terça-feira, 19 de agosto de 2025

Um Congresso acima da lei

A pretexto de enfrentar abusos do STF, parlamentares parecem interessados em tornar o Congresso um Poder imune aos controles republicanos – exatamente a crítica que muitos fazem ao Supremo


Deputados e Senadores em sessão do Congresso Nacional

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), declarou em entrevista à GloboNews que há “um ambiente de discussão” para restabelecer a exigência de prévia autorização legislativa para a abertura de inquéritos envolvendo parlamentares. Se esse despautério prosperar, o Brasil dará um salto de 24 anos para trás, destruindo um dos avanços institucionais mais relevantes desde a redemocratização do País. O Congresso, ao fim e ao cabo, tornar-se-ia um Poder imune aos devidos controles republicanos, fazendo desta uma república capenga.

Em 2001, foi promulgada a Emenda Constitucional (EC) 35, que fixou parâmetros claros para a imunidade parlamentar. Desde então, a abertura de ações penais em face de deputados e senadores pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – e, consequentemente, os inquéritos que as fundamentam – independe de autorização da respectiva Casa a que pertence o parlamentar investigado ou réu. A um só tempo, a EC 35 fortaleceu o princípio republicano fundamental, qual seja, a igualdade de todos perante a lei, e preservou a natureza da democracia representativa, garantindo aos parlamentares a inviolabilidade civil e penal apenas por suas opiniões, palavras e votos.

À época, os congressistas mantiveram certas prerrogativas que fazem sentido pela natureza de seu trabalho. Por exemplo: desde a diplomação, parlamentares não podem ser presos, “salvo em flagrante de crime inafiançável”. Também não estão obrigados a “testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato”. Estas, a rigor, são garantias da preservação da vontade livre e consciente dos eleitores, e não da pessoa do parlamentar.

O que o sr. Hugo Motta e muitos de seus pares têm defendido, porém, é a impunidade de deputados e senadores suspeitos de crimes comuns, alçando-os a uma classe especial de cidadãos, que passariam a estar imunes às leis. É o que pode acontecer, pois não é difícil imaginar que, diante da perspectiva de persecução criminal de um colega, o espírito de corpo haverá de prevalecer na maioria dos casos. Decerto vocalizando o desejo de muitos no Congresso, o que o presidente da Câmara propôs é reverter a lógica da imunidade parlamentar, criando uma casta intocável de cidadãos que apenas lograram ser eleitos para um mandato temporário. O efeito prático do eventual sucesso dessa monstruosidade legislativa será a legalização do compadrio.

A ameaça de retrocesso não se resume a esse ponto. Desde o momento em que uma malta de bolsonaristas tomou de assalto as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, começaram as tratativas desavergonhadas para restringir o alcance do foro especial por prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado, além do conjunto de medidas que ficou conhecido como a “PEC da Blindagem”. Tudo, é claro, sob o pretexto de reparar injustiças, erros ou abusos cometidos pelo STF, especialmente contra Jair Bolsonaro e outros réus por tentativa de golpe de Estado. A anistia ao ex-presidente, porém, é apenas o verniz na cara de pau: o objetivo real de próceres do Congresso é blindar parlamentares acusados de crimes graves perante o Supremo, como o desvio de bilhões de reais em emendas ao Orçamento da União.

Foi por essa razão que Motta afirmou que há um “incômodo” no Congresso porque “muitos parlamentares”, segundo ele, estariam sendo investigados “por crimes de opinião”. Ora, isso não é verdade. O que há são investigações e processos relativos a crimes de corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e outros, ainda que a responsabilização da delinquência ordinária venha mal disfarçada de “perseguição política” para justificar essas alterações constitucionais voltadas à impunidade.

É legítimo questionar decisões do STF e pugnar pela correção de eventuais abusos que alguns ministros possam cometer. Mas instrumentalizar as críticas ao Judiciário para criar um Congresso acima da lei é corroer o próprio sistema de freios e contrapesos que sustenta a República. Se o Congresso se autoconceder o poder de autorizar ou não a investigação de seus membros, o Brasil passará a ter um Poder que não presta contas a ninguém, exatamente a acusação que hoje se faz ao Supremo.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25

Nenhum comentário: