terça-feira, 13 de setembro de 2022

O avanço retumbante das tropas ucranianas gera as primeiras fissuras no cenário político russo

Vozes da propaganda oficial perguntam a chefes do Governo e da chefia militar pela primeira vez desde o início do conflito

Um sapador vasculhou projéteis russos encontrados na cidade de Udy, recentemente retomada pelo exército ucraniano, na segunda-feira. (Foto: Gleber Garanich / Reuters)

O claro avanço das forças ucranianas no leste do paíssobre posições que estavam nas mãos dos russos há meses abriu as primeiras brechas no discurso político na Rússia, até agora pouco dado a arejar discrepâncias sobre a linha oficial estabelecida pelo Kremlin. Os líderes da propaganda russa pedem abertamente a execução dos comandantes que tiveram que defender o enorme território perdido, enquanto outras vozes ligadas ao poder agora exigem a punição daqueles que convenceram o presidente, Vladimir Putin, de que suas tropas seriam recebidas com abraços em Ucrânia. Os golpes de Kharkiv e Kherson também coincidem com um novo desafio da oposição, residual mas eloquente. Mais de 40 vereadores das duas maiores cidades da Rússia dirigiram-se ao Parlamento para propor a demissão de Putin, sob a acusação de alta traição, uma iniciativa que ganha adeptos com o passar das horas.

A contra-ofensiva ucraniana, que vem ganhando espaço em questão de horas nos últimos dias, pegou a Rússia de surpresa. No sábado, quando Kiev anunciou que havia retomado cargos importantes como Kharkov, Putin estava em Moscou inaugurando a maior roda-gigante da Europa, enquanto os habitantes da capital dançavam e bebiam pelo 875º aniversário da cidade. O Ministério da Defesa russo, após o silêncio que se seguiu aos sucessivos anúncios das autoridades ucranianas, finalmente anunciou uma "retirada ordenada" na região de Kharkov , onde não só perdeu a iniciativa e cidades importantes como Izium, mas também um nó ferrovia-chave para o abastecimento de seu exército.

Na Rússia há setores que nesta ocasião não concordaram com a justificativa oficial. Por enquanto, as críticas se intensificaram contra os escalões inferiores de Putin, ainda protegidos por duas décadas em que a propaganda construiu uma aura de infalibilidade ao seu redor.

A interpretação que o presidente checheno, Razmán Kadírov, fez da retirada foi significativa. Em uma mensagem transmitida em seu canal Telegram, ele se referiu ao "fato de que [o exército russo] saiu e doou várias cidades". “Não sou um estrategista como os do Ministério da Defesa, mas erros foram cometidos”, acrescentou, alertando que se não houver mudanças imediatas no que ainda é chamado de “operação militar especial”, ele procurará comunicar diretamente não só com o ministério russo, mas com a liderança do país, ou seja, Putin. Essa mensagem é interpretada como um exemplo claro do desconforto do líder checheno com o curso da guerra.

Vladimir Putin realizou uma reunião telemática em Moscou na segunda-feira. (Foto: Gavrill Gruogorov / Reuters)

As Forças Armadas, a instituição mais valorizada pelos russos, ainda mais que o Kremlin, segundo pesquisas, enfrentam enorme pressão. Putin se recusa a decretar a mobilização geral da população, medida impopular que exige a ala mais dura. Enquanto isso, jornalistas próximos ao poder acusam os comandantes do exército. Um dos chefes da propaganda do Kremlin, o apresentador do Rossiya 1, Vladimir Solovyov, também declarou no Telegram: “Muitos comandantes de uniforme (não ousaria chamá-los de comandantes) são dignos de demissão desonrosa, julgamento criminal ou mesmo execução, e eu poderia citar alguns.”

Zelenski: "Em setembro, a Ucrânia recuperou mais de 6.000 km² de seu território"

Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky em uma declaração oficial de 2022 (Foto: Europa Press)

A crise aberta pelo contra-ataque colocou os conselheiros do Kremlin e os comandantes do exército em destaque por enquanto. Vários analistas e políticos questionaram o desenvolvimento das operações das tropas russas nos últimos meses em um debate no popular canal NTV, cujo controle foi tomado por Putin assim que assumiu o governo décadas atrás.

“As pessoas que convenceram o presidente de que a operação especial seria rápida e eficaz; que não bombardeássemos civis, que chegaríamos e que a Guarda Nacional e os kadyrovtsi [forças pessoais de Kadirov] trariam ordem... essas pessoas armaram uma armadilha para todos nós”, disse o ex-deputado da Duma Boris Nadezhdin. "Essas pessoas existem?", perguntou o apresentador. “É claro que o presidente não fica sentado lá e diz: 'Vou iniciar uma operação especial'. Alguém lhe disse que os ucranianos se renderiam e se juntariam à Rússia”, respondeu o analista.

A franqueza do debate surpreendeu a Rússia. O deputado e líder do Just Russia, Sergei Mirónov, manteve o discurso desses meses de que não pode haver negociações com "o regime nazista de [presidente ucraniano Volodymyr] Zelenski", mas foi imediatamente criticado por grande parte dos convidados presentes . , além de Nadezhdin. O especialista político Viktor Olevich o culpou de que "tudo está indo conforme o planejado, mas ninguém pensaria seis meses atrás que o plano seria retirar-se agora". Outro conhecido comentador, Alexei Timofeyev, aproveitou para recordar que os meios de comunicação oficiais insistiam que se o exército entrasse em Odessa, "o risco seria receber abraços muito fortes da população". "Esses erros foram criminosos, catastróficos, por que devemos continuar ouvindo a opinião desses especialistas?", criticou abertamente.

Um dos comentaristas mais desaprovados é hoje um dos rostos mais conhecidos da propaganda russa. A diretora do Russia Today, Margarita Simonian, que disse em um colóquio de televisão pré-guerra que a Rússia "derrotaria a Ucrânia em dois dias". Hoje marca o 201º dia desde o início da ofensiva e suas tropas estão se retirando em várias frentes.

Putin demitido por alta traição

A prisão de vários políticos da oposição por suas críticas à guerra não silenciou as críticas a Putin. Com o acesso ao Parlamento nacional proibido, a política russa ocorre principalmente nos Conselhos Distritais das grandes cidades. Um grupo de vereadores de São Petersburgo, a segunda maior cidade do país, causou um novo tremor dias atrás ao pedir oficialmente à Duma que Putin pudesse ser demitido por alta traição. Esta segunda-feira pós-eleitoral já teve 45 vereadores verificados entre as 85 assinaturas recebidas de 18 distritos desta cidade, Moscovo e Kolpino. Com o passar das horas, mais vereadores aderiram à iniciativa.

“É uma escrita inteligente e muito cuidadosa. Espero que não sejamos processados ​​por nenhum motivo porque não fizemos nada de ilegal, cumprimos as leis federais para esse procedimento e apresentamos argumentos para verificar, de acordo com a Constituição, se um processo de impeachment pode ser aplicado a ele”, disse. explica um de seus promotores, Nikita Yuferev.

Sua carta foi mais tarde acompanhada por mais conselheiros de Moscou. “Queremos abordar o público de Putin para pensar. Se acreditavam que a expansão da NATO era uma ameaça para a Rússia, agora com a sua decisão em 24-F [em 24 de fevereiro, dia em que começou a ofensiva] verifica-se que a Aliança Atlântica cresceu e com a adesão da Finlândia a sua fronteira Dobrou", acrescenta. “Consideramos que a iniciativa de Putin aumentou o risco para a Federação Russa e sua população. Agora a Ucrânia é um perigo porque como resultado do 24-F recebeu armas avaliadas em 38.000 milhões de dólares”, afirma com linguagem controlada ao milímetro.

"Nossos argumentos são de que Putin estava errado", diz Yuferev. “E a situação de nossos soldados, a falência econômica e os problemas da geração jovem não podem ser ignorados. A economia russa sofre seriamente”, acrescenta.

A ideia foi proposta por outro colega de seu distrito de São Petersburgo, Dmitri Paliuga. Yuferev dirigiu-se à Administração Presidencial em 2 de março para solicitar a cessação da ofensiva, mas não recebeu resposta. “Mais tarde, em agosto, escrevi ao presidente com uma carta pessoal pedindo que ele encerrasse a operação especial por motivos humanitários”, diz Yuferev. “Já havia dados da ONU confirmando que havia seis milhões de refugiados ucranianos e mais de 5.000 mortos, incluindo mais de 300 crianças, verificados pelas Nações Unidas”, lembra o político. "Disseram-me que leriam a carta", foi a última coisa que ouviu até agora.

Paliuga será julgado nesta terça-feira "por desacreditar o presidente da Federação Russa". "Parece que o plano é claro: tomar uma decisão comigo e depois punir o resto dos vereadores", disse ele em sua conta no Twitter, onde informou que a polícia o havia chamado. “Eles me perguntaram se eu me arrependo de ter tomado essa decisão sobre a traição [de Putin]. Estou feliz por ter pego! Tenho orgulho de cada vereador! Tenho recebido muitas mensagens de estranhos. Somos muitos!”, acrescentou.

Javier G. Cuesta de Moscou para O EL PAÍS, em 12.09.22

Terra brasilis, onde tudo é permitido, mesmo o que for proibido

 Absurdo dos absurdos é constatar que os infratores das leis do nosso receituário jurídico geralmente habitam o andar de cima da pirâmide social. Pela lógica, o exemplo de respeito às normas deveria partir do mandatário-mor da nação, o senhor presidente da República.

Brasíia, DF, em 07 de Setembro de 2022, celebrações do bicentenário da Indepedencia, (Crédito da foto: Alan Santos/PR)

Recorro a Sólon, legislador grego, para escrever sobre nossos tempos e, particularmente, sobre os últimos acontecimentos. Indagado se as leis outorgadas aos atenienses eram as melhores, respondeu: "dei-lhes as melhores que eles podiam suportar". Arrisco-me a dizer que, no caso brasileiro, temos um apreciável conjunto de boas leis, mas, infelizmente, parcela de nossas elites não pode suportá-las.

Absurdo dos absurdos é constatar que os infratores das leis do nosso receituário jurídico geralmente habitam o andar de cima da pirâmide social. Pela lógica, o exemplo de respeito às normas deveria partir do mandatário-mor da nação, o senhor presidente da República.

Pois bem, segundo análises de juristas de muitas áreas do direito, Jair Bolsonaro teria cometido um rosário de infrações ao código eleitoral, por transformar as comemorações do dia 7 de setembro, em que o país "festejou" o bicentenário de sua Independência, em eventos eleitorais. Há juízes, como o celebrado desembargador Walter Maierovitch, que enxergam nas infrações motivo para impeachment.

E por quê o Tribunal Superior Eleitoral ou os Tribunais Regionais Eleitorais não avançam nessa matéria? Será que eventual investigação solicitada pelo Ministério Público Eleitoral em torno dos atos presumivelmente de caráter eleitoral comandados pelo presidente-candidato será concluída antes do pleito? Não se espere por isso. Pelo que se conhece dos trâmites, tal investigação entrará para as calendas.

