derrota, começou a colher a margarida presidencial na primavera de 2021. Durante as primárias deste ano, ele dava seu apoio engraçado a alguns candidatos e crucificava outros. Então parecia uma estratégia arriscada: e se aqueles que ele estava empurrando acabassem no precipício? Antes do verão, muitos em seu partido temiam que um holofote muito forte sobre o ex-presidente ofuscasse as aspirações republicanas. No final, essa influência saiu pela culatra em algumas corridas cruciais em todo o país. Não é absurdo dizer que, se o partido acabar perdendo o controle do Senado, o fará em parte por causa do grupo escolhido pelo ex-presidente.

Como este culminou na segunda-feira em Ohio é mais um exemplo de seu estilo inimitável de comunicação, daquele momento de marketing político que é difícil saber se deve ser atribuído a um gênio calculado ou apenas ao puro acaso. "Provavelmente terei que fazer isso de novo", disse ele em um comício no Texas há duas semanas. Na quinta-feira, em Iowa, para apoiar a reeleição do senador Chuck Grassley, ele divulgou uma de suas frases memoráveis ​​ao afirmar: "Muito, muito, muito provavelmente farei de novo". No sábado, na Pensilvânia, ele disse: "Eu realmente quero fazer isso". E no domingo em Miami, ele pediu a seus eleitores que ficassem atentos no dia seguinte: "Temos um grande comício amanhã à noite em Ohio".

A Ameaça DeSantis

Todos os analistas e pesquisas concordam que Trump teria muitas opções nas primárias presidenciais. Dentro do partido, apenas o governador da Flórida, Ron DeSantis , parece capaz de ofuscá-lo (outros nomes que soam são os de seu vice-presidente, Mike Pence, ou os dos governadores da Virgínia, Glenn Youngkin, e do Texas, Greg Abbott). .

A ameaça de DeSantis parece ainda mais séria desde terça-feira, depois que ele varreu sua reeleição na Flórida. Há também sérias diferenças entre os dois, que eles não fazem nenhum esforço para esconder. No domingo passado, Trump e DeSantis competiram em comícios paralelos na Flórida, mas os dois evitaram se ver. O ex-presidente disse que não apoiou o governador, que estava concorrendo à reeleição (e venceu tranquilamente), porque não o "pediu".

“Se ele aparecer, ele aparece”, disse Trump sobre DeSantis aos repórteres que viajavam com ele em seu avião particular, o Trump Force One, que o levaria para Dayton na segunda-feira. Do governador, que ele colocou em um comício no fim de semana na Pensilvânia, um de seus famosos apelidos, "DeSanctimonius" (brincando com seu sobrenome e a palavra "pudish", em inglês), ele disse em declarações publicadas terça-feira no The Wall Street Journal: “Se ele concorrer, contarei coisas sobre ele que não serão muito lisonjeiras. Eu sei mais sobre ele do que qualquer outra pessoa, exceto, talvez, sua esposa. Ela é quem está conduzindo sua campanha.”

Se Trump chegar à corrida final para a Casa Branca, ele poderá encontrar seu antigo oponente novamente, Joe Biden, que parece determinado a concorrer à reeleição apesar de ter quase 82 anos. Outros possíveis candidatos democratas para 2024 podem ser os governadores da Califórnia, Gavin Newsom; Michigan, Gretchen Whitmer, ou mesmo Illinois, JB Pritzker.

Iker Seis Dedos, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS em Washington. Licenciado em Direito Económico pela Universidade de Deusto e mestre em Jornalismo UAM/EL PAÍS, trabalha no jornal desde 2004, quase sempre ligado à área cultural. Depois de passar pelas seções El Viajero, Tentaciones e El País Semanal, foi editor-chefe de Domingo, Ideas, Cultura e Babelia. Publicado originalmente em 09.11.22 às 05:36hs

Trump, 1; democracia 3

Com a inflação mais alta em quatro décadas e um presidente democrata muito impopular, os Estados Unidos se recusaram mais uma vez a entregar o poder ao fanatismo da seita Trump

Um centro de votação em San Francisco na terça-feira. (John G. Mabanglo -  EFE)

Os Estados Unidos foram às urnas na terça-feira com Donald Trump no centro do palco político pela quarta vez em seis anos e, pela quarta vez, sua força real nas urnas provou ser muito menor do que sua incrível capacidade de intoxicar. .

Os resultados finais podem demorar dias para serem conhecidos, mas na manhã desta quarta-feira pode-se confirmar que os republicanos não conseguiram capitalizar o desgaste da presidência de Biden, como a oposição costuma fazer nas eleições de meio de mandato. O sistema de eleições a cada dois anos incentiva os cidadãos a votar contra e faz com que o poder em Washington seja sempre distribuído. É estranho que isso não aconteça. O resultado provisório aponta para um empate amargo, que tem sabor de derrota em uma situação de inflação de preços disparada e com avaliação do cidadão do presidente abaixo de 40%. A causa da incapacidade dos republicanos de ganhar um único assento no Senado, mudar um governo ou obter a maioria na Câmara (os dados indicam que será republicano, mas neste momento apenas um assento líquido mudou de mãos) Eles não pode ser atribuído ao sorriso de Biden ou à força de uma mensagem democrata que está desorientada e na defensiva há meses devido à situação econômica. A causa deve ser buscada do lado republicano. Foi aí que, contra todos os precedentes no comportamento de ex-presidentes, Donald Trump decidiu que ele seria o fator decisivo nessas eleições. Desejo concedido.

