terça-feira, 20 de setembro de 2022

Simone Tebet diz que Lula, se eleito, vai governar para se perpetuar no poder: ‘Vai ser um Perón’

Candidata do MDB associa petista a presidente que governou Argentina por três mandatos e que não consegue ‘visualizar’ apoio ao PT


A senadora e candidata à Presidência Simone Tebet (MDB) participa de sabatina realizada no auditório da Faap Foto: Werther Santana/Estadão

A candidata à Presidência pelo MDB, senadora Simone Tebet (MS), marcou posição crítica em relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante e após a sabatina promovida pelo Estadão em parceria com a Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Simone disse que não acredita em um governo Lula e, para ela, o petista, se eleito, fará um governo populista para garantir a perpetuação no poder do Partido dos Trabalhadores.

‘2º turno com Lula e Bolsonaro é o pior dos mundos para o Brasil. Não vai ter paz’

Após participar do evento, Simone deu a declaração em resposta à pressão que sua candidatura sofre da campanha de Lula para atrair votos dos eleitores da emedebista e tentar vencer a eleição no primeiro turno, marcado para o próximo dia 2 de outubro. “Eu não acredito no governo Lula. Por isso, eu sou candidata. Eu não consigo visualizar (apoio), a não ser o papel que nós temos de fortalecimento de um pacto a favor do Brasil que começa e não termina agora”, disse ela.

Segundo Simone, um eventual governo Lula seria mais do mesmo. “É um governo de um mandato só que vai querer se perpetuar no poder. Ele vai querer entrar para a história. Lula vai querer deixar o nome dele para a história e, para isso, ele vai ter de ser mais do mesmo do que ele foi. Ele vai ter de ser populista para poder virar um Perón, o que a família Perón foi no passado. Ele vai ali meter projetos populistas para garantir uma perpetuação do PT nos próximos oito anos”, disse, em referência a Juan Domingo Perón, presidente da Argentina por três mandatos nas décadas de 1940, 1950 e 1970.

Na sabatina no teatro da FAAP com ampla presença de estudantes universitários, a candidata que encabeça a chapa de MDB, PSDB e Cidadania manifestou desconforto com a campanha pelo voto útil e disse que vai lutar “até o fim”. Ela se recusou a falar em negociações futuras e quais compromissos das pautas econômica e política poderiam entrar em um acordo com o petista.

Ao Estadão, a presidenciável negou que já esteja em negociação com Lula para apoio em um eventual segundo turno com o presidente Jair Bolsonaro (PL). Nesta segunda, o ex-presidente reuniu em São Paulo ex-presidenciáveis que passaram a apoiar sua candidatura. Porém nomes como Roberto Freire (Cidadania), Eduardo Jorge (PV) e José Serra (PSDB), que já concorreram ao Planalto, estão alinhados e em campanha por Simone. Ela disse que nunca se reuniu com Lula.

“Eu não converso com Lula. Sabe quando eu conversei com Lula, e até ele foi gentil em me cumprimentar e fazer uma brincadeira comigo, foi no dia do debate (da Band). Eu não tenho o celular dele e não sei com quem ele fala”, disse Simone, que criticou o alinhamento do petista com caciques do MDB envolvidos no petrolão, revelado pela Lava Jato.

Especulações em torno do nome da candidata para comandar um ministério, entre eles o da Justiça e o da Agricultura, como parte de uma negociação política, no segundo turno, têm surgido em Brasília. Na semana passada, Simone alertou a campanha do PT que a estratégia pelo voto útil é desrespeitosa e pode afugentar apoios ao ex-presidente.

Caciques do MDB, que apoiam Lula e tentaram inviabilizar Simone, jogam pressão adicional pelo voto útil. O comando da legenda, porém, pode acabar liberando voto em eventual segundo turno.

Durante o evento, a senadora afirmou que, se as pesquisas de intenção de voto forem confirmadas pelos eleitores, o cenário de acirramento político se estenderá até 31 de dezembro de 2026. “Não tem carta na manga, não tem fórmula mágica. A fórmula mágica é o próprio processo eleitoral”, disse. “O segundo turno entre o ex-presidente Lula e o atual presidente, se isso acontecer, é o pior dos mundos para o Brasil. O Brasil não vai ter paz”, afirmou a senadora.

Simone reconheceu que a tarefa não é fácil. Com uma média de 5% nas pesquisas, ela afirmou que já viu candidatos com esse patamar ganhar a eleição. “Eu me recuso a desistir desse Brasil que eu sonho diante de um cenário que, para mim, nenhum dos dois (Bolsonaro ou Lula) serve. Estou diante de um processo eleitoral em que me recuso a aceitar que nesta eleição, que é mais importante do Brasil desde a redemocratização, nós tenhamos que optar pelo menos pior.”

Sobre um eventual segundo turno entre Lula e Bolsonaro, a senadora preferiu não se posicionar. “A nossa candidatura não é só eleitoral, é uma candidatura política, de posicionamento. Eu estou aqui, eu sou um soldado a favor da democracia e das liberdades públicas. Estamos aqui para abrir caminhos, para construir pontes”, disse.

Armas

Simone também criticou o governo federal e afirmou que, se eleita, vai revogar decretos armamentistas editados pelo presidente Bolsonaro. “Vou fazer um grande revogaço dos decretos do presidente da República (sobre armas)”, disse a candidata ao ser questionada sobre o aumento do número de brasileiros armados. Segundo ela, armas compradas por supostos colecionadores e participantes de clubes de tiro estão indo parar na mão de bandidos.

Simone disse que vai recriar o Ministério da Segurança Pública, além de ter abordado na sabatina temas como educação e responsabilidade fiscal e de ter dito que trabalhará para aprovar, nos seis primeiros meses de governo, uma reforma tributária. Ela reforçou promessas conhecidas da campanha, como a “poupança jovem”, com a qual se compromete a transferir R$ 5 mil para as famílias manterem estudantes no ensino médio e criticou o orçamento secreto – esquema revelado em série de reportagens do Estadão.

Orçamento secreto

A senadora afirmou que, se eleita, dará transparência absoluta ao Orçamento da União. “Nós vamos escancarar o que o Estadão foi o primeiro a publicar, através de uma equipe maravilhosa de jornalistas, o que ainda será considerado um dos maiores escândalos de corrupção da história do País, o orçamento secreto”, afirmou a candidata. Simone ainda contou, sem dar detalhes nem valores, que recebeu oferta de repasse do orçamento secreto para desistir de ser candidata à Presidência do Senado.

Ao tratar de temas econômicos e seu plano para manter os auxílios e ao mesmo tempo cumprir as promessas de elevar o crédito, Simone criticou a gestão Bolsonaro. “É um governo que não planeja nada, não sabe aonde quer chegar, nunca soube e, por isso, nunca apresentou políticas públicas sérias. Diante desse cenário, nós temos de primeiro focar na macroeconomia brasileira. A solução está na eleição de uma candidatura de centro, que, com moderação, equilíbrio e diálogo, é capaz de dialogar com todas as frentes.”

Além disso, ao responder a perguntas de representantes da sociedade, Simone disse que sua agenda tem dois grandes objetivos: de um lado dar o pão a quem tem fome, por meio da manutenção do Auxílio Brasil; e, de outro, abrir a porta de saída a médio prazo.

O próximo presidenciável a ser recebido pela iniciativa do Estadão/FAAP é Ciro Gomes (PDT), nesta quarta. Bolsonaro faltou na sexta-feira passada, e a campanha de Lula avisou que o petista não participará do evento de desta terça.

Adriana Fernandes e William Castanho para O Estado de S. Paulo, em 19.09.22. Colaboraram Davi Mediro e Adriana Ferraz.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Quase sete em cada dez brasileiros têm medo de ser agredidos por causa de política, diz pesquisa

O acirramento dos ânimos no período de campanha eleitoral tem gerado temor entre os brasileiros: 67,5% afirmam ter medo de se
rem agredidos fisicamente por causa de suas escolhas políticas ou partidárias.

Medo da violência em geral cresceu desde a última pesquisa (Getty Images)

Os dados são de uma pesquisa feita pelo instituto Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS) e divulgada nesta quinta-feira (15/09).

A pesquisa também mostra que 3,2% dos entrevistados disseram ter sido vítimas de ameaças por motivos políticos em julho. O estudo, feito por amostragem, ouviu 2,1 mil pessoas entre os dias 3 e 13 de agosto.

"Percebemos que o medo da violência política está bastante espalhado entre as diversas camadas da população. Há uma preocupação real do quanto esse acirramento pode afetar a integridade física das pessoas" afirma David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Segundo ele, o objetivo da pesquisa, chamada "Violência e Democracia: panorama brasileiro pré-eleições de 2022", é entender o peso do medo da violência na percepção e na atitude dos brasileiros quanto ao autoritarismo e a democracia.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública já havia feito uma pesquisa sobre violência e autoritarismo, sem avaliar o apoio à democracia, em 2017. A ideia era medir a propensão da população ao apoio de posições autoritárias em um cenário que se encaminharia para as eleições de 2018. Na versão atual, a pesquisa foi feita em um período mais próximo do pleito.

"O nível do medo da violência como um todo cresceu", explica Marques, "apesar da redução de alguns indicadores de segurança, como o de mortes violentas, muito provavelmente por causa do aumento de outras modalidades de crimes - como os patrimoniais, que afetam muito a percepção e o medo das pessoas quanto à violência."

O instituto elabora um índice de medo da violência com base em uma série de preocupações - medo de morrer assassinado, de ser sequestrado, ser vítima de estupro, ter o celular roubado etc. O índice varia entre 0 e 1, onde 1 é o maior nível de medo.

Esse índice era de 0,68 em 2017 e subiu para 0,76 em 2022.

A pesquisa deste ano avalia algumas modalidades de violência que não foram captadas em 2017, como o medo de violência digital (como de sofrer um golpe ou ter dados divulgados na internet) e o medo da violência política.

O medo de ser vítima de grupos armados (traficantes, milícias e pistoleiros) atinge 83,9% dos entrevistados. Chama a atenção o aumento no medo de sofrer violência por parte da Polícia Militar: de 59,5% dos entrevistados, em 2017, para 63,8% em 2022.

