terça-feira, 6 de setembro de 2022

A ‘mamata’ como método

Bolsonaro entrega cargos aos apadrinhados do Centrão, como o ‘analista sensorial de cachaça’ indicado para a Funasa, responsável por ações de saneamento

Em um país onde 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e cerca de 100 milhões de brasileiros (45% da população) convivem com esgoto sanitário a céu aberto em pleno século 21, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), vinculada ao Ministério da Saúde, deveria ser administrada com mais seriedade. Trata-se de um órgão de importância capital para o desenvolvimento humano dos brasileiros, cuja missão precípua é justamente “promover a saúde pública e a inclusão social por meio de ações de saneamento e saúde ambiental”. Entretanto, no governo de Jair Bolsonaro, a Funasa foi reduzida à condição de mercadoria nesse degenerado contubérnio que o presidente da República estabeleceu com o Centrão em prol de sua permanência no cargo.

O Estadão revelou que mais da metade das superintendências da Funasa no País (em pelo menos 18 Estados), além de diretorias do órgão, está sob controle de apaniguados de parlamentares do Centrão. Muitos deles não têm qualificação profissional para ocupar os cargos. No caso mais estarrecedor, que seria anedótico, não fosse trágico para quem depende dos serviços da Funasa, a superintendência no Espírito Santo foi entregue ao dono de um restaurante self-service que afirma ser “especialista em análise sensorial de cachaça”. O currículo do superintendente Ayrton Silveira Júnior, pasme o leitor, assim é descrito no próprio portal da instituição.

O deputado Neucimar Fraga (PP-ES), padrinho da indicação do sommelier de cachaça para a chefia da Funasa em seu Estado, afirma categoricamente que toda a experiência do pupilo em administração de restaurantes, além de sua especialização em “boas práticas na fabricação da bebida”, contribui para que Ayrton Silveira Júnior realize um “bom trabalho” à frente da superintendência estadual do órgão. “Ele tem organizado a Funasa aqui, tem destravado projetos que estavam parados há muitos anos no Espírito Santo. O problema da Funasa aqui era de gestão”, justificou o parlamentar ao Estadão.

Outros indicados por parlamentares do PL, partido de Bolsonaro, do PP e do Republicanos, legendas que compõem o núcleo duro da atual conformação do Centrão, além do PSD, colonizam diretorias e superintendências da Funasa País afora, de olho num orçamento de quase R$ 3 bilhões. Em comum entre os apadrinhados, a incongruência de suas trajetórias profissionais em relação aos objetivos da Funasa e a proximidade deles com políticos que ocuparam o vácuo de poder deixado pela incompetência de Bolsonaro e por sua insensibilidade às aflições de tantos de seus governados.

Quando candidato em 2018, Bolsonaro prometera “acabar com a mamata” da ocupação política de Ministérios, empresas estatais, agências reguladoras e outros órgãos técnicos. Como presidente da República, ao contrário, Bolsonaro entregou nacos da administração a parlamentares famintos por orçamentos bilionários em troca de sua permanência no cargo, a despeito do rol de crimes de responsabilidade que cometeu – e segue cometendo impunemente. Nunca a debilidade moral, política e administrativa do chefe do Poder Executivo federal foi tão custosa para a Nação.

O aparelhamento da Funasa já seria escandaloso se fosse um caso isolado. Mas não é. Como a Hidra, o Centrão já se apoderou do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Bilhões de reais têm sido desviados por meio de emendas do “orçamento secreto” destinadas a esses órgãos.

Tal é o desassombro dos cupins da República que mais parece que o País não é regido por uma Constituição que impõe a impessoalidade e a transparência como princípios da administração pública. É como se o Brasil não dispusesse de leis que demandam lisura e competência na gestão do Estado. Onde estão a Controladoria-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República?

Eis o retrato de um governo liderado por um presidente que só é capaz de enxergar as necessidades de seus governados sob a ótica de seus interesses particulares mais imediatos. A “mamata” não só não acabou, como se tornou um método de governo.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 06.09.22

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