Trump perdeu as eleições de 2016 por mais de três milhões de votos, embora tenha vencido a Casa Branca graças a uma cirurgia eleitoral: apenas algumas dezenas de milhares de votos em três estados-chave. Por quatro anos, ele atuou como uma bola de demolição para as instituições americanas de dentro do Salão Oval. Naquela época, caíram tradições democráticas, regras não escritas de decoro institucional, limites intocáveis ​​ao uso do poder presidencial. Mas os cidadãos corrigiram esse desvio assim que tiveram a oportunidade. Em 2018, o Partido Republicano perdeu 40 cadeiras na Câmara dos Deputados (o maior revés desde a presidência de Nixon) e a maioria na Câmara. Em 2020, ele perdeu a Casa Branca (desta vez por sete milhões de votos) e o controle do Senado, com perdas em lugares tradicionalmente republicanos como Arizona ou Geórgia. Os apocalípticos falharam. O sistema resistiu.

No entanto, a recusa de Trump em reconhecer o resultado eleitoral ameaçou criar uma divisão tóxica impossível de resolver não só no Congresso, mas nem mesmo pelas urnas, a ponto de a possibilidade de um confronto armado entre extremos ter se tornado no bate-papo do café. As eleições de 2022 foram a oportunidade de ver se esse era o desvio irremediável ao qual Trump havia condenado a democracia americana. Ao negar o resultado eleitoral, a continuidade de Trump como força hegemônica da direita norte-americana questionou a própria democracia, como bem afirmou Biden.

Trump ampliou seu controle sobre o Partido Republicano graças ao seu talão de cheques e ao fascínio que exerce sobre aproximadamente um grande terço da base, um grupo sem o qual é impossível para um candidato vencer suas primárias. Assim, centenas de candidatos que abraçam com entusiasmo as bobagens do ex-presidente conquistaram cadeiras e cargos de responsabilidade para ter seu apoio. Mas uma conclusão deixada por estas eleições é que este apoio só é decisivo a nível local. Nas eleições em que o eleitorado é estadual (governadores ou senadores), não pode vencer o centro moderado, o que, felizmente, parece continuar existindo. Isso é fundamental para que o partido possa começar a falar claramente sobre deixar Trump para trás. Ele vai resistir.

A derrota do trumpismo tem rosto em pelo menos seis dessas competições. Nessas eleições, perderam os trumpistas que aspiravam a governador e senador pela Pensilvânia, aquele que aspirava a senador por New Hampshire e os candidatos a governadores de Maryland, Massachusetts e Nova York. Os resultados do Arizona ainda não são conhecidos, onde dois candidatos do magaverse estão a caminho de perder nas eleições para governador e Senado, embora o aperto do resultado possa mais uma vez transformar o Arizona em marco zero para antidemocráticos conspiração. Da mesma forma, os candidatos negadores ainda têm opções na Geórgia e Nevada.

Ao mesmo tempo, vários republicanos venceram confortavelmente suas eleições sem a necessidade de Trump, como o governador do Texas, Greg Abbott, ou o governador da Flórida, Ron DeSantis, que não esconde sua intenção de ser candidato em 2024. Entre eles destaca-se Brian Kemp, que se repete como governador da Geórgia. Kemp entrou em conflito com Trump quando ele tentou fazer com que as autoridades republicanas do estado manipulassem os resultados das eleições de 2020 e se recusassem a certificar a vitória de Biden no estado. Se a estrutura é a sobrevivência da democracia, é uma boa notícia que os candidatos que têm sua própria marca republicana, além de Trump, venceram. Uma marca perigosamente extremista, sim, mas não Trumpista. Eles não questionam o sistema eleitoral.

A indústria de pesquisas de opinião nos dirá nos próximos dias em que votaram negros, latinos, sindicatos, aposentados, jovens, militares e donas de casa brancas suburbanas. Além disso, que influência teve o desvio à direita do Supremo Tribunal Federal, evidente ao eliminar a proteção do direito ao aborto em vigor há 40 anos, na hora de mobilizar o voto democrata. Mas os números finais sugerem que os Estados Unidos continuam sendo um país razoavelmente dividido ao meio, onde as pessoas votam em paz, em que um segmento do eleitorado muda sua opção política sem problemas de um ciclo para outro e os candidatos pesam tanto quanto ou mais do que as partidas. Quero dizer, como sempre. Embora ele tenha empurrado seu partido para a direita de uma maneira perturbadora que os eleitores julgarão, Até agora, Trump não conseguiu alterar fundamentalmente a coexistência democrática quando se trata de votar. Pode parecer óbvio, mas isso é algo que estava em jogo nestas eleições, e as primeiras conclusões são boas.

A deriva iliberal do republicanismo já acumulou três ataques fracassados ​​às instituições de Washington. Mas a batalha não acabou. Se Trump foi uma concha inesperada que deixou danos visíveis à Casa Branca, o Trumpismo é uma bomba de fragmentação que se espalha por todo o quadro institucional dos Estados Unidos, causando danos inestimáveis ​​de longe. A luta pela saúde da democracia agora se move para condados, municípios, xerifes , promotores ou conselhos escolares, funcionários eleitos com mais influência na vida cotidiana do que a Casa Branca. O próximo jogo acabou de começar.

Pablo Ximenez de Sandoval, o autor deste artigo, é editorialista da seção Opinião. Trabalha no EL PAÍS desde 2000 e desenvolveu sua carreira no Nacional e no Internacional. Em 2014, abriu o escritório correspondente em Los Angeles, Califórnia, que ocupou até dezembro de 2020. Ele é de Madri e é formado em Ciência Política pela Universidade Complutense. Publicado originalmente em 09.11.22,às 14:33 hs.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A rede de notícias falsas que faz manifestantes bolsonaristas desconfiarem do próprio presidente

Essas reações podem ser fruto de uma ambiguidade proposital que está embutida no discurso de Bolsonaro — caso do curto pronunciamento feito na tarde de terça no Planalto, no qual o presidente não reconhece a derrota no segundo turno para Lula, mas permite que o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, anuncie o início do processo de transição.

