quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Deus, pátria e família para palerma ver

 Se as instituições se curvarem aos Bolsonaros, o Brasil pode reivindicar a 51ª estrela da bandeira americana

Motocarreata a favor de Bolsonaro em frente ao Masp, na avenida Paulista - Rafaela Araújo - 5.ago.25/Folhapress

Os últimos acontecimentos deixam claro. Os Bolsonaros, pai e filhos, puseram as cartas na mesa e passaram a jogar aberto. Nem o slogan publicitário fascista "Deus, pátria e família", de que tanto se valeram, escapou. Já deve estar sendo aposentado tanto pelos pascácios, pessoas simplórias e bem intencionadas que acreditavam nele, quanto pelos espertos, que o usavam para tapear os ditos pascácios. Vejamos por quê.

Bolsonaros x Deus. Embora O invoquem o tempo todo, as verdadeiras relações entre Deus e os Bolsonaros são zero. Deus não admitiria entre os Seus um sujeito com a vulgaridade e falta de escrúpulos de Bolsonaro pai, defensor da tortura, dado a "pintar um clima" com vulneráveis e nitidamente hipócrita em suas atitudes diante da religião. Flávio Bolsonaro, por sua vez, comprador de mansões de R$ 6 milhões com dinheiro vivo oriundo de "rachadinhas", não passará pelo buraco da agulha.

Bolsonaros x pátria. Está mais do que claro agora que o mote "Brasil acima de tudo" era para palerma ver. A campanha de Eduardo Bolsonaro junto ao governo Trump para quebrar a economia brasileira em troca da liberdade de seu pai representa um golpe de estado por uma potência estrangeira. É um crime de traição nunca visto no país. Se as instituições se vergarem aos EUA e inocentarem Bolsonaro, o Brasil pode pedir sua incorporação como a 51ª estrela da bandeira americana.

Bolsonaros x família. Além do fato, hoje indiscutível, de que botam os interesses de sua família sobre os interesses do Brasil, os Bolsonaros têm posição marcada no embate entre a proteção às crianças brasileiras e o abuso e o estupro tecnológico dessas mesmas crianças, promovidos pelas Big Techs e pelos tarados que as frequentam. Os Bolsonaros são contra as crianças e a favor das Big Techs e dos tarados. Posição difícil de entender, sabendo-se que Flavio, Eduardo e Carlos Bolsonaro têm cinco filhos menores, dos quais quatro meninas.

Haverá leis suficientes no Brasil para um dia classificar esses homens?

Ruy Castro, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, dentre outras, é membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 20.08.25

Xingamentos, ironia e bronca: o que diálogos revelam sobre núcleo duro de Bolsonaro

Mensagens reproduzidas no relatório final em que a Polícia Federal (PF) indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o seu filho Eduardo Bolsonaro (PL-SP) revelam desentendimentos entre o ex-mandatário e integrantes do seu núcleo mais próximo.

Montagem com fotos de Eduardo Bolsonaro, Jair Bolsonaro e Silas Malafaia (Crédito: Getty Images)

Em uma troca de mensagens via WhatsApp, Eduardo xinga o pai devido a uma entrevista em que ele foi chamado de imaturo. "VTNC SEU INGRATO DO C******'!, escreveu o deputado federal, usando a abreviação de um insulto de baixo calão.

Em outras conversas com Jair Bolsonaro, Eduardo ironiza e critica o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP). "Só para te deixar ciente: Tarcísio nunca te ajudou em nada no STF. Sempre esteve de braço cruzado vendo vc se f**** e se aquecendo para 2026", diz uma das mensagens.

Alguns dos diálogos divulgados pela PF também incluem trocas de mensagens entre o ex-presidente e o pastor Silas Malafaia, que foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de se comunicar com Bolsonaro e deixar o país.

Em uma das conversas, Malafaia reprova um encontro realizado entre Tarcísio de Freitas e o encarregado de negócios Gabriel Escobar, da embaixada dos Estados Unidos no Brasil. ''Se Tarcísio foi a embaixada americana a pedido seu, você cometeu o maior erro político da sua vida", escreve o pastor a Bolsonaro.

Em outro momento, faz críticas a Eduardo Bolsonaro, a quem chama de "babaca inexperiente" e "estúpido de marca maior".

Os diálogos foram obtidos nos celulares de Bolsonaro, apreendidos pela PF no curso das investigações.

Na quarta-feira (20/08), o ex-presidente e o deputado federal Eduardo Bolsonaro foram indiciados por coação (intimidação) a autoridades que atuam no processo que apura uma suposta tentativa de golpe de Estado na qual Jair Bolsonaro é réu.

O indiciamento significa que, para a PF, há elementos para crer que pai e filho atuaram para pressionar autoridades envolvidas no curso do processo — que entrará na reta final a partir de setembro.

Para a PF, pai e filho atuaram de forma consciente para que o Brasil fosse alvo de sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos.

Confira, a seguir, alguns dos diálogos revelados no relatório final da polícia:

Ironia e críticas a Tarcísio

As trocas de mensagens revelam algumas das disputas internas no núcleo mais próximo ao ex-presidente Jair Bolsonaro, com críticas profundas de Eduardo Bolsonaro ao governador de São Paulo e ex-ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.

Conforme o relatório da PF, no dia 24 de junho, Bolsonaro envia para o filho, que já estava nos Estados Unidos, uma notícia do site Metrópoles com uma pesquisa de intenção de votos para 2026 e escreve: "Você perde para o molusco", em referência a uma prevista vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Eduardo, então, responde de forma irônica: "Acho melhor eu ficar de fora mesmo! Tarcísio vai levar à frente suas bandeiras, inclusive demitindo secretárias ligadas ao PSOL etc. E ele dialoga muito bem. Vai anistiar geral, e o STF, que sempre foi aliado nosso, não será óbice".

Em seguida, Eduardo comenta: "já imagino o TF (...)" (Tarcísio de Freitas) "(...) falando com o Trump sobre a China". Logo depois, questiona o ex-presidente se ele teria conhecimento que tudo iria "cair na sua conta" e que o "futuro dos seus netos", seria "falar inglês mesmo".

Na sequência Jair Bolsonaro envia, em resposta, dois áudios que não puderam ser recuperados na extração, segundo a PF.

Tarcísio é um dos principais cotados para representar o campo bolsonarista nas eleições de 2026, mas ele próprio afirma publicamente que seu plano é disputar a reeleição em São Paulo. Já Bolsonaro insiste que será candidato, embora esteja inelegível devido a duas condenações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Captura das mensagens entre Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro reveladas pela PF (Crédito, Reprodução / PF)

No dia 25 de junho, Eduardo volta a se comunicar com Bolsonaro sobre o governador de São Paulo e envia uma foto, que a PF não conseguiu identificar. Ele afirma: "A narrativa do Tarcísio te sucedendo, que já há acordo para isto, está muito forte. Precisamos segurar isso para nos mantermos vivos aqui".

Na avaliação dos investigadores da Polícia Federal, a fala evidencia a "preocupação" de que uma eventual escolha do governador como "sucessor de Jair Bolsonaro numa futura campanha presidencial possa atrapalhar as atividades em execução nos Estados Unidos".

Em resposta, o ex-presidente envia um arquivo de áudio, cujo conteúdo também não pode ser recuperado.

Em 11 de julho, Eduardo envia a Bolsonaro uma reportagem que cita um encontro entre o governador de São Paulo e o encarregado de negócios dos Estados Unidos na Embaixada americana em Brasília.

O ex-presidente afirma que estaria com o governador naquele momento, e o deputado pede que seu pai informe a Tarcísio que "se quiser acessar a Casa Branca ele não conseguirá", pois só quem teria acesso seriam o próprio deputado e o blogueiro Paulo Figueiredo. Diz: "Só eu e Paulo Figueiredo temos acesso".

"As mensagens evidenciam a preocupação de Eduardo Bolsonaro em se colocar como o único interlocutor perante o governo estadunidense, como forma de garantir o êxito das ações criminosas de coação às autoridades brasileiras, uma vez que, a participação de outras autoridades brasileiras nas negociações, visando solucionar apenas as divergências econômicas, de interesse da sociedade brasileira, poderia frustrar as reais intenções dos investigados", avalia a Polícia Federal sobre o diálogo, no relatório.

Captura das mensagens entre Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro reveladas pela PF (Crédito, Reprodução/PF)

Ainda no mesmo dia, Eduardo Bolsonaro envia nova mensagem reiterando que a participação de outra autoridade junto ao governo americano poderia inviabilizar seus esforços nos Estados Unidos.

O deputado então coloca em dúvida a lealdade de Tarcísio, usando um palavrão. Diz: "Só para te deixar ciente: Tarcísio nunca te ajudou em nada no STF. Sempre esteve de braço cruzado vendo vc se f**** e se aquecendo para 2026".

E completa: "Aqui nos EUA, tivemos que driblar a ideia plantada pelos aliados dele, de que Tarcísio = Bolsonaro, uma clara mensagem de que os EUA não precisariam entrar nesta briga, pois com TF [Tarcísio de Freitas] ou vc, Trump teria um aliado na presidência do Brasil em 2027."

"Agora ele quer posar de salvador da pátria. Se o sistema enxergar no Tarcísio uma possibilidade de solução, eles não vão fazer o que estão pressionados a fazer. E pode ter certeza, uma solução Tarcísio passa longe de resolver o problema, vai apenas resolver a vida do pessoal da Faria Lima."

Xingamentos

Em 15 de julho, Eduardo Bolsonaro inicia o diálogo com Jair Bolsonaro afirmando que não seria um bom dia para que seu pai concedesse uma entrevista ao jornal Poder 360, pois havia "muita coisa acontecendo".