O fato é que Sua Excelência, o senhor presidente da República, tem interpretado as leis com a lupa de uma índole que reparte o espaço eleitoral no paraíso do Bem e no inferno do Mal. Claro, o Bem é personalizado por ele, o Mal, por seu principal opositor, Lula da Silva. Que também divide o nosso mundinho em áreas do "nós e eles". Um jogo de recíprocas conveniências.

O presidente parece admitir que "ordem ilegal" não se cumpre, o que contraria frontalmente o princípio: "agrade ou não, a lei é a lei e deve ser cumprida". Bolsonaro chegou a dizer, por ocasião da pauta sobre marco temporal das terras indígenas, em debate no STF: "se conseguirem (os defensores do marco) vitória nisso, me restam duas coisas — entregar as chaves para o Supremo ou falar que não vou cumprir. Eu não tenho alternativa".

Ora, se alguém considerar uma lei "ilegal", que procure mudá-la no âmbito de quem estabelece as leis, o Poder Legislativo, onde estão a Câmara, o Senado, as assembleias legislativas e as câmaras de vereadores.

O fato é que, nos últimos tempos, a quebra da normalidade tem atingido índices alarmantes. E é interessante observar que, ante a moldura de polarização que acirra as tensões da comunidade política, os poderes parecem recuar em seus deveres e responsabilidades no intuito de evitar conflitos que rompam os dutos da harmonia social.

O achincalhamento de ministros, juízes e instituições ganha, quase todos os dias, espaços na mídia, a denotar que a liberdade de expressão ultrapassa os limites do bom senso. Confunde-se liberdade com irresponsabilidade.

É triste constatar que o país, na quadra político-institucional em que vive, tem expandido as fronteiras da ilegalidade. Não é preciso conferir números para enxergar rupturas da ordem legal por todos os lados. A região amazônica é devastada por atos ilícitos cometidos por madeireiros, garimpeiros e outros bandos de oportunistas, mesmo que os governantes neguem abusos. A fumaça das queimadas na Amazônia chega a São Paulo, Paraná e Bolívia, cobrindo cerca de 5 milhões de quilômetros.

Em suma, as mazelas se espalham pelo território, e as leis são jogadas no lixo, tornando-se letras mortas. E a quem se endereça a culpa? À imprensa. O PT tem dito e repetido que os profissionais se aliaram a Moro e ao MP para destruir Lula e, depois, Dilma. Bolsonaro alega que é perseguido pela imprensa. É o que lembra Ascânio Seleme, em sua coluna de O Globo (3/9).

E assim, nosso habitat consolida sua posição como uma das quatro sociedades mundiais: a primeira é a inglesa, onde tudo é permitido, salvo o que for proibido; a segunda é a alemã, onde tudo é proibido, salvo o que for permitido; a terceira é a que vive sob as ditaduras, onde tudo é proibido, mesmo o que for permitido; e a quarta é a brasileira, onde tudo é permitido, mesmo o que for proibido.

Gaudêncio Torquato, o autor deste artigo, é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político. Pubicado no Conultor Jurídico, em 12.09.22

Eleições: observadores internacionais veem atuação 'inusual' do Exército e risco de embate com TSE

Observadores internacionais reagiram com surpresa e preocupação à possibilidade de que as Forças Armadas tentem fazer uma contagem dos votos das eleições presidenciais de outubro por meio de uma amostragem de Boletins de Urna, os recibos que cada máquina eleitoral emite com o total de votos para cada candidato armazenados ali.

Soldados montam guarda enquanto as pessoas esperam na fila para votar em zona eleitoral no Rio de Janeiro em 28 de outubro de 2018 (Crédito: Ricardo Moraes / AFP Via Getty Images)

Todos os especialistas disseram que esse tipo de ação militar é "inusual" e reafirmaram que a instituição brasileira responsável por proclamar o resultado do pleito é o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que goza da "confiança internacional" na tarefa.

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A BBC News Brasil conversou com integrantes de três organismos internacionais que já têm ou terão equipes em território brasileiro para acompanhar a eleição de 2022. Dois dos especialistas, no entanto, pediram para que suas identidades não fossem reveladas, para que suas opiniões não atrapalhem o trabalho de observação desenvolvido pelas equipes.

"Não existe nenhuma lei brasileira que outorgue às Forças Armadas o poder de fazer qualquer contagem de votos. Os militares têm, sim, um importante papel logístico, na distribuição das urnas pelo território brasileiro. Cada instituição cumpre a sua função. Convidamos todos os atores políticos no Brasil a aceitarem democraticamente os resultados que serão anunciados pelo único órgão que pode fazê-lo, o TSE", afirmou à BBC News Brasil Daniel Zovatto, diretor para América Latina e Caribe do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA).

Zovatto comandará pessoalmente uma equipe de analistas no país em outubro. Além do IDEA, observam o pleito no Brasil funcionários da Organização dos Estados Americanos (OEA), do Parlamento do Mercosul (Parlasul), do Carter's Institute, do International Foundation for Electoral Systems (Ifes) e da Rede Eleitoral da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Bolsonaro já afirmou não confiar nas urnas eletrônicas, embora admita não ter qualquer prova sobre fraude eleitoral (Crédito: LR Moreira / SECOM - TSE)

Em reportagem publicada nesta segunda-feira (12/9), o jornal Folha de São Paulo afirmou que as forças pretendem enviar representantes militares para 385 seções eleitorais, nas quais esses oficiais comparariam o Boletim de Urna impresso no local com as informações disponibilizadas pelo TSE. Ainda segundo a reportagem, os votos seriam contabilizados para tentar aferir, de modo amostral, o resultado da eleição.

A BBC News Brasil perguntou às Forças Armadas se existe, de fato, a intenção de fazer essa checagem a partir dos boletins de urna, qual seria a justificativa e o gasto público para tal ação. O Centro de Comunicação Social do Exército encaminhou a reportagem para o Ministério da Defesa.

Em nota, a Defesa negou que tenha pedido acesso ampliado a informações eleitorais e não informou se pretende ou não fazer checagem amostral do resultado eleitoral.

"As Forças Armadas têm atuado como uma das entidades fiscalizadoras (...), não demandam exclusividade e tampouco protagonismo em nenhuma etapa ou procedimento da fiscalização do sistema eletrônico de votação e permanecerão pautando a sua atuação pela estrita observância da legalidade, pela realização de um trabalho técnico e pela colaboração com o TSE", dizia o texto.

Já o TSE negou que os militares terão qualquer tipo de acesso privilegiado ou adicional aos votos. Os Boletins de Urna, recibos impressos por cada uma das máquinas onde se deposita os votos, já são públicos atualmente e estiveram disponíveis para que eleitores e partidos políticos verifiquem os dados e façam suas próprias contagens nas eleições recentes. Em 2022, os Boletins de Urna também serão disponibilizados pelo TSE online.

"O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informa, em relação à apuração das eleições 2022, que não houve nenhuma alteração do que foi definido no primeiro semestre, nem qualquer acordo com as Forças Armadas ou entidades fiscalizadoras para permitir acesso diferenciado em tempo real aos dados enviados para a totalização do pleito eleitoral pelos TREs, cuja realização é competência constitucional da Justiça Eleitoral", afirmou o TSE em nota.

Cuba e Venezuela

A possibilidade da recontagem por amostragem das Forças Armadas ocorre, no entanto, em meio a uma escalada de tensões envolvendo os militares, o presidente Jair Bolsonaro, que tenta a reeleição, e a Justiça Eleitoral.

"O pior cenário para o Brasil é uma divergência entre as forças armadas e as forças civis em relação ao resultado do pleito", afirma um dos especialistas eleitorais, com experiência em acompanhar pleitos em toda a região. "Talvez os únicos países das Américas em que tenhamos o Exército desempenhando esse tipo de papel sejam Cuba e Venezuela", completou.

Bolsonaro já afirmou não confiar nas urnas eletrônicas, embora ele mesmo admita não ter qualquer prova sobre fraude eleitoral. Ele tem estimulado as Forças Armadas a enviar questionamentos e sugestões ao TSE. O órgão respondeu a todas: acatou algumas das recomendações e descartou outras.

Em abril deste ano, o atual mandatário chegou a sugerir que os militares deveriam fazer sua própria contagem de votos, e não que se esperasse o resultado proclamado "por meia dúzia de técnicos" em uma "sala secreta" do tribunal eleitoral.

"Uma das sugestões é que, esse mesmo duto que alimenta na sala secreta os computadores (do TSE), seja feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um computador também das Forças Armadas para contar os votos no Brasil", disse Bolsonaro.

"O presidente brasileiro tem denunciado de maneira infundada o processo. Tem dito que a eleição não é segura, que o TSE não é imparcial. Vemos com muita preocupação esse tipo de fala, porque pode levar a um aumento da tensão política, ao não reconhecimento do resultado, o que seria muito grave. Já vimos com Trump o que pode acontecer", afirmou Zovatto.

Segundo outro especialista internacional, a preocupação com a repetição no Brasil de um episódio semelhante à invasão do capitólio dos EUA, em 6 de janeiro de 2021, tem escalado na comunidade internacional.

"Desde o primeiro semestre, estamos trabalhando com o TSE para as observações eleitorais, justamente para garantir transparência à decisão do povo brasileiro. As Forças Armadas não são os garantidores do processo eleitoral. Não é assim que as coisas funcionam", afirmou o especialista ouvido pela BBC que tem no currículo observações em países com alta tensão política, como o Haiti.

A quem interessa?

Ao menos dois dos especialistas apontaram que a eventual amostragem dos militares não é capaz de aferir a correção da apuração de votos pelo TSE. Isso porque seria necessário fazer uma coleta dos dados levando em conta critérios sociodemográficos, geográficos e culturais, para garantir que os eleitores representem o perfil do eleitorado brasileiro na totalidade e que os votos não estejam concentrados entre um ou outro candidato.

Especialistas reafirmam que a instituição brasileira responsável por proclamar o resultado do pleito é o TSE (Crédito, Alejandro Zamprona / SECOM-TSE)

"A única coisa que poderia ser verificada ali pelos militares seria a zerésima dessas urnas, que mostra que não havia votos depositados nelas antes do início da votação, e a coincidência entre os dados impressos e os indicados pelo TSE. Não há como recontar votos com esse tipo de amostra", diz um deles.

Para os especialistas internacionais ouvidos pela BBC, chama a atenção que Bolsonaro, um egresso das fileiras do Exército, com um candidato a vice que é general da reserva, e atrás na disputa de acordo com as pesquisas de intenção de voto, conte com as Forças Armadas para endossar dúvidas e inseguranças em relação às eleições.

"É compreensível que pessoas comuns, que consomem informação falsa na internet, possam ter alguma confusão quanto ao processo eleitoral. Mas o que explica que uma das instituições do Estado brasileiro queira patrocinar esse tipo de dúvida contra um processo dirigido por outra parte do Estado?", questionou um dos observadores.