Protesto contra a eleição de Lula em Anápolis, Goiás, no feriado de 2 de novembro (Crédito: Ueslei Marcelino / Reuters)

Grupos bolsonaristas presentes em aplicativos de mensagem e nas redes sociais já se preparavam para estimular manifestações após a eleição porque sustentavam a falsa narrativa de que uma fraude impediria a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, diz o pesquisador Leonardo Nascimento, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

"Isso explodiu há mais de um mês. Já vinham sendo preparadas manifestações no caso de a eleição, no dizer desses grupos bolsonaristas, ser 'fraudada'. Já falavam coisas como 'o Brasil vai parar'. Há 15 dias começaram a surgir panfletos de convocação para protestos, às vezes para ocorrerem no próprio dia da eleição do segundo turno, às vezes no dia seguinte", diz.

Nascimento explica que redes atuantes no Telegram e WhatsApp fazem um trabalho "constante, diário" de envio de informações que alimentam um sentimento de prontidão e uma lógica de paranoia para se defender de uma ameaça representada pelos grupos contrários aos bolsonaristas.

'Desobstruam as rodovias': após quase 72h, Bolsonaro pede a apoiadores que desfaçam bloqueios em estradas

"Eles vivem num emaranhado de posts, vídeos e áudios de confirmação de suas crenças. Estão fortemente imbuídos de teorias da conspiração ou de lógicas operatórias. E há o aspecto de que, de 2016 para cá, o relacionamento com pessoas de visões diferentes foi diminuindo", em um reforço do conceito de "bolhas", que impedem desafios aos pensamentos e linhas de raciocínio do grupo.

O pesquisador afirma que essa lógica funciona não só para apresentar narrativas de potenciais ameaças contra eles, mas também de que há "um grande plano" preparado para o domínio bolsonarista.

"Por isso, não adianta o vice-presidente [Hamilton Mourão] anunciar que já está sendo feita uma transição, que o governo vai mudar. Porque nos grupos bolsonaristas prevalece a narrativa de que existe um plano sendo preparado para o retorno dos militares, onde todos os supostos algozes serão presos, como o ministro [do STF] Alexandre de Moraes."

Ele cita um vídeo que circula bastante desde a terça-feira (01/10), feito por um repórter da Rádio Gaúcha, em que manifestantes bolsonaristas nas imediações do Comando Militar do Sul em Porto Alegre comemoram efusivamente a falsa notícia de que Moraes havia sido preso.

Cenas semelhantes foram registradas em outras localidades, como no Rio.

"As pessoas nos grupos bolsonaristas ficam falando o tempo todo daquilo. As pessoas acreditam que aquilo se torna realidade. Para compreender o que está acontecendo nos grupos, a gente precisa tentar se deslocar do ponto de vista lógico, do que efetivamente está acontecendo, para o ponto de vista de como eles interpretam o que está acontecendo", diz.

Até mesmo mensagens vindas diretamente de Bolsonaro que contrariam expectativas dos partidários podem causar dúvida sobre a autenticidade.

No vídeo em que o presidente pede a desobstrução das rodovias postado em seu perfil oficial e verificado no Facebook uma usuária chega a duvidar que o conteúdo é genuinamente relacionado aos atuais protestos.

"É mentira isso. Vídeo antigo. Prestem atenção, [isso] foi na outra manifestação dos caminhoneiros", afirma a seguidora do presidente em uma das respostas.

Essas reações podem ser fruto de uma ambiguidade proposital que está embutida no discurso de Bolsonaro — caso do curto pronunciamento feito na tarde de terça no Planalto, no qual o presidente não reconhece a derrota no segundo turno para Lula, mas permite que o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, anuncie o início do processo de transição.

"O tempo todo Bolsonaro está administrando um espaço em que ele está dentro da ordem, em que respeita a ordem democrática e, ao mesmo tempo, dá margem para subverter essa ordem. Essa ambiguidade do discurso, de idas e vindas, de afirmações e negações é constitutiva da estrutura política do exercício do bolsonarismo", analisa Nascimento.

Manifestante segura cartaz com frase em inglês "nós somos contra o comunismo" em São Josdos Campos, interior de SP (Crédito, Roosevelt Cassio / Reuters)

Ele desenvolveu ao lado de Letícia Cesarino, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Paulo de Freitas Castro Fonseca, também da UFBA, uma análise sobre mais de 2,1 milhões de mensagens na plataforma no período próximo à realização do primeiro turno da eleição de 2022, com foco no processo de desinformação no Telegram.

Uma das conclusões foi a identificação de pautas conspiracionistas cada vez mais expressivas em torno da ideia de fraude na votação.

Narrativas que tentaram descreditar o sistema eleitoral brasileiro, com as Forças Armadas evocadas como fiscais do processo, também apareceram com destaque entre as mensagens analisadas, além de convocatórias para os atos de 7 de setembro que serviram para promover a candidatura de Bolsonaro.

Para Nascimento, não há interesse em arrefecer essa retórica presenciada nas redes de confrontos e ameaças em relação aos opostos.

"Não interessa porque se arrefecer, vira regime democrático, se arrefecer vira diálogo. E eles não querem diálogo."

Shin Suzuki, da BBC News Brasil em São Paulo, em 03.11.22, às 08:05hs /  Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63494495

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

“Somos tribais. Com aqueles de fora do grupo, podemos ser incrivelmente cruéis"

Com a era Trump ele se tornou um intelectual estrela. Americano de origem alemã, agora estuda o desafio do multiculturalismo nas democracias.

O cientista político Yascha Mounk em Washington DC em 15 de janeiro de 2019. (Foto: Stephen Voss / Redux / Contactphoto)

Yascha Mounk (Munique, 40 anos) é um americano de origem alemã que não esconde, mas cultiva, um leve sotaque alemão em seu inglês fluente, ágil e convincente. Durante a era Trump ele se tornou um intelectual estrela, procurado por todos os meios de comunicação. Seu último livro, The Great Experiment: Why Diverse Democracies Fail and How to Make Them Work(Estado e Sociedade), é a história das democracias que enfrentam o desafio de gerir uma sociedade multicultural, mas é também uma canção otimista em defesa das instituições democráticas e do Estado de Direito. Professor visitante do St. Antony's College, em Oxford, recebe o EL PAÍS no refeitório de uma instituição universitária cuja calma representa o contrário do calor e da agitação dos debates políticos em que o autor gosta de mergulhar.

