quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Entenda como Gal Costa se tornou símbolo forte de rebeldia das mulheres

Cantora, morta nesta quarta, é um marco incontornável da música e desafiou o conservadorismo no auge da ditadura

A cantora Gal Costa / Arquivo Nacional

Uma das poucas mulheres a integrar a tropicália, Gal Costa, que morreu nesta quarta-feira, foi um marco não só na música brasileira, como também nas camadas sociais do país, sendo responsável por chacoalhar a cultura dos anos 1960 e 1970, ao virar um símbolo de liberdade feminina.

Os vocalizes agudos da baiana vieram, muitas vezes, embalados por performances dominadas por rebeldia, que inspiraram uma legião de mulheres a se verem fora da caixinha fru-fru da Barbie Girl.

Fosse pelas roupas espalhafatosas, os decotes ousados, as danças sensuais, o típico cabelo hippie, o espírito libertário de curtir a vida, os solos vocais que encantaram ouvidos de norte a sul do Brasil, ou pela presença marcante num dos principais movimentos culturais do país, Gal foi na contramão de estereótipos machistas.

Até mesmo o jeito que a cantora segurava o violão revelava sua forma inovadora de lotar casas de shows. Nada de pernas cruzadinhas. Em muitas das apresentações, Gal apoiou o instrumento em joelhos afastados entre si. Pode até parecer um gesto pequeno, mas é só se perguntar, por acaso, quantas mulheres cantam, até mesmo nos dias atuais, com as pernas escancaradas.

O guarda-roupa da cantora também endossava a rebeldia, sobretudo na sua fase tropicalista, que contou com looks espalhafatosos e ousados.

Nos anos 1980, Gal chegou a posar nua para uma revista e ganhou, na época, fama de vulgar. Ela já havia aparecido seminua na capa de "Índia", um de seus maiores discos. Nenhuma nudez, claro, faz de alguém feminista —ou antifeminista—, mas o que chama a atenção é como Gal desafiou, sem pudores, normas conservadoras de um Brasil regido pela ditadura militar.

Em "Índia", Gal aparece de calcinha vermelha, cocares e mamilos à mostra. O álbum traz um sentimento de revolta social, com letras contestadoras e, acima de tudo, subversivas, como em "Presente Cotidiano" —composta por Luiz Melodia—, na qual a artista debocha da ideia propagada pelos militares de milagre econômico.

Talvez o álbum que melhor sintetiza a tropicália, "Gal a Todo Vapor" é outra obra transgressora da baiana. A começar pelo fato de que é o primeiro disco do Brasil gravado ao vivo —não à toa, dá para ouvir ruídos, improvisos e vários detalhes. Depois, pela brasilidade arranhada nas guitarras agressivas. E, claro, pela performance de Gal.

No show que gerou o disco, a cantora traduz bem o desbunde da contracultura brasileira, com brilhos pelo corpo, roupas hippies, sensualidade, psicodelia, rebeldia e enaltecimento de vários Brasis. Tudo isso acompanhado de seu vocal agudo, que ora surgia violento, ora doce.

Até mesmo a boca que estampa a capa de "Gal a Todo Vapor" reflete a faceta contraventora da artista. Tingidos por um forte batom vermelho, os lábios da baiana emulam uma imagem diferente da de mulher recatada e do lar.

Foi também na época de "Fa-Tal" que a cantora se tornou símbolo dos encontros da elite carioca hippie, mais especificamente do píer de Ipanema, no Rio de Janeiro. Conhecidas como as dunas de Gal, o local virou um point psicodélico da contracultura, onde jovens se reuniam para conversar, usar drogas e compor músicas.

Na época, Gal era vista como "a musa do tropicalismo", apelido que até hoje é usado para se referir à cantora. Há de se considerar o teor sexualizado do termo —afinal, nenhum dos músicos do movimento teve fama desse tipo—, mas a popularidade de diva nunca incomodou Gal, como ela mesma disse a este jornal, em 2015.

Ainda que não erguesse a bandeira feminista, o legado que Gal deixa para as mulheres é do espírito que encarnou dentro e fora dos palcos, o de alguém que quis ser livre.

Marina Lourenço, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição on line, em 09.11.22, às 15h28.

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