Para outro, tal atuação dos militares alimenta na população a percepção de que eles são "politicamente motivados", quando constitucionalmente deveriam ser agentes neutros, "desinteressados". "Pior ainda se pensarmos que, historicamente, a ditadura militar é um evento recente no Brasil", disse, em referência ao período entre 1964 e 1985.

Observadores domésticos também criticam

Brasileiros especialistas no tema também criticaram eventual envolvimento das Forças Armadas em uma apuração paralela dos votos e consideram que não cabe aos militares nem mesmo fazer alguma contabilização a partir dos boletins de urnas que estarão disponíveis publicamente.

Eles lembram que isso já é feito por outros atores, como partidos políticos, acadêmicos e movimentos sociais.

"Eu sempre achei que é suficiente a participação dos outros órgãos, das outras entidades em fiscalização. Não há necessidade das Forças Armadas. E as Forças Armadas não podem exercer papel político", criticou o advogado Alberto Rollo, especializado em direito eleitoral.

Para o estudioso das Forças Armadas Juliano Cortinhas, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), os militares deveriam se ater a sua função constitucional de proteger o país de ameaças externas. Como portadores do arsenal bélico do país, os militares não deveriam sustentar qualquer opinião política, já que podem coagir os civis no processo.

"As Forças Armadas não deveriam nem estar sendo recebidas pelo TSE. Elas não podem participar de processos internos porque elas são o braço armado. Quem vai desafiar os blindados e os tanques das Forças Armadas se elas se posicionarem e fecharem o Congresso? É muito grave que o braço armado do Estado esteja querendo participar do processo de apuração das eleições. Ao se posicionar em questões políticas internas, se tornam uma ameaça", disse Cortinhas.

Cortinhas ressalta ainda que, nesta eleição, as Forças Armadas estão diretamente envolvidas na candidatura à reeleição do presidente Jair Bolsonaro, que é ex-capitão do Exército e escolheu como candidato a vice-presidente o general da reserva Braga Netto. Na sua avaliação, é mais um motivo para que os militares não atuem na apuração dos votos.

"As Forças Armadas não são imparciais, não estão se comportando como uma força do Estado. Estão se comportando como um órgão político que tem interesse no resultado da eleição. E quem tem interesse para o resultado da eleição não pode participar do processo de apuração", defendeu o professor da UnB.

Apesar de criticarem o envolvimento das Forças Armadas, Rollo e Cortinhas veem baixo risco de isso gerar questionamentos sobre o resultado da eleição de outubro, caso os militares se limitem a checar os boletins das urnas divulgados publicamente pelo TSE.

Esses boletins têm justamente a finalidade de assegurar que os votos depositados na urna serão idênticos aos contabilizados no TSE, já que permitem que qualquer pessoa compare o boletim que é impresso ao final da votação em cada sessão eleitoral com os votos que foram transmitidos no sistema da Justiça Eleitoral. Isso impede que haja alguma fraude durante a transmissão ou contabilidade dos votos.

Referência no estudo da segurança das urnas eletrônicas, o professor Diego Aranha, que atualmente leciona no Departamento de Computação da Universidade de Aarhus (Dinamarca), também considera baixo o risco de questionamentos do resultado eleitoral a partir de eventual contagem dos militares com algumas centenas de boletins de urnas.

Como esses dados são públicos, nota Aranha, eventual contabilização das Forças Armadas poderá ser checada por terceiros.

"Não vejo risco porque terão que fazer isso em público, e vai ficar evidente que a interpretação é equivocada (caso distorçam os resultados)", destacou.

Ele ressalta, como também apontaram os observadores eleitorais internacionais, que eventual contabilização de votos a partir de uma amostra de 385 urnas não terá rigor científico para servir de referência para o resultado oficial.

"A amostra de 385 boletins serve no máximo para verificar a transmissão correta dos resultados, mas naturalmente não serve para totalização paralela (ser somada e comparada com o resultado oficial). Para isso, entendo que a amostra teria que ser muito mais cuidadosa e estratificada por estados, já que a diferença entre candidatos muda muito de uma região para outra", explicou por escrito à BBC News Brasil.

Mariana Sanches e Mariana Schreiber, da BBC News Brasil em Washington (EUA) e Brasília, em 13.09.22

 Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62877839

terça-feira, 6 de setembro de 2022

A ‘mamata’ como método

Bolsonaro entrega cargos aos apadrinhados do Centrão, como o ‘analista sensorial de cachaça’ indicado para a Funasa, responsável por ações de saneamento

Em um país onde 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e cerca de 100 milhões de brasileiros (45% da população) convivem com esgoto sanitário a céu aberto em pleno século 21, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), vinculada ao Ministério da Saúde, deveria ser administrada com mais seriedade. Trata-se de um órgão de importância capital para o desenvolvimento humano dos brasileiros, cuja missão precípua é justamente “promover a saúde pública e a inclusão social por meio de ações de saneamento e saúde ambiental”. Entretanto, no governo de Jair Bolsonaro, a Funasa foi reduzida à condição de mercadoria nesse degenerado contubérnio que o presidente da República estabeleceu com o Centrão em prol de sua permanência no cargo.

O Estadão revelou que mais da metade das superintendências da Funasa no País (em pelo menos 18 Estados), além de diretorias do órgão, está sob controle de apaniguados de parlamentares do Centrão. Muitos deles não têm qualificação profissional para ocupar os cargos. No caso mais estarrecedor, que seria anedótico, não fosse trágico para quem depende dos serviços da Funasa, a superintendência no Espírito Santo foi entregue ao dono de um restaurante self-service que afirma ser “especialista em análise sensorial de cachaça”. O currículo do superintendente Ayrton Silveira Júnior, pasme o leitor, assim é descrito no próprio portal da instituição.

O deputado Neucimar Fraga (PP-ES), padrinho da indicação do sommelier de cachaça para a chefia da Funasa em seu Estado, afirma categoricamente que toda a experiência do pupilo em administração de restaurantes, além de sua especialização em “boas práticas na fabricação da bebida”, contribui para que Ayrton Silveira Júnior realize um “bom trabalho” à frente da superintendência estadual do órgão. “Ele tem organizado a Funasa aqui, tem destravado projetos que estavam parados há muitos anos no Espírito Santo. O problema da Funasa aqui era de gestão”, justificou o parlamentar ao Estadão.

Outros indicados por parlamentares do PL, partido de Bolsonaro, do PP e do Republicanos, legendas que compõem o núcleo duro da atual conformação do Centrão, além do PSD, colonizam diretorias e superintendências da Funasa País afora, de olho num orçamento de quase R$ 3 bilhões. Em comum entre os apadrinhados, a incongruência de suas trajetórias profissionais em relação aos objetivos da Funasa e a proximidade deles com políticos que ocuparam o vácuo de poder deixado pela incompetência de Bolsonaro e por sua insensibilidade às aflições de tantos de seus governados.

Quando candidato em 2018, Bolsonaro prometera “acabar com a mamata” da ocupação política de Ministérios, empresas estatais, agências reguladoras e outros órgãos técnicos. Como presidente da República, ao contrário, Bolsonaro entregou nacos da administração a parlamentares famintos por orçamentos bilionários em troca de sua permanência no cargo, a despeito do rol de crimes de responsabilidade que cometeu – e segue cometendo impunemente. Nunca a debilidade moral, política e administrativa do chefe do Poder Executivo federal foi tão custosa para a Nação.

O aparelhamento da Funasa já seria escandaloso se fosse um caso isolado. Mas não é. Como a Hidra, o Centrão já se apoderou do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Bilhões de reais têm sido desviados por meio de emendas do “orçamento secreto” destinadas a esses órgãos.

Tal é o desassombro dos cupins da República que mais parece que o País não é regido por uma Constituição que impõe a impessoalidade e a transparência como princípios da administração pública. É como se o Brasil não dispusesse de leis que demandam lisura e competência na gestão do Estado. Onde estão a Controladoria-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República?

Eis o retrato de um governo liderado por um presidente que só é capaz de enxergar as necessidades de seus governados sob a ótica de seus interesses particulares mais imediatos. A “mamata” não só não acabou, como se tornou um método de governo.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 06.09.22

Francis Fukuyama: “Os neoliberais foram longe demais. Agora são necessárias mais políticas social-democratas”

O cientista político, que no início dos anos 90 governava o "fim da história", volta com um livro onde identifica as ameaças ao liberalismo clássico: neoliberalismo descontrolado e muita política identitária

Francis Fukuyama, esta segunda-feira na Fundação Rafael del Pino, em Madrid. (Foto: Alvaro Garcia)

Francis Fukuyama (Chicago, 69 anos) responde com rapidez e precisão, com precisão cirúrgica, enquanto estreita os olhos: vê-se que ele pensou muito no que diz. No início dos anos 1990, ganhou fama mundial por governar o “ fim da história ” após a queda da União Soviética e o fim da Guerra Fria. A democracia liberal havia triunfado. Em seu novo livro, Liberalism and its Disenchanted (Deusto), ele detecta novas ameaças ao liberalismo clássico que defende. Por um lado, o neoliberalismo equivocado, que demonizou o Estado, acabou com a solidariedade e tudo o que restava da pulsão individual, gerando uma desigualdade insustentável. Por outro lado, as correntes identitárias descontroladas, tanto a conspiração nacionalistacomo a esquerda muito focada nas minorias. Fukuyama recebe na sede de Madrid da Fundação Rafael del Pino, onde esta segunda-feira deu uma conferência.

Fukuyama: liberalismo sim, mas sem demonizar o Estado

Perguntar. Quando falamos de liberalismo, associamo-lo ao centro-direita, embora se pensarmos nos tempos da Revolução Francesa, parece estar no germe da esquerda.

R. Uso uma definição muito ampla de liberalismo que não está relacionada à ideologia. É verdade que na Europa o liberalismo está associado à centro-direita. Nos Estados Unidos é associado à esquerda. Minha definição diz que é uma doutrina que protege os direitos individuais e limita o poder do Estado. Pode ser da direita ou da esquerda, o que importa é o estado de direito como fundamento de uma sociedade.

P. Como o liberalismo levou a esse neoliberalismo que você critica?

R. Na década de 1970, havia um excesso de regulamentação estatal. Aparecem políticos como Ronald Reagan ou Margaret Thatcher, que tentaram limitar algumas dessas regulações e foram apoiados por economistas muito proeminentes como Milton Friedman , com argumentos mais sofisticados para limitar o Estado. O problema é que eles foram longe demais. Eles tentaram minar todos os tipos de ação do Estado. Mesmo os necessários, como regular o sistema financeiro. O resultado foi uma globalização que aumentou a desigualdade e a instabilidade no sistema financeiro global. E isso provocou uma resposta populista, tanto da direita quanto da esquerda.