PERGUNTA.  Suas ideias quase navegam contra a corrente. Ele vê as ameaças à democracia, mas acredita que a democracia é mais forte...

RESPOSTA. Um número muito importante de democracias está à beira de ser tomado pelo autoritarismo, como Hungria, Brasil ou Índia. Mesmo aquelas democracias que sempre consideramos mais estáveis ​​estão seriamente ameaçadas, como é o caso dos Estados Unidos . Mas, ao mesmo tempo, nos últimos dois anos, os governos autoritários provaram ser bastante fracos. A Rússia não é atraente hoje e enfraqueceu sua posição no mundo com o terrível e injusto ataque à Ucrânia. E a China hoje não parece ser o modelo de sucesso de alguns anos atrás.

P. _ Xi Jinping se firmou no poder por pelo menos mais cinco anos.

R.  O que temos é uma crise global de confiança que é falsa em sua origem. Porque, comparada às ditaduras, a democracia ainda é bastante atraente. Dez anos atrás, a China podia ter um sucesso econômico impressionante e havia um pouco de liberdade para seus cidadãos, um pouco de consumo de mídia estrangeira, até mesmo formas leves de crítica em espaços não dominados por partidos. Hoje é uma estrutura autoritária tornando-se totalitária , cuja reputação no exterior sofreu muito.

P.  E não vemos, no entanto, o progresso de nossas democracias.

R. _ Temos visto um tremendo progresso na posição das mulheres ou nos direitos dos homossexuais. Na verdade, assistimos a uma rápida transformação de muitas sociedades europeias, que têm uma concepção muito mais multiétnica de si mesmas. Houve avanços muito importantes para as minorias em países como os Estados Unidos. Então, para mim, o verdadeiro desafio da democracia é a diversidade étnica ou religiosa, embora eu tenha motivos para ser otimista quanto a esse desafio.

P.  É o tema central do seu último livro. O desafio do multiculturalismo.

R. _ Vivemos uma situação sem precedentes em muitos países. Espanha, Alemanha - onde cresci - Suíça, Itália..., todas eram razoavelmente homogêneas. Em todos eles compartilhavam uma origem étnica, embora houvesse diferenças linguísticas, como na Espanha. O conceito de nação era o de homogeneidade étnica e cultural .

P.  E agora muitos cidadãos não digerem a mudança diante de seus olhos.

R. _ O que todos esses países estão tentando fazer agora é construir uma nova sociedade que seja muito mais diversificada étnica e religiosamente e trate todos os seus cidadãos igualmente. Não há precedente de sucesso em tal tentativa em toda a história da humanidade. É por isso que falo da “grande experiência”.

P.  Você aponta três grandes obstáculos para tentar tirá-lo do papel.

R. _ A primeira é que os seres humanos são tribais. Tendemos a tratar os membros do nosso grupo com muita generosidade e altruísmo, até mesmo com bravura. Mas não nos sentimos obrigados a agir da mesma forma com quem está fora do grupo. Com eles podemos ser incrivelmente cruéis. A segunda é que os grupos podem traçar barreiras entre si com base em critérios de etnia, religião, idioma ou nacionalidade, e isso levou às guerras mais destrutivas, aos piores genocídios e limpezas étnicas de que há memória.

P. _ E a terceira, a mais marcante, é que a democracia pode não ser a melhor ferramenta para enfrentar esses desafios.

R.  Exatamente. Como defensores da democracia, tendemos a pensar que todos esses problemas podem ser resolvidos por meio de mecanismos eleitorais, mas a única coisa que conseguimos é exacerbá-los. Em uma monarquia absoluta, nem você nem eu teríamos o menor poder. Devemos confiar no sistema para encontrar uma solução. E se você é um imigrante e tem mais filhos do que eu, e eu sinto que você está me roubando, não posso fazer nada. Mas em uma democracia construímos maiorias. Se eu era maioria e agora vejo que você faz parte de um setor em crescimento, posso ter medo do futuro e tentar concentrar o poder antes de perdê-lo.

O que se tornou a social-democracia?

P.  Nenhuma fórmula de integração parece ter funcionado, nem a que nos torna homogêneos —os Estados Unidos— nem a que separa os grupos quase em guetos —o Reino Unido—.

Resposta  : Devemos nos perguntar que tipo de metáfora queremos adotar quando pensamos em integração. A imagem tradicional dos EUA e de outros países tem sido a do caldeirão , o caldeirão no qual tudo se mistura . Diferentes culturas são integradas em uma cultura homogênea. Outros sociólogos abraçaram a ideia da saladeira .(a saladeira), também chamado de mosaico. Comunidades que convivem umas com as outras, sem interagir. Ambos os modelos, na minha opinião, estão errados. Proponho um terceiro, que defino como o parque público. Um lugar onde podemos conhecer diferentes cidadãos e conversar. Uma democracia liberal nos permite essas conexões enquanto socializamos na maioria das vezes com nossa comunidade religiosa ou nossas origens nacionais.

P.  Você propõe uma cola interessante, uma ideia de patriotismo atraente e eficaz.

R.  Eu sou um judeu alemão. Nem nacionalismo nem patriotismo vêm naturalmente para mim. Mas nos últimos 20 anos compreendi o poder que os símbolos e a retórica nacionais têm. É uma ilusão pensar que estávamos em uma era pós-nacionalista. Agora acredito que o patriotismo é um animal semi-domesticado, muito perigoso nas mãos de alguns.