Marques chama a atenção para o fato de que a propensão para apoiar medidas autoritárias (como desrespeito à lei para punir criminosos) é maior entre as pessoas que têm mais medo da violência

No entanto, de maneira geral, o índice de propensão ao apoio a posições autoritárias caiu: foi de 8,1 em 2017 para 7,29 em 2022 (em uma escala de 0 a 10), perdendo força principalmente entre os jovens de 16 a 24 anos.

Hoje, a maioria dos entrevistados (66,4%) afirma que a segurança não vai melhorar com o armamento da população.

Medo de ser vitima de estupro ou de sequestro são indicadores que compõem o índice de medo da violência (Getty Images)

Apoio à Democracia

A pesquisa mediu também o quanto a população apoia a democracia. Os resultados mostram que 90% dos brasileiros concordam que o candidato que vencer as eleições de 2022 nas urnas e for reconhecido pela Justiça Eleitoral deve tomar posse em 1º de janeiro. E 89,3% concordam que é essencial para a democracia que o povo escolha seus líderes em eleições livres e transparentes.

Uma das perguntas, por exemplo, era se os entrevistados consideram "importante que os tribunais sejam capazes de impedir o governo de agir para além da sua autoridade", o que teve concordância de 62% dos entrevistados. O apoio à agenda de direitos sociais e direitos humanos teve queda em 2022.

"Democracia não é só eleição, embora ela seja essencial", explica Mônica Sodré, cientista política e diretora da RAPS. "Não queríamos olhar apenas a partir do viés eleitoral, mas também avaliar o apoio a uma série de elementos que fazem parte de um regime democrático."

"Apesar da queda geral do índice de apoio aos direitos, tivemos melhoras em alguns dos indicadores - a percepção da sociedade sobre o racismo aumentou de 72% para 82%", diz Sodré. "É positivo que haja um aumento na percepção sobre o problema, que é parte central das desigualdades

O apoio a programas de transferência de renda (como o Bolsa Família ou o Auxílio Brasil) também aumentou de 84% em 2017 para 95,7% em 2022.

Sodré destaca também que as mulheres tendem a apoiar mais a agenda de direitos do que os homens e que os negros apoiam mais a agenda de direitos do que os brancos.

"É algo que faz bastante sentido considerando o histórico dessas minorias quanto à violência e desigualdade", afirma

Democracia e direitos

A pesquisa também mostra um importante paradoxo: o apoio à democracia é menor nos mesmos grupos em que se encontra um maior apoio à agenda de direitos humanos e sociais: a população de menor renda e menor escolaridade. Ou seja, ao mesmo tempo em que anseiam por ter seus direitos garantidos, esses grupos também são os mais propensos a relativizar a democracia.

Segundo Sodré, isso se explica pelo fato do país ser marcado pela desigualdade e de os benefícios da democracia não estarem sendo sentidos por toda a população.

A democracia não se traduziu em ganho de qualidade de vida e bem estar para todo mundo no Brasil, diz ela. "E, embora os grupos mais vulneráveis valorizem um conjunto de atributos que vem com a democracia, eles também estão mais propensos a relativizá-la e apoiar medidas autoritárias na espera de resolução de seus problemas."

Leticía Mori @leticiamori, da BBC News, Sao Paulo, em 15.09.22

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62909548

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Como no 7/9, Bolsonaro usará dinheiro público para sua campanha em NY e Londres. E nada muda

Ao contrário da expectativa do Planalto e do temor do QG de Lula, a diferença entre os dois na pesquisa Ipec não diminuiu

A marca desta eleição é estabilidade, com o ex-presidente Lula à frente e Bolsonaro oscilando daqui e dali, sem ameaçar de fato o principal adversário.  Foto: Pedro Kirilos/Estadão

A pesquisa Ipec responde à pergunta feita aqui no domingo passado: transformar o 7 de Setembro e o bicentenário da Independência em comício do candidato Jair Bolsonaro atraiu multidões às ruas de Rio e Brasília, mas isso não reverteu em mais votos para a reeleição, não sacudiu as pesquisas. E, como o TSE suspendeu o uso das imagens na propaganda eleitoral, por uso recursos públicos, é improvável que ainda vá reverter.

A marca desta eleição é estabilidade, com o ex-presidente Lula à frente e Bolsonaro oscilando daqui e dali, sem ameaçar de fato o principal adversário. Bolsonaro faz e acontece, anula o 7 de Setembro em seu favor, compra votos à luz do dia com a PEC da reeleição, tira ICMS dos Estados para baixar o preço dos combustíveis e... não acontece nada.

A marca desta eleição é estabilidade, com o ex-presidente Lula à frente e Bolsonaro oscilando daqui e dali, sem ameaçar de fato o principal adversário. 

Ao contrário da expectativa do Planalto e do temor do QG de Lula, a diferença entre os dois não diminuiu. Ao contrário, oscilou dois pontos a favor de Lula, de 13 para 15 pontos, e Lula recuperou as chances de vencer em primeiro turno: passou de 50% para 51% dos votos válidos.

Agora, Bolsonaro fará duas viagens internacionais na reta final da campanha. O que ele vai fazer no velório da rainha Elizabeth II em Londres? E o que vai dizer de importante na abertura da Assembleia-Geral da ONU em Nova York? A resposta é fácil: o único intuito é gerar fotos, vídeos e áudios para a propaganda na TV. Ou seja: como no 7 de Setembro, ele vai usar a Presidência, paga com o seu, o meu e o nosso rico dinheirinho, para campanha.

É com essas imagens que Bolsonaro imagina, ou sonha, apagar a dura realidade de que ele e seu governo foram um absoluto fiasco no plano internacional desde o início, quando ele foi ao Fórum Econômico de Davos e não foi sequer capaz de ocupar todo o tempo de discurso a que tinha direito para defender as maravilhas do seu país para o mundo – que é o que qualquer presidente faz.

Depois disso, uma coleção de desastres, como a ausência na COP26 e o isolamento, o desconhecimento dos temas e dos personagens e a conversa sem pé nem cabeça com o presidente da Turquia no G-20. Sem contar a imagem dele e sua comitiva comendo pizza em pé nas ruas de Nova York, porque, sem vacina, ele foi rechaçado pelos restaurantes.

São muitos exemplos, além das agressões e grosserias do presidente, seus filhos e ministros contra China, França, Alemanha, Suécia, Noruega, Argentina, Chile, os EUA de Joe Biden... E, por último, as queimadas da Amazônia torraram a simpatia internacional pelo Brasil. As viagens, assim como o 7 de Setembro e a PEC reeleitoral, serão incapazes de alterar as pesquisas e a realidade no Brasil.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 13.09.22

Voto útil’ para quem?

Lula defende que eleitores de outros candidatos votem nele para derrotar Bolsonaro no 1.º turno; esse voto é ‘útil’ para o petista, mas não é necessariamente bom para a sociedade

O candidato Lula da Silva não quer apenas ganhar a eleição em outubro; ele quer ser eleito no primeiro turno, o que seria uma façanha inédita para o PT após mais de 30 anos de disputas pela Presidência. Nos últimos dias, aumentou a pressão da campanha de Lula pelo chamado “voto útil”. A questão é: o “voto útil” no petista, já no primeiro turno, é útil para quem, afinal? Para Lula, obviamente, é. No entanto, para o conjunto da sociedade, esse desfecho não é necessariamente bom. 

O “voto útil” é aquele que o eleitor escolhe dar, no primeiro turno, não a seu candidato preferido, mas àquele que é visto como mais capaz de derrotar o candidato que esse eleitor repudia. Assim, o “voto útil” aceleraria a derrota do candidato indesejado, impedindo-o de chegar ao segundo turno. Considerando-se que o segundo turno é uma outra eleição, em que há apenas dois postulantes em condições praticamente iguais de disputa, é possível que muitos eleitores escolham evitar que o candidato que repudiam tenha essa chance de vencer.

Trata-se de um raciocínio válido, é claro – afinal, o eleitor é livre para estabelecer suas prioridades na hora de votar. O problema é que esse “voto útil” entra no balaio de votos do candidato vencedor como se fosse um aval às suas propostas de governo, e isso não é necessariamente verdadeiro. Aliás, é provavelmente falso, uma vez que o “voto útil” em geral é dado não pelo que o candidato propõe, mas exclusivamente por sua capacidade de derrotar o oponente que o eleitor não quer ver na Presidência. Vota-se, portanto, no “mal menor” – que, malgrado seja “menor”, não deixa de ser “mal”.

Ademais, e isso talvez seja o mais importante, o eleitor que vota no primeiro turno como se estivesse no segundo, ou seja, antecipando uma escolha que não precisa ser feita neste momento, desperdiça o voto que poderia servir para robustecer a oposição. Isso é crucial numa democracia: o candidato derrotado é tão relevante quanto o que vence, pois é do derrotado que se espera o exercício da oposição. Sem oposição forte, o governo se sente à vontade para governar somente para aqueles que o elegeram, e não para o conjunto da sociedade. Quanto mais votos essa oposição tiver, mais a sociedade ganha.

Por fim, é uma grosseira falácia atribuir a Lula da Silva a missão de “salvar a democracia”, isto é, impedir a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, que representaria uma suposta ameaça às liberdades democráticas e à estabilidade do País. Ora, se a democracia depende de Lula da Silva para ser “salva”, estamos mal – afinal, como pode alguém se dizer salvador da democracia e ao mesmo tempo manifestar admiração por ditadores latino-americanos, tratando-os carinhosamente como “companheiros”?

O objetivo de Lula com essa campanha pelo voto útil é “liquidar a fatura”, como dizem seus apoiadores, já no próximo dia 2. Recentes pesquisas de intenção de voto têm mostrado que a distância que separa o petista de Bolsonaro não é mais tão confortável como há alguns meses. Mas uma coisa é a tática eleitoral de Lula; outra, muito diferente, é o interesse da sociedade.

Recentemente, Lula afirmou no Twitter que ele “não tem por que ter vergonha de ganhar no primeiro turno”, afinal, “se quem tem 5% (de intenções de voto) sonha em ter 40%, por que quem tem mais de 40% não pode sonhar em ter mais um pouquinho e ganhar no primeiro turno?”.