O deputado afirma então que provavelmente iria até a Casa Branca no dia seguinte e diz ao ex-presidente que "se vc disser algo sobre EUA que não se encaixar com o que estamos fazendo aqui, pode enterrar algumas ações".

Bolsonaro, em resposta, afirma que "não iria aprofundar nada sobre sanções" na entrevista, e que iria "ficar na denúncia", em referência ao julgamento no qual é réu no STF.

O ex-presidente concedeu a entrevista no mesmo dia. Ao jornal Poder 360, disse que as tensões entre Eduardo e Tarcísio haviam sido "pacificadas".

"O Tarcísio é governador de um estado, ele não é Presidente da República. Ele tem que estar vendo o empresariado lá de São Paulo, que por tabela é todo mundo. No meu entender ele está fazendo o possível. Vai conseguir? Não sei. Porque essas decisões são pessoais do presidente Trump", declarou na entrevista.

Disse ainda: "Ele (Eduardo Bolsonaro) apesar de ter feito 40 anos de idade agora, né... ele não é tão maduro assim, vamos assim dizer, talhado para a política... tá bem. Ele acerta 90% das vezes, 9% quando meio e 1% está errando."

Captura das mensagens entre Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro reveladas pela PF (Crédito,Reprodução/PF)

Após a publicação da entrevista, Eduardo demonstra irritação com o pai pelas declarações, segundo a troca de mensagens divulgada pela PF.

"Eu ia deixar de lado a história do Tarcísio, mas graças aos elogios que você fez a mim no Poder 360 estou pensando seriamente em dar mais uma porrada nele, para ver se você aprende", escreve o deputado.

Ele continua: "VTNC SEU INGRATO DO C******!", usando um palavrão. "Me f****** aqui! Vc ainda ajuda a te f**** aí!", escreve ainda.

A conversa, segundo a PF, continuou com Eduardo citando termos usados pelo ex-presidente na entrevista.

"Se o IMATURO do seu filho de 40 anos não puder encontrar com os caras aqui, PORQUE VC ME JOGA PRA BAIXO, quem vai se fuder é vc E VAI DECRETAR O RESTO DA MINHA VIDA NESTA P**** AQUI!"

Eduardo diz ao pai: "Tenha responsabilidade!". Bolsonaro respondeu com dois áudios. Segundo a PF, o conteúdo não foi recuperado pela investigação.

O deputado faz então outros dois comentários: "quero que vc olhe para mim e enxergue o Temer", "vc falaria isso do Temer?".

Segundo o relatório, a pergunta "aparentemente tem como referência à fala do ex-Presidente em entrevista ao jornal Poder360 quanto à maturidade política do filho."

Captura das mensagens entre Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro reveladas pela PF (Crédito,Reprodução/PF)

Também de acordo com o documento, as mensagens demonstram a preocupação de Eduardo Bolsonaro com as declarações do ex-presidente, com o apoio dado ao governador Tarcísio de Freitas e na forma como isso refletiria em sua situação política nos Estados Unidos.

"Constata-se que o investigado temia que as declarações impactassem negativamente sua posição e suposta influência no exterior, podendo 'decretar o resto da sua vida' nos EUA", diz a PF no relatório.

Após essas mensagens, Jair Bolsonaro realizou um pronunciamento em rede nacional com afirmações mais favoráveis ao filho. Na madrugada do dia 16 de julho, Eduardo pede desculpas ao pai pelas falas realizadas no dia anterior, alegando que "estava p**** na hora".

Em seguida, encaminha a foto de uma publicação sua na rede social X, pacificando o conflito entre ele e Tarcísio.

"Peguei pesado...", diz Eduardo em uma das mensagens de desculpas enviadas ao pai.

Captura das mensagens entre Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro reveladas pela PF (Crédito, Reprodução/PF)

'Vc tem sido o meu maior empecilho'

As mensagens reveladas pela PF revelam também outro momento de embate entre pai e filho.

Em 9 de julho, após o anúncio da imposição da tarifa de 50% pelos EUA a produtos importados do Brasil, Jair e Eduardo Bolsonaro conversam sobre um possível posicionamento do ex-presidente à notícia. O deputado envia ao pai um esboço de uma nota e pede aprovação para divulgação.

No dia seguinte, a PF identificou a realização de suas chamadas de vídeo entre os dois. Minutos após o encerramento da segunda ligação, Eduardo envia uma mensagem advertindo o ex-presidente da necessidade de publicar um agradecimento ao presidente americano Donald Trump em suas redes sociais.

"O cara mais poderoso do mundo está a seu favor. Fizemos a nossa parte", escreve o deputado.

Na continuidade da mensagem, Eduardo critica o pai por não fazer sequer "um tweet vaselina".

"Uma guerra de cada vez. O cara mais poderoso do mundo está a seu favor. Fizemos a nossa parte. Se o maior beneficiado não consegue fazer um tweet vaselina, aí realmente ferrou", diz o deputado.

"Vc tem sido o meu maior empecilho para poder te ajudar", escreve ainda ao pai.

Eduardo segue: "Opinião pública vai entender e vc tem tempo para reverter se for o caso. Vc não vai ter tempo de reverter se o cara daqui virar as costas para você. Aqui é tudo muito melindroso qualquer coisinha afeta. Na situação de hoje, vc nem precisa se preocupar com cadeia, vc não será preso. Mas tenho receio que por aqui as coisas mudem. Mesmo dentro da Casa Branca tem gente falando para o 01: "ok, Brasil já foi. Vamos oara (sic) a próxima"

"Eu quero postergar este bom momento de agora, mas se o nosso cara vai encontrar o 01 sem nenhum tweet seu, te adianto que isto não será bem recebido".

Captura das mensagens entre Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro reveladas pela PFCrédito,Reprodução/PF

Em resposta, Jair Bolsonaro concorda. Os dois realizam então mais uma chamada de vídeo e o ex-presidente envia um arquivo de áudio, que não pode ser recuperado, e outras mensagens que foram apagadas.

Eduardo, então, questiona se poderia "divulgar" o pronunciamento e o ex-presidente responde com um "ok".

Bolsonaro posteriormente encaminha uma nota similar àquela enviada pelo filho no dia anterior, mas com algumas alterações. O texto foi publicado no Instagram do ex-presidente no mesmo dia.

'Esse seu filho é um babaca inexperiente'

O relatório da Polícia Federal também traz uma série de diálogos entre Jair Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia.

Em um das conversas, de 11 de julho, o religioso também faz críticas ao governador Tarcísio de Freitas e ao seu encontro na Embaixada dos Estados Unidos.

"Você sabe que sou seu aliado de 1ª hora. Com todo respeito a você. Se o que eu falar não for verdadeiro, por favor, não precisa me dar explicação nenhuma e desconsidere o que eu vou falar", escreve Malafaia.

''Se Tarcísio foi à embaixada americana a pedido seu, você cometeu o maior erro político da sua vida'', continua.

"Se Trump refrescar para Lula sem resolver a sua questão que é o motivo principal da taxação – é só ler a carta, Lula vai deitar e rolar e sair por cima", diz ele. "O endereço para acordo é o STF, são os únicos que podem pressionar Lula e arrumar uma saída honrosa para eles que estão com o rabo na reta".

"Você está com a faca e o queijo na mão. Se errar a estratégia, sifus!", finaliza, (o religioso).

Captura das mensagens entre Jair Bolsonaro e Silas Malafaia reveladas pela PFCrédito,Reprodução/PF

Ainda no dia 11, Silas Malafaia escreve novamente para Jair Bolsonaro, dessa vez demonstrando descontentamento com Eduardo Bolsonaro e a forma como o deputado reagiu à imposição de novas tarifas ao Brasil pelos Estados Unidos.

"Esse seu filho é Eduardo é um babaca, inexperiente que está dando a Lula e a esquerda o discurso nacionalista, e, ao mesmo tempo, te ferrando", disse o pastor.

O religioso continua: "Um estúpido de marca maior. Estou indignado! Só não faço um vídeo e arrebento com ele porque por consideração a você. Não sei se vou ter paciência e ficar calado se esse idiota falar mais alguma asneira".

Captura das mensagens entre Jair Bolsonaro e Silas Malafaia reveladas pela PFCrédito,Reprodução/PF

Malafaia está proibido de se comunicar com Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro, e de viajar para fora do Brasil, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF. O pastor precisou entregar todos seus passaportes às autoridades.

A Polícia Federal foi autorizada a acessar dispositivos eletrônicos apreendidos e a quebrar sigilos bancário, fiscal e telefônico do pastor.

Malafaia prestou depoimento à polícia na noite de quarta-feira (20/08). Na saída, ele foi recebido por apoiadores e em declarações a jornalistas criticou Moraes, a quem chamou de criminoso.

"Apreender meu passaporte? Eu não sou bandido. Apreender meu telefone? Vai descobrir o quê? Eu ainda dei a senha, porque eu não tenho medo de nada", disse Malafaia.

"Conversa com Bolsonaro... eu estou proibido de falar com ele. [Eu] converso com amigos. Eu tenho conversa de amigo. E conversas particulares não interessam a ninguém. Que país é esse que vaza conversas minhas particulares, como se eu instruísse Eduardo: 'olha, faz assim, ou faz assado'. Quem sou eu? A posição de Eduardo é dele."

"É uma vergonha. Que país é esse? Que democracia é essa? Eu não vou me calar. Vai ter que me prender para me calar."