P.  E nem o étnico nem o que se ajusta ao mínimo denominador comum de um texto constitucional é válido.

R.  Tradicionalmente, existem duas abordagens. Um nacionalismo étnico, que justificou a agressão contra o mundo exterior, e que rejeito. E depois o chamado patriotismo constitucional ou cidadão. Estou mais inclinado para este segundo, que geralmente se concentra nas leis e direitos que nos unem. Mas acredito que não basta manter a solidariedade necessária para sustentar democracias diversas. É por isso que devemos aspirar a um “patriotismo cultural”, que se refere a cidades, paisagens, paisagens, cheiros, traços culturais, até pessoas famosas ou estrelas do YouTube. Uma celebração do presente, dinâmica, mutável, e que já contém as influências de imigrantes e grupos diversos. Um patriotismo cultural diário que nos faz perder nossos medos.

Rafael de Miguel, o autor desta reportagem, é correspondente do EL PAÍS para o Reino Unido e Irlanda. Ele foi o primeiro correspondente da CNN+ nos EUA, onde cobriu o 11 de setembro. Dirigiu os Serviços Informativos do SER, foi Editor-Chefe da Espanha e Diretor Adjunto do EL PAÍS. Graduado em Direito e Mestre em Jornalismo pela Escola de EL PAÍS/UNAM. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 26.10.22, às 00h:00

"Brasil teve que passar por Bolsonaro para se olhar no espelho"

Geovani Martins, jovem escritor carioca, uma das revelações da nova literatura brasileira, confia na vitória de Lula nas eleições de domingo


O escritor Geovani Martins, na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. (Foto: Leonardo Carrato)

Para os moradores das favelas do Rio de Janeiro, a Via Appia não é o caminho para o coração de Roma, mas uma das principais portas de entrada para a Rocinha, uma das maiores favelas do Brasil. Nessa caótica rua comercial, o jovem escritor Geovani Martins (Rio, 31 anos), uma das descobertas mais celebradas da literatura brasileira contemporânea, caminha desviando de mototáxis como se nada tivesse acontecido e cumprimenta alguns vizinhos. Martins já passou por várias favelas, mas estava morando na Rocinha no momento em que o projeto policial 'pacificador' chegou com a promessa de acabar com o tráfico de drogas, ou pelo menos varrê-lo para debaixo do tapete a tempo da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas. 2016. .

Martins relata esse fracasso em seu novo romance, Via Apia , por meio de cinco jovens dessa favela. O livro dá algumas pistas de por que há gerações inteiras de favelados traumatizados pela violência policial. "Minha literatura acaba sendo uma tentativa de recontar essas histórias a partir de pontos de vista que foram ignorados", diz. Seu primeiro livro, O Sol na Cabeça (Alfaguara, 2019), impressionou Chico Buarque e foi devorado por Luiz Inácio Lula da Silva na prisão. O roteirista prepara agora uma adaptação para a televisão, mas confessa que nos últimos dias está difícil para ele se concentrar e pensar em outra coisa além das eleições. Ele sonha em derrotar Jair Bolsonaro, mas não é difícil para ele criticar uma certa esquerda elitista que, em sua opinião, tem uma ideia míope do Brasil.

Perguntar. A polícia deteve no domingo um político aliado de Bolsonaro, Roberto Jefferson , que disparou tiros e jogou granadas em policiais. A polícia negociou com ele a rendição. O que teria acontecido se ele fosse um homem negro de uma favela?

Resposta. Não teria sido necessário alguém atirar antes. Vemos casos todos os dias. A sociedade brasileira deixa bem claro quais corpos podem ser mortos. No Brasil, o filho de um juiz é preso com fuzil e 150 quilos de maconha e está solto, não está morto. Fora da favela, a droga é totalmente legalizada.

P. Como mudar a imagem que a favela tem da polícia?

R. O primeiro passo é acabar com a Polícia Militar, porque é uma força que está preparada para matar essas pessoas, ou para extorquir dinheiro. A polícia rouba com total descaramento, há dois meses eles invadiram a casa da minha tia de 60 anos, e roubaram pertences pessoais, dela e dos meus primos. Ela é uma policial que quando não te mata te rouba, te extorque. É uma força policial completamente corrupta que desumaniza essas pessoas. Precisamos que a sociedade civil e o Estado vejam esses jovens das favelas com o poder que eles têm, não apenas com essa ideia de morte. Para mudar essa imagem, é preciso mudar a visão do Estado sobre os territórios e descriminalizar as drogas.

P. Você fala em acabar com a Polícia Militar e legalizar as drogas, mas é utópico no Brasil. Nem está na agenda da esquerda.

R. Não é porque a esquerda não está falando com as pessoas. A maioria dos problemas que temos com o genocídio negro no Rio e no Brasil vem da guerra às drogas.

P. Fala-se muito de polarização nestas eleições...

R. O Brasil está polarizado há muito tempo. Já era indígena contra colonizadores, rico contra pobre, e assim por diante o tempo todo. Não começou agora, o país não estragou com Bolsonaro. Piorou muito, isso é indiscutível. Mas a merda que é o Brasil, o pesadelo que é, é uma coisa muito antiga. Simas (Luiz Antonio Simas, historiador) diz uma coisa com a qual concordo plenamente: o Brasil não tem que começar a funcionar corretamente, tem que começar a falhar. O que vemos é o projeto colonizador, o Brasil tem mais de 500 anos de sucesso. Você tem que fazê-lo falhar e se tornar outra coisa.

P. O bolsonarismo deu voz a um sentimento que sempre esteve presente?

R.Claro, o Brasil sempre foi um país extremamente racista. Antes de Bolsonaro, já era o país que matava um jovem negro a cada 23 minutos, o que mais matava LGTBIs no mundo. O que Bolsonaro faz é dar cara a isso, ele se torna representante de algumas pessoas que se sentem cada vez mais à vontade em mostrar quem são. Acho que a gente tinha que passar por esse momento, confrontar Bolsonaro, porque isso também é olhar no espelho. Por muitos anos foi forçada a ideia de democracia racial, de que não havia racismo porque era um país muito mestiço. Muitas ações ultraviolentas foram encobertas com isso. Hoje, após a partida dessas figuras do submundo, podemos vê-las diretamente e saber quem são nossos inimigos. O Brasil é muito maior que isso, mas também conheço o tamanho e a força dessas pessoas.