Lula pode sonhar com o que quiser. A bem da verdade, qualquer candidato a cargo majoritário deve almejar ser eleito no primeiro turno. É um truísmo. O ponto é que a Constituição não prevê eleições majoritárias em dois turnos por acaso. Trata-se de um sistema que visa ao amadurecimento democrático, evitando escolhas plebiscitárias a priori.

Neste ano, não há apenas dois, há dez candidatos à Presidência. E nenhum deles tem um voto sequer antes da abertura das urnas. Pesquisas de intenção de voto aferem nada além disso – a intenção dos eleitores num dado momento. Fossem atestados fiéis da vontade da maioria, nem precisaria haver eleições, bastaria encomendar pesquisas. É tempo de reflexão, e não de pressa.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 13.09.22

'República dos Juízes' disseca a Justiça sob Bolsonaro e mensalão

Diretor Eugênio Puppo reflete sobre como a Constituição foi criada em 1988 já cercada de problemas

"Existem diversos tipos de Estado. O Estado liberal, o Estado social-democrata, o Estado socialista. Mas nenhum deles é pior do que o estado a que chegamos." A imortal formulação do capitão Salgueiro Maia para definir a situação do salazarismo em Portugal, em 25 de abril de 1974, cai como uma luva no Brasil atual.

Chegamos a um estado desesperador. Mas como? Eis a questão que a série "República dos Juízes" procura, mais do que responder, propor. Os argumentos do diretor Eugênio Puppo são inúmeros.

Sede da Justiça Federal no Paraná, que continuou com dezenas de casos da Lava Jato após a ida do ex-juiz Sergio Moro para o Ministério do Justiça

Sede da Justiça Federal no Paraná, que continuou com dezenas de casos da Lava Jato após a ida do ex-juiz Sergio Moro para o Ministério do Justiça - Guilherme Pupo - 8.out.14/Folhapress

Podemos tentar resumir tudo a partir da premissa de que a Constituição de 1988 surgiu com a ideia de criar direitos sociais julgados então necessários, mas padeceu de problemas. A transição do governo militar, no entanto, já trazia problemas. A começar pelo óbvio —como conviver com uma Lei de Anistia que fazia vista grossa para a tortura, que aceitava a tutela dos militares ao tirar o poder de suas mãos? No filme, quem nos lembra disso é Luiz Carlos Prestes.

É provável, supõem diversas vozes na série, que venha daí o poder concedido a instâncias em princípio técnicas, como o Judiciário. Ou até —teria esse poder sido mesmo concedido ou foi sendo conquistado? E, nesse caso, o que permitiu tal usurpação?

Alguém responde no filme e, aparentemente, por ele —a crença de que é preciso amenizar o poder da política e dos políticos. Como contrabalançar isso? Se isso não pode vir do Executivo nem do Legislativo, só uma instância neutra pode preencher essa função —os juízes e promotores.

Só que, nessa altura, outro problema reaparece. Será essa instância realmente técnica? Bem, o filme não demora a designar. Ela surge no peito estufado de Joaquim Barbosa, por exemplo —a vaidade.

Foi criado então um Judiciário vaidoso e empoderado pela crença social em sua neutralidade, e que tende assim a se hipertrofiar. Com efeito, não se pode mais dar dez passos sem consultar um advogado. Temos, portanto, a obrigação de acreditar que a Justiça é cega. Que a lei paira igualmente sobre todos nós. O filme deixa no ar a pergunta —será?

Ou, indo um pouco mais longe, o diretor Eugênio Puppo sugere que, talvez, tenhamos partido do chamado entulho autoritário para desembocar no entulho judiciário.

Essas considerações são uma tentativa de introduzir o leitor ao conteúdo explícito da série. É preciso, no entanto, dizer algumas coisas sobre a sua forma. Em primeiro lugar, ela praticamente suprime a presença de juízes, juristas e similares. Vozes são ouvidas, mas raramente as palavras são acompanhadas pela imagem dos que a emitem.

"República" evita a forma tradicional desse tipo de documentário, habitualmente centrado no acúmulo de depoimentos que atribuem autoridade e verdade. Partindo desse princípio, Puppo fez um primoroso trabalho de busca e seleção de imagens, de maneira a criar associações que não permitem a políticos, juízes ou jornalistas sobreporem seu discurso ao do filme.

A partir daí, a produção não pode ser acusada de neutralidade. As associações sugeridas são muitas e, de certa forma, conduzem a reflexão do espectador. No entanto, existe um centro. A Constituição em vigor, mais a anistia à tortura, mais a exposição midiática dos três Poderes, levaram à "democracia despolitizada".

A cena que melhor resuma as ideias desta série vem de um velho filme mudo, "Uma Página de Loucura", do japonês Teinosuke Kinugasa. Ali, em dado momento, surgem imagens de uma mulher descontrolada.

Poderiam ser imagens da mulher de olhos vendados que assombra o "Twin Peaks" de David Lynch. As imagens de Kinugasa e as de Lynch parecem saídas de um pesadelo e talvez sejam as que melhor resumem as muitas ideias que circulam nesta série. Mais do que responder à premissa inicial, me parece que o intuito seja evocar a necessidade de pensar como chegamos ao estado atual.

Não será fácil reconstituir isso. "República dos Juízes" procura refazer o percurso, ou uma das vertentes desse percurso. Ao fazer isso, de certo modo nos lança num labirinto. Desmontar o edifício do narrativismo, demonstrar por metáforas imagéticas o tipo de Babel a que a manipulação das palavras nos levou talvez seja o principal atributo desta série. Se suscita questões que assombram o Brasil, "República dos Juízes" não é feito para as responder. Parece que a ideia é lançar essas ideias.

REPÚBLICA DOS JUÍZES

Onde: Disponível no Claro TV+

Produção Brasil, 2022

Direção: Eugenio Puppo

Texto Publicado na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 12.set.2022 às 22h30

Simone Tebet já tem vantagem numérica sobre Ciro em grupos específicos, mostra Datafolha

Margem de erro é maior em nichos do eleitorado, mas revela tendências

A candidata à Presidência Simone Tebet (MDB) realiza caminhada na avenida Paulista, em SP - Divulgação

Ciro Gomes (PDT) já perde de Simone Tebet (MDB) ou empata com ela em nichos específicos do eleitorado, de acordo com a pesquisa Datafolha divulgada na semana passada.

A candidata à Presidência Simone Tebet (MDB) realiza caminhada na avenida Paulista, em SP

LUPA  

Ciro tem 7% do total de intenção de votos, contra 5% de Tebet —uma situação de empate técnico, mas com vantagem numérica para ele. Em outros grupos, no entanto, o pedetista aparece literalmente empatado —ou até mesmo em desvantagem.

LUPA 2

As margens de erro para segmentos específicos são maiores do que os dois pontos da amostra geral do eleitorado. Mas dão pistas sobre as tendências dos grupos. Entre os que têm de 45 a 59 anos, por exemplo, os dois aparecem empatados, com 6% cada um, e sem vantagem numérica alguma para Ciro.

LUPA 3 

Entre os aposentados, novo empate: Ciro tem 7%, e Tebet tem os mesmos 7%.

LUPA 4 

Os dois aparecem com percentual idêntico também entre os eleitores da região sul (6%) e Centro Oeste (7%) –no nordeste, Ciro, que é do Ceará, está à frente, com 8% contra 2% de Tebet.

ULTRAPASSAGEM

Já entre desempregados que procuram emprego, Tebet tem ligeira vantagem numérica: ela aparece com 5%, contra 4% de Ciro; e ganha entre as donas de casa, por 6% contra 3% de Ciro.

Mônica Bergamo na Folha de S. Paulo - edição impressa, em 12.09.22, às 23h00

Rosa assume STF com recado velado a Bolsonaro: 'Que não se cogite descumprir ordem judicial'

Ministra defende Estado de Direito e critica discurso de ódio ao tomar posse na corte

Cerimônia de Posse da Ministra Rosa Weber como nova presidente do STF - Pedro Ladeira/Folhapress

Em uma cerimônia sem a presença do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a ministra Rosa Weber foi empossada nesta segunda-feira (12) como presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), para um mandato previsto até outubro do ano que vem.

No primeiro discurso como presidente do STF, a ministra afirmou, sob aplausos, que não se pode cogitar o descumprimento de ordens judiciais —o que Bolsonaro já ameaçou fazer em seu embate com ministros da corte.

"De descumprimento de ordens judiciais sequer se cogite em um Estado democrático de Direito", disse Rosa.

Rosa defendeu o Estado de Direito, a laicidade e a rejeição ao discurso de ódio. Afirmou ter a certeza que "sem um Poder Judiciário independente e forte, sem juízes independentes e sem a imprensa livre não há democracia".

"Sejam as minhas primeiras palavras as de reverência incondicional à autoridade suprema da Constituição e das leis da República, de crença inabalável na superioridade ética e política do Estado democrático de Direito, de prevalência do princípio republicano e suas naturais derivações, com destaque à essencial igualdade entre as pessoas e a estrita observância da laicidade do Estado brasileiro, com a neutralidade confessional das instituições e garantia de pleno exercício de liberdade religiosa", afirmou.

A ministra fez a defesa do sistema eleitoral brasileiro e, ao mencionar o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o público também aplaudiu.

Antes dela, a ministra Cármen Lúcia também fez críticas, sem menção direta, aos ataques de Bolsonaro à Justiça e às instituições.

Rosa, de perfil discreto e avessa aos holofotes, pretende que os primeiros meses da sua gestão não fiquem marcados por polêmicas que atraiam a corte para o centro das atenções.

Ela comandará um tribunal que está sob constante ataque de Bolsonaro e de seus aliados durante o período eleitoral. Por isso, até o fim de novembro, pretende que não sejam julgados em plenário temas que possam fazer o STF virar protagonista no noticiário.

Rosa é a terceira mulher a assumir a presidência do STF e a primeira magistrada de carreira, originária da Justiça do Trabalho. As anteriores, Ellen Gracie e Cármen Lúcia, vieram respectivamente do Ministério Público e da advocacia pública.