P. Às vezes você ouve, de posições liberais, uma justificativa para a desigualdade econômica. Até que ponto essa desigualdade se justifica?

R. Acredito que deve haver sempre um equilíbrio entre crescimento econômico estável e proteção social para os cidadãos. Se você tem um Estado que busca redistribuir renda de forma geral, inevitavelmente reduzirá o incentivo das empresas que assumem mais risco. É por isso que algumas economias ficam presas ao não permitir esse tipo de economia livre.

P. Mas agora a desigualdade está começando a ser problemática .

R. Não pode ser generalizado. A América Latina experimentou o mais alto grau de desigualdade visto no mundo. Muitas das políticas que vemos na Argentina ou na Venezuela são o resultado dessa desigualdade, que leva a resultados econômicos desastrosos e políticas muito ruins, uma grande polarização entre a esquerda populista e a direita ultraconservadora. Em outras partes do mundo outras coisas acontecem. Na Europa, na Escandinávia, existe há muito tempo a social-democracia, que se encarregou de redistribuir a riqueza, o que impediu a polarização.

P. Precisamente, seu livro dá a impressão de abordar a social-democracia.

R. Nunca me opus à social-democracia . Depende muito do momento histórico. Na década de 1960, as sociedades social-democratas sofriam com inflação alta e crescimento muito lento, e naquele momento acho que era importante conter um pouco disso. No período em que vivemos agora, precisamos de mais democracia social. Principalmente nos EUA, onde nem temos saúde universal, sendo um país democrático e rico.

Nunca me opus à social-democracia. Depende muito do momento histórico

P. Na Espanha, quando as pessoas falam sobre política de identidade, como o feminismo ou o movimento LGTBI, às vezes é criticado como coletivista. Em seu livro parecem fincar suas raízes no liberalismo clássico, na afirmação dos indivíduos.

R. A política de identidade surge porque certos grupos são discriminados e é perfeitamente legítimo usar a identidade como meio de lutar contra essa discriminação. Mas torna-se problemático quando a identidade se torna primordial, quando você pode julgar uma pessoa por sua participação em algum grupo e não por quem ela é como indivíduo. Existe uma versão aceitável da política de identidade, mas tem um lado muito controverso.

P. Às vezes, esses grupos são acusados ​​de promover uma cultura de cancelamento . Essa cultura existe?

R. Nos EUA existem algumas formas muito intolerantes de política progressista que não querem que visões alternativas sejam expressas, algo especialmente problemático nas universidades, que são lugares dedicados à liberdade de expressão.

P. Existem casos na Espanha, mas não está claro se merecem o nome de "cultura".

R. Bem, não é uma cultura geral. Nos EUA é provavelmente um fenômeno mais difundido do que em outros países, mas tem a ver com nossa história de desigualdade racial, que se tornou um padrão para outras demandas. Mas concordo que não está claro que é uma cultura como tal. É algo que acontece em algumas instituições, mídia, universidades, Hollywood, mas não é uma cultura enraizada na sociedade.



Francis Fukuyama, em determinado momento da entrevista na Fundação Rafael del Pino. ( Foto: ÁLVARO GARCIA)

P. Como a internet afetou a forma como falamos sobre política?

R. Acho que a internet tornou possível amplificar certas vozes em uma escala sem precedentes. Mas também foi capaz de silenciar os outros. Porque as redes sociais são o meio mais poderoso de crítica política e isso é problemático. Queremos que todas as vozes tenham um peso semelhante, mas não parece legítimo que uma empresa privada de tecnologia tenha esse poder.

As redes sociais são o meio mais poderoso de crítica política e isso é problemático

P. Vivemos uma crise de confiança causada pelas redes?

R. A confiança nas instituições está em declínio nos últimos 50 anos. Nos últimos tempos, esse declínio se acelerou: há forças antidemocráticas que querem destruir essa confiança. A polarização política é muitas vezes o resultado de uma tentativa deliberada de polarizar online. Há momentos em que a perda de confiança é bem merecida, como no caso da Igreja Católica e a falta de responsabilidade e hipocrisia de sua hierarquia.

P. O liberalismo defende a autonomia do indivíduo. Até que ponto as sociedades devem ser individualistas ?

R. Acredito que todas as sociedades devem ter valores sociais comuns. Uma linguagem comum, um conjunto de referências comuns, para poder interagir. Quando os indivíduos inventam seus próprios valores ou vivem em comunidades de bolhas, acho que é um excesso de individualismo. E essa tem sido a tendência nas sociedades liberais: o indivíduo foi promovido até perder o juízo.

P. Como pode ser moderado?

R. Acho que você tem que confiar no fato de que o ser humano é um ser social. Você tem que navegar entre o individualismo excessivo e um grau excessivo de conformidade social.

P. Até que ponto a liberdade individual , tão importante para os liberais, pode ser limitada?

R. Todas as sociedades liberais têm que manter suas próprias instituições, então quando surge um partido político que é antidemocrático ou antiliberal, você sabe que isso vai minar a liberdade de expressão. Uma sociedade liberal tem o direito de se defender. Na Guerra Fria havia muitos partidos comunistas que eram antiliberais, e havia muita resistência em deixá-los participar do sistema, porque havia o medo de que quando tomassem o poder não o deixassem. A sociedade liberal tem que se proteger das forças não liberais.

P. Existe o risco de ir para um mundo não liberal?

R. Existem duas ameaças. O mais grave vem do nacionalismo populista: Orbán, Erdogan ou Trump. Todas essas pessoas, eleitas democraticamente, usam seu poder para ameaçar as instituições democráticas. A outra vem da esquerda, e tem a ver, sobretudo, com o campo cultural.

A ameaça mais grave vem do nacionalismo populista: Orbán, Erdogan ou Trump.

P. O liberalismo e a democracia são sempre companheiros de viagem?

R. Eles são aliados e se apoiam, mas não precisam necessariamente existir ao mesmo tempo. Orbán quer uma democracia não liberal, com eleições, mas sem liberdade de imprensa ou crença, ou oposição livre. Há também sociedades liberais sem democracia, como Cingapura: há liberdade individual, mas não há eleições.

P. O que você acha do recém-falecido Mikhail Gorbachev ?

R. Deixa um legado muito misto. Ele não queria que a URSS desmoronasse, mas entre os comunistas ele tinha tendências muito liberais. Ele também pediu maior liberdade de expressão e isso acabou erodindo a União Soviética: quando eles podiam falar livremente, o que eles diziam em muitos lugares era que queriam que seu país fosse independente. Acho que sem Gorbachev esses países ainda estariam presos em uma ditadura soviética, então, historicamente, sou muito grato a ele.

P. Você falou então do famoso fim da história. Agora falamos mais sobre o fim do mundo .

R. Eu nunca disse que a democracia liberal ia triunfar em todos os lugares, nem que era o sistema que acabaria com todos os nossos problemas. Se você pegar algo como a mudança climática, especialmente gerada pelo crescimento econômico, não acho que a democracia liberal seja pior em gerenciá-la do que o governo autoritário, como às vezes se pensa. As democracias têm sido mais eficientes na redução das emissões. A economia chinesa, por exemplo, é baseada em combustíveis fósseis.

Eu nunca disse que a democracia liberal triunfaria em todos os lugares, nem que era o sistema que acabaria com todos os nossos problemas.

P. Como você vê o futuro da civilização?

R. Acho que estou otimista no sentido de que houve muito progresso histórico. E acho que vai continuar a acontecer no futuro. Acredito, por exemplo, que muitos dos problemas causados ​​pela tecnologia podem ser resolvidos pela própria tecnologia. Mas não sei o que vai acontecer. Também não acho que seja especialmente produtivo adotar uma visão pessimista. Se acharmos que tudo vai dar errado, não faremos nenhum esforço para corrigir o que não vai bem.

Sergio C. Fanjul (Oviedo, 1980), o entrevistador, é graduado em Astrofísica e mestre em Jornalismo. Tem vários livros publicados e prêmios como o Paco Rabal de Jornalismo Cultural ou o Pablo García Baena de Poesia. É professor de redação, roteirista de TV, locutor de rádio em Poesía o Barbarie e performer poético. Desde 2009, assina colunas e artigos no El País. Publicado originalmente em 06.09.22

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Simone Tebet comemora alta em pesquisas e afirma: ‘Voto útil somos nós’

Em agenda de campanha nesta segunda-feira em São Paulo, a candidata do MDB à Presidência comemorou a alta dos seus índices de intenção de voto em pesquisa e fez uma defesa da chamada terceira via

Simone Tebet em agenda de campanha nesta segunda-feira, 5 de setembro de 2022. Foto: Marcela Villar/Estadão

A candidata à Presidência da República Simone Tebet (MDB) comemorou o aumento nas pesquisas de intenção de voto divulgadas neste começo de semana e convidou os eleitores que não querem a reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL) a votar em candidatos da “terceira via”. Ela comentou os levantamentos eleitorais em visita a uma cooperativa de reciclagem de materiais na manhã desta segunda-feira, 5, na capital paulista.

“O voto útil somos nós. Aqueles que não querem a reeleição do presidente Bolsonaro já podem apostar na terceira via, porque as pesquisas já mostram que todos nós ganhamos, no segundo turno, do atual presidente da República”, disse Simone.

A candidata se referiu à pesquisa do Instituto FSB encomendada pelo banco BTG Pactual, divulgada nesta segunda, que apontou recuo de todos os candidatos e crescimento de Simone. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) continua na liderança, mas recuou de 43% para 42%; Jair Bolsonaro oscilou dois pontos para baixo (de 36% para 34%); e, Ciro Gomes (PDT), de 9% para 8%. Já a senadora foi de 4% para 6%. Em um eventual segundo turno, todos esses candidatos venceriam o atual chefe do Executivo, de acordo com o levantamento.

“Fico feliz de a população brasileira perceber que há espaço e uma saída dessa polarização”, comemora.

A candidata também disse que sua candidatura fortalece a democracia. “A nossa candidatura não é só eleitoral, mas também política, de fortalecimento da democracia. Ninguém vai ousar discutir resultado das urnas. Vamos aceitar defendendo uma campanha limpa, sem fake news, sem ataques. Serei a primeira a defender qualquer um que for atacado, pronta a fazer o bom combate e aí a vontade da população é o eleitor que vai decidir no dia 2 de outubro”, defende.

Simone Tebet ainda acredita que a polarização política favorece a criação de “crises artificiais”. “Se não se há planejamento, não se aplica de forma correta o orçamento no Brasil, porque não há plano de governo. Os dois que se apresentam pontuando nas pesquisas não falam o que vão fazer nos próximos quatro anos”, crítica a candidata.

Redução de encargos para cooperativas

Simone Tebet também falou sobre proposta de redução dos encargos previdenciários para cooperativas, se eleita. O pedido foi feito por funcionários e pelo presidente da Cooperativa de Coleta Seletiva da Capela do Socorro (Coopercaps), Telines Basílio. É a principal reivindicação da categoria.