P. A esquerda no Brasil é muito dependente de uma pessoa?

R. É que Lula é uma figura muito maior que o PT e a esquerda. No primeiro turno, aqui estava cheio de mulheres de 90 anos com adesivos de Lula; senhoras que não entendem de partidos, nem de direita-esquerda, mas sabem o que Lula quer dizer. Sua figura tem esse poder. Mas concordo que precisamos de novos líderes. Espero que, durante o tempo em que esteve preso injustamente, tenha chegado a essa conclusão.

P. Se você ganhar, haverá um governo diverso, um gabinete com a cara do Brasil?

R. Haverá muita negociação, mas haverá números mais próximos da face do Brasil. Lula disse no último debate que vai criar um ministério para os povos indígenas. Não será um governo ideal, sabemos. Mas é a nossa melhor opção neste momento, a única que temos para derrotar a maquinaria absurda de Bolsonaro.

P. Muita gente defende que a democracia corre perigo se Bolsonaro vencer.

R. Não há democracia no Brasil, você tem que construir essa ideia. É simplesmente uma ilusão, uma coisa que vive nas casas de pouquíssimas pessoas. Minha casa aqui na Rocinha foi invadida várias vezes pela polícia. Se vivêssemos em um país democrático isso não aconteceria. Temos que parar com essa ideia de ameaça à democracia, que é um discurso completamente elitista. Temos que começar a falar sobre a construção de uma democracia. Nós nunca tivemos.

Joan Royo Gual, repórter, do Rio de Janeiro - RJ para o EL PAÍS, em 26.10.22, às 00h:10

Como Bolsonaro turbinou o uso da máquina pública na eleição

Entre 1º e 2º turnos, o governo incluiu milhares de famílias no Auxílio Brasil e no auxílio gás, liberou empréstimo consignado para beneficiários do programa e criou financiamento com FGTS futuro, entre outras medidas.

Visando ampliar sua chance de reeleição, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vem ao longo do ano abrindo os cofres públicos para criar e ampliar uma série de programas sociais que beneficiam as famílias mais pobres e categorias que integram sua base de apoiadores, como taxistas e caminhoneiros.

O carro-chefe foi a aprovação de uma emenda à Constituição em julho, apelidada "Kamikaze", que decretou o estado de emergência no país para autorizar a criação de novos benefícios em ano eleitoral, pagos à margem do teto de gastos.

Na esteira, o governo aumentou o valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, e do auxílio gás de R$ 50 para R$ 110, e criou um auxílio mensal de R$ 1.000 para taxistas e caminhoneiros, entre outras medidas.

A gestão Bolsonaro também já havia zerado a alíquota de tributos federais e limitado a alíquota do ICMS, um imposto estadual, cobrado sobre os combustíveis, o que levou à redução do preço do diesel, da gasolina e do gás, com efeito na redução da inflação.

O uso da máquina pública para a criação de novos benefícios diretos e indiretos seguiu após a realização do primeiro turno, em 2 de outubro, quando Bolsonaro recebeu 43,2% dos votos válidos, ficando atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que teve 48,4%.

A agência Reuters calcula que os benefícios criados e prometidos por Bolsonaro nos últimos meses somam R$ 273 bilhões, com impacto tanto em 2022 como em 2023. Outra conta, apresentada pelo economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, aponta que o custo anualizado das medidas de elevação de despesas e redução de receitas tomadas desde o fim de 2021 chega a cerca de R$ 400 bilhões, ou 4% do PIB (Produto Interno Bruto).

As medidas anunciadas pelo governo neste ano não foram alvo de questionamento da Procuradoria-Geral Eleitoral por possível abuso de poder político e econômico. O órgão é chefiado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, considerado pela oposição um aliado do presidente.

Confira as medidas anunciadas pelo governo após o primeiro turno:

Antecipação do pagamento do Auxílio Brasil e do auxílio gás

Em 3 de outubro, o governo anunciou que o pagamento do Auxílio Brasil e do auxílio gás do mês de outubro seria feito entre os dias 11 e 25, sete dias antes do que no calendário original, que ia de 18 a 31 de outubro. A antecipação do calendário não vale para os meses seguintes.

Cerca de 21,1 milhões de famílias recebem o Auxílio Brasil de R$ 600, e 5,9 milhões são beneficiárias do auxílio gás, pago a cada dois meses no valor de R$ 112.

Inclusão de mais famílias no Auxílio Brasil e no auxílio gás

Em 4 de outubro, o governo anunciou a inclusão de mais 500 mil famílias no Auxílio Brasil já neste mês. Comparado a julho, quando 18,1 milhões de famílias recebiam o benefício, a alta foi de 16,5% no total de famílias atendidas pelo programa.

No mesmo dia, o governo anunciou também a inclusão de mais 200 mil famílias no auxílio gás, elevando o número de famílias beneficiadas de 5,7 milhões para 5,9 milhões no programa.

Promessa de 13º do Auxílio Brasil

Também em 4 de outubro, Bolsonaro prometeu que, se reeleito, pagará uma 13ª parcela do Auxílio Brasil para mulheres chefes de família a partir de 2023, o que beneficiaria 17 milhões de mulheres, a um custo de quase R$ 10 bilhões.

O presidente não especificou qual seria a fonte dos recursos para esse benefício adicional.

Refinanciamento de dívidas

Em 6 de outubro, Bolsonaro anunciou que a Caixa lançaria um programa de renegociação de dívidas de empresas e pessoas físicas. Trata-se da reciclagem de um programa já existente, chamado Você no Azul, que ocorre anualmente desde 2019.