Apesar de sua discrição, ela tem sinalizado, porém, que eventuais ataques à corte ou ao Judiciário serão respondidos com firmeza. Também tem dado amostras de que não pretende afrouxar as investigações que envolvem o presidente.

Em decisões divulgadas nesta segunda, Rosa determinou que a Polícia Federal mantenha apurações preliminares da CPI da Covid sobre a conduta do presidente. Com as determinações, ela contrariou os pedidos da PGR (Procuradoria-Geral da República) para que as investigações sejam arquivadas.

Sua gestão no Supremo, onde a presidência costuma durar dois anos, será mais curta do que a de seus últimos antecessores. Isso porque Rosa Weber completa 75 anos em outubro do ano que vem e terá que se aposentar da carreira de magistrada.

A cerimônia da posse foi adiada uma semana para não coincidir com os atos de 7 de Setembro deste ano, quando a militância bolsonarista foi insuflada pelo presidente para atacar o tribunal.

Mesmo com o adiamento, aconteceu sob um forte esquema de segurança, com diversas áreas do Supremo com acesso restrito.

Para o evento foram chamados os principais nomes dos Três Poderes, e houve 1.300 pessoas convidadas, das quais 350 puderam entrar no plenário do Supremo.

A lista incluiu o atual e os ex-presidentes da República, os chefes do Legislativo, os candidatos ao Palácio do Planalto, os chefes e os integrantes dos tribunais superiores, além de parlamentares.

Para marcar a impessoalidade da posse, ela deixou claro que os convidados foram chamados para o evento por meio do cerimonial.

Porém, além de Bolsonaro, Lula não esteve presente no evento. Rosa foi indicada ao Supremo em 2011 pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que também não compareceu à posse da ministra como presidente da corte.

Compareceram ao evento os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o ex-presidente José Sarney (MDB), além de ministros do Executivo e das cortes superiores.

Ex presidente José Sarney cumprimenta o ex ministro do STF Sepúlveda Pertence na cerimônia de posse da ministra Rosa Weber como presidente do Supremo - Pedro Ladeira/Folhapress

Antes da ministra, discursaram o procurador-geral da República, Augusto Aras, o presidente da OAB, Beto Simonetti, e a ministra do Supremo Cármen Lúcia.

Cármen Lúcia fez um discurso com uma série de indiretas a Bolsonaro.

Afirmou que Rosa "não assume o cargo em momento histórico de tranquilidade social e de calmaria, mas "bem diferente disso, os tempos são de desassossego no mundo e não diferente disso no Brasil".

"Por isso tanto mais é necessária a pessoa com as extraordinárias qualidades de vossa excelência, de decência, de prudência e de solidez de posições combinada com especial gentileza de trato", afirmou Cármen.

"O momento cobra decoro e a República demanda compostura. Tudo o que vossa excelência tem para servir de exemplo em tempos de desvalores muitas vezes incompreensíveis", disse.

"Não se promove a democracia com comportamentos desmoralizantes de pessoas e instituições. A construção dos espaços de liberdades não se compadece com desregramentos nem com excessos", acrescentou Cármen.

Aras destacou que "é gratificante saber que tivemos um 7 de Setembro pacífico e ordeiro, sem violência, é gratificante saber que estamos trabalhando para que tenhamos um certame eleitoral em clima de paz e harmonia, sem violência".

Baiano, ele citou, ainda, um trecho do Hino da Bahia que diz que "nunca mais o despotismo regerá nossas ações" e que "com tiranos não combinam os brasileiros corações".

Em seu discurso, Simonetti afirmou "neste ano eleitoral, nossa missão é ombro a ombro com a Justiça brasileira, defender o sistema de votação que há décadas permite eleições limpas com a prevalência da soberania popular".

José Marques e Marcelo Rocha, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo, em 12.09.22

O avanço retumbante das tropas ucranianas gera as primeiras fissuras no cenário político russo

Vozes da propaganda oficial perguntam a chefes do Governo e da chefia militar pela primeira vez desde o início do conflito

Um sapador vasculhou projéteis russos encontrados na cidade de Udy, recentemente retomada pelo exército ucraniano, na segunda-feira. (Foto: Gleber Garanich / Reuters)

O claro avanço das forças ucranianas no leste do paíssobre posições que estavam nas mãos dos russos há meses abriu as primeiras brechas no discurso político na Rússia, até agora pouco dado a arejar discrepâncias sobre a linha oficial estabelecida pelo Kremlin. Os líderes da propaganda russa pedem abertamente a execução dos comandantes que tiveram que defender o enorme território perdido, enquanto outras vozes ligadas ao poder agora exigem a punição daqueles que convenceram o presidente, Vladimir Putin, de que suas tropas seriam recebidas com abraços em Ucrânia. Os golpes de Kharkiv e Kherson também coincidem com um novo desafio da oposição, residual mas eloquente. Mais de 40 vereadores das duas maiores cidades da Rússia dirigiram-se ao Parlamento para propor a demissão de Putin, sob a acusação de alta traição, uma iniciativa que ganha adeptos com o passar das horas.

A contra-ofensiva ucraniana, que vem ganhando espaço em questão de horas nos últimos dias, pegou a Rússia de surpresa. No sábado, quando Kiev anunciou que havia retomado cargos importantes como Kharkov, Putin estava em Moscou inaugurando a maior roda-gigante da Europa, enquanto os habitantes da capital dançavam e bebiam pelo 875º aniversário da cidade. O Ministério da Defesa russo, após o silêncio que se seguiu aos sucessivos anúncios das autoridades ucranianas, finalmente anunciou uma "retirada ordenada" na região de Kharkov , onde não só perdeu a iniciativa e cidades importantes como Izium, mas também um nó ferrovia-chave para o abastecimento de seu exército.

Na Rússia há setores que nesta ocasião não concordaram com a justificativa oficial. Por enquanto, as críticas se intensificaram contra os escalões inferiores de Putin, ainda protegidos por duas décadas em que a propaganda construiu uma aura de infalibilidade ao seu redor.

A interpretação que o presidente checheno, Razmán Kadírov, fez da retirada foi significativa. Em uma mensagem transmitida em seu canal Telegram, ele se referiu ao "fato de que [o exército russo] saiu e doou várias cidades". “Não sou um estrategista como os do Ministério da Defesa, mas erros foram cometidos”, acrescentou, alertando que se não houver mudanças imediatas no que ainda é chamado de “operação militar especial”, ele procurará comunicar diretamente não só com o ministério russo, mas com a liderança do país, ou seja, Putin. Essa mensagem é interpretada como um exemplo claro do desconforto do líder checheno com o curso da guerra.

Vladimir Putin realizou uma reunião telemática em Moscou na segunda-feira. (Foto: Gavrill Gruogorov / Reuters)

As Forças Armadas, a instituição mais valorizada pelos russos, ainda mais que o Kremlin, segundo pesquisas, enfrentam enorme pressão. Putin se recusa a decretar a mobilização geral da população, medida impopular que exige a ala mais dura. Enquanto isso, jornalistas próximos ao poder acusam os comandantes do exército. Um dos chefes da propaganda do Kremlin, o apresentador do Rossiya 1, Vladimir Solovyov, também declarou no Telegram: “Muitos comandantes de uniforme (não ousaria chamá-los de comandantes) são dignos de demissão desonrosa, julgamento criminal ou mesmo execução, e eu poderia citar alguns.”

Zelenski: "Em setembro, a Ucrânia recuperou mais de 6.000 km² de seu território"

Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky em uma declaração oficial de 2022 (Foto: Europa Press)

A crise aberta pelo contra-ataque colocou os conselheiros do Kremlin e os comandantes do exército em destaque por enquanto. Vários analistas e políticos questionaram o desenvolvimento das operações das tropas russas nos últimos meses em um debate no popular canal NTV, cujo controle foi tomado por Putin assim que assumiu o governo décadas atrás.

“As pessoas que convenceram o presidente de que a operação especial seria rápida e eficaz; que não bombardeássemos civis, que chegaríamos e que a Guarda Nacional e os kadyrovtsi [forças pessoais de Kadirov] trariam ordem... essas pessoas armaram uma armadilha para todos nós”, disse o ex-deputado da Duma Boris Nadezhdin. "Essas pessoas existem?", perguntou o apresentador. “É claro que o presidente não fica sentado lá e diz: 'Vou iniciar uma operação especial'. Alguém lhe disse que os ucranianos se renderiam e se juntariam à Rússia”, respondeu o analista.

A franqueza do debate surpreendeu a Rússia. O deputado e líder do Just Russia, Sergei Mirónov, manteve o discurso desses meses de que não pode haver negociações com "o regime nazista de [presidente ucraniano Volodymyr] Zelenski", mas foi imediatamente criticado por grande parte dos convidados presentes . , além de Nadezhdin. O especialista político Viktor Olevich o culpou de que "tudo está indo conforme o planejado, mas ninguém pensaria seis meses atrás que o plano seria retirar-se agora". Outro conhecido comentador, Alexei Timofeyev, aproveitou para recordar que os meios de comunicação oficiais insistiam que se o exército entrasse em Odessa, "o risco seria receber abraços muito fortes da população". "Esses erros foram criminosos, catastróficos, por que devemos continuar ouvindo a opinião desses especialistas?", criticou abertamente.

Um dos comentaristas mais desaprovados é hoje um dos rostos mais conhecidos da propaganda russa. A diretora do Russia Today, Margarita Simonian, que disse em um colóquio de televisão pré-guerra que a Rússia "derrotaria a Ucrânia em dois dias". Hoje marca o 201º dia desde o início da ofensiva e suas tropas estão se retirando em várias frentes.

Putin demitido por alta traição

A prisão de vários políticos da oposição por suas críticas à guerra não silenciou as críticas a Putin. Com o acesso ao Parlamento nacional proibido, a política russa ocorre principalmente nos Conselhos Distritais das grandes cidades. Um grupo de vereadores de São Petersburgo, a segunda maior cidade do país, causou um novo tremor dias atrás ao pedir oficialmente à Duma que Putin pudesse ser demitido por alta traição. Esta segunda-feira pós-eleitoral já teve 45 vereadores verificados entre as 85 assinaturas recebidas de 18 distritos desta cidade, Moscovo e Kolpino. Com o passar das horas, mais vereadores aderiram à iniciativa.

