Governo Lula aproveita comoção com pedofilia online para rascunhar um projeto que suspende redes sociais sem necessidade de ordem judicial, apenas pela vontade de órgão do Executivo
A comoção provocada por um vídeo do influenciador digital Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, no qual ele expôs os sórdidos mecanismos de exploração sexual infantil nas redes sociais, sensibilizou a sociedade e, por óbvio, chamou a atenção do governo Lula da Silva. A gravidade das denúncias feitas por Felca não deixa dúvida de que o País precisa fortalecer seus instrumentos legais de proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. O busílis é que, a pretexto de enfrentar um problema relevante, Lula parece empenhado em revigorar o conhecido projeto lulopetista de controlar o fluxo de informações nas plataformas digitais.
Segundo o que se sabe a respeito do projeto de lei a ser encaminhado pelo Palácio do Planalto ao Congresso sobre o assunto, o governo pretende concentrar poderes inéditos em uma reformulada Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão vinculado ao Ministério da Justiça. Entre eles, o de determinar, por decisão administrativa, sem prévia autorização judicial, o bloqueio por até 60 dias de qualquer rede social que seja considerada negligente no combate à pedofilia online e a outros crimes diversos, como fraudes e golpes. Não há exagero em qualificar uma medida desse jaez como autoritária. Conferir a um ente subordinado ao Executivo a faculdade de retirar do ar plataformas usadas diariamente por milhões de brasileiros, para os mais variados fins, abre uma avenida para arbitrariedades de toda ordem.
É evidente que a pedofilia online e outras formas de exploração de crianças e adolescentes exigem uma resposta firme do Estado. Mas essa resposta, por óbvio, deve respeitar o devido processo legal. Desde o julgamento da constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, concluído pelo Supremo Tribunal Federal em junho passado, a retirada de conteúdos do ar pode ser feita mediante notificação dos usuários – exceto no caso de crimes contra a honra –, mas a suspensão das plataformas só pode ser determinada pelo Judiciário, em processos que assegurem o contraditório e a ampla defesa. Ao pretender substituir esse escrutínio judicial por um processo administrativo conduzido por uma agência ligada ao governo, a proposta do Palácio do Planalto embute o risco de o combate aos crimes digitais ser transformado em um poderoso instrumento político nas mãos do governo.
Não é a primeira vez que o PT revela sua tentação autoritária no campo da comunicação. O partido nunca escondeu a obsessão por implementar no País o tal “controle social da mídia”, eufemismo nada sutil para censura. Ao propor medidas de enfrentamento a um crime real com tantas lacunas hermenêuticas – afinal, o que levará um burocrata a certificar que uma empresa de tecnologia foi “negligente” no combate à pedofilia online? –, o projeto do governo embaralha fronteiras que deveriam ser cristalinas do ponto de vista legal. O risco é que a mão do governo de turno se estenda para decidir, com o polegar para cima ou para baixo, o que pode ou não circular nas redes sociais. Isso não tem outro nome: é arbítrio.
Eis o ponto fundamental: não cabe ao Executivo arbitrar o discurso público. O combate à pedofilia e a outras formas de violência online deve ser conduzido pelas instituições republicanas nos estritos limites do Estado Democrático de Direito, não por meio de uma estrutura burocrática de controle da informação circulante com poder quase ilimitado. Se levada adiante, a proposta de Lula dará ao governo a prerrogativa de calar vozes incômodas a pretexto de proteger cidadãos vulneráveis – a desculpa esfarrapada que regimes autoritários costumam dar para restringir as liberdades democráticas.
É possível, sim, avançar na formulação de regras mais duras para que as big techs identifiquem e removam conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes, como prevê o Projeto de Lei n.º 2.628/2022, já aprovado no Senado e em tramitação na Câmara. Esse projeto, embora mereça ajustes, parte de uma base mais sólida e democrática do que a proposta do governo. O que é inaceitável é a exploração da justa indignação social contra crimes abjetos como um atalho para a censura.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 19.08.25;
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