Júlia Braum, Jornalista,  (X,@juliatbraun), originalmente, de Londres (Reino Unido) para a BBC Brasil, em 21.08.25

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

A atual decadência do Legislativo e a erosão da democracia representativa

Sem um Parlamento capaz de legislar com coerência, técnica e compromisso social, a democracia representativa se esvazia


Nascimento da Democracia na Grécia Antiga

A democracia representativa, tal como concebida por Norberto Bobbio e John Stuart Mill, funda-se na premissa de que o povo, por meio de eleições periódicas e livres, delega a representantes a tarefa de formular leis que expressem seus interesses, preservem direitos e respondam às demandas concretas da sociedade. Essa forma de governo pressupõe que o Parlamento seja um espaço de deliberação qualificada, onde se produz legislação capaz de enfrentar problemas reais e promover o bem comum.

Os regimes políticos que hoje se caracterizam como democráticos originaram-se, direta ou indiretamente, a partir das revoluções do final do século 18, notadamente na França e nos Estados Unidos, sendo que a partir do século 19, a ideia do povo como única fonte de legitimação do poder político começa a se impor progressivamente (BÔAS FILHO, 2013, p. 652).

A democracia, como forma de governo, é antiga e, não obstante o transcorrer dos séculos e todas as discussões que se travaram, o significado descritivo do termo não se alterou. A mudança ocorrida não foi sobre o titular do poder político, que sempre reside no povo, mas na forma como ele é exercido: da democracia direta dos antigos à democracia representativa dos modernos (BOBBIO, 2023, p. 56).

Diversamente da democracia direta exercida na Grécia antiga, em que os cidadãos da polis se reuniam na Ágora para deliberar sobre as questões de interesse da coletividade, na moderna democracia representativa, o povo elege representantes que defendem seus interesses.

Nesse contexto, o Legislativo deve legislar levando em consideração o ordenamento jurídico em vigor, avaliando a legislação que possua afinidade com a proposição apresentada. Ronald Dworkin, ao desenvolver a metáfora do “romance em cadeia”, originalmente concebida para o Judiciário, a fim de combater o ativismo judicial, oferece uma imagem igualmente aplicável à atividade legislativa.

Tal qual um grupo de romancistas que escreve coletivamente uma obra, cada novo capítulo precisa dar continuidade coerente à história já construída, adaptando-se aos fatos anteriores e mantendo-se fiel ao enredo e à intenção da narrativa.

No plano Legislativo, isso significa que as proposições devem ser compatíveis com o conjunto normativo vigente e com os desígnios constitucionais, funcionando como a continuidade de um projeto nacional que integra história, cultura e necessidades sociais. Legislações extravagantes ou repetidas, que colidem com o direito positivo ou reproduzem normas já existentes, rompem a lógica dessa continuidade e comprometem a coerência do “romance” institucional.

O cenário brasileiro recente revela um preocupante distanciamento dessa missão. Segundo levantamento do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, publicado pelo Estadão (14/8, A20), foram analisadas 2.568 proposições apresentadas no Congresso em 2024, das quais 1.314 tratavam de saúde.

Dentre estas, 37% contrariavam leis vigentes e 26% apenas repetiam normas já em vigor, sem qualquer inovação. Exemplos incluem propostas que afrontam a reforma psiquiátrica (2001) ou o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Além disso, 23% das proposições na área de saúde mental contrariavam princípios da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), como a prioridade ao atendimento comunitário em detrimento da internação, e 14% possuíam baixa relevância, como a criação de datas comemorativas.

Trata-se de um sintoma claro de esvaziamento do papel representativo do Legislativo, que deveria ser um dos pilares da democracia. A lógica representativa exige que o Parlamento seja não apenas um produtor de leis, mas um canal de diálogo entre o povo e o Estado, além de um mediador das demandas sociais.

Quando os representantes se afastam dessa função, abrem-se espaços para populismos, extremismos e para o uso arbitrário de conceitos como “patriotismo” ou “defesa da democracia” para legitimar práticas contrárias à própria essência democrática.

O enfraquecimento do Legislativo enquanto instância de mediação gera consequências graves: compromete o equilíbrio entre os Poderes, corrói a confiança pública nas instituições e aprofunda a polarização política.

Mais do que improdutividade, o problema está na baixa qualidade e na irrelevância social de parte significativa da produção legislativa, voltada a interesses corporativos ou eleitorais, em detrimento do interesse público.

Infelizmente, o que se observa atualmente é que grande parte do Legislativo brasileiro não mais cumpre esse papel, ocupando-se com proposições que não visam o bem dos seus representados, mas o interesse de poucos.

Propostas que pleiteiam anistia para determinados grupos, o fim do foro privilegiado apenas em contextos politicamente oportunistas ou mesmo o apoio a governos estrangeiros em detrimento dos interesses do próprio País e do seu povo revelam um distanciamento preocupante da missão constitucional que deveria guiar a atividade parlamentar.

Sem um Parlamento capaz de legislar com coerência, técnica e compromisso social, a democracia representativa se esvazia e o projeto constitucional brasileiro corre o risco de se tornar apenas um registro histórico, um “romance” interrompido antes de seu melhor capítulo.

O resgate dessa instituição passa por recolocar o interesse público no centro da produção legislativa, assegurar a coerência normativa e reafirmar o compromisso com os princípios constitucionais. Sem isso, o Parlamento não apenas perderá sua relevância, mas colocará em risco a legitimidade e a estabilidade de todo o edifício democrático brasileiro.

Andeirson da Matta Barbosa, o autor deste artigo, é Mestre em Direito. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.08.25

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Trump desmoraliza direitos humanos

Ao caracterizar o Brasil como uma ditadura, enquanto poupa regimes violadores de direitos humanos, relatório dos EUA mostra como Trump desvirtua os valores que seu país ajudou a consagrar


Imigrantes deportados pelo Governo Trump para El  Salvador

O mais recente relatório de direitos humanos do Departamento de Estado dos EUA revela mais sobre a política externa do presidente Donald Trump do que sobre as realidades que alega documentar. Ao inverter prioridades, encurtar investigações e hipertrofiar recortes convenientes, o texto se transforma num instrumento de retaliação política – e não numa avaliação séria e universal dos direitos humanos. É um manual de como subverter valores que, por décadas, definiram a imagem internacional dos EUA: a defesa da liberdade, do Estado de Direito e da democracia.

O caso do Brasil é exemplar. O documento concentra críticas nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) contra apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, acusando repressão à liberdade de expressão e perseguição política. Há abusos reais – decisões monocráticas sem devido processo, censura seletiva nas redes sociais, prisões preventivas prolongadas – que exigem correção. Mas o relatório falseia a escala desses problemas no caso brasileiro e contemporiza outros regimes que violam flagrantemente os direitos humanos, como El Salvador, Israel, Hungria, Filipinas e Arábia Saudita – cujos governos são todos alinhados a Trump

Pelo cotejamento de monitores respeitados, como os da Freedom House, V-Dem, Human Rights Watch ou World Justice Project, o Brasil está longe da repressão típica de autocracias. Mantém eleições competitivas, imprensa livre e um Judiciário – em que pesem todos os seus desvios – relativamente funcional. O relatório distorce essa realidade para emoldurar o País como caso extremado, justificando sanções comerciais ilegais e medidas de intimidação contra magistrados.

Trump instrumentaliza a pauta de direitos humanos como já fez com o comércio internacional, a política externa e a defesa da democracia: armas seletivas contra adversários e blindagem para aliados. Sob sua lógica transacional, regimes ideologicamente alinhados ou úteis a seus interesses escapam de reprimendas; governos adversos à agenda Maga são expostos a recriminações e sanções exorbitantes. É a mesma mentalidade que o leva a bajular autocratas, minimizar atrocidades de aliados e atacar a imprensa, universidades e agências científicas quando seus dados ou análises contrariam a narrativa oficial.

A hipocrisia é gritante. Como Trump cobra de outros países respeito à liberdade de expressão quando manda universidades cercearem discursos, ordena que museus retratem a história americana segundo o seu ponto de vista, intimida jornalistas e processa veículos que ousam contrariá-lo? Como posar de guardião do Estado de Direito enquanto pressiona tribunais para obter decisões políticas ou dissemina teorias conspiratórias que corroem a confiança nas eleições? A mendacidade de Trump e seus abusos contra direitos e liberdades fundamentais – de deportações em massa à repressão de protestos – minam qualquer autoridade moral de sua diplomacia.

No Brasil, a escalada recente – tarifas punitivas, sanções pessoais e retórica truculenta – é desproporcional, ilegal e extorsiva. Serve menos à proteção de direitos humanos e mais a uma tentativa de influenciar processos judiciais e o cenário eleitoral. O País, com todas as suas mazelas, não pode ser equiparado a regimes que criminalizam a dissidência, fecham Parlamentos ou fraudam eleições. E muito menos pode aceitar que seus Poderes sejam chantageados para anistiar um notório golpista.

Não se trata de absolver nossas autoridades de críticas: o STF, o Executivo e governos estaduais têm cometido abusos contra liberdades fundamentais. Mas aceitar que a pauta de direitos humanos seja usada como pretexto para sanções e ingerências é abrir a porta para que qualquer dissenso interno seja explorado por interesses externos.

O relatório, nesta versão trumpista, é um retrato de como valores historicamente americanos podem ser distorcidos até a desfiguração total, convertendo-se em instrumentos de coerção seletiva. É mais um passo firme rumo a um mundo menos regido por regras e mais confortável para os fortes – e, paradoxalmente, mais hostil para as próprias democracias que os EUA um dia ajudaram a proteger.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.08.25

Um Congresso acima da lei

A pretexto de enfrentar abusos do STF, parlamentares parecem interessados em tornar o Congresso um Poder imune aos controles republicanos – exatamente a crítica que muitos fazem ao Supremo


Deputados e Senadores em sessão do Congresso Nacional

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), declarou em entrevista à GloboNews que há “um ambiente de discussão” para restabelecer a exigência de prévia autorização legislativa para a abertura de inquéritos envolvendo parlamentares. Se esse despautério prosperar, o Brasil dará um salto de 24 anos para trás, destruindo um dos avanços institucionais mais relevantes desde a redemocratização do País. O Congresso, ao fim e ao cabo, tornar-se-ia um Poder imune aos devidos controles republicanos, fazendo desta uma república capenga.