“É uma escrita inteligente e muito cuidadosa. Espero que não sejamos processados ​​por nenhum motivo porque não fizemos nada de ilegal, cumprimos as leis federais para esse procedimento e apresentamos argumentos para verificar, de acordo com a Constituição, se um processo de impeachment pode ser aplicado a ele”, disse. explica um de seus promotores, Nikita Yuferev.

Sua carta foi mais tarde acompanhada por mais conselheiros de Moscou. “Queremos abordar o público de Putin para pensar. Se acreditavam que a expansão da NATO era uma ameaça para a Rússia, agora com a sua decisão em 24-F [em 24 de fevereiro, dia em que começou a ofensiva] verifica-se que a Aliança Atlântica cresceu e com a adesão da Finlândia a sua fronteira Dobrou", acrescenta. “Consideramos que a iniciativa de Putin aumentou o risco para a Federação Russa e sua população. Agora a Ucrânia é um perigo porque como resultado do 24-F recebeu armas avaliadas em 38.000 milhões de dólares”, afirma com linguagem controlada ao milímetro.

"Nossos argumentos são de que Putin estava errado", diz Yuferev. “E a situação de nossos soldados, a falência econômica e os problemas da geração jovem não podem ser ignorados. A economia russa sofre seriamente”, acrescenta.

A ideia foi proposta por outro colega de seu distrito de São Petersburgo, Dmitri Paliuga. Yuferev dirigiu-se à Administração Presidencial em 2 de março para solicitar a cessação da ofensiva, mas não recebeu resposta. “Mais tarde, em agosto, escrevi ao presidente com uma carta pessoal pedindo que ele encerrasse a operação especial por motivos humanitários”, diz Yuferev. “Já havia dados da ONU confirmando que havia seis milhões de refugiados ucranianos e mais de 5.000 mortos, incluindo mais de 300 crianças, verificados pelas Nações Unidas”, lembra o político. "Disseram-me que leriam a carta", foi a última coisa que ouviu até agora.

Paliuga será julgado nesta terça-feira "por desacreditar o presidente da Federação Russa". "Parece que o plano é claro: tomar uma decisão comigo e depois punir o resto dos vereadores", disse ele em sua conta no Twitter, onde informou que a polícia o havia chamado. “Eles me perguntaram se eu me arrependo de ter tomado essa decisão sobre a traição [de Putin]. Estou feliz por ter pego! Tenho orgulho de cada vereador! Tenho recebido muitas mensagens de estranhos. Somos muitos!”, acrescentou.

Javier G. Cuesta de Moscou para O EL PAÍS, em 12.09.22

Terra brasilis, onde tudo é permitido, mesmo o que for proibido

 Absurdo dos absurdos é constatar que os infratores das leis do nosso receituário jurídico geralmente habitam o andar de cima da pirâmide social. Pela lógica, o exemplo de respeito às normas deveria partir do mandatário-mor da nação, o senhor presidente da República.

Brasíia, DF, em 07 de Setembro de 2022, celebrações do bicentenário da Indepedencia, (Crédito da foto: Alan Santos/PR)

Recorro a Sólon, legislador grego, para escrever sobre nossos tempos e, particularmente, sobre os últimos acontecimentos. Indagado se as leis outorgadas aos atenienses eram as melhores, respondeu: "dei-lhes as melhores que eles podiam suportar". Arrisco-me a dizer que, no caso brasileiro, temos um apreciável conjunto de boas leis, mas, infelizmente, parcela de nossas elites não pode suportá-las.

Absurdo dos absurdos é constatar que os infratores das leis do nosso receituário jurídico geralmente habitam o andar de cima da pirâmide social. Pela lógica, o exemplo de respeito às normas deveria partir do mandatário-mor da nação, o senhor presidente da República.

Pois bem, segundo análises de juristas de muitas áreas do direito, Jair Bolsonaro teria cometido um rosário de infrações ao código eleitoral, por transformar as comemorações do dia 7 de setembro, em que o país "festejou" o bicentenário de sua Independência, em eventos eleitorais. Há juízes, como o celebrado desembargador Walter Maierovitch, que enxergam nas infrações motivo para impeachment.

E por quê o Tribunal Superior Eleitoral ou os Tribunais Regionais Eleitorais não avançam nessa matéria? Será que eventual investigação solicitada pelo Ministério Público Eleitoral em torno dos atos presumivelmente de caráter eleitoral comandados pelo presidente-candidato será concluída antes do pleito? Não se espere por isso. Pelo que se conhece dos trâmites, tal investigação entrará para as calendas.

O fato é que Sua Excelência, o senhor presidente da República, tem interpretado as leis com a lupa de uma índole que reparte o espaço eleitoral no paraíso do Bem e no inferno do Mal. Claro, o Bem é personalizado por ele, o Mal, por seu principal opositor, Lula da Silva. Que também divide o nosso mundinho em áreas do "nós e eles". Um jogo de recíprocas conveniências.

O presidente parece admitir que "ordem ilegal" não se cumpre, o que contraria frontalmente o princípio: "agrade ou não, a lei é a lei e deve ser cumprida". Bolsonaro chegou a dizer, por ocasião da pauta sobre marco temporal das terras indígenas, em debate no STF: "se conseguirem (os defensores do marco) vitória nisso, me restam duas coisas — entregar as chaves para o Supremo ou falar que não vou cumprir. Eu não tenho alternativa".

Ora, se alguém considerar uma lei "ilegal", que procure mudá-la no âmbito de quem estabelece as leis, o Poder Legislativo, onde estão a Câmara, o Senado, as assembleias legislativas e as câmaras de vereadores.

O fato é que, nos últimos tempos, a quebra da normalidade tem atingido índices alarmantes. E é interessante observar que, ante a moldura de polarização que acirra as tensões da comunidade política, os poderes parecem recuar em seus deveres e responsabilidades no intuito de evitar conflitos que rompam os dutos da harmonia social.

O achincalhamento de ministros, juízes e instituições ganha, quase todos os dias, espaços na mídia, a denotar que a liberdade de expressão ultrapassa os limites do bom senso. Confunde-se liberdade com irresponsabilidade.

É triste constatar que o país, na quadra político-institucional em que vive, tem expandido as fronteiras da ilegalidade. Não é preciso conferir números para enxergar rupturas da ordem legal por todos os lados. A região amazônica é devastada por atos ilícitos cometidos por madeireiros, garimpeiros e outros bandos de oportunistas, mesmo que os governantes neguem abusos. A fumaça das queimadas na Amazônia chega a São Paulo, Paraná e Bolívia, cobrindo cerca de 5 milhões de quilômetros.

Em suma, as mazelas se espalham pelo território, e as leis são jogadas no lixo, tornando-se letras mortas. E a quem se endereça a culpa? À imprensa. O PT tem dito e repetido que os profissionais se aliaram a Moro e ao MP para destruir Lula e, depois, Dilma. Bolsonaro alega que é perseguido pela imprensa. É o que lembra Ascânio Seleme, em sua coluna de O Globo (3/9).

E assim, nosso habitat consolida sua posição como uma das quatro sociedades mundiais: a primeira é a inglesa, onde tudo é permitido, salvo o que for proibido; a segunda é a alemã, onde tudo é proibido, salvo o que for permitido; a terceira é a que vive sob as ditaduras, onde tudo é proibido, mesmo o que for permitido; e a quarta é a brasileira, onde tudo é permitido, mesmo o que for proibido.

Gaudêncio Torquato, o autor deste artigo, é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político. Pubicado no Conultor Jurídico, em 12.09.22

Eleições: observadores internacionais veem atuação 'inusual' do Exército e risco de embate com TSE

Observadores internacionais reagiram com surpresa e preocupação à possibilidade de que as Forças Armadas tentem fazer uma contagem dos votos das eleições presidenciais de outubro por meio de uma amostragem de Boletins de Urna, os recibos que cada máquina eleitoral emite com o total de votos para cada candidato armazenados ali.

Soldados montam guarda enquanto as pessoas esperam na fila para votar em zona eleitoral no Rio de Janeiro em 28 de outubro de 2018 (Crédito: Ricardo Moraes / AFP Via Getty Images)

Todos os especialistas disseram que esse tipo de ação militar é "inusual" e reafirmaram que a instituição brasileira responsável por proclamar o resultado do pleito é o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que goza da "confiança internacional" na tarefa.

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A BBC News Brasil conversou com integrantes de três organismos internacionais que já têm ou terão equipes em território brasileiro para acompanhar a eleição de 2022. Dois dos especialistas, no entanto, pediram para que suas identidades não fossem reveladas, para que suas opiniões não atrapalhem o trabalho de observação desenvolvido pelas equipes.

"Não existe nenhuma lei brasileira que outorgue às Forças Armadas o poder de fazer qualquer contagem de votos. Os militares têm, sim, um importante papel logístico, na distribuição das urnas pelo território brasileiro. Cada instituição cumpre a sua função. Convidamos todos os atores políticos no Brasil a aceitarem democraticamente os resultados que serão anunciados pelo único órgão que pode fazê-lo, o TSE", afirmou à BBC News Brasil Daniel Zovatto, diretor para América Latina e Caribe do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA).

Zovatto comandará pessoalmente uma equipe de analistas no país em outubro. Além do IDEA, observam o pleito no Brasil funcionários da Organização dos Estados Americanos (OEA), do Parlamento do Mercosul (Parlasul), do Carter's Institute, do International Foundation for Electoral Systems (Ifes) e da Rede Eleitoral da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Bolsonaro já afirmou não confiar nas urnas eletrônicas, embora admita não ter qualquer prova sobre fraude eleitoral (Crédito: LR Moreira / SECOM - TSE)

Em reportagem publicada nesta segunda-feira (12/9), o jornal Folha de São Paulo afirmou que as forças pretendem enviar representantes militares para 385 seções eleitorais, nas quais esses oficiais comparariam o Boletim de Urna impresso no local com as informações disponibilizadas pelo TSE. Ainda segundo a reportagem, os votos seriam contabilizados para tentar aferir, de modo amostral, o resultado da eleição.