O presidente disse que o programa poderia beneficiar até 4 milhões de cidadãos e 400 mil empresas com dívidas com a Caixa. A iniciativa permite a quitação de dívidas com atraso acima de 360 dias, com descontos de 40% a 90% do valor devido.

Antecipação do auxílio para taxistas e caminhoneiros

Em 7 de outubro, o governo anunciou que pagará uma parcela extra do auxílio taxista no fim do ano, como se fosse um décimo terceiro salário, mas em valor ainda não definido. A justificativa foi de que menos profissionais se cadastraram do que o previsto, e a sobra dos recursos seria utilizada no mesmo programa.

A data do pagamento do auxílio taxista e do auxílio caminhoneiro em outubro também foi adiantada, do dia 22 para 18. As parcelas são de R$ 1.000 mensais, com o objetivo de compensar a alta dos combustíveis.

Início do consignado do Auxílio Brasil

A presidente da Caixa, Daniella Marques, anunciou em 4 de outubro que o banco começaria a oferecer empréstimos na modalidade "consignado" para os beneficiários do Auxílio Brasil e do Benefício de Prestação Continuada (BPC), com juros de 3,45%, abaixo do teto de 3,5% estabelecido pelo governo. Os empréstimos começaram a ser liberados em 11 de outubro.

O valor máximo da parcela a ser descontada para o pagamento do empréstimo é de 40% do benefício, ou R$ 160 – o valor-base é do Auxílio Brasil é de R$ 400. A juros de 3,5%, o valor máximo do empréstimo é de R$ 2.569,34, pagos em 24 vezes.

Nesta segunda-feira, o ministro Aroldo Cedraz, do Tribunal de Contas da União (TCU), recomendou a suspensão temporária do empréstimo consignado do Auxílio Brasil, até que o órgão analisasse o possível uso da iniciativa para "interferir politicamente nas eleições presidenciais". Nesta terça-feira, a Caixa anunciou a suspensão da concessão de novos empréstimos nessa modalidade por 24 horas, atendendo à recomendação.

Especialistas em políticas sociais criticaram a possibilidade de obter empréstimos consignados com base no Auxílio Brasil, pois as parcelas comprometeriam os recursos dessas famílias mais pobres para garantir sua sobrevivência nos meses seguintes.

Mais prazo para atualizar dados no Cadastro Único

Em 13 de outubro, o governou prorrogou por 30 dias o prazo para que famílias atendidas por benefícios sociais atualizassem seus dados no Cadastro Único, medida necessária para evitar a suspensão ou cancelamento do recebimento dos programas.

Mais de 1,4 milhão de famílias haviam sido convocadas para atualizar seu cadastro até 14 de outubro, dos quais 757 mil são beneficiárias do Auxílio Brasil. Muitas delas estavam enfrentando filas nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) ou postos de atendimento dos municípios, que realizam esse cadastro.

Via de regra, as famílias devem atualizar os dados a cada dois anos, ou quando houver alterações.

Financiamento imobiliário com FGTS futuro

Em 18 de outubro, Conselho Curador do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) aprovou o uso de recursos futuros do FGTS para a garantia de financiamentos imobiliários, atendendo a uma sugestão do Ministério do Desenvolvimento Regional.

A iniciativa valerá inicialmente para famílias com renda bruta de até R$ 2.400, e permitirá que financiem imóveis com valor acima do seu limite de endividamento atual.

Nessa modalidade, parcelas futuras depositadas no FGTS do tomador do empréstimo serão automaticamente reservadas para pagar o financiamento. Se o empregado for demitido, porém, ele não poderá sacar o saldo já comprometido.

Essa medida tem potencial para ampliar o acesso à compra de imóveis por meio do Programa Casa Verde Amarela, criado no governo Bolsonaro.

Bruno Lupion, o autor deste artigo, é Repórter. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 26.10.22

O Barão de Itararé, as eleições e as consequências econômicas que vêm depois

Na reta final desta campanha eleitoral, parece que os candidatos estão muito mais preocupados com a pauta de costumes do que com a economia. 

Discute-se a bobagem do banheiro unissex, como se discutiu em 2018 a mamadeira de piroca. Nessa pauta, a única notícia que merece atenção é a acusação de assédio do presidente Bolsonaro às meninas venezuelanas. 

Contudo, não se discute o futuro do país.


Barão de Itararé. sempre atual: "as consequencias vem depois".

Muitos fatos apontam para nuvens no horizonte a curto prazo — isto é, primeiro trimestre de 2023. Segundo o jornal Valor Econômico da última sexta feira (21/10/22), a fabricante das conhecidas marcas Cônsul e Brastemp teve redução de lucro em 70%, fruto do cenário macroeconômico adverso — pelo menos ainda teve lucro... A expectativa de saldo positivo nas contas públicas (superavit primário) caiu em R$ 20 bilhões, em razão da queda na estimativa de arrecadação, conforme projeção da  Instituição Fiscal Independente (IFI). O PIB caiu 1,13% em agosto, segundo o Banco Central.

Em um cenário tão devastador, constata-se que o presidente Bolsonaro abriu os cofres públicos na campanha por sua reeleição. O Valor Econômico aponta que foram aprovadas despesas, todas com prazo de vencimento em 31 de dezembro deste ano: (1) com o Auxílio Brasil: R$ 26 bilhões; (2) vale-gás ampliado: R$ 1 bilhão; (3) auxílio a caminhoneiros: R$ 5,4 bilhões; (4) auxílio a taxistas: R$ 2 bilhões; e (5) transporte a idosos: R$ 2 bilhões.

Foram também aprovadas renúncias fiscais, representadas pelo corte de Pis/Cofins e Cide sobre combustíveis até final do ano: R$ 31,5 bilhões.