Em 2001, foi promulgada a Emenda Constitucional (EC) 35, que fixou parâmetros claros para a imunidade parlamentar. Desde então, a abertura de ações penais em face de deputados e senadores pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – e, consequentemente, os inquéritos que as fundamentam – independe de autorização da respectiva Casa a que pertence o parlamentar investigado ou réu. A um só tempo, a EC 35 fortaleceu o princípio republicano fundamental, qual seja, a igualdade de todos perante a lei, e preservou a natureza da democracia representativa, garantindo aos parlamentares a inviolabilidade civil e penal apenas por suas opiniões, palavras e votos.

À época, os congressistas mantiveram certas prerrogativas que fazem sentido pela natureza de seu trabalho. Por exemplo: desde a diplomação, parlamentares não podem ser presos, “salvo em flagrante de crime inafiançável”. Também não estão obrigados a “testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato”. Estas, a rigor, são garantias da preservação da vontade livre e consciente dos eleitores, e não da pessoa do parlamentar.

O que o sr. Hugo Motta e muitos de seus pares têm defendido, porém, é a impunidade de deputados e senadores suspeitos de crimes comuns, alçando-os a uma classe especial de cidadãos, que passariam a estar imunes às leis. É o que pode acontecer, pois não é difícil imaginar que, diante da perspectiva de persecução criminal de um colega, o espírito de corpo haverá de prevalecer na maioria dos casos. Decerto vocalizando o desejo de muitos no Congresso, o que o presidente da Câmara propôs é reverter a lógica da imunidade parlamentar, criando uma casta intocável de cidadãos que apenas lograram ser eleitos para um mandato temporário. O efeito prático do eventual sucesso dessa monstruosidade legislativa será a legalização do compadrio.

A ameaça de retrocesso não se resume a esse ponto. Desde o momento em que uma malta de bolsonaristas tomou de assalto as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, começaram as tratativas desavergonhadas para restringir o alcance do foro especial por prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado, além do conjunto de medidas que ficou conhecido como a “PEC da Blindagem”. Tudo, é claro, sob o pretexto de reparar injustiças, erros ou abusos cometidos pelo STF, especialmente contra Jair Bolsonaro e outros réus por tentativa de golpe de Estado. A anistia ao ex-presidente, porém, é apenas o verniz na cara de pau: o objetivo real de próceres do Congresso é blindar parlamentares acusados de crimes graves perante o Supremo, como o desvio de bilhões de reais em emendas ao Orçamento da União.

Foi por essa razão que Motta afirmou que há um “incômodo” no Congresso porque “muitos parlamentares”, segundo ele, estariam sendo investigados “por crimes de opinião”. Ora, isso não é verdade. O que há são investigações e processos relativos a crimes de corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e outros, ainda que a responsabilização da delinquência ordinária venha mal disfarçada de “perseguição política” para justificar essas alterações constitucionais voltadas à impunidade.

É legítimo questionar decisões do STF e pugnar pela correção de eventuais abusos que alguns ministros possam cometer. Mas instrumentalizar as críticas ao Judiciário para criar um Congresso acima da lei é corroer o próprio sistema de freios e contrapesos que sustenta a República. Se o Congresso se autoconceder o poder de autorizar ou não a investigação de seus membros, o Brasil passará a ter um Poder que não presta contas a ninguém, exatamente a acusação que hoje se faz ao Supremo.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25

A inflação de Trump

Presidente nega, mas seu tarifaço começa a se espalhar pelos preços nos EUA


Tarifaço, arma voadora de Donald Trump

Como esperado, os efeitos da guerra tarifária do presidente Donald Trump já alimentam a inflação nos EUA. Em julho, o índice de preços ao produtor (PPI, na sigla em inglês) subiu 0,9% em relação a junho, quando o esperado era um avanço de 0,2%. Em 12 meses, o PPI teve elevação de 3,3%, o maior patamar desde fevereiro deste ano. Já o núcleo do PPI, que exclui preços mais suscetíveis à volatilidade, como os de alimentos e energia, teve alta mensal de 0,6% em julho, maior patamar desde março de 2022.

Poucos dias antes, os dados de inflação ao consumidor (CPI, na sigla em inglês) já sinalizavam que o período em que empresas utilizaram o que tinham em estoque, anteciparam importações e seguraram os repasses ao consumidor das tarifas impostas por Trump era coisa do passado.

Mas mesmo com CPI anual de 2,7% em julho, muito acima da meta de 2% ao ano perseguida pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), parte do mercado chegou a apostar em queda de juros no mês que vem.

O secretário do Tesouro, Scott Bessent, não se furtou a aventar (e depois negar) a possibilidade de corte nos juros norte-americanos em setembro, numa clara tentativa de agradar ao chefe Trump, para quem a inflação nos EUA é praticamente inexistente.

Não é o que dizem os dados. A bem da verdade, o PPI demolidor de julho reflete apenas efeito parcial do tarifaço, já que as alíquotas mais punitivas (como a de 50% sobre o café brasileiro, por exemplo) entraram em vigor recentemente e ainda não aparecem nos indicadores. O que está ruim, portanto, só tende a piorar.

Em um cenário desses, dificilmente um banco central técnico e independente, como tem sido ao longo das últimas décadas o dos EUA, tem margem para reduzir juros. O único elemento que, no momento, permitiria vislumbrar um corte de juros é o enfraquecimento do mercado de trabalho.

Ocorre que Trump não só alardeia que a inflação é zero nos EUA, como também bravateia que o mercado de trabalho está a pleno vapor, exibindo orgulhosamente toda a sua ignorância econômica. Mercado de trabalho pleno e inflação inexistente são realidade apenas em mentes alienadas como a do republicano.

O problema é que Trump é um delirante com poder nas mãos, e tem conseguido impor, na base do grito e da chantagem, praticamente tudo o que deseja. Irritado com as estatísticas oficiais, que somente refletem uma economia que apenas começou a se deteriorar, o presidente vem atirando para matar os mensageiros.

Foi o que aconteceu com Erika McEntarfer, a comissária que comandava o departamento responsável pela coleta, análise e divulgação dos dados de emprego, bem como do CPI e PPI. Trump não só a demitiu, como para o lugar dela indicou um economista obscuro que já propôs suspender o relatório mensal de emprego.

Até o momento, o Fed, na figura do presidente Jerome Powell, é uma das poucas forças de resistência a Trump. O PPI de julho apenas corrobora a conduta cautelosa da política monetária. Powell tem o apoio dos dados, mas não o de Trump.

Da resolução desse impasse depende não só o futuro dos juros nos EUA, como o da economia global.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25

Freios ao poder sem limites

As Supremas Cortes, como guardiãs da Constituição, são o anteparo mais eficaz contra a instrumentalização da democracia pelos que querem impor a tirania da maioria

Ministro Edson Fachin, Presidente eleito do Supremo Tribunal Federal

Como o mundo, atônito, observa, o presidente dos EUA, Donald Trump, tem cometido as maiores barbaridades supostamente em defesa dos valores da democracia liberal. Legitimado pela maioria do voto popular e do Colégio Eleitoral, além do fato de ter o controle de ambas as Casas Legislativas, Trump parece se sentir autorizado a fazer o que lhe dá na veneta, como se o triunfo eleitoral fosse uma espécie de salvo-conduto para a imposição arbitrária – e irresponsável – de suas vontades. Tal atitude viola o princípio democrático fundamental segundo o qual há limites claros para o exercício do poder, mesmo quando emanado de escolhas majoritárias.

Em escala menor de danos, mas não menos preocupante, Jair Bolsonaro agiu da mesma forma no Brasil. Durante seu trevoso mandato, o ex-presidente esgarçou as fronteiras da legalidade, da institucionalidade e da decência, naturalizando arroubos autoritários como tática para acostumar a opinião pública, digamos assim, ao seu projeto de poder. Os efeitos disso são duradouros. Há poucos dias, como se viu, uma súcia de parlamentares ligados ao bolsonarismo sequestrou as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado como se isso fosse a coisa mais normal do mundo, e cobrou como resgate o avanço de projetos destinados à impunidade não só de Bolsonaro e seus asseclas, como também de deputados e senadores que se sentem ameaçados pela lei – sobretudo pela malversação de bilhões de reais em emendas ao Orçamento.

Todos esses atores políticos se dizem defensores de valores democráticos universais – liberdade de expressão, direitos humanos, eleições regulares, participação popular –, mas, na prática, só instrumentalizam a democracia para dar vazão a seus desígnios autoritários, sem prejuízo de outros interesses inconfessáveis. Essa contradição, aliás, é o cerne de uma perversão contemporânea, de resto já amplamente descrita pela literatura política: as liberdades democráticas transformadas em um meio de sua própria erosão. Ao reivindicar legitimidade das urnas para atacar os pilares do Estado Democrático de Direito, líderes como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Vladimir Putin e Viktor Orbán, entre outros, revelam-se, na verdade, inimigos da mesma democracia liberal que juram estar resguardando com suas estocadas.

Há, no entanto, obstáculos institucionais contra esses democratas de fancaria que precisam ser preservados. O principal deles é a Constituição, que garante que nem mesmo a vontade da maioria nas urnas pode transgredir os limites, direitos e garantias individuais nela consagrados. No Brasil, cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) a missão de ser o guardião desse pacto civilizatório. E, nesse sentido, é de justiça reconhecer que a Corte tem resistido bravamente a enormes pressões, internas e externas, principalmente do governo dos EUA – a maior potência militar e econômica da História –, para aliviar a barra de Jair Bolsonaro e seus corréus no julgamento por tentativa de golpe de Estado. Não seria aceitável, mas seria compreensível, se os ministros sucumbissem a tamanho bullying. A vida pessoal deles tem sido afetada por decisões arbitrárias da Casa Branca com claro propósito de subjugar o STF.