A BBC News Brasil perguntou às Forças Armadas se existe, de fato, a intenção de fazer essa checagem a partir dos boletins de urna, qual seria a justificativa e o gasto público para tal ação. O Centro de Comunicação Social do Exército encaminhou a reportagem para o Ministério da Defesa.

Em nota, a Defesa negou que tenha pedido acesso ampliado a informações eleitorais e não informou se pretende ou não fazer checagem amostral do resultado eleitoral.

"As Forças Armadas têm atuado como uma das entidades fiscalizadoras (...), não demandam exclusividade e tampouco protagonismo em nenhuma etapa ou procedimento da fiscalização do sistema eletrônico de votação e permanecerão pautando a sua atuação pela estrita observância da legalidade, pela realização de um trabalho técnico e pela colaboração com o TSE", dizia o texto.

Já o TSE negou que os militares terão qualquer tipo de acesso privilegiado ou adicional aos votos. Os Boletins de Urna, recibos impressos por cada uma das máquinas onde se deposita os votos, já são públicos atualmente e estiveram disponíveis para que eleitores e partidos políticos verifiquem os dados e façam suas próprias contagens nas eleições recentes. Em 2022, os Boletins de Urna também serão disponibilizados pelo TSE online.

"O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informa, em relação à apuração das eleições 2022, que não houve nenhuma alteração do que foi definido no primeiro semestre, nem qualquer acordo com as Forças Armadas ou entidades fiscalizadoras para permitir acesso diferenciado em tempo real aos dados enviados para a totalização do pleito eleitoral pelos TREs, cuja realização é competência constitucional da Justiça Eleitoral", afirmou o TSE em nota.

Cuba e Venezuela

A possibilidade da recontagem por amostragem das Forças Armadas ocorre, no entanto, em meio a uma escalada de tensões envolvendo os militares, o presidente Jair Bolsonaro, que tenta a reeleição, e a Justiça Eleitoral.

"O pior cenário para o Brasil é uma divergência entre as forças armadas e as forças civis em relação ao resultado do pleito", afirma um dos especialistas eleitorais, com experiência em acompanhar pleitos em toda a região. "Talvez os únicos países das Américas em que tenhamos o Exército desempenhando esse tipo de papel sejam Cuba e Venezuela", completou.

Bolsonaro já afirmou não confiar nas urnas eletrônicas, embora ele mesmo admita não ter qualquer prova sobre fraude eleitoral. Ele tem estimulado as Forças Armadas a enviar questionamentos e sugestões ao TSE. O órgão respondeu a todas: acatou algumas das recomendações e descartou outras.

Em abril deste ano, o atual mandatário chegou a sugerir que os militares deveriam fazer sua própria contagem de votos, e não que se esperasse o resultado proclamado "por meia dúzia de técnicos" em uma "sala secreta" do tribunal eleitoral.

"Uma das sugestões é que, esse mesmo duto que alimenta na sala secreta os computadores (do TSE), seja feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um computador também das Forças Armadas para contar os votos no Brasil", disse Bolsonaro.

"O presidente brasileiro tem denunciado de maneira infundada o processo. Tem dito que a eleição não é segura, que o TSE não é imparcial. Vemos com muita preocupação esse tipo de fala, porque pode levar a um aumento da tensão política, ao não reconhecimento do resultado, o que seria muito grave. Já vimos com Trump o que pode acontecer", afirmou Zovatto.

Segundo outro especialista internacional, a preocupação com a repetição no Brasil de um episódio semelhante à invasão do capitólio dos EUA, em 6 de janeiro de 2021, tem escalado na comunidade internacional.

"Desde o primeiro semestre, estamos trabalhando com o TSE para as observações eleitorais, justamente para garantir transparência à decisão do povo brasileiro. As Forças Armadas não são os garantidores do processo eleitoral. Não é assim que as coisas funcionam", afirmou o especialista ouvido pela BBC que tem no currículo observações em países com alta tensão política, como o Haiti.

A quem interessa?

Ao menos dois dos especialistas apontaram que a eventual amostragem dos militares não é capaz de aferir a correção da apuração de votos pelo TSE. Isso porque seria necessário fazer uma coleta dos dados levando em conta critérios sociodemográficos, geográficos e culturais, para garantir que os eleitores representem o perfil do eleitorado brasileiro na totalidade e que os votos não estejam concentrados entre um ou outro candidato.

Especialistas reafirmam que a instituição brasileira responsável por proclamar o resultado do pleito é o TSE (Crédito, Alejandro Zamprona / SECOM-TSE)

"A única coisa que poderia ser verificada ali pelos militares seria a zerésima dessas urnas, que mostra que não havia votos depositados nelas antes do início da votação, e a coincidência entre os dados impressos e os indicados pelo TSE. Não há como recontar votos com esse tipo de amostra", diz um deles.

Para os especialistas internacionais ouvidos pela BBC, chama a atenção que Bolsonaro, um egresso das fileiras do Exército, com um candidato a vice que é general da reserva, e atrás na disputa de acordo com as pesquisas de intenção de voto, conte com as Forças Armadas para endossar dúvidas e inseguranças em relação às eleições.

"É compreensível que pessoas comuns, que consomem informação falsa na internet, possam ter alguma confusão quanto ao processo eleitoral. Mas o que explica que uma das instituições do Estado brasileiro queira patrocinar esse tipo de dúvida contra um processo dirigido por outra parte do Estado?", questionou um dos observadores.

Para outro, tal atuação dos militares alimenta na população a percepção de que eles são "politicamente motivados", quando constitucionalmente deveriam ser agentes neutros, "desinteressados". "Pior ainda se pensarmos que, historicamente, a ditadura militar é um evento recente no Brasil", disse, em referência ao período entre 1964 e 1985.

Observadores domésticos também criticam

Brasileiros especialistas no tema também criticaram eventual envolvimento das Forças Armadas em uma apuração paralela dos votos e consideram que não cabe aos militares nem mesmo fazer alguma contabilização a partir dos boletins de urnas que estarão disponíveis publicamente.

Eles lembram que isso já é feito por outros atores, como partidos políticos, acadêmicos e movimentos sociais.

"Eu sempre achei que é suficiente a participação dos outros órgãos, das outras entidades em fiscalização. Não há necessidade das Forças Armadas. E as Forças Armadas não podem exercer papel político", criticou o advogado Alberto Rollo, especializado em direito eleitoral.

Para o estudioso das Forças Armadas Juliano Cortinhas, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), os militares deveriam se ater a sua função constitucional de proteger o país de ameaças externas. Como portadores do arsenal bélico do país, os militares não deveriam sustentar qualquer opinião política, já que podem coagir os civis no processo.

"As Forças Armadas não deveriam nem estar sendo recebidas pelo TSE. Elas não podem participar de processos internos porque elas são o braço armado. Quem vai desafiar os blindados e os tanques das Forças Armadas se elas se posicionarem e fecharem o Congresso? É muito grave que o braço armado do Estado esteja querendo participar do processo de apuração das eleições. Ao se posicionar em questões políticas internas, se tornam uma ameaça", disse Cortinhas.

Cortinhas ressalta ainda que, nesta eleição, as Forças Armadas estão diretamente envolvidas na candidatura à reeleição do presidente Jair Bolsonaro, que é ex-capitão do Exército e escolheu como candidato a vice-presidente o general da reserva Braga Netto. Na sua avaliação, é mais um motivo para que os militares não atuem na apuração dos votos.

"As Forças Armadas não são imparciais, não estão se comportando como uma força do Estado. Estão se comportando como um órgão político que tem interesse no resultado da eleição. E quem tem interesse para o resultado da eleição não pode participar do processo de apuração", defendeu o professor da UnB.

Apesar de criticarem o envolvimento das Forças Armadas, Rollo e Cortinhas veem baixo risco de isso gerar questionamentos sobre o resultado da eleição de outubro, caso os militares se limitem a checar os boletins das urnas divulgados publicamente pelo TSE.

Esses boletins têm justamente a finalidade de assegurar que os votos depositados na urna serão idênticos aos contabilizados no TSE, já que permitem que qualquer pessoa compare o boletim que é impresso ao final da votação em cada sessão eleitoral com os votos que foram transmitidos no sistema da Justiça Eleitoral. Isso impede que haja alguma fraude durante a transmissão ou contabilidade dos votos.

Referência no estudo da segurança das urnas eletrônicas, o professor Diego Aranha, que atualmente leciona no Departamento de Computação da Universidade de Aarhus (Dinamarca), também considera baixo o risco de questionamentos do resultado eleitoral a partir de eventual contagem dos militares com algumas centenas de boletins de urnas.

Como esses dados são públicos, nota Aranha, eventual contabilização das Forças Armadas poderá ser checada por terceiros.

"Não vejo risco porque terão que fazer isso em público, e vai ficar evidente que a interpretação é equivocada (caso distorçam os resultados)", destacou.

Ele ressalta, como também apontaram os observadores eleitorais internacionais, que eventual contabilização de votos a partir de uma amostra de 385 urnas não terá rigor científico para servir de referência para o resultado oficial.

"A amostra de 385 boletins serve no máximo para verificar a transmissão correta dos resultados, mas naturalmente não serve para totalização paralela (ser somada e comparada com o resultado oficial). Para isso, entendo que a amostra teria que ser muito mais cuidadosa e estratificada por estados, já que a diferença entre candidatos muda muito de uma região para outra", explicou por escrito à BBC News Brasil.

Mariana Sanches e Mariana Schreiber, da BBC News Brasil em Washington (EUA) e Brasília, em 13.09.22

 Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62877839

terça-feira, 6 de setembro de 2022

A ‘mamata’ como método

Bolsonaro entrega cargos aos apadrinhados do Centrão, como o ‘analista sensorial de cachaça’ indicado para a Funasa, responsável por ações de saneamento

Em um país onde 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e cerca de 100 milhões de brasileiros (45% da população) convivem com esgoto sanitário a céu aberto em pleno século 21, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), vinculada ao Ministério da Saúde, deveria ser administrada com mais seriedade. Trata-se de um órgão de importância capital para o desenvolvimento humano dos brasileiros, cuja missão precípua é justamente “promover a saúde pública e a inclusão social por meio de ações de saneamento e saúde ambiental”. Entretanto, no governo de Jair Bolsonaro, a Funasa foi reduzida à condição de mercadoria nesse degenerado contubérnio que o presidente da República estabeleceu com o Centrão em prol de sua permanência no cargo.