“Estamos estudando a possibilidade de diminuir a questão do que hoje eles pagam 20% em relação ao INSS, como encargos previdenciários, enquanto o setor da pesca, por exemplo, é 2,5%. Estamos vendo como podemos reduzir”, afirma Tebet, durante visita à Coopercaps, na manhã desta segunda-feira, 5.

Ela também planeja apoiar o segmento com linhas de financiamento do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a construção de aterros sanitários e construção de novas cooperativas. “Esse tipo de atividade de negócio faz bem para o meio ambiente, garante cidadania para essa massa de trabalhadores que já algo em torno de quase um milhão de pessoas”, acrescenta.

A candidata pretende ainda criar uma campanha publicitária dentro das escolas voltada para educação ambiental. “Não podemos esquecer que tudo começa do berço. Precisamos ensinar nossas crianças e nossos jovens a importância de reciclar, de cuidar do meio ambiente, começando dentro de casa, através do lixo”, completa.

Secretaria voltada à Amazônia

Na fala aos jornalistas na manhã desta segunda, a senadora também voltou a falar sobre propostas na área ambiental e defendeu a criação de uma secretaria executiva voltada a aplicar políticas públicas na Amazônia. “Ela vai ter o papel decisivo de cuidar dos biomas, junto com o Ministério das Relações Exteriores, fazer essa dobradinha para mostrar para o mundo que nós somos sustentável, com os órgãos de fiscalização e controle atuando”, afirmou.

O objetivo dessa nova pasta da seria também atrair investimentos internacionais para o País, para que “possam vir trazer os dólares que estão faltando no Brasil para que a gente possa aquecer a economia, fazer o Brasil voltar a crescer, gerar emprego e renda para população brasileira”.

A candidata escolheu a data em que se comemora o Dia da Amazônia para reforçar seu compromisso com o meio ambiente. “Fizemos questão de vir aqui para mostrar que cuidar do meio ambiente é também garantir desenvolvimento sustentável com qualidade de vida da renda e salário, não só para os catadores, mas pra toda uma cadeia de produção.”

Marcela Villar para O Estado de S. Paulo, em 05.09.22. Atualizado às 16h43

Fachin suspende decretos de Bolsonaro que ampliam acesso a armas e aponta risco de violência política nas eleições

Ministro do STF disse que início da campanha eleitoral 'exaspera o risco de violência política'

O ministro Edson Fachin citou risco de violência política no período eleitoral para suspender decretos do governo Bolsonaro. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu nesta segunda-feira, 5, trechos de decretos editados pelo governo federal com flexibilizações para o porte de armas.

A decisão liminar diz que o início da campanha eleitoral “exaspera o risco de violência política”. “O risco de violência política torna de extrema e excepcional urgência a necessidade de se conceder o provimento cautelar”, escreveu o ministro.

Os processos que contestam a política armamentista do presidente Jair Bolsonaro (PL) já haviam sido colocados em julgamento no plenário virtual do STF em março do ano passado. A votação foi suspensa em três ocasiões diferentes por pedidos de vista (mais tempo para análise) – o mais recente feito pelo ministro Kassio Nunes Marques. Sem previsão para a retomada do julgamento, Fachin apontou “perigo na demora” e decidiu despachar monocraticamente.

“Passado mais de um ano e à luz dos recentes e lamentáveis episódios de violência política, cumpre conceder a cautelar a fim de resguardar o próprio objeto de deliberação desta Corte”, justificou o ministro.

O assunto foi levado ao tribunal pelo PSB e pelo PT. Os partidos afirmam que os decretos são inconstitucionais e representam “retrocesso” em direitos fundamentais, na medida em que facilitam de forma “desmedida” o acesso a armas e munições pelos cidadãos comuns. Argumentam ainda que, embora pretendam disciplinar o Estatuto do Desarmamento, os decretos ferem suas diretrizes e violam o princípio da separação dos Poderes e o regime democrático, uma vez que o Planalto teria assumido a função do Legislativo ao decidir sobre política pública envolvendo porte e posse de armas de fogo.

Em manifestação enviada ao Supremo, o Planalto explicou que as mudanças foram pensadas para “desburocratizar” procedimentos. O governo ainda argumentou que, ao sair vencedor das últimas eleições, Bolsonaro ganhou “legitimidade popular” para “concretizar, nos limites da lei, promessas eleitorais”. O Planalto disse também que a “insuficiência do aparelho estatal para blindar o cidadão, por 24 horas, em todo o território nacional”, justifica mecanismos de legítima defesa.

Em sua decisão, Fachin disse que a Constituição condena a “privatização dos meios de violência legítima”. Ele disse que a União tem o dever de “mitigar os riscos de aumento da violência” e que esse controle deve ser exercido também sobre os agentes privados. “O dever de proteção à vida não se esgota, apenas, no controle interno exercido sobre os agentes do Estado”, observou.

O ministro decidiu que a posse de armas de fogo só pode ser autorizada para quem demonstrar necessidade concreta, por razões profissionais ou pessoais. A decisão prevê ainda que a aquisição de armas de uso restrito só pode ser autorizada no “interesse da própria segurança pública ou da defesa nacional”, não em razão do interesse pessoal. A comercialização de munições também fica limitada.

Rayssa Motta para O Estado de S. Paulo, em 05.09.22. Atualizado às 14h11.

7 de Setembro: militantes fichados pela PF por atos extremistas preparam protestos; veja quem são

O grupo de radicais incentiva a presença nas ruas no feriado e fala em mortes entre “inimigos do Brasil”, “expulsar demônios” e fim dos “discursos moderados” contra a “tirania”

Invasão plenário da Câmara em 2016 

Pelo menos 25 militantes e canais fichados na polícia por ações extremistas e notícias falsas estão na linha de frente da mobilização para o 7 de Setembro. Eles reúnem um total de 30 milhões de seguidores. O grupo de radicais incentiva a presença nas ruas no feriado e fala em mortes entre “inimigos do Brasil”, “expulsar demônios” e fim dos “discursos moderados” contra a “tirania”.

Há um mês o Estadão monitora os influenciadores radicais, que argumentam usar apenas “figuras de linguagem” em sua atuação nas redes. Mas eles têm um histórico de ações reais de violência política, como a invasão ao plenário da Câmara, em 2016, além de citações nos inquéritos dos Atos Antidemocráticos e das Fake News, de 2020, e o da desmonetização de canais que faturavam com mentiras, de 2021.

Atualmente, o grupo se articula entorno do discurso de ataque do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) ao Supremo Tribunal Federal (STF), em especial ao ministro Alexandre de Moraes.

Sem impedimentos legais, esses influenciadores estão a postos a aumentar, a todo instante, o tom dos discursos de Bolsonaro – alguns têm experiência no planejamento de ações reais de radicalismo. O ato partidário promovido pelo presidente está previsto para cidades como Brasília, Rio e São Paulo.

Candidata a deputada federal pelo PTB de Santa Catarina, Dileta Corrêa da Silva organiza a manifestação em Balneário Camboriú. Há seis anos, ela e outros 56 militantes formavam o movimento que quebrou a porta de vidro do plenário da Câmara e invadiu o local para defender a intervenção militar. “Faria tudo novamente e faria até melhor, chamaria mais pessoas, colocaria mais pessoas no plenário”, afirmou Dileta ao Estadão.

Após a invasão, ela foi proibida de entrar na Casa e teve de ir ao STF para restaurar o direito de entrar no local. Os advogados da candidata defendem a invasão, alegando que o ato foi “o mais espetacular” dos quais ela participou. E convenceram o ministro Edson Fachin que decidiu a favor dela, contrariando a opinião do Ministério Público Federal.

Não foi a primeira ação envolvendo a militante radical. Em 2017, Dileta foi decisiva nas redes sociais para propagar o motim da Polícia Militar do Espírito Santo, apoiada por Bolsonaro. Quanto ao seu comportamento no dia 7, ela diz que não fará nem mesmo discurso.

Candidato à presidência da República, mas com registro cassado pelo TSE, o ex-deputado Roberto Jefferson, que está em prisão domiciliar, divulgou um vídeo cobrando do presidente Jair Bolsonaro uma reação dura contra o ministro Alexandre de Moraes para garantir que as pessoas se manifestem. Ele classificou o magistrado como o chefe da “milícia judicial” e disse que o presidente deveria mandar prender os atiradores de elite escalados para a segurança do ato em Brasília.

“É o Xandão que vai estabelecer o que o povo pode fazer em 7 de Setembro? Ano passado foi um fracasso, você fez um discursinho meia boca com medo de não sei o quê e agora você vai deixar eles mijarem em você? Poste não mija em cachorro, Bolsonaro. Reaje, Bolsonaro, ou acabou. Ou pede o boné e acabou.”

Sem discurso moderado

Foragido da Justiça brasileira, o blogueiro Allan dos Santos estimulou, em um e-mail a seus seguidores, mais ação. “Não dá mais para usar o ‘discurso moderado’ como ferramenta contra a tirania”, escreveu. “Por isso, 7 de setembro será um dia tão importante. Além de ser o bicentenário da Independência do Brasil, será, também, o dia em que vamos mostrar que nada pode ser maior que a força popular”. Questionado, por e-mail, ele não respondeu.

Entre os influenciadores que tiveram o faturamento de canais barrados pela Justiça Eleitoral está Camila Abdo. Ela mantém uma série de contas nas redes sociais de apoio a Bolsonaro e críticas a ministros do STF. Na última quinta-feira, 1º, promoveu uma live no YouTube com o comentarista José Carlos Bernardi, que foi demitido da rádio Jovem Pan após sugerir ‘matar um monte de judeus’ para o Brasil enriquecer - ele agora é candidato a deputado estadual em São Paulo pelo partido do presidente.

Na transmissão, Bernardi citou um trecho da Bíblia que narra uma guerra e afirmou que a manifestação da próxima quarta-feira, será um “marco de libertação”. “Esse reboliço acontecerá agora no 7 de Setembro entre os inimigos do Brasil, eles mesmo vão se matar”. Em seguida, os dois afirmaram que a declaração se tratava de uma figura de linguagem. “Só para deixar claro, figura de linguagem é tipo assim: ‘entendeu, Supremo?’ Ah, como se fosse. Ele não está incitando morte de ninguém, tá bom? É como se fosse, um exemplo”, disse Camila.

Nos seus canais ela diz que há ministros do Supremo que “precisam sair de lá”. À reportagem, porém, a influenciadora afirmou que a motivação para a convocação é o “respeito pleno à Constituição Federal e a liberdade de expressão” e que o ato será absolutamente pacífico. “Tenho plena convicção que os ministros observarão que é apenas uma comemoração aos 200 anos da nossa independência. Não há o que temer. Tanto da nossa parte, como da parte dos ministros”, declarou. Por sua vez, Bernardi afirmou à reportagem que não iria comentar.