É legítimo e saudável criticar decisões pontuais de ministros ou mesmo do colegiado do STF. Isso é próprio de uma democracia vibrante. Outra coisa, intolerável, é deslegitimar a Corte pelo que ela é com o objetivo de enfraquecer ou eliminar a instituição guardiã da mais poderosa barreira contra o autoritarismo. Ataques desse jaez não podem ser enquadrados como mera divergência política – são atentados contra o Estado Democrático de Direito.

Há poucos dias, o próximo presidente do STF, ministro Edson Fachin, resumiu bem estes tempos estranhos ao afirmar que há “tentativas de erosão democrática” nas Américas. Fachin também foi preciso ao anunciar que sua gestão privilegiará a contenção, a colegialidade e a pluralidade. Oxalá assim seja. É exatamente disso que advém a força institucional das Cortes constitucionais mundo afora. Agindo dentro desses parâmetros, elas são hoje mais fundamentais do que nunca para garantir a integridade do texto que é o único anteparo civilizado contra aqueles que, disfarçados de democratas, pretendem governar sem freios.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25

O efeito deletério do Bolsa Família

Estudo mostra que mudanças no programa nos últimos anos, sobretudo o aumento do benefício, têm gerado impacto negativo sobre o mercado de trabalho e estimulado a informalidade


A foto acusa

Com mais de 20 anos de existência num país onde as políticas públicas têm história errante, o Bolsa Família é um robusto programa de transferência de renda, uma marca já integrada ao imaginário nacional e uma força de irresistível apelo eleitoral – atributos que costumam converter críticas em crime de lesa-pátria. Mas, felizmente, não têm faltado estudos sérios destinados muito mais a aperfeiçoar o programa do que questionar sua existência. O mais recente deles, realizado por pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), toca numa novidade: os efeitos do Bolsa Família sobre o mercado de trabalho mudaram. Para pior. Segundo o estudo, para cada duas famílias que recebem o auxílio, uma sai da força de trabalho.

Até aqui não foram poucos os críticos que, por intuição ou preconceito, diziam que o Bolsa Família estimularia a preguiça e a desocupação. Com a longevidade de um programa pensado como rota de transição para que cidadãos desassistidos pelo Estado pudessem se estabelecer economicamente, e a partir daí prosperar por conta própria, tornou-se comum a ideia de que, no fundo, o Bolsa Família desincentiva o trabalho. Trata-se de uma versão mal contada da história. Até 2019, vários estudos mostraram que, no geral, o programa não afetava negativamente a oferta de trabalho. Enxergou-se, inclusive, um efeito positivo entre as mulheres.

Os dados apresentados agora pelo Ibre mostram um impacto diferente do que se avaliava antes. O fenômeno é resultado do aumento significativo do valor do benefício (que mais que triplicou de 2019 a 2023, passando de cerca de R$ 190 para R$ 670) e do alcance do programa (que saltou de 14 milhões para 21 milhões de famílias beneficiárias). Essa dupla tendência contribuiu, segundo os pesquisadores, para reduzir a ocupação e a participação de alguns grupos no mercado – sobretudo os homens do Norte e do Nordeste –, ao mesmo tempo que levou ao aumento generalizado da informalidade: brasileiros de todas as regiões tendem a evitar o emprego formal quando têm acesso aos benefícios. Em outras palavras, foge-se da formalidade a fim de preservar o auxílio do Estado.

Quando criado, em 2003, o Bolsa Família tinha outra cara: um custo mais baixo, um alcance bem mais reduzido e um benefício mais modesto. Começou com R$ 4,3 bilhões de orçamento (ou pouco mais de R$ 14 bilhões em valores atualizados). Em 2017, eram R$ 35 bilhões. Para 2025, seu orçamento beirou eloquentes R$ 170 bilhões – sem esquecer os muitos outros programas sociais, como Pé-de-Meia, Minha Casa Minha Vida, tarifas sociais do saneamento e da energia elétrica, cisternas, Auxílio Gás, Benefício de Prestação Continuada (BPC), entre outros. Este último, aliás, também gera distorções. Benefício concedido a idosos a partir de 65 anos e pessoas com deficiência, o BPC, segundo especialistas, estimula a informalidade, já que é possível receber um salário mínimo nessa idade sem nenhuma contribuição à seguridade social.

Tamanhos gigantismo e generosidade, contudo, não deixaram de legado ao País o fim da extrema pobreza e a redução da pobreza. De acordo com a economista Laura Müller Machado, do Insper, aplicando os critérios de elegibilidade e valor de benefícios do Bolsa Família atual na renda da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2023, o orçamento necessário para erradicar a pobreza teria de ser de R$ 76 bilhões anuais. Conclusão: gastamos com Bolsa Família mais que o dobro do valor necessário caso tivéssemos focalização perfeita e maior eficiência do gasto. E focalização perfeita, lembra ela, requer conhecimento da renda correta dos beneficiários, algo desincentivado pelo próprio Bolsa Família.

Pôr luz sobre os dados da informalidade pode ajudar no aperfeiçoamento do programa – sem dogmas e preconceitos de lado a lado. Hoje o País só tem conhecimento do aumento da renda quando ela ocorre pelo mercado de trabalho formal, pela Previdência e pelo BPC, por exemplo. E, depois, a lei é aplicada só aos formais, e não aos informais. Trata-se de um evidente incentivo à informalidade. E assim celebramos a saída de pessoas do Bolsa Família quando vão para o mercado formal de trabalho (cerca de 1 milhão de famílias, segundo o governo anunciou em julho), enquanto outros milhões escondem-se na informalidade para seguirem recebendo benefícios.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25

Ditadura do Judiciário coisa nenhuma

Usar as mesmas palavras, ainda que com ressalvas, para aproximar os ‘anos de chumbo’ da ditadura militar à imperfeita democracia do presente é muito grave. Este artigo é a réplica ao artigo "Precisamos dar nome aos bois" (Estadão, 9/8, A4), que defende que o Brasil vive sob um “estado de exceção informal”.


Thêmis, a Deusa da Justiça 

Encorajado pela chantagem de Trump, o bolsonarismo aumenta o tom da ladainha: o Brasil “vive sob a ditadura do Poder Judiciário”, personificada na figura de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A acusação é parte da estratégia voltada a promover a impunidade daqueles que atentaram contra o Estado Democrático de Direito.

O Brasil vive a mais longa experiência democrática de sua acidentada história constitucional. Uma experiência imperfeita, é verdade. O fato, no entanto, é que ao longo dos últimos 40 anos, fomos capazes de solucionar os conflitos políticos de forma pacífica, por meio de eleições e de acordo com a Constituição, regra de ouro da democracia, que o ex-presidente Bolsonaro e seus acólitos buscaram subverter.

Não se confunda a crítica legítima a decisões eventualmente equivocadas do STF com a tentativa de solapar as instituições democráticas. Quanto mais agora, quando o chefe da maior potência militar e econômica do planeta mobiliza instrumentos punitivos contra a soberania nacional na tentativa de coagir o Supremo Tribunal Federal a abdicar da responsabilidade de guardar a Constituição.

Nesse contexto, preocupa que vozes da direita democrática brasileira façam coro com a cantilena golpista, ainda que de modo mais sofisticado. É o caso do artigo Precisamos dar nome aos bois, escrito por Henrique Zétola e Jamil Assis, pessoas a quem respeitamos pelo bom trabalho que realizam à frente do Sivis, entidade dedicada ao estudo e ao debate da liberdade de expressão.

Sem analisar com rigor os casos a que se referem e sem considerar o contexto em que foram tomadas, os autores arrolam decisões supostamente exemplificativas da usurpação de poder por parte do STF. Nesse passo, misturam decisões sobre as emendas parlamentares, nas quais o Supremo buscou assegurar princípios constitucionais elementares, como a transparência no uso dos recursos públicos; decisões que ratificam a competência constitucional do presidente da República para alterar a alíquota do IOF, tida como incontroversa pela maioria dos tributaristas; grande número de decisões monocráticas do Supremo, substancialmente reduzidas pela obrigação de levá-las de imediato ao plenário das turmas do Tribunal; e decisões mais controversas. O descuido analítico seria inofensivo se não fornecesse supostos “elementos de prova” para a conclusão de que o Brasil ainda não seria uma ditadura, mas tampouco continuaria a ser uma democracia, vivendo sob um regime de “permanente exceção”.

Quem faz uma afirmação como essa ou não tem ideia do que seja de fato um regime de exceção – talvez porque não o tenha experimentado na pele como as pessoas da nossa geração e da anterior – ou não tem disposição de distinguir imperfeições da nossa democracia, algumas delas bem apontadas no artigo, de supostas mutações que estariam a alterar o seu código genético.

Não há como comparar as condições políticas de hoje com a experiência vivida durante o regime autoritário, em que o Executivo federal concentrou e exerceu todos os poderes de forma arbitrária, cassou parlamentares e ministros do STF, suspendeu ou restringiu gravemente as garantias e liberdades fundamentais, prendeu, exilou, torturou e matou clandestinamente adversários. Usar as mesmas palavras, ainda que com ressalvas, para aproximar os “anos de chumbo” da ditadura militar da imperfeita democracia do presente é muito grave.

A concentração de várias investigações sob a presidência do mesmo juiz, que dirige a instrução do processo e participa do julgamento, ainda que originalmente decorrente da omissão das diversas instâncias de aplicação da lei de cumprirem sua tarefa básica, pode ser criticada.

