As Supremas Cortes, como guardiãs da Constituição, são o anteparo mais eficaz contra a instrumentalização da democracia pelos que querem impor a tirania da maioria
Ministro Edson Fachin, Presidente eleito do Supremo Tribunal Federal
Como o mundo, atônito, observa, o presidente dos EUA, Donald Trump, tem cometido as maiores barbaridades supostamente em defesa dos valores da democracia liberal. Legitimado pela maioria do voto popular e do Colégio Eleitoral, além do fato de ter o controle de ambas as Casas Legislativas, Trump parece se sentir autorizado a fazer o que lhe dá na veneta, como se o triunfo eleitoral fosse uma espécie de salvo-conduto para a imposição arbitrária – e irresponsável – de suas vontades. Tal atitude viola o princípio democrático fundamental segundo o qual há limites claros para o exercício do poder, mesmo quando emanado de escolhas majoritárias.
Em escala menor de danos, mas não menos preocupante, Jair Bolsonaro agiu da mesma forma no Brasil. Durante seu trevoso mandato, o ex-presidente esgarçou as fronteiras da legalidade, da institucionalidade e da decência, naturalizando arroubos autoritários como tática para acostumar a opinião pública, digamos assim, ao seu projeto de poder. Os efeitos disso são duradouros. Há poucos dias, como se viu, uma súcia de parlamentares ligados ao bolsonarismo sequestrou as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado como se isso fosse a coisa mais normal do mundo, e cobrou como resgate o avanço de projetos destinados à impunidade não só de Bolsonaro e seus asseclas, como também de deputados e senadores que se sentem ameaçados pela lei – sobretudo pela malversação de bilhões de reais em emendas ao Orçamento.
Todos esses atores políticos se dizem defensores de valores democráticos universais – liberdade de expressão, direitos humanos, eleições regulares, participação popular –, mas, na prática, só instrumentalizam a democracia para dar vazão a seus desígnios autoritários, sem prejuízo de outros interesses inconfessáveis. Essa contradição, aliás, é o cerne de uma perversão contemporânea, de resto já amplamente descrita pela literatura política: as liberdades democráticas transformadas em um meio de sua própria erosão. Ao reivindicar legitimidade das urnas para atacar os pilares do Estado Democrático de Direito, líderes como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Vladimir Putin e Viktor Orbán, entre outros, revelam-se, na verdade, inimigos da mesma democracia liberal que juram estar resguardando com suas estocadas.
Há, no entanto, obstáculos institucionais contra esses democratas de fancaria que precisam ser preservados. O principal deles é a Constituição, que garante que nem mesmo a vontade da maioria nas urnas pode transgredir os limites, direitos e garantias individuais nela consagrados. No Brasil, cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) a missão de ser o guardião desse pacto civilizatório. E, nesse sentido, é de justiça reconhecer que a Corte tem resistido bravamente a enormes pressões, internas e externas, principalmente do governo dos EUA – a maior potência militar e econômica da História –, para aliviar a barra de Jair Bolsonaro e seus corréus no julgamento por tentativa de golpe de Estado. Não seria aceitável, mas seria compreensível, se os ministros sucumbissem a tamanho bullying. A vida pessoal deles tem sido afetada por decisões arbitrárias da Casa Branca com claro propósito de subjugar o STF.
É legítimo e saudável criticar decisões pontuais de ministros ou mesmo do colegiado do STF. Isso é próprio de uma democracia vibrante. Outra coisa, intolerável, é deslegitimar a Corte pelo que ela é com o objetivo de enfraquecer ou eliminar a instituição guardiã da mais poderosa barreira contra o autoritarismo. Ataques desse jaez não podem ser enquadrados como mera divergência política – são atentados contra o Estado Democrático de Direito.
Há poucos dias, o próximo presidente do STF, ministro Edson Fachin, resumiu bem estes tempos estranhos ao afirmar que há “tentativas de erosão democrática” nas Américas. Fachin também foi preciso ao anunciar que sua gestão privilegiará a contenção, a colegialidade e a pluralidade. Oxalá assim seja. É exatamente disso que advém a força institucional das Cortes constitucionais mundo afora. Agindo dentro desses parâmetros, elas são hoje mais fundamentais do que nunca para garantir a integridade do texto que é o único anteparo civilizado contra aqueles que, disfarçados de democratas, pretendem governar sem freios.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25
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