“Chegou a hora de expulsarmos estes demônios”

Blogueiro punido pelo TSE com a perda de receita por vídeos de notícias falsas, em 2021, Emerson Teixeira de Andrade se apresenta nas redes sociais como “Professor Opressor”. Os vídeos dele fazem paródias a Alexandre de Moraes. No mesmo dia em que Bolsonaro chamou o magistrado de vagabundo, ele postou uma convocação no Twitter: “Vagabundos vão comendo pela beirada e acabando com a sua liberdade aos poucos. Você vai permitir isso ou vai para as ruas dia 7 de setembro?”, publicou, seguido de uma imagem com a mensagem: “Chegou a hora de expulsarmos estes demônios”.

Em resposta ao Estadão, ele afirmou que sua motivação é protestar contra a “forma como os ministros do STF vêm desrespeitando a Constituição” e que a manifestação é pacífica. “Essa conversa de ato antidemocrático foi uma desculpa esfarrapada para punir as pessoas que falam aquilo que você não quer ouvir.”

Apoiador de Bolsonaro, o cabo Corrêa Mourão é candidato a deputado federal no Rio pelo PMN. Também veterano da invasão da Câmara, em 2016, ele publicou recentemente um vídeo com a frase “Pela última vez”, na qual disse que estaria em Copacabana no dia 7 de Setembro. “Você não pode perder, estaremos juntos. Eu e toda a equipe do ‘Para cima deles, Brasil’”, disse. A frase é uma referência a um discurso de Bolsonaro. Na convenção nacional do PL, que o oficializou como candidato à reeleição, em julho, ele chamou apoiadores para irem às ruas em setembro pela “última vez”.

“Me perguntaram se eu tinha coragem de tomar o Congresso”

O Estadão identificou 14 manifestantes que participaram da invasão à Câmara para pedir intervenção militar, por meio de vídeos da época, entrevistas e redes sociais. Seis anos depois, lideranças do grupo estão firmes na defesa de Bolsonaro. Além de Dileta, outros dois lançaram candidaturas à Câmara e a Assembleias Legislativas. Era 16 de novembro de 2016. O plenário estava praticamente vazio. O deputado Capitão Augusto (PL-SP) direcionava uma mensagem a eleitores de Ourinhos, no interior de São Paulo, quando foi interrompido pelo grupo que atropelou a segurança e entrou aos gritos no espaço restrito aos parlamentares e assessores. Um servidor que cruzou o caminho dos invasores foi derrubado com uma rasteira. A invasão forçou o fim da sessão.

Participantes da invasão relataram à reportagem que o ato foi premeditado por cinco meses e poderia ter sido ainda mais violento. Os invasores saíram de um grupo com cerca de 490 pessoas acampadas em Brasília dias antes. Só uma parte insistiu na ilegalidade. Entre eles, militares reformados e ativistas da extrema-direita. Havia os designados “para a conversa e para a porrada”.

Seis anos depois, Davi Benedito se apresenta como líder do movimento “Intervencionistas no Congresso”. Segundo ele, a “missão” foi preparada por meses com militantes de vários estados e um financiador oculto. Ele concorre a uma vaga na Assembleia de São Paulo pelo Patriota e estará na Avenida Paulista, no dia 7. Até hoje, está proibido de entrar na Câmara. “A tomada da Câmara foi decidida um tempo depois de uma missão no Rio. Me perguntaram se eu tinha coragem de tomar o Congresso. Cheguei no dia 12 de novembro. Fiquei cinco meses montando essa caravana. Foram várias missões que eu fiz por aí. Viram que eu era um cara competente e me pediram para fazer”, diz Benedito.

Ele conta que deixou de ser intervencionista e acredita no processo eleitoral. Uma das páginas de internet que usa para fazer campanha, porém, chama-se “Intervencionistas no Congresso”. Benedito garante que se manifestará pacificamente na Paulista.

Corrêa Mourão, o outro invasor, contou ao Estadão que “não tinha bandido” no ato. “Algumas pessoas ficaram vetadas de entrar (na Câmara) logo no início. Mas depois que mudou a presidência, mudou toda a história. Eu não fui proibido, eu fui vetado. Toda vez que eu chego lá, o cara vê, chama a segurança, manda olhar tudo, mas eu entro. Sempre entro, nunca fiquei barrado 100%, não”. Ele também se diz contrário ao golpe militar.

O influenciador Alberto Junio da Silva, do canal O Giro de Notícias, também fez convocações e afirmou que Moraes “não tem mais autoridade nenhuma”. À reportagem, ele disse que o ato será “um grito pela liberdade” e pacífico. “Sigo fielmente o que está escrito na nossa Constituição e, mesmo não concordado em 90% das decisões dos ministro do STF, respeito a instituição e oriento a todos a cumprir decisões por eles determinadas.”

Perfis que estimulam participação no 7 de setembro:

Cleitomar Basso - Foco do Brasil

Adilson Nelson Dini - Ravox

Alberto Junio Da Silva - O Giro de Notícias

Camila bdo Leite Do Amaral Calvo

Emerson Teixeira De Andrade - Professor Opressor

Fernando Lisboa Da Conceição - Vlog Do Lisboa

Bernardo Kuster - Brasil sem Medo

Folha Política

Jornal Da Cidade On Line

Oswaldo Eustáquio

Roberto Boni - Canal Universo

Allan dos Santos

Terça Livre

Enzo Leonardo Suzi - Enzuh

Marcus Bellizia - Movimento nas Ruas

Rafael Moreno - Movimento Brasil Monarquista

Carla Zambelli - deputada

Filipe Barros - deputado

Luiz Phellipe Orleans e Bragança -deputado

Dileta Corrêa - Invadiu a Câmara em 2016

Davi Benedito - Invadiu a Câmara em 2016

Cabo Corrêa - Invadiu a Câmara em 2016

Jorge Ares - Invadiu a Câmara em 2016

Marilene D’Ottaviano - Invadiu a Câmara em 2016

Roberto Jefferson - Ex-deputado e candidato à presidência com registro cassado pelo TSE

Vinícius Valfré, Julia Affonso, Daniel Weterman e André Shalders para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 05.09.22. Atualizado às 15h21

Pesquisa Ipec/O GLOBO: na opinião pública, políticos estão no topo do ranking da corrupção

Imagem negativa do Congresso é superior à de polícias, empresas privadas ou o Judiciário

O Congresso Nacional, em dia de tempestade em Brasília Cristiano Mariz

Pesquisa do Ipec feita com exclusividade para o GLOBO com 2 mil pessoas na internet revela que a Câmara dos Deputados, o Senado e os governos federal e estaduais foram avaliadas pelos brasileiros como as instituições mais corruptas do país. Os órgãos políticos aparecem à frente do Judiciário, das polícias e de empresas privadas.

O Ipec perguntou se os entrevistados percebiam algum nível de corrupção em diversas instituições e, com base nas respostas, elaborou um ranking. A Câmara dos Deputados foi avaliada como o órgão mais corrupto: para 76% dos entrevistados, existe “muita corrupção” no parlamento. O Senado, o governo federal e os governos dos estados vêm em seguida — com, respectivamente, 70%, 64% e 61% de avaliações de “muita corrupção”. O Poder Judiciário foi avaliado como “muito corrupto” por 47% dos entrevistados e aparece em quinto lugar.

Apesar de a Operação Lava Jato ter trazido à tona pagamentos sistemáticos de propina por várias das maiores empresas do país, firmas privadas foram as instituições mais bem avaliadas pelos entrevistados: só 24% as apontaram como “muito corruptas”. Para Manoel Galdino, diretor da ONG Transparência Brasil, que se dedica a promover o controle social do poder público, os resultados apontam uma tendência de brasileiros considerarem o Estado mais corrupto do que o setor privado.

— Não surpreende o fato de os políticos ainda ocuparem as primeiras posições, porque realmente ocorrem escândalos de corrupção mais graves e em maior quantidade envolvendo essas figuras. No entanto, há dois pontos a serem destacados sobre a percepção sobre as empresas. Só existe corrupção porque alguém recebe e outro alguém paga. No Brasil, como vimos na Lava-Jato, geralmente quem paga são grandes empresas privadas. Mas o brasileiro só vê a corrupção do lado do Estado. Outro ponto é que a maioria das empresas no Brasil são de pequeno porte, comerciantes, microempreendedores. São nessas empresas que o brasileiro pensa, e não nas grandes empreiteiras — explica Galdino.

Os brasileiros consideram a corrupção o segundo maior problema do país, segundo o Ipec. Ao todo, 36% dos entrevistados pelo instituto mencionaram pagamentos de propina e a troca de pagamentos ilícitos por vantagens como um dos três problemas mais graves do Brasil — somente o desemprego foi mencionado por mais entrevistados. No entanto, quando estimulados a escolher somente um desafio a ser enfrentado, a corrupção aparece como maior prioridade dos entrevistados, com 18% das menções, à frente de desemprego e saúde, com 14% cada uma.

Leia aqui os outros temas da série Tem Solução, que investiga os principais problemas do país a partir de dois levantamentos inéditos do Ipec. A primeira pesquisa foi feita de forma presencial com 2 mil eleitores com 16 anos ou mais, entre 1 e 5 de julho em 128 cidades brasileiras. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou menos. A segunda, feita com 2 mil pessoas na internet com 16 anos ou mais das classes A, B e C, entre 20 e 27 de julho, com margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou menos.

Rafael Soares para O Globo, em 05.09.22

domingo, 4 de setembro de 2022

A opção pela ignorância

Como havia desacreditado pesquisas sobre desmatamento e desemprego, Bolsonaro diz que não há fome no Brasil; nenhum governo toma decisões corretas ao escolher ignorar a realidade

Para ser eficiente, um governo precisa de informações de qualidade. É impossível que um presidente da República tenha domínio sobre todos os temas que lhe cabe tratar, mas um bom presidente é aquele que, antes de tomar decisões, especialmente sobre assuntos que desconhece, se esforça para se inteirar dos dados mais confiáveis. Se, contudo, um presidente escolhe deliberadamente ignorar as informações qualificadas a respeito dos problemas graves do País, baseando suas decisões no que seus seguidores dizem nas redes sociais em detrimento da opinião de especialistas e no trabalho de pesquisadores, o resultado é uma administração caótica – e nociva para a população.

Quando o presidente Jair Bolsonaro diz, por exemplo, que “fome para valer não existe (no Brasil) da forma como é falado”, sinaliza que escolheu a ignorância. Abundam informações segundo as quais a fome não apenas existe “para valer” no Brasil, como atinge brasileiros na casa dos milhões. Há alguns dias, neste espaço, destacamos o caso intolerável de um menino de 11 anos que ligou para a polícia pedindo socorro porque sua família estava havia três dias sem comer (ver o editorial Vergonha brasileira, de 23/8).