Total do pacote de bondades eleitorais relacionadas pelo Valor Econômico: R$ 68 bilhões. Só no grupo do Auxílio Brasil constam 21 milhões de pessoas, sendo que, na prática, o pagamento está se tornando per capita e não por família — o número de famílias unipessoais foi fortemente ampliado desde o início do pagamento desse benefício, o que causa estranheza.

Há também, no grupo de renúncias fiscais, a possibilidade de as pequenas e médias empresas renegociarem parte de suas dívidas tributárias, o que importa em mais R$ 20 bilhões.

De onde vem esse dinheiro? Do cancelamento de programas em prol da educação, saúde, ciência e tecnologia (sobre o assunto, confira as reportagens de Uol, Veja, Folha de S.Paulo e ConJur), para usar na reeleição, sem efetiva transparência. Resultado: população empobrecida e a economia despencando.

Mas não é só. Existe outro grupo nesse pacote de bondades eleitorais, que visa a apagar a pandêmica atuação governamental durante a pandemia, que são os empréstimos, que devem ser quitados futuramente: (1) foram disponibilizados R$ 87 bilhões em crédito para micro e pequenas empresas; (2) os trabalhadores puderam sacar R$ 30 bilhões que estavam depositados no FGTS, reduzindo fortemente seu saldo naquele fundo e comprometendo o equilíbrio do sistema a médio prazo; e (3) ainda sobre o FGTS, foi permitido o uso de parcelas a receber para obter o financiamento da casa própria — e se o indivíduo ficar desempregado, possibilidade gigantesca nos dias atuais, sua dívida só aumentará, e ainda perderá o imóvel. Além disso, (4) quem recebe o Auxílio Brasil, hoje em R$ 600 por decisão do Congresso, poderá obter empréstimo consignado usando o futuro recebimento desse auxílio (que vence em dezembro de 2022), cujas operações, só na semana passada, já chegaram a R$ 1,8 bilhão. Isso é dinheiro injetado na veia desse grupo de pessoas, antecipando benefícios que deveriam ser pagos de forma mensal, visando garantir seu sustento. Alguém tem dúvida de que dinheiro antecipado, sob a forma de empréstimo, vai evaporar? Já dizia uma velha música do Paulinho da Viola, dinheiro na mão é vendaval....

Se você acompanhou até aqui, saiba que ainda tem mais, pois os empréstimos anteriormente concedidos foram perdoados, tendo sido (1) concedido perdão de até 99% das dívidas junto ao Fies (Lei 14.375/22) e (2) também concedido perdão de 90% das dívidas para os inadimplentes com a Caixa Econômica Federal, após o afastamento do presidente da Caixa por assédio sexual.

Tudo isso acrescido do famigerado Orçamento Secreto, que a revista Piauí resumiu em um vídeo com enorme poder de síntese, que comprova a vinculação do presidente Bolsonaro em sua gestão e sua importância eleitoral. Valor do orçamento secreto para esse ano: R$ 19 bilhões.

Nem vou tratar da camisa de força que o governo federal impôs aos estados e, por tabela, aos municípios, com o teto do ICMS, o que os impactou em incontáveis bilhões, comprometendo os serviços públicos que estão a seu encargo, como saúde, educação e segurança pública. Nesse ponto, o presidente Bolsonaro fez uma cortesia com o chapéu alheio, pois apenas garroteou de imediato o ICMS dos estados, pegando carona em uma decisão do STF (Tema 745, Repercussão Geral), que estabelecia sua redução apenas em 2024 — mas, até lá, as eleições teriam passado... O irônico é que o slogan desse governo é mais Brasil e menos Brasília — lembram?

Aliás, o capítulo sobre redução do preço dos combustíveis merece uma análise específica, pois houve redução dos tributos (os federais, até final do ano; e o estadual, de forma perene), mas o preço dos bens e serviços permanece igual ou aumentando (o frete ficou mais barato? Ou o ônibus? O táxi? O Uber? O supermercado?). Além disso, a Petrobras continua gerando lucros, o que demonstra que o problema não foi enfrentado, mas driblado, pois o preço do barril aumenta no mercado internacional, entretanto os preços permanecem os mesmos — até passar a eleição.

Muitas dessas medidas são importantes, mas porque estão sendo realizadas apenas agora, às vésperas das eleições? O jornal Folha de S.Paulo elaborou um infográfico que indica as datas em que várias dessas medidas foram aprovadas, o que demonstra a trilha em busca da reeleição, para um candidato que, em 2018, prometia não se candidatar à reeleição — o que foi esquecido.

A lista de irresponsabilidades fiscais poderia ser ampliada, mas paro por aqui e retorno ao início.

O que todos esses fatos econômicos criaram na economia? A curto prazo (até o final do ano), tudo aponta para um voo de galinha — como você sabe, galinhas não voam longe, quando muito dão uns saltos esvoaçantes e logo retornam ao solo. Essas medidas econômicas podem até dar a impressão de que vamos decolar como uma águia, mas é falso. Quais obras estruturantes estão sendo realizadas com essa dinheirama toda? Nenhuma.

De fato, como dizia o refinado humorista Barão de Itararé, as consequências vêm depois...

E o depois implica em depois das eleições, que ocorrerão no próximo domingo, quando todo o quadro acima começará a ser desmontado e a realidade econômica que surgirá não será nada boa.

Sigamos o dinheiro e constataremos que, qualquer que seja o vencedor, está ocorrendo o abuso de poder econômico — com dinheiro público, representado pelos nossos impostos — ou você acha que todos esses bilhões surgiram em árvores? O Ministério Público Eleitoral está olhando muito mais para a pauta de costumes do que para a rota do dinheiro, rumo às urnas. Não se deu conta que a pauta de costumes é apenas uma cortina de fumaça para esconder o uso abusivo do dinheiro público em busca da reeleição.

Parodiando a frase de James Carville para Bill Clinton em 1992: É o dinheiro, estúpido...

Fernando Facury Scaff , o autor deste artigo, é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados. Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 25.10.22, às 8h00