Não devemos nos esquecer, porém, de que não vivemos tempos normais, nem aqui nem no mundo. O ataque às Cortes Supremas é comum a todos os movimentos e governos autoritários que emergiram, à esquerda e à direita, no século 21. Eles veem no Judiciário um obstáculo. Submetê-lo é parte essencial de uma estratégia que se desdobra no controle sobre o Congresso, sobre o processo eleitoral, assim como sobre a imprensa. A literatura especializada mostra que, onde o Judiciário conseguiu resistir, a virada autoritária teve maior dificuldade para avançar.

Essa constatação não afasta o risco de que o Judiciário, ao se colocar como trincheira na defesa da democracia, possa cometer erros, que devem ser apontados com rigor.

A restrição à liberdade de expressão é sempre um risco. Quão tolerantes devemos ser com os intolerantes? Quais os limites das democracias para se defender daqueles que abusam de suas liberdades para destruí-las? Essas questões estão em pauta no Brasil, não de maneira abstrata, mas de forma concreta. Não podemos negligenciá-las. As críticas ao comportamento das instituições são essenciais ao seu aperfeiçoamento.

É preciso não confundir, porém, críticas legítimas com a utilização distorcida de conceitos. Não se pode aceitar que, sob o pretexto de dar nomes aos bois, se facilite a abertura da porteira para que passe a boiada golpista.

Os autores deste artigo - Oscar Vilhena é Professor de Direito da FGV-SP e membro da Comissão Arns; e Sergio Fausto é Diretor-geral da Fundação FHC, membro do Gacint-USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.08.25.

O cacoete autoritário do lulopetismo

Governo Lula aproveita comoção com pedofilia online para rascunhar um projeto que suspende redes sociais sem necessidade de ordem judicial, apenas pela vontade de órgão do Executivo



Lula, Presidente da Honra do PT

A comoção provocada por um vídeo do influenciador digital Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, no qual ele expôs os sórdidos mecanismos de exploração sexual infantil nas redes sociais, sensibilizou a sociedade e, por óbvio, chamou a atenção do governo Lula da Silva. A gravidade das denúncias feitas por Felca não deixa dúvida de que o País precisa fortalecer seus instrumentos legais de proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. O busílis é que, a pretexto de enfrentar um problema relevante, Lula parece empenhado em revigorar o conhecido projeto lulopetista de controlar o fluxo de informações nas plataformas digitais.

Segundo o que se sabe a respeito do projeto de lei a ser encaminhado pelo Palácio do Planalto ao Congresso sobre o assunto, o governo pretende concentrar poderes inéditos em uma reformulada Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão vinculado ao Ministério da Justiça. Entre eles, o de determinar, por decisão administrativa, sem prévia autorização judicial, o bloqueio por até 60 dias de qualquer rede social que seja considerada negligente no combate à pedofilia online e a outros crimes diversos, como fraudes e golpes. Não há exagero em qualificar uma medida desse jaez como autoritária. Conferir a um ente subordinado ao Executivo a faculdade de retirar do ar plataformas usadas diariamente por milhões de brasileiros, para os mais variados fins, abre uma avenida para arbitrariedades de toda ordem.

É evidente que a pedofilia online e outras formas de exploração de crianças e adolescentes exigem uma resposta firme do Estado. Mas essa resposta, por óbvio, deve respeitar o devido processo legal. Desde o julgamento da constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, concluído pelo Supremo Tribunal Federal em junho passado, a retirada de conteúdos do ar pode ser feita mediante notificação dos usuários – exceto no caso de crimes contra a honra –, mas a suspensão das plataformas só pode ser determinada pelo Judiciário, em processos que assegurem o contraditório e a ampla defesa. Ao pretender substituir esse escrutínio judicial por um processo administrativo conduzido por uma agência ligada ao governo, a proposta do Palácio do Planalto embute o risco de o combate aos crimes digitais ser transformado em um poderoso instrumento político nas mãos do governo.

Não é a primeira vez que o PT revela sua tentação autoritária no campo da comunicação. O partido nunca escondeu a obsessão por implementar no País o tal “controle social da mídia”, eufemismo nada sutil para censura. Ao propor medidas de enfrentamento a um crime real com tantas lacunas hermenêuticas – afinal, o que levará um burocrata a certificar que uma empresa de tecnologia foi “negligente” no combate à pedofilia online? –, o projeto do governo embaralha fronteiras que deveriam ser cristalinas do ponto de vista legal. O risco é que a mão do governo de turno se estenda para decidir, com o polegar para cima ou para baixo, o que pode ou não circular nas redes sociais. Isso não tem outro nome: é arbítrio.

Eis o ponto fundamental: não cabe ao Executivo arbitrar o discurso público. O combate à pedofilia e a outras formas de violência online deve ser conduzido pelas instituições republicanas nos estritos limites do Estado Democrático de Direito, não por meio de uma estrutura burocrática de controle da informação circulante com poder quase ilimitado. Se levada adiante, a proposta de Lula dará ao governo a prerrogativa de calar vozes incômodas a pretexto de proteger cidadãos vulneráveis – a desculpa esfarrapada que regimes autoritários costumam dar para restringir as liberdades democráticas.

É possível, sim, avançar na formulação de regras mais duras para que as big techs identifiquem e removam conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes, como prevê o Projeto de Lei n.º 2.628/2022, já aprovado no Senado e em tramitação na Câmara. Esse projeto, embora mereça ajustes, parte de uma base mais sólida e democrática do que a proposta do governo. O que é inaceitável é a exploração da justa indignação social contra crimes abjetos como um atalho para a censura.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 19.08.25;

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

O telefonema que Tarcísio deveria dar

Governador cobra de Lula que ligue para Trump. Mas Tarcísio também poderia telefonar a Eduardo Bolsonaro, filho de seu padrinho político, e pedir que cesse a sabotagem contra SP e o Brasil

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, cobrou do presidente Lula da Silva que telefone para o presidente dos EUA, Donald Trump, com o objetivo de negociar o tarifaço imposto pelos americanos ao Brasil – e que afeta particularmente o agronegócio paulista. “É isso que vai fazer a diferença”, disse Tarcísio. Este jornal defendeu e continua a defender exatamente isso, que o presidente Lula tente telefonar para Trump, mas, se o governador Tarcísio está de fato interessado em ajudar o Brasil e os paulistas, ele mesmo podia passar a mão no telefone e ligar para os EUA – para falar não com Trump, e sim com o deputado “exilado” Eduardo Bolsonaro.

Tarcísio poderia pedir que Eduardo Bolsonaro, filho de seu padrinho político Jair Bolsonaro, pare de sabotar os esforços do governo brasileiro para estabelecer um diálogo com a administração americana. O recente cancelamento abrupto de uma reunião virtual entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, é um exemplo cristalino de como o clã Bolsonaro faz mal ao Brasil. Até a antevéspera, estava tudo pronto: agendas de ambas as autoridades alinhadas, link de acesso à plataforma de videoconferência estabelecido e interlocução formalizada entre os dois governos. Ainda assim, na undécima hora, a conversa entre Haddad e Bessent, que deveria ter ocorrido hoje, foi retirada de pauta pelo gabinete do secretário do Tesouro sob a insólita justificativa de “falta de agenda” – uma desculpa claramente esfarrapada.

Haddad culpou “forças de extrema direita”, em referência a Eduardo Bolsonaro e ao blogueiro Paulo Figueiredo, ambos homiziados nos EUA para conspirar contra o Brasil em troca da impunidade de Jair Bolsonaro e outros golpistas. De fato, as evidências apontam para uma “coincidência”, chamemos assim, bastante reveladora: no dia do anúncio do cancelamento da reunião entre Haddad e Bessent, Eduardo concedeu entrevista ao Financial Times prevendo novas sanções da Casa Branca contra autoridades brasileiras, justamente quando o governo Lula da Silva tentava estabelecer canais de diálogo para conter a escalada punitiva deflagrada por Trump.

Não se trata, por óbvio, de um mero desencontro diplomático. Em público, o sr. Eduardo nega, mas a interferência do filho do ex-presidente Bolsonaro para, desde o exterior, inviabilizar contatos de alto nível entre os governos das duas maiores democracias das Américas é um ato de gravidade ímpar. O fato de o deputado federal licenciado agir com esse grau de desenvoltura contra seu próprio país revela não só seu desprezo pelo decoro parlamentar, mas um desdém absoluto pelos interesses de milhões de brasileiros que são prejudicados pelo tarifaço. É espantoso que a Câmara ainda continue a lhe pagar salário e não lhe tenha cassado o mandato.

É certo que Lula não é propriamente conhecido por sua admiração pelos EUA e vem subindo o tom com bravatas palanqueiras para capitalizar eleitoralmente sua disputa particular com Trump. Mas a ordem dos fatores, aqui, altera o produto: foi a sabotagem dos Bolsonaros que resultou no tarifaço excêntrico de Trump, e não o antiamericanismo infantil de Lula. Logo, se Tarcísio estiver genuinamente empenhado em destravar as relações com os EUA, deve deixar de lado o discurso eleitoreiro que tenta jogar toda a responsabilidade pela crise nos ombros de Lula e deve começar a cobrar dos seus caros amigos Bolsonaros que parem de atrapalhar o Brasil.

Cabe a Tarcísio, como governador de um dos Estados mais afetados pelo tarifaço e liderança política com pretensões nacionais, exigir que cessem as manobras golpistas e irresponsáveis do clã Bolsonaro que tanto vêm prejudicando o País e, de forma particular, a economia paulista. Criticar Lula é fácil e sempre pode render dividendos políticos. Enfrentar o sabotador maior do Brasil, contudo, exige coragem e compromisso com a República, o que o sr. Tarcísio ainda precisa demonstrar com mais vigor e independência.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.08.25

Leão 14 supera medalhões como líder global, aponta nova pesquisa

Pontífice novato ficou à frente de Volodimir Zelenski, Bernie Sanders e Donald Trump em levantamento do instituto Gallup.