O episódio dessa criança é o lado humano de uma tragédia fartamente documentada em estatísticas, que deveriam orientar o governo na adoção de medidas urgentes para mitigar o problema. Tendo em vista, no entanto, que o presidente escolheu não levar em conta esses dados, a julgar por sua declaração, é improvável que o governo atue de maneira correta e célere. Norteado apenas por pesquisas eleitorais, o governo atropelou regras fiscais para distribuir dinheiro aos mais pobres, mas sem critérios claros nem preocupação específica com a insegurança alimentar.

Esse é apenas o caso mais recente a comprovar os efeitos deletérios do apedeutismo militante do governo Bolsonaro. Recorde-se que, no auge da pandemia de covid-19, por exemplo, o presidente trocou vários ministros da Saúde até que encontrasse um que defendesse as teses estapafúrdias defendidas nas redes sociais bolsonaristas a respeito da alegada eficácia de “tratamentos precoces” e da suposta ineficácia das vacinas.

Para a Procuradoria-Geral da República (PGR), Bolsonaro “acreditava sinceramente” no tal tratamento precoce e, por isso, não poderia ser qualificado como “charlatão”, como pretendia a CPI que investigou a atuação do governo na pandemia. Segundo a PGR, o tratamento foi “defendido por inúmeros profissionais da área médica” e, por isso, Bolsonaro não tinha como saber que era ineficaz. O que a PGR não disse é que Bolsonaro demitiu ministros da Saúde que lhe disseram que o tratamento era ineficaz – isto é, que Bolsonaro optou por estimular a população a acreditar que havia remédios eficazes contra a covid quando já tinha informações segundo as quais esses remédios não tinham efeito e que poderiam inclusive pôr em risco a saúde de quem os tomasse.

Esse elogio à ignorância talvez seja a marca mais relevante desse governo. Em 2019, poucos meses depois de tomar posse, por exemplo, Bolsonaro disse que os números sobre o avanço do desmatamento divulgados pelo Inpe não eram “condizentes com a verdade” e demitiu o diretor do instituto, reconhecido internacionalmente por sua competência.

Em 2020, quando a pandemia acelerava, o Ministério da Saúde, depois de críticas de Bolsonaro a respeito de supostos exageros na contabilidade de contaminados e mortos pelo coronavírus, decidiu alterar a divulgação dos números, tornando-os menos confiáveis ou inteiramente inúteis. Essa atitude levou vários veículos de imprensa, entre os quais este jornal, a se juntar em um consórcio cujo objetivo era coletar esses dados diretamente dos Estados.

Em 2021, depois da divulgação de números ruins sobre o emprego, o presidente Bolsonaro, em vez de admitir o problema e propor soluções, preferiu desacreditar o IBGE, que produziu a informação. Para Bolsonaro, o número do desemprego aumentou “por causa da metodologia” do instituto.

Os exemplos são muitos e indicam um padrão: Bolsonaro não gosta da realidade quando esta contraria seus devaneios ou prejudica seus interesses. Nenhum governo toma decisões corretas quando é dominado pela fabulação. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04.09.22


Bolsonaro utiliza ações militares para reforçar ato eleitoral no 7 de Setembro

Presidente estará na orla carioca na data em que Marinha realiza parada naval, Força Aérea exibe esquadrilha e canhões do Forte de Copacabana saúdam o bicentenário da Independência


A orla da Praia de Copacabana também rcebeu manifestação de apoiadores de Bolsonaro no 7 de Setembro de 2021. Neste ano, o comício do presidente acontecerá junto a apresentações militares. Foto: Wilton Junior/Estadão

O presidente Jair Bolsonaro vai usar ações militares para engrossar um ato eleitoral no 7 de Setembro, no Rio. O esperado comício do presidente – candidato à reeleição pelo PL – na orla carioca vai ocorrer ao mesmo tempo em que a Marinha faz sua parada naval, a Força Aérea exibe a esquadrilha da fumaça e os canhões do Forte de Copacabana vão saudar o bicentenário da Independência. Os bolsonaristas se misturarão a bandas militares e a uma exibição de paraquedistas do Exército e da Aeronáutica.

Bolsonaro pretendia transferir o desfile cívico-militar do dia 7 da Avenida Presidente Vargas, no centro – onde sempre ocorreu – para Copacabana, onde haverá seu evento de campanha. Historicamente, os presidentes, desde a redemocratização, participam das comemorações do Dia da Independência apenas na parada militar, em Brasília. Foi assim com José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer. Bolsonaro será o primeiro a ir a um segundo ato, no Rio – junto com uma manifestação eleitoral.

Na sexta-feira, o Ministério Público Federal enviou pedidos ao Comando Militar do Leste (CML), ao 1.º Distrito Naval e ao 3.º Comando Aéreo Regional para que informem quais providências tomaram para impedir que a celebração da Independência se confunda com ato político-partidário. Também perguntou o que fizeram para impedir que os subordinados participem de celebrações políticas.

Para analistas, Bolsonaro pretende, com o ato, unir os militares aos seus apoiadores. “O que seria uma festa cívica que marca um bem comum para todos os brasileiros, os 200 anos de Independência do País, acaba sendo um caro evento de campanha”, disse Eduardo Heleno de Jesus Santos, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense.

“O que seria uma festa cívica para todos os brasileiros acaba sendo um caro evento de campanha.”

Eduardo Heleno Santos, cientista político

O professor de Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Christian Lynch, concorda. Segundo ele, o presidente vai usar os atos oficiais para exibir apoio de militares e de eleitores. O cenário – prevê – será utilizado em peças de propaganda eleitoral. “Bolsonaro vende a imagem de que tem o apoio irrestrito do povo e das Forças Armadas e está sempre parasitando eventos com a presença das Forças Armadas, de evangélicos, numa tentativa de tomar para si os atos.”

Resistências

Desta vez, o presidente enfrentou resistências no Exército e na Prefeitura do Rio, que informou não ser possível mudar o evento de lugar. O resultado foi que, após dois anos de pandemia sem festas pelo País, o bicentenário da Independência será comemorado sem desfile no Rio. A parada na Avenida Presidente Vargas foi cancelada a fim de não contrariar Bolsonaro. Se ela não podia ser em Copacabana, também não seria em outro lugar.

As tropas do CML vão desfilar em Belo Horizonte, em Vitória e até em São Paulo, para onde as Brigadas Paraquedista e de Montanha enviaram contingentes. Na capital paulista, o Comando Militar do Sudeste prepara uma festa com 6.266 militares das três Forças – incluindo cadetes equatorianos –, 1.015 policiais e 3 mil civis, na Avenida d. Pedro 1.º , ao lado do Museu Paulista, no Ipiranga. Desfiles vão ocorrer em todas as capitais. Salvador terá 6,4 mil civis e militares e no Recife serão 2,5 mil militares.

Políticos bolsonaristas, ouvidos sob condição de anonimato, avaliam que a celebração no Rio servirá para que o mandatário continue a contestar as pesquisas eleitorais. Eles preparam uma grande panfletagem na orla. No Estado, Lula marcou 42% ante 36% do presidente, na mais recente pesquisa Datafolha. Em 2018, Bolsonaro venceu o segundo turno com o dobro de votos de Fernando Haddad (PT).

Para Eduardo Heleno, há outras razões para a escolha do Rio. Berço político do presidente, o Estado concentra uma grande guarnição militar, que sempre serviu de base eleitoral a Bolsonaro. “Não há como deixar de levar em conta, além do público militar, a aproximação com neoconservadores cristãos.”

Ele cita o fato de o presidente ter crescido a partir desse eleitorado, o que inclui ainda defensores da monarquia. O Estado é também chave para a pretensão de se formar bancadas estadual e federal fortes e para questões legais, pois ali estão as principais investigações que envolvem Flávio e Carlos Bolsonaro.

“Bolsonaro vende a imagem de que tem o apoio irrestrito do povo e das Forças Armadas e está sempre parasitando eventos com a presença das Forças Armadas numa tentativa de tomar para si os atos.”

Christian Lynch, cientista político

A mudança para o Rio, por fim, estaria condicionada ao fato de o presidente não contar com o apoio do governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB). Em 2021, Bolsonaro escolheu a Avenida Paulista para o ato do dia 7. Para a antropóloga Isabela Kalil, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, há um cálculo político na mudança. Ela lembra que, em 1972, foi em São Paulo que a ditadura fez o principal ato da comemoração dos 150 anos da Independência, com a chegada dos restos mortais de d. Pedro 1.º ao Museu Paulista. Desta vez, o governo conseguiu que o coração do imperador viesse de Portugal para o Brasil, mas sem despertar a mesma comoção. “Dependendo de como for o 7 de Setembro, vamos saber como será a eleição.”

Interesses

Sem o desfile no centro, as Forças Armadas prepararam oito horas de apresentações. A primeira das salvas de canhão será às 8 horas. Elas se repetirão de hora em hora. Pela manhã, bandas do Exército se exibirão em bairros do Rio. A parada naval, com navios da Marinha do Brasil e de países amigos, partirá do Recreio dos Bandeirantes, às 9 horas, em direção à Baía de Guanabara.

Às 13 horas, haverá a cerimônia comemorativa na Avenida Atlântica, em Copacabana, com show aéreo e apresentação de bandas militares. Às 16 horas, a Marinha e a artilharia no Forte executarão salvas de 21 tiros em homenagem ao Bicentenário. Já Bolsonaro vai participar da parada do dia 7, de manhã, em Brasília. Depois, chegará a Copacabana em uma motociata, que sairá do Aterro do Flamengo até um palco montado perto do Forte, mas distante do núcleo das comemorações oficiais.

Marcelo Godoy e Rayanderson Guerra para o Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 04.09.22

Por que população brasileira fica mais feminina e idosa — e como isso molda futuro do país

O futuro do Brasil é feminino. É também, cada vez mais, idoso e negro.

Ao final do século 21, pessoas com mais de 60 anos devem ser 40% da população do Brasil; maioria será de mulheres (Getty Images)

Predominantemente masculina e jovem até os anos 1940, a população brasileira vem se transformando em ritmo equivalente ao de países asiáticos.

E as mulheres, que demoraram muito mais do que os homens a poderem votar, hoje também superam numericamente os eleitores masculinos — além de impulsionarem o crescimento da população economicamente ativa do país.

Como envelhecimento do eleitorado brasileiro pode afetar as eleições

Essas e outras mudanças ao longo dos últimos dois séculos — desde a proclamação da Independência, em 1822 — são detalhadas pelo demógrafo José Eustáquio Diniz Alves no livro recém-lançado Demografia nos 200 Anos da Independência do Brasil e cenários para o século 21.

Nesse período, a população brasileira cresceu mais de 45 vezes: passou de estimados 4,7 milhões em 1822 para os cerca de 215 milhões que terá no final deste ano.

Por décadas, o país recebeu um influxo de pessoas que eram majoritariamente do século masculino, desde pessoas escravizadas vindas da África até imigrantes vindos de países como Japão e Itália, em uma estratégia do governo para "branquear a população" após a abolição da escravidão.

O foco no fortalecimento da força de trabalho, fosse ela escravizada ou livre, foi um dos principais motivos para que até meados do século 20, o pêndulo demográfico no Brasil pendesse numericamente para os homens.