O Estadão revelou que mais da metade das superintendências da Funasa no País (em pelo menos 18 Estados), além de diretorias do órgão, está sob controle de apaniguados de parlamentares do Centrão. Muitos deles não têm qualificação profissional para ocupar os cargos. No caso mais estarrecedor, que seria anedótico, não fosse trágico para quem depende dos serviços da Funasa, a superintendência no Espírito Santo foi entregue ao dono de um restaurante self-service que afirma ser “especialista em análise sensorial de cachaça”. O currículo do superintendente Ayrton Silveira Júnior, pasme o leitor, assim é descrito no próprio portal da instituição.

O deputado Neucimar Fraga (PP-ES), padrinho da indicação do sommelier de cachaça para a chefia da Funasa em seu Estado, afirma categoricamente que toda a experiência do pupilo em administração de restaurantes, além de sua especialização em “boas práticas na fabricação da bebida”, contribui para que Ayrton Silveira Júnior realize um “bom trabalho” à frente da superintendência estadual do órgão. “Ele tem organizado a Funasa aqui, tem destravado projetos que estavam parados há muitos anos no Espírito Santo. O problema da Funasa aqui era de gestão”, justificou o parlamentar ao Estadão.

Outros indicados por parlamentares do PL, partido de Bolsonaro, do PP e do Republicanos, legendas que compõem o núcleo duro da atual conformação do Centrão, além do PSD, colonizam diretorias e superintendências da Funasa País afora, de olho num orçamento de quase R$ 3 bilhões. Em comum entre os apadrinhados, a incongruência de suas trajetórias profissionais em relação aos objetivos da Funasa e a proximidade deles com políticos que ocuparam o vácuo de poder deixado pela incompetência de Bolsonaro e por sua insensibilidade às aflições de tantos de seus governados.

Quando candidato em 2018, Bolsonaro prometera “acabar com a mamata” da ocupação política de Ministérios, empresas estatais, agências reguladoras e outros órgãos técnicos. Como presidente da República, ao contrário, Bolsonaro entregou nacos da administração a parlamentares famintos por orçamentos bilionários em troca de sua permanência no cargo, a despeito do rol de crimes de responsabilidade que cometeu – e segue cometendo impunemente. Nunca a debilidade moral, política e administrativa do chefe do Poder Executivo federal foi tão custosa para a Nação.

O aparelhamento da Funasa já seria escandaloso se fosse um caso isolado. Mas não é. Como a Hidra, o Centrão já se apoderou do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Bilhões de reais têm sido desviados por meio de emendas do “orçamento secreto” destinadas a esses órgãos.

Tal é o desassombro dos cupins da República que mais parece que o País não é regido por uma Constituição que impõe a impessoalidade e a transparência como princípios da administração pública. É como se o Brasil não dispusesse de leis que demandam lisura e competência na gestão do Estado. Onde estão a Controladoria-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República?

Eis o retrato de um governo liderado por um presidente que só é capaz de enxergar as necessidades de seus governados sob a ótica de seus interesses particulares mais imediatos. A “mamata” não só não acabou, como se tornou um método de governo.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 06.09.22

Francis Fukuyama: “Os neoliberais foram longe demais. Agora são necessárias mais políticas social-democratas”

O cientista político, que no início dos anos 90 governava o "fim da história", volta com um livro onde identifica as ameaças ao liberalismo clássico: neoliberalismo descontrolado e muita política identitária

Francis Fukuyama, esta segunda-feira na Fundação Rafael del Pino, em Madrid. (Foto: Alvaro Garcia)

Francis Fukuyama (Chicago, 69 anos) responde com rapidez e precisão, com precisão cirúrgica, enquanto estreita os olhos: vê-se que ele pensou muito no que diz. No início dos anos 1990, ganhou fama mundial por governar o “ fim da história ” após a queda da União Soviética e o fim da Guerra Fria. A democracia liberal havia triunfado. Em seu novo livro, Liberalism and its Disenchanted (Deusto), ele detecta novas ameaças ao liberalismo clássico que defende. Por um lado, o neoliberalismo equivocado, que demonizou o Estado, acabou com a solidariedade e tudo o que restava da pulsão individual, gerando uma desigualdade insustentável. Por outro lado, as correntes identitárias descontroladas, tanto a conspiração nacionalistacomo a esquerda muito focada nas minorias. Fukuyama recebe na sede de Madrid da Fundação Rafael del Pino, onde esta segunda-feira deu uma conferência.

Fukuyama: liberalismo sim, mas sem demonizar o Estado

Perguntar. Quando falamos de liberalismo, associamo-lo ao centro-direita, embora se pensarmos nos tempos da Revolução Francesa, parece estar no germe da esquerda.

R. Uso uma definição muito ampla de liberalismo que não está relacionada à ideologia. É verdade que na Europa o liberalismo está associado à centro-direita. Nos Estados Unidos é associado à esquerda. Minha definição diz que é uma doutrina que protege os direitos individuais e limita o poder do Estado. Pode ser da direita ou da esquerda, o que importa é o estado de direito como fundamento de uma sociedade.

P. Como o liberalismo levou a esse neoliberalismo que você critica?

R. Na década de 1970, havia um excesso de regulamentação estatal. Aparecem políticos como Ronald Reagan ou Margaret Thatcher, que tentaram limitar algumas dessas regulações e foram apoiados por economistas muito proeminentes como Milton Friedman , com argumentos mais sofisticados para limitar o Estado. O problema é que eles foram longe demais. Eles tentaram minar todos os tipos de ação do Estado. Mesmo os necessários, como regular o sistema financeiro. O resultado foi uma globalização que aumentou a desigualdade e a instabilidade no sistema financeiro global. E isso provocou uma resposta populista, tanto da direita quanto da esquerda.

P. Às vezes você ouve, de posições liberais, uma justificativa para a desigualdade econômica. Até que ponto essa desigualdade se justifica?

R. Acredito que deve haver sempre um equilíbrio entre crescimento econômico estável e proteção social para os cidadãos. Se você tem um Estado que busca redistribuir renda de forma geral, inevitavelmente reduzirá o incentivo das empresas que assumem mais risco. É por isso que algumas economias ficam presas ao não permitir esse tipo de economia livre.

P. Mas agora a desigualdade está começando a ser problemática .

R. Não pode ser generalizado. A América Latina experimentou o mais alto grau de desigualdade visto no mundo. Muitas das políticas que vemos na Argentina ou na Venezuela são o resultado dessa desigualdade, que leva a resultados econômicos desastrosos e políticas muito ruins, uma grande polarização entre a esquerda populista e a direita ultraconservadora. Em outras partes do mundo outras coisas acontecem. Na Europa, na Escandinávia, existe há muito tempo a social-democracia, que se encarregou de redistribuir a riqueza, o que impediu a polarização.

P. Precisamente, seu livro dá a impressão de abordar a social-democracia.

R. Nunca me opus à social-democracia . Depende muito do momento histórico. Na década de 1960, as sociedades social-democratas sofriam com inflação alta e crescimento muito lento, e naquele momento acho que era importante conter um pouco disso. No período em que vivemos agora, precisamos de mais democracia social. Principalmente nos EUA, onde nem temos saúde universal, sendo um país democrático e rico.

Nunca me opus à social-democracia. Depende muito do momento histórico

P. Na Espanha, quando as pessoas falam sobre política de identidade, como o feminismo ou o movimento LGTBI, às vezes é criticado como coletivista. Em seu livro parecem fincar suas raízes no liberalismo clássico, na afirmação dos indivíduos.

R. A política de identidade surge porque certos grupos são discriminados e é perfeitamente legítimo usar a identidade como meio de lutar contra essa discriminação. Mas torna-se problemático quando a identidade se torna primordial, quando você pode julgar uma pessoa por sua participação em algum grupo e não por quem ela é como indivíduo. Existe uma versão aceitável da política de identidade, mas tem um lado muito controverso.

P. Às vezes, esses grupos são acusados ​​de promover uma cultura de cancelamento . Essa cultura existe?

R. Nos EUA existem algumas formas muito intolerantes de política progressista que não querem que visões alternativas sejam expressas, algo especialmente problemático nas universidades, que são lugares dedicados à liberdade de expressão.

P. Existem casos na Espanha, mas não está claro se merecem o nome de "cultura".

R. Bem, não é uma cultura geral. Nos EUA é provavelmente um fenômeno mais difundido do que em outros países, mas tem a ver com nossa história de desigualdade racial, que se tornou um padrão para outras demandas. Mas concordo que não está claro que é uma cultura como tal. É algo que acontece em algumas instituições, mídia, universidades, Hollywood, mas não é uma cultura enraizada na sociedade.



Francis Fukuyama, em determinado momento da entrevista na Fundação Rafael del Pino. ( Foto: ÁLVARO GARCIA)

P. Como a internet afetou a forma como falamos sobre política?

R. Acho que a internet tornou possível amplificar certas vozes em uma escala sem precedentes. Mas também foi capaz de silenciar os outros. Porque as redes sociais são o meio mais poderoso de crítica política e isso é problemático. Queremos que todas as vozes tenham um peso semelhante, mas não parece legítimo que uma empresa privada de tecnologia tenha esse poder.

As redes sociais são o meio mais poderoso de crítica política e isso é problemático

P. Vivemos uma crise de confiança causada pelas redes?

R. A confiança nas instituições está em declínio nos últimos 50 anos. Nos últimos tempos, esse declínio se acelerou: há forças antidemocráticas que querem destruir essa confiança. A polarização política é muitas vezes o resultado de uma tentativa deliberada de polarizar online. Há momentos em que a perda de confiança é bem merecida, como no caso da Igreja Católica e a falta de responsabilidade e hipocrisia de sua hierarquia.

P. O liberalismo defende a autonomia do indivíduo. Até que ponto as sociedades devem ser individualistas ?

R. Acredito que todas as sociedades devem ter valores sociais comuns. Uma linguagem comum, um conjunto de referências comuns, para poder interagir. Quando os indivíduos inventam seus próprios valores ou vivem em comunidades de bolhas, acho que é um excesso de individualismo. E essa tem sido a tendência nas sociedades liberais: o indivíduo foi promovido até perder o juízo.