O papa Leão 14 acena para fiéis ao deixar a missa do Jubileu da Juventude, em Tor Vergata, em Roma - Remo Casilli-3.ago.25/Reuters

Foi um presentaço para Leão 14. Ao celebrar cem dias de pontificado neste sábado (16), o papa desponta numa pesquisa americana do instituto Gallup como o líder global do momento. Ele conseguiu 57% de avaliação positiva, contra apenas 11% de rejeição e 31% de neutralidade. Nestes 31 %, cabe a justificativa de que ele ainda é uma figura pouco familiar.

Papas costumam se sair bem neste estudo feito desde 1993, avaliando chefes de governo e personalidades do mundo político. Foi assim com João Paulo 2º, cuja popularidade só cresceu no longo papado, e com Francisco, por seu enorme carisma.

Com Bento 16, tímido e reservado, os números foram menos vistosos. Mas, o que chama atenção agora é a lavada do pontífice novato sobre seus competidores: no topo do ranking, desbancou Volodimir Zelenski (segundo colocado, com 52% de aprovação), o senador democrata Bernie Sanders (terceiro colocado, com 49%), Donald Trump (quarto colocado, com 41%) e seu vice J. D. Vance (quinto colocado, com 38%). A taxa de rejeição de todos supera em muito a do papa –a de Trump alcança 57%.

Uma multidão de pessoas está reunida, muitas delas segurando celulares e tirando fotos. No centro da imagem, um líder religioso, vestido de branco, sorri e faz um gesto positivo com a mão. O ambiente é festivo, com pessoas visivelmente animadas e algumas usando chapéus e roupas leves. Ao fundo, há uma grande quantidade de fotógrafos e espectadores.

Há pelo menos duas formas de olhar os resultados da pesquisa. A primeira diz respeito ao que os respondentes preferem quando o assunto é liderança global. Personalidades conciliadoras, como Leão 14 e mesmo o veterano Sanders, têm mais apelo do que polarizadores como Trump ou Vance.

O Gallup destaca que o papa se saiu bem até entre os republicanos. Em síntese, no plano aspiracional, os americanos parecem querer distância de líderes globais fantasiados de exterminadores do futuro.

A outra forma de olhar tem a ver com o fenômeno Leão 14 em si. Ele é o primeiro papa nascido nos EUA, o que justificaria o favoritismo, porém, tem dupla cidadania (americana e peruana)..

Uma das imagens a circular tão logo seu nome soou na Praça São Pedro foi a de um religioso com botas sujas de lama, enfrentando a enchente numa comunidade pobre e periférica do Peru. Isso o faz testemunha do desencanto que leva milhões de latinos a tentar a vida nos EUA. Diante da caçada desumana de Trump aos imigrantes, Leão 14 já informou de que lado está.

Há um debate em curso nos círculos da igreja sobre se ele deveria usar mais o inglês em público. Fluente também em espanhol e italiano, há quem defenda que o papa se expresse na sua língua nativa, falada por 1,5 bilhão de pessoas, para atingir uma audiência global. O argumento é forte, no entanto, o sucessor de Francisco tem preferido o italiano, língua oficial do pequeno país que governa. É assim: enquanto autocratas praguejam, Leão 14 testa a potência do seu estilo comedido.

Dias atrás, na Jornada Mundial da Juventude, que reuniu um milhão de pessoas em Roma, foi saudado como popstar. O "mundo em guerra" talvez não tenha notado que ele desfilou de papamóvel, pousou de helicóptero, fez selfies, ficou em vigília com os jovens, acordou-os logo cedo com um sonoro "bom dia", rezou missa e exortou: "Estamos com a juventude de Gaza!".

A multidão vibrou. Não à toa a Jornada foi chamada de Woodstock católico e Madonna, na sequência, pediu que Leão 14 visite os palestinos, "antes que seja tarde". Visita que talvez tenha mais chance de ocorrer do que a ida do pontífice ao país natal em 2026, para festejar, ao lado de Trump, o aniversário dos 250 anos dos EUA. O futuro dirá.

Laura Greenhalgh, a autora deste artigo, Jornalista, atuou nas revistas Veja e Época, foi editora-executiva de O Estado de S. Paulo e é sócia-fundadora da Palavra Escrita Editorial. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 15.08.25

Eduardo Bolsonaro diz que EUA podem impor novas sanções e até mais tarifas ao Brasil

Deputado disse em entrevista à Reuters que sobretaxas não serão reduzidas sem concessões do STF

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) em entrevista à Reuters em Washington - ( Crédito da foto: Jessica Koscielniak/Reuters)

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) espera novas sanções dos Estados Unidos contra autoridades brasileiras e, possivelmente, até mais tarifas devido ao que chamou de crise institucional deflagrada pelo tratamento do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes ao seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Em uma entrevista no escritório da Reuters em Washington nesta quinta-feira (14), após reuniões com autoridades norte-americanas de alto escalão, o parlamentar afirmou não ver como o Brasil possa negociar uma redução de tarifas sem concessões do STF.

"Os ministros do Supremo Tribunal têm que entender que perderam o poder", disse ele. "Não existe cenário em que a Suprema Corte saia vitoriosa desse imbróglio todo. Eles estão tendo um conflito com a maior potência econômica do mundo."

A atuação de Eduardo Bolsonaro em Washington o colocou no centro das tensões bilaterais depois que Trump impôs uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros e aplicou sanções financeiras a Moraes, exigindo o fim do que chamou de uma "caça às bruxas" contra o ex-presidente brasileiro.

Jair Bolsonaro está atualmente sendo julgado pelo STF por uma suposta conspiração para reverter as eleições de 2022, que ele perdeu. O ex-presidente nega qualquer irregularidade.

Eduardo Bolsonaro descreveu as tarifas dos EUA sobre produtos brasileiros como carne bovina, café, peixe e calçados como um "remédio amargo" destinado a conter o que classificou de ofensiva legal descontrolada contra o ex-presidente.

"Tenho alertado a todos aqueles que pretendem tratar isso apenas pela ótica comercial. Isso não vai funcionar", disse o deputado. "É por isso que tenho dito: tem que ser dada uma primeira sinalização aos Estados Unidos de que a gente está resolvendo essa crise institucional."

O Departamento de Estado dos EUA aumentou a pressão sobre o Brasil na quarta-feira (13) ao anunciar revogações e restrições de vistos a várias autoridades do país e a seus familiares devido à participação no programa Mais Médicos, que envolvia médicos cubanos.

Eduardo Bolsonaro disse esperar que essas restrições atinjam em breve o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e, provavelmente, a ex-presidente Dilma Rousseff, que estiveram à frente do programa.

Dilma foi chefe da Casa Civil e sucessora do presidente Luiz Inácio Lula da Silva após seu segundo mandato, que terminou em 2010. Representantes de Padilha e Dilma não responderam imediatamente a pedidos de comentários.

Lula rejeitou as recentes exigências de Trump como uma afronta à soberania nacional e se recusou a "humilhar-se" com uma ligação para a Casa Branca. Em uma entrevista à Reuters na semana passada, ele chamou Eduardo Bolsonaro e seu pai de "traidores" por, segundo ele, incitarem a intervenção de Trump.

O STF está investigando os Bolsonaro por terem recorrido à Casa Branca. Moraes intensificou as medidas contra o ex-presidente, colocando-o em prisão domiciliar e proibindo contato com seu filho nos EUA ou com autoridades estrangeiras.

O deputado afirmou que o setor agropecuário brasileiro, que apoia Bolsonaro, tem se posicionado favoravelmente à sua atuação nos EUA. Segundo Eduardo Bolsonaro, o agro avalia que "vale a pena" eventuais perdas financeiras para que o país possa "resgatar a normalidade institucional".

Na entrevista desta quinta-feira em Washington, Eduardo Bolsonaro disse esperar uma resposta dos EUA a essa repressão, incluindo sanções contra a esposa de Moraes, uma advogada de destaque no Brasil. Bolsonaro também disse que poderia ver "mais" tarifas sobre produtos brasileiros no futuro.

O deputado, que se mudou em março para os Estados Unidos em um esforço para obter o apoio de Trump a seu pai, disse que tem defendido sanções visando Moraes e sua família. Com relação às tarifas, disse que as via como uma "última alternativa".

Ele disse que sanções imediatas dos EUA contra outros ministros do STF parecem improváveis, dado o foco em isolar Moraes, a quem ele chamou de "gangster" e comparou a um "psicopata" e "mafioso".

O STF não respondeu de imediato a um pedido de comentário.

Em uma entrevista à Reuters no mês passado, Jair Bolsonaro disse que esperava que seu filho eventualmente buscasse a cidadania norte-americana para evitar retornar ao Brasil.

Eduardo Bolsonaro recusou-se a comentar os detalhes de seu status de imigração, mas disse que ele e sua família tinham permissão para permanecer nos Estados Unidos "por um bom tempo", e deixou a porta aberta para buscar asilo e, eventualmente, cidadania.

Com relação à corrida presidencial de 2026, disse que o candidato da direita é seu pai, mas que ele estaria disposto a apoiar quem Jair Bolsonaro escolhesse. Falou também que não ambiciona ser presidente da República, mas que aceitaria a "missão", caso fosse a vontade de seu pai. "Se for uma missão dada pelo meu pai... eu sim aceitaria o desafio."

