quarta-feira, 26 de outubro de 2022

"Brasil teve que passar por Bolsonaro para se olhar no espelho"

Geovani Martins, jovem escritor carioca, uma das revelações da nova literatura brasileira, confia na vitória de Lula nas eleições de domingo


O escritor Geovani Martins, na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. (Foto: Leonardo Carrato)

Para os moradores das favelas do Rio de Janeiro, a Via Appia não é o caminho para o coração de Roma, mas uma das principais portas de entrada para a Rocinha, uma das maiores favelas do Brasil. Nessa caótica rua comercial, o jovem escritor Geovani Martins (Rio, 31 anos), uma das descobertas mais celebradas da literatura brasileira contemporânea, caminha desviando de mototáxis como se nada tivesse acontecido e cumprimenta alguns vizinhos. Martins já passou por várias favelas, mas estava morando na Rocinha no momento em que o projeto policial 'pacificador' chegou com a promessa de acabar com o tráfico de drogas, ou pelo menos varrê-lo para debaixo do tapete a tempo da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas. 2016. .

Martins relata esse fracasso em seu novo romance, Via Apia , por meio de cinco jovens dessa favela. O livro dá algumas pistas de por que há gerações inteiras de favelados traumatizados pela violência policial. "Minha literatura acaba sendo uma tentativa de recontar essas histórias a partir de pontos de vista que foram ignorados", diz. Seu primeiro livro, O Sol na Cabeça (Alfaguara, 2019), impressionou Chico Buarque e foi devorado por Luiz Inácio Lula da Silva na prisão. O roteirista prepara agora uma adaptação para a televisão, mas confessa que nos últimos dias está difícil para ele se concentrar e pensar em outra coisa além das eleições. Ele sonha em derrotar Jair Bolsonaro, mas não é difícil para ele criticar uma certa esquerda elitista que, em sua opinião, tem uma ideia míope do Brasil.

Perguntar. A polícia deteve no domingo um político aliado de Bolsonaro, Roberto Jefferson , que disparou tiros e jogou granadas em policiais. A polícia negociou com ele a rendição. O que teria acontecido se ele fosse um homem negro de uma favela?

Resposta. Não teria sido necessário alguém atirar antes. Vemos casos todos os dias. A sociedade brasileira deixa bem claro quais corpos podem ser mortos. No Brasil, o filho de um juiz é preso com fuzil e 150 quilos de maconha e está solto, não está morto. Fora da favela, a droga é totalmente legalizada.

P. Como mudar a imagem que a favela tem da polícia?

R. O primeiro passo é acabar com a Polícia Militar, porque é uma força que está preparada para matar essas pessoas, ou para extorquir dinheiro. A polícia rouba com total descaramento, há dois meses eles invadiram a casa da minha tia de 60 anos, e roubaram pertences pessoais, dela e dos meus primos. Ela é uma policial que quando não te mata te rouba, te extorque. É uma força policial completamente corrupta que desumaniza essas pessoas. Precisamos que a sociedade civil e o Estado vejam esses jovens das favelas com o poder que eles têm, não apenas com essa ideia de morte. Para mudar essa imagem, é preciso mudar a visão do Estado sobre os territórios e descriminalizar as drogas.

P. Você fala em acabar com a Polícia Militar e legalizar as drogas, mas é utópico no Brasil. Nem está na agenda da esquerda.

R. Não é porque a esquerda não está falando com as pessoas. A maioria dos problemas que temos com o genocídio negro no Rio e no Brasil vem da guerra às drogas.

P. Fala-se muito de polarização nestas eleições...

R. O Brasil está polarizado há muito tempo. Já era indígena contra colonizadores, rico contra pobre, e assim por diante o tempo todo. Não começou agora, o país não estragou com Bolsonaro. Piorou muito, isso é indiscutível. Mas a merda que é o Brasil, o pesadelo que é, é uma coisa muito antiga. Simas (Luiz Antonio Simas, historiador) diz uma coisa com a qual concordo plenamente: o Brasil não tem que começar a funcionar corretamente, tem que começar a falhar. O que vemos é o projeto colonizador, o Brasil tem mais de 500 anos de sucesso. Você tem que fazê-lo falhar e se tornar outra coisa.

P. O bolsonarismo deu voz a um sentimento que sempre esteve presente?

R.Claro, o Brasil sempre foi um país extremamente racista. Antes de Bolsonaro, já era o país que matava um jovem negro a cada 23 minutos, o que mais matava LGTBIs no mundo. O que Bolsonaro faz é dar cara a isso, ele se torna representante de algumas pessoas que se sentem cada vez mais à vontade em mostrar quem são. Acho que a gente tinha que passar por esse momento, confrontar Bolsonaro, porque isso também é olhar no espelho. Por muitos anos foi forçada a ideia de democracia racial, de que não havia racismo porque era um país muito mestiço. Muitas ações ultraviolentas foram encobertas com isso. Hoje, após a partida dessas figuras do submundo, podemos vê-las diretamente e saber quem são nossos inimigos. O Brasil é muito maior que isso, mas também conheço o tamanho e a força dessas pessoas.

P. A esquerda no Brasil é muito dependente de uma pessoa?

R. É que Lula é uma figura muito maior que o PT e a esquerda. No primeiro turno, aqui estava cheio de mulheres de 90 anos com adesivos de Lula; senhoras que não entendem de partidos, nem de direita-esquerda, mas sabem o que Lula quer dizer. Sua figura tem esse poder. Mas concordo que precisamos de novos líderes. Espero que, durante o tempo em que esteve preso injustamente, tenha chegado a essa conclusão.

P. Se você ganhar, haverá um governo diverso, um gabinete com a cara do Brasil?

R. Haverá muita negociação, mas haverá números mais próximos da face do Brasil. Lula disse no último debate que vai criar um ministério para os povos indígenas. Não será um governo ideal, sabemos. Mas é a nossa melhor opção neste momento, a única que temos para derrotar a maquinaria absurda de Bolsonaro.

P. Muita gente defende que a democracia corre perigo se Bolsonaro vencer.

R. Não há democracia no Brasil, você tem que construir essa ideia. É simplesmente uma ilusão, uma coisa que vive nas casas de pouquíssimas pessoas. Minha casa aqui na Rocinha foi invadida várias vezes pela polícia. Se vivêssemos em um país democrático isso não aconteceria. Temos que parar com essa ideia de ameaça à democracia, que é um discurso completamente elitista. Temos que começar a falar sobre a construção de uma democracia. Nós nunca tivemos.

Joan Royo Gual, repórter, do Rio de Janeiro - RJ para o EL PAÍS, em 26.10.22, às 00h:10

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