O que aconteceria depois mudaria rapidamente esse cenário.

Mais anos de vida, menos filhos

Com os avanços socioeconômicos do país, a mortalidade infantil caiu e a expectativa média de vida, que era apenas de 25 anos na época da Independência, subiu para 75.

Ao mesmo tempo, o número de filhos por mulher, em média 6,2 em 1940, caiu para 1,7 em 2020. Essa mudança, chamada de "transição da fecundidade", "é considerada uma das transformações sociais mais importantes e mais complexas", escreve Diniz Alves, cujos levantamentos embasam os gráficos desta reportagem.

"Durante a maior parte da história brasileira, as taxas (de natalidade) eram altas para se contrapor às elevadas taxas de mortalidade e porque as famílias desejavam muitos filhos, já que as crianças traziam mais benefícios do que custos para os pais. Porém, (...) os custos dos filhos subiram e os benefícios diminuíram. Os filhos deixaram de ser um 'seguro' para os pais, que passaram a contar com o sistema de proteção social e previdência. Essa transição tem um grande impacto nas famílias e na sociedade, pois muda a relação entre as gerações e modifica a estrutura etária."

A combinação de menos bebês nascendo e pessoas vivendo mais significou o crescimento da proporção de idosos no país. E a balança da longevidade pendeu para o lado das mulheres.

O país europeu que perdeu 10% da população em 10 anos

Em todo o mundo, segundo Diniz Alves, os homens são menos longevos: são proporcionalmente mais atingidos pela violência urbana e tendem a cuidar menos da saúde. Mas, na América Latina em geral, Brasil incluído, o fenômeno é mais acentuado.

Número de filhos por mulher, que era em média 6,2 em 1940, caiu para 1,7 em 2020 no Brasil (Getty Images)

Um exemplo disso é o fato de que 90% das vítimas de homicídio e latrocínio do país em 2021 foram do sexo masculino, de acordo com o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Homens também são a maioria das vítimas fatais dos acidentes de trânsito. Um levantamento do Detran paulista em 2020 apontou que 93% dos mortos em colisões no Estado eram do sexo masculino.

O documento Dados da Morbidade Masculina no Brasil, elaborado em 2015 pelo Ministério da Saúde, aponta que eles respondiam por 68% das mortes na faixa etária entre 20 a 59 anos.

O dia em que a Terra vai atingir 8 bilhões de habitantes, segundo a ONU

As principais causas de morte nessa faixa etária foram lesões, envenenamento e outras consequências de causas externas; doenças do aparelho digestivo; doenças circulatórias, infecciosas, parasitárias e respiratórias.

"O sexo masculino possui os piores índices de morbimortalidade, e ainda assim não tem o hábito de procurar os serviços de saúde de forma preventiva", diz o Ministério em um boletim epidemiológico de 2022.

Como resultado dessa conjuntura de fatores, os homens brasileiros passaram a viver, em média, 7,1 anos a menos do que as mulheres.

"O Brasil teve mais homens em boa parte da sua história, até cerca de 1940. Hoje, porém, temos cerca de 5 ou 6 milhões de mulheres a mais", explica Diniz Alves à BBC News Brasil.

Os homens também foram mais impactados pela pandemia de covid-19, que reduziu em quase dois anos a expectativa de vida média dos brasileiros.

Segundo um estudo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard, nos EUA, coordenado pela demógrafa Márcia Castro, a pandemia ampliou em cerca de 9,1% a diferença na expectativa de vida entre homens e mulheres.

Com isso, homens estão vivendo cerca de 1,57 ano menos e mulheres, 0,9 por conta da pandemia.

Maioria nas eleições

Esse fenômeno demográfico já tem grandes implicações eleitorais.


Gráfico de mulheres no eleitorado

Se o país já tem 6 milhões de mulheres a mais do que homens, a diferença fica ainda maior se leva-se em conta apenas o contingente de pessoas aptas a votar.

Hoje, o eleitorado brasileiro é composto por 53% de mulheres contra 47% de homens, uma diferença de quase 8 milhões de pessoas.

Essa virada tardou cerca de 70 anos em acontecer. "As mulheres brasileiras conquistaram o direito de voto em 1932. Porém, mesmo sendo maioria da população, continuaram minoria do eleitorado até a virada do século", explica Diniz Alves.

"Em 1974, mais de quatro décadas depois dessa conquista, as mulheres ainda eram apenas um terço do eleitorado. A diferença de gênero diminuiu aos poucos e, em 1998, houve empate, com cerca de 53 milhões de eleitores para cada sexo. Já nas eleições do ano 2000, pela primeira vez, as mulheres superaram os homens no número de eleitores registrados."

No cenário atual, um subgrupo feminino em especial, o das evangélicas, é apontado como um dos pêndulos da eleição presidencial de outubro.

Esse eleitorado votou em peso em Jair Bolsonaro (PL) em 2018 e ainda apoia, em sua maioria, o atual presidente, embora tenha ficado mais dividido entre ele e seu principal adversário no pleito, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Um futuro com 40% da população acima de 60

Ao mesmo tempo, o fenômeno demográfico atual provoca um rápido processo de envelhecimento dos brasileiros, algo que Diniz Alves também destaca em sua pesquisa.

Em 1950, as pessoas de 60 anos ou mais eram apenas 5% da população total do país. No fim século 21, porém, devem chegar a 40%, prevê o demógrafo, a partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e das projeções populacionais da ONU.

Marcha das Mulheres Negras, em julho, em São Paulo; mulheres vivem mais, estudam mais e acumulam mais tarefas — mas ganham menos (Reuters)

É um caminho semelhante ao visto em grande parte da população mundial, mas com consequências importantes para a "cara" do país no futuro.

As estimativas da ONU indicam que, nos padrões atuais, o Brasil terá cerca de 184,5 milhões de habitantes em 2100, na entrada do século 22. Desse total, impressionantes 73,3 milhões — 40% da população — terão mais de 60 anos.

"E, entre a população no topo da pirâmide etária, as mulheres vão predominar durante todo o período" dessa transição demográfica, prevê Diniz Alves.

Dentro desse contingente de pessoas com mais de 60 anos, haverá, segundo as previsões, quase 4 milhões de mulheres a mais do que homens.

É por isso que o futuro do Brasil vai ser cada vez mais idoso, mais feminino e, seguindo a tendência atual, de renda mediana, antecipa o demógrafo. Provavelmente também crescerá a parcela que se autodeclara negra.

"No século 19, a maioria da população era negra (em decorrência da escravidão), e depois houve um processo de embranquecimento, impulsionado pela imigração europeia e asiática. No século 20, a maior parte se autodeclarava branco. Agora, nos anos 2000, aumentou a autodeclaração de pretos e pardos", diz o demógrafo.

De fato, segundo o IBGE, o número de pessoas que se autodeclaram pretos aumentou de 7,4% em 2012 para 9,1% em 2021 e os pardos foram de 45,6% para 47% nos últimos dez anos. Os autodeclarados brancos caíram 46,3% para 43%.

Mulheres puxam 'bônus demográfico', mas enfrentam barreiras

Gráfico da população economicamente ativa

Diniz Alves ressalta ainda que, enquanto a transição a um país mais idoso não se completa, o país ainda está no período chamado de bônus demográfico — janela de oportunidade em que a população economicamente ativa, mais jovem, ainda é bem mais numerosa do que a idosa, que depende mais de aposentadorias.

Esse período, se aproveitado, ajuda a aumentar o Produto Interno Bruto (PIB) de um país e sua estrutura de previdência, poupança, investimento e bem-estar social, preparando-o para a mudança na população.

"Com certeza o bônus demográfico brasileiro é puxado totalmente pelas mulheres", afirma o demógrafo.

Isso porque a população economicamente ativa, que em grande parte do século passado foi predominantemente masculina, foi ganhando cada vez mais mulheres.

"E elas não só entraram no mercado de trabalho como passaram os homens em todos os níveis escolares no Brasil", do ensino médio até a pós-graduação. O problema é que elas ainda enfrentam muito mais obstáculos em suas carreiras.

O relatório de 2019 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) "Education at Glance" apontou que, ao mesmo tempo em que as mulheres brasileiras tinham 34% mais probabilidade de se formar no ensino superior do que seus pares do sexo masculino, também tinham menos chance de conseguir emprego.

"Embora a disparidade de gênero na educação favoreça as mulheres, a situação no mercado de trabalho é ao revés", afirmou o relatório.

Os possíveis motivos para isso incluem as decisões sobre qual curso estudar — vieses que podem levar homens a profissões mais bem pagas — e desigualdades na progressão de carreira e na divisão de tarefas não remuneradas.

O levantamento mais recente do IBGE mostra que, em 2019, as mulheres gastavam 21,4 horas semanais com afazeres domésticos e cuidado de pessoas, contra 11 horas gastas pelos homens.

Gráfico da população brasileira com educação superior

Hoje, em média, as trabalhadoras brasileiras ganham cerca de 22% a menos do que os trabalhadores, uma diferença que se sustenta mesmo entre pessoas que ocupam cargos semelhantes e têm nível educacional parecido.

Mas esse percentual é diferente de região para região — e é maior no Norte e no Nordeste.

Existem também diferenças que prejudicam em particular as mulheres negras. Os dados do IBGE mostram que a cada real ganho por um homem branco, uma mulher negra recebe R$ 0,43 — isso é 57% menos do que o salário de homens brancos, 42% menos do que o de mulheres brancas e 14% menos do que o de homens negros recebem.

O Censo e a Pesquina Nacional de Domicílios (Pnad) mostram ainda que a diferença nos rendimentos de homens e mulheres aumenta conforme a faixa etária.

Se elas ganham em média 88% do que ganham os homens entre os 16 aos 24 anos, quando passam dos 60, ganham somente 64% do que recebem os homens desse mesmo grupo de idade.

Por fim, as mulheres sofrem com taxas maiores de desemprego e informalidade, segundo dados do IBGE citados por Diniz Alves.

Tudo isso indica que "a sociedade brasileira não faz justiça a essa contribuição feminina ao bônus demográfico" e não está aproveitando a oportunidade de enriquecer antes que a população envelheça, conclui o pesquisador.

"Uma parte dessa discriminação contra as mulheres é 'culpa' do mercado de trabalho, mas outra é da sociedade, que joga as responsabilidades da vida reprodutiva e o cuidado com idosos no ombro das mulheres. Entre as mulheres mais pobres, isso é ainda mais sério."

Observando historicamente, escreve Diniz Alves, "as mulheres brasileiras (...) adquiriram níveis crescentes de educação, aumentaram as taxas de participação no mercado de trabalho e avançaram nas diversas áreas sociais. O desafio do século 21 será construir uma sociedade mais justa e com equidade de gênero."

Paula Adamo Idoeta e Camilla Costa, da BBC News Brasil em Londres. Publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62632851 / 04.09.22