Jair Bolsonaro está inelegível para o pleito de 2026 após ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Marcelo Teixeira, de Washington - DC e Luciana Magalhães, de S. Paulo - SP com apoio da Reuters para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 14.08.25

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Justiça manca

Judiciário brasileiro tem muitos e graves problemas, mas não dá para falar em ditadura da toga como fazem bolsonarist

Sessão plenária do STF, sob a presidência do ministro Luís Roberto Barroso - Pedro Ladeira - 27.nov.2024/Folhapress

O Judiciário brasileiro é muito ruim. É moroso, inconsistente e cheio de vieses. Se levarmos em conta o fator preço --gastamos com o sistema de Justiça 1,33% do PIB, contra uma média internacional de 0,3%--, torna-se sério candidato ao posto de um dos piores do mundo.

O STF é tudo menos inocente nessa história. É dele que vem muito da instabilidade jurídica que marca nosso sistema. E da politização também. Um ministro conseguiu a façanha de votar de modo diametralmente oposto a si mesmo no mesmo processo. Bastou que mudasse de Dilma para Temer o nome do presidente da República que poderia perder o cargo numa interminável ação na Justiça Eleitoral por abuso de poder que ele julgava.

A imagem mostra uma sessão do Supremo Tribunal Federal do Brasil. No centro, há uma mesa com vários juízes e um presidente da sessão, todos em trajes formais. Ao fundo, há uma bandeira do Brasil e um crucifixo na parede. Na frente, há uma plateia com pessoas sentadas, algumas delas com trajes escuros. Em duas telas de projeção, é possível ver informações relacionadas à sessão.

Ainda assim, é preciso ter perdido o juízo para achar que vivemos sob uma ditadura da toga, como afirmam bolsonaristas.

É o próprio conceito de ditadura judicial que se mostra problemático. Praticamente todos os regimes autocráticos instrumentalizam o Judiciário para servi-los. Vimos isso aqui mesmo no Brasil durante os anos de chumbo do período militar. Mas não conheço caso de Judiciário que tenha atropelado Executivo e Legislativo e passado a comandar um país. É que o Judiciário, sem tropas e sem votos, tende a ser o menos resiliente dos três Poderes.

É justamente aí que está o ponto chave. O Judiciário extrai sua legitimidade dos serviços que presta ao país. O STF tem algum crédito por seu papel na contenção do golpe que Jair Bolsonaro e seus aliados tentaram dar. Até algumas das heterodoxias do tribunal se mostram defensáveis, quando se considera que uma Procuradoria-Geral da República (PGR) muito próxima ao bolsonarismo se fazia perigosamente inerte.

Mas a situação mudou. A PGR voltou ao normal, Bolsonaro deixou o poder e está sendo julgado. Não há mais justificativa para ousadias. Mais do que nunca, o STF tem de operar em modo ortodoxo. A corte máxima precisa dar sua contribuição para tornar a Justiça brasileira mais estável, menos partidarizada e mais barata. Para torná-la, enfim, menos ruim.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…" Publicado originalmente em 12.08.25

PJ aquece mercado de trabalho, mas impõe desafios

Atividade por conta própria ganha mais vagas e renda; legislações devem se adaptar às mudanças

Movimentação de candidatos durante Mutirão Nacional do Emprego, em São Paulo (SP) - Rafaela Araújo - 12.ago.24/Folhapress

Em 2014, os celetistas eram 41%, ante cerca de 22% de trabalhadores por conta própria. Atualmente, são 38,1% e 25,2%, respectivamente

Os números do trabalho no Brasil passaram por mudanças relevantes desde a grande recessão de 2014-16, em parte influenciadas pela reforma da CLT aprovada em 2017.

Termos como terceirização e pejotização entraram no centro dos debates político e econômico. Depois de uma década, o cenário demanda que se discutam regulação do trabalho, impostos e contribuições previdenciárias.

Reportagem nesta Folha apresentou dados —oriundos de pesquisa de Nelson Marconi, da Escola de Administração de São Paulo da FGV— que revelam a redução da parcela dos ocupados em contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho.

Ademais, pessoas empregadas por conta própria, segundo a terminologia do IBGE, e com CNPJ têm rendimentos superiores aos daqueles que trabalham nos mesmos setores como celetistas.

Uma pista para explicar tal diferença é o fato de que entre os por conta própria formalizados há pessoas de maior qualificação. A redução do custo tributário e a flexibilidade levaram pessoas a optar por esse regime ou a serem para ele levadas por empresas que as empregavam

A parcela dos empregados em contratos da CLT era de 39,2% em 2012; chegou ao pico de 41% do total dos ocupados em 2014. A taxa dos que trabalhavam por conta própria flutuou pouco em torno de 22,5% de 2012 a 2014, indo a 24,1% no final de 2016. Atualmente, os celetistas são 38,1%, e os por conta própria, 25,2%.

Note-se que, desde 2019, quase todo o crescimento dos primeiros se deu naquela categoria dos que têm registro de CNPJ, com rendimentos mais altos.

Ainda que possa favorecer trabalhadores, a transformação não deixa de trazer questões problemáticas. Os regimes de tributação do Simples e do Microempreendedor Individual (MEI), que facilitam ou incentivam a pejotização —tornar-se pessoa jurídica, ou PJ— com isenções fiscais, também provocam a redução da receita de impostos e contribuições previdenciárias.

Por exemplo, em 2012, o gasto tributário com o Simples equivalia a 0,66% do Produto Interno Bruto; em 2025, a 0,98%.

Tais impactos se somam ao envelhecimento da população como motivos de subfinanciamento da Previdência Social. No caso federal, a receita do INSS passou do patamar de 4,7% do PIB na virada do século para uma média de 5,6% entre 2009 e 2024, ora em 5,5%. Já a despesa cresceu de 5,7% do PIB para 8% do PIB hoje.

A correta reforma de 2017 tornou a CLT menos rígida e obsoleta, facilitando a criação de vagas formais. A legislação trabalhista precisa continuar se adaptando às mudanças no mercado, que incluem ainda o emprego por aplicativos. Igualmente, as normas previdenciárias, alteradas em 2019, precisarão de aperfeiçoamento contínuo nos anos por vir.

Recalibrar a tributação de salários e lucros e delimitar o alcance do Simples e do MEI são temas a serem tratados desde já.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 12.08.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

O STF e o foro

Proposta restaura o statu quo pelo qual a Câmara controlará a licença e estenderá no tempo os processos


Palácio do STF na praça dos Três Poderes, na região central de Brasília - Pedro Ladeira - 24.abr.25/Folhapress

Antes do início do julgamento da denúncia do PGR sobre Bolsonaro, escrevi aqui neste espaço que o saldo líquido para a corte seria negativo em qualquer cenário. "O julgamento será fatalmente percebido como hiperpolitizado —seu custo proibitivo— em um momento crítico para a democracia brasileira". O pior cenário materializou-se. E a intervenção de Trump no processo representa um choque no sistema. Ela altera o equilíbrio perverso entre parlamentares e juízes no qual há interdependência: a ameaça de impeachment é a contrapartida de ameaças de condenação em ações penais.

Mas ela tem duas consequências que se movem em direção contrária, e que em parte se neutralizam. A primeira é que aumentou os incentivos para a base bolsonarista de tentar aprovar o impeachment de Alexandre de Moraes, recolocar a anistia na agenda e eliminar o foro por prerrogativa de função. O segundo é que o efeito de união nacional contra a interferência externa extravagante e inédita. A mudança no foro, no entanto, poderá prosperar porque ela incorpora à aliança um bloco de deputados para além do PL envolvidos em ações pouco republicanas.

A imagem mostra um grupo de seis pessoas sentadas em um banco de concreto, de costas, observando o Palácio da Alvorada, que é um edifício moderno com grandes janelas e uma estrutura arquitetônica distinta. O céu está nublado e há uma estátua visível à direita. O ambiente é amplo, com cercas de segurança visíveis na frente do palácio.

O foro é a base da jurisdição criminal do STF —que não tem paralelo em outros países, mas tratei disso aqui—, mas foi instrumental para a resiliência democrática malgrado as patologias da corte. A ascensão de Bolsonaro inaugurou uma era de confronto aberto. E aqui há um fato novo crucial: a arbitragem constitucional mudou de chave. Não se trata de conter os excessos do Executivo ou de conflitos interpoderes envolvendo o Legislativo, mas de responder os ataques à própria corte; o que é inédito e deflagrou respostas hiperbólicas num crescendo. O ovo da serpente.

O perfil de agente passivo de arbitragem não dá mais conta face às investidas virulentas (que passaram a incluir planos de assassinato de juízes). Mas esta resposta —concentrada em decisões monocráticas controversas para dizer o mínimo— tem acarretado custos muito elevados para o STF. Gerou perplexidade a participação de membro da corte como parte interessada e julgador. O hiperprotagonismo individual cobrou um preço quanto à legitimidade da corte.

Se o impeachment ou anistia tem baixa probabilidade de sucesso, o foro é diferente: era letra morta porque os membros nunca concediam licença prévia para seus membros serem julgados. A mudança institucional ocorre por choques, como argumentei aqui. O escândalo Hildebrando Paschoal, em 2001, deflagrou a eliminação da licença. O ônus da impunidade passou ao STF desde então. Mas o caso Ronaldo Cunha Lima expôs a manipulação estratégica de foros para garantir impunidade. A resposta do STF foi restringi-lo a ações ligadas ao cargo. Nova mudança em 2025 com o atual julgamento: o foro passa a ser perpétuo, independente do mandato.

A proposta de mudança restaura o statu quo pre Pascoal pelo qual a Câmara controlará a licença (para roubar e matar) e/ou estenderá no tempo os processos, aumentando riscos de impunidade. Eis o dilema. O problema é sistêmico e envolve degradação institucional em virtude, entre outras coisas, do padrão hiperpolitizado e personalístico de nomeações para a corte.

Marcus André Melo, o autor deste artigo, é Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 11.08.25