Ao caracterizar o Brasil como uma ditadura, enquanto poupa regimes violadores de direitos humanos, relatório dos EUA mostra como Trump desvirtua os valores que seu país ajudou a consagrar
O caso do Brasil é exemplar. O documento concentra críticas nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) contra apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, acusando repressão à liberdade de expressão e perseguição política. Há abusos reais – decisões monocráticas sem devido processo, censura seletiva nas redes sociais, prisões preventivas prolongadas – que exigem correção. Mas o relatório falseia a escala desses problemas no caso brasileiro e contemporiza outros regimes que violam flagrantemente os direitos humanos, como El Salvador, Israel, Hungria, Filipinas e Arábia Saudita – cujos governos são todos alinhados a Trump
Pelo cotejamento de monitores respeitados, como os da Freedom House, V-Dem, Human Rights Watch ou World Justice Project, o Brasil está longe da repressão típica de autocracias. Mantém eleições competitivas, imprensa livre e um Judiciário – em que pesem todos os seus desvios – relativamente funcional. O relatório distorce essa realidade para emoldurar o País como caso extremado, justificando sanções comerciais ilegais e medidas de intimidação contra magistrados.
Trump instrumentaliza a pauta de direitos humanos como já fez com o comércio internacional, a política externa e a defesa da democracia: armas seletivas contra adversários e blindagem para aliados. Sob sua lógica transacional, regimes ideologicamente alinhados ou úteis a seus interesses escapam de reprimendas; governos adversos à agenda Maga são expostos a recriminações e sanções exorbitantes. É a mesma mentalidade que o leva a bajular autocratas, minimizar atrocidades de aliados e atacar a imprensa, universidades e agências científicas quando seus dados ou análises contrariam a narrativa oficial.
A hipocrisia é gritante. Como Trump cobra de outros países respeito à liberdade de expressão quando manda universidades cercearem discursos, ordena que museus retratem a história americana segundo o seu ponto de vista, intimida jornalistas e processa veículos que ousam contrariá-lo? Como posar de guardião do Estado de Direito enquanto pressiona tribunais para obter decisões políticas ou dissemina teorias conspiratórias que corroem a confiança nas eleições? A mendacidade de Trump e seus abusos contra direitos e liberdades fundamentais – de deportações em massa à repressão de protestos – minam qualquer autoridade moral de sua diplomacia.
No Brasil, a escalada recente – tarifas punitivas, sanções pessoais e retórica truculenta – é desproporcional, ilegal e extorsiva. Serve menos à proteção de direitos humanos e mais a uma tentativa de influenciar processos judiciais e o cenário eleitoral. O País, com todas as suas mazelas, não pode ser equiparado a regimes que criminalizam a dissidência, fecham Parlamentos ou fraudam eleições. E muito menos pode aceitar que seus Poderes sejam chantageados para anistiar um notório golpista.
Não se trata de absolver nossas autoridades de críticas: o STF, o Executivo e governos estaduais têm cometido abusos contra liberdades fundamentais. Mas aceitar que a pauta de direitos humanos seja usada como pretexto para sanções e ingerências é abrir a porta para que qualquer dissenso interno seja explorado por interesses externos.
O relatório, nesta versão trumpista, é um retrato de como valores historicamente americanos podem ser distorcidos até a desfiguração total, convertendo-se em instrumentos de coerção seletiva. É mais um passo firme rumo a um mundo menos regido por regras e mais confortável para os fortes – e, paradoxalmente, mais hostil para as próprias democracias que os EUA um dia ajudaram a proteger.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.08.25
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