P. Como pode ser moderado?

R. Acho que você tem que confiar no fato de que o ser humano é um ser social. Você tem que navegar entre o individualismo excessivo e um grau excessivo de conformidade social.

P. Até que ponto a liberdade individual , tão importante para os liberais, pode ser limitada?

R. Todas as sociedades liberais têm que manter suas próprias instituições, então quando surge um partido político que é antidemocrático ou antiliberal, você sabe que isso vai minar a liberdade de expressão. Uma sociedade liberal tem o direito de se defender. Na Guerra Fria havia muitos partidos comunistas que eram antiliberais, e havia muita resistência em deixá-los participar do sistema, porque havia o medo de que quando tomassem o poder não o deixassem. A sociedade liberal tem que se proteger das forças não liberais.

P. Existe o risco de ir para um mundo não liberal?

R. Existem duas ameaças. O mais grave vem do nacionalismo populista: Orbán, Erdogan ou Trump. Todas essas pessoas, eleitas democraticamente, usam seu poder para ameaçar as instituições democráticas. A outra vem da esquerda, e tem a ver, sobretudo, com o campo cultural.

A ameaça mais grave vem do nacionalismo populista: Orbán, Erdogan ou Trump.

P. O liberalismo e a democracia são sempre companheiros de viagem?

R. Eles são aliados e se apoiam, mas não precisam necessariamente existir ao mesmo tempo. Orbán quer uma democracia não liberal, com eleições, mas sem liberdade de imprensa ou crença, ou oposição livre. Há também sociedades liberais sem democracia, como Cingapura: há liberdade individual, mas não há eleições.

P. O que você acha do recém-falecido Mikhail Gorbachev ?

R. Deixa um legado muito misto. Ele não queria que a URSS desmoronasse, mas entre os comunistas ele tinha tendências muito liberais. Ele também pediu maior liberdade de expressão e isso acabou erodindo a União Soviética: quando eles podiam falar livremente, o que eles diziam em muitos lugares era que queriam que seu país fosse independente. Acho que sem Gorbachev esses países ainda estariam presos em uma ditadura soviética, então, historicamente, sou muito grato a ele.

P. Você falou então do famoso fim da história. Agora falamos mais sobre o fim do mundo .

R. Eu nunca disse que a democracia liberal ia triunfar em todos os lugares, nem que era o sistema que acabaria com todos os nossos problemas. Se você pegar algo como a mudança climática, especialmente gerada pelo crescimento econômico, não acho que a democracia liberal seja pior em gerenciá-la do que o governo autoritário, como às vezes se pensa. As democracias têm sido mais eficientes na redução das emissões. A economia chinesa, por exemplo, é baseada em combustíveis fósseis.

Eu nunca disse que a democracia liberal triunfaria em todos os lugares, nem que era o sistema que acabaria com todos os nossos problemas.

P. Como você vê o futuro da civilização?

R. Acho que estou otimista no sentido de que houve muito progresso histórico. E acho que vai continuar a acontecer no futuro. Acredito, por exemplo, que muitos dos problemas causados ​​pela tecnologia podem ser resolvidos pela própria tecnologia. Mas não sei o que vai acontecer. Também não acho que seja especialmente produtivo adotar uma visão pessimista. Se acharmos que tudo vai dar errado, não faremos nenhum esforço para corrigir o que não vai bem.

Sergio C. Fanjul (Oviedo, 1980), o entrevistador, é graduado em Astrofísica e mestre em Jornalismo. Tem vários livros publicados e prêmios como o Paco Rabal de Jornalismo Cultural ou o Pablo García Baena de Poesia. É professor de redação, roteirista de TV, locutor de rádio em Poesía o Barbarie e performer poético. Desde 2009, assina colunas e artigos no El País. Publicado originalmente em 06.09.22

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Simone Tebet comemora alta em pesquisas e afirma: ‘Voto útil somos nós’

Em agenda de campanha nesta segunda-feira em São Paulo, a candidata do MDB à Presidência comemorou a alta dos seus índices de intenção de voto em pesquisa e fez uma defesa da chamada terceira via

Simone Tebet em agenda de campanha nesta segunda-feira, 5 de setembro de 2022. Foto: Marcela Villar/Estadão

A candidata à Presidência da República Simone Tebet (MDB) comemorou o aumento nas pesquisas de intenção de voto divulgadas neste começo de semana e convidou os eleitores que não querem a reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL) a votar em candidatos da “terceira via”. Ela comentou os levantamentos eleitorais em visita a uma cooperativa de reciclagem de materiais na manhã desta segunda-feira, 5, na capital paulista.

“O voto útil somos nós. Aqueles que não querem a reeleição do presidente Bolsonaro já podem apostar na terceira via, porque as pesquisas já mostram que todos nós ganhamos, no segundo turno, do atual presidente da República”, disse Simone.

A candidata se referiu à pesquisa do Instituto FSB encomendada pelo banco BTG Pactual, divulgada nesta segunda, que apontou recuo de todos os candidatos e crescimento de Simone. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) continua na liderança, mas recuou de 43% para 42%; Jair Bolsonaro oscilou dois pontos para baixo (de 36% para 34%); e, Ciro Gomes (PDT), de 9% para 8%. Já a senadora foi de 4% para 6%. Em um eventual segundo turno, todos esses candidatos venceriam o atual chefe do Executivo, de acordo com o levantamento.

“Fico feliz de a população brasileira perceber que há espaço e uma saída dessa polarização”, comemora.

A candidata também disse que sua candidatura fortalece a democracia. “A nossa candidatura não é só eleitoral, mas também política, de fortalecimento da democracia. Ninguém vai ousar discutir resultado das urnas. Vamos aceitar defendendo uma campanha limpa, sem fake news, sem ataques. Serei a primeira a defender qualquer um que for atacado, pronta a fazer o bom combate e aí a vontade da população é o eleitor que vai decidir no dia 2 de outubro”, defende.

Simone Tebet ainda acredita que a polarização política favorece a criação de “crises artificiais”. “Se não se há planejamento, não se aplica de forma correta o orçamento no Brasil, porque não há plano de governo. Os dois que se apresentam pontuando nas pesquisas não falam o que vão fazer nos próximos quatro anos”, crítica a candidata.

Redução de encargos para cooperativas

Simone Tebet também falou sobre proposta de redução dos encargos previdenciários para cooperativas, se eleita. O pedido foi feito por funcionários e pelo presidente da Cooperativa de Coleta Seletiva da Capela do Socorro (Coopercaps), Telines Basílio. É a principal reivindicação da categoria.

“Estamos estudando a possibilidade de diminuir a questão do que hoje eles pagam 20% em relação ao INSS, como encargos previdenciários, enquanto o setor da pesca, por exemplo, é 2,5%. Estamos vendo como podemos reduzir”, afirma Tebet, durante visita à Coopercaps, na manhã desta segunda-feira, 5.

Ela também planeja apoiar o segmento com linhas de financiamento do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a construção de aterros sanitários e construção de novas cooperativas. “Esse tipo de atividade de negócio faz bem para o meio ambiente, garante cidadania para essa massa de trabalhadores que já algo em torno de quase um milhão de pessoas”, acrescenta.

A candidata pretende ainda criar uma campanha publicitária dentro das escolas voltada para educação ambiental. “Não podemos esquecer que tudo começa do berço. Precisamos ensinar nossas crianças e nossos jovens a importância de reciclar, de cuidar do meio ambiente, começando dentro de casa, através do lixo”, completa.

Secretaria voltada à Amazônia

Na fala aos jornalistas na manhã desta segunda, a senadora também voltou a falar sobre propostas na área ambiental e defendeu a criação de uma secretaria executiva voltada a aplicar políticas públicas na Amazônia. “Ela vai ter o papel decisivo de cuidar dos biomas, junto com o Ministério das Relações Exteriores, fazer essa dobradinha para mostrar para o mundo que nós somos sustentável, com os órgãos de fiscalização e controle atuando”, afirmou.

O objetivo dessa nova pasta da seria também atrair investimentos internacionais para o País, para que “possam vir trazer os dólares que estão faltando no Brasil para que a gente possa aquecer a economia, fazer o Brasil voltar a crescer, gerar emprego e renda para população brasileira”.

A candidata escolheu a data em que se comemora o Dia da Amazônia para reforçar seu compromisso com o meio ambiente. “Fizemos questão de vir aqui para mostrar que cuidar do meio ambiente é também garantir desenvolvimento sustentável com qualidade de vida da renda e salário, não só para os catadores, mas pra toda uma cadeia de produção.”

Marcela Villar para O Estado de S. Paulo, em 05.09.22. Atualizado às 16h43

Fachin suspende decretos de Bolsonaro que ampliam acesso a armas e aponta risco de violência política nas eleições

Ministro do STF disse que início da campanha eleitoral 'exaspera o risco de violência política'

O ministro Edson Fachin citou risco de violência política no período eleitoral para suspender decretos do governo Bolsonaro. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu nesta segunda-feira, 5, trechos de decretos editados pelo governo federal com flexibilizações para o porte de armas.

A decisão liminar diz que o início da campanha eleitoral “exaspera o risco de violência política”. “O risco de violência política torna de extrema e excepcional urgência a necessidade de se conceder o provimento cautelar”, escreveu o ministro.

Os processos que contestam a política armamentista do presidente Jair Bolsonaro (PL) já haviam sido colocados em julgamento no plenário virtual do STF em março do ano passado. A votação foi suspensa em três ocasiões diferentes por pedidos de vista (mais tempo para análise) – o mais recente feito pelo ministro Kassio Nunes Marques. Sem previsão para a retomada do julgamento, Fachin apontou “perigo na demora” e decidiu despachar monocraticamente.

“Passado mais de um ano e à luz dos recentes e lamentáveis episódios de violência política, cumpre conceder a cautelar a fim de resguardar o próprio objeto de deliberação desta Corte”, justificou o ministro.

O assunto foi levado ao tribunal pelo PSB e pelo PT. Os partidos afirmam que os decretos são inconstitucionais e representam “retrocesso” em direitos fundamentais, na medida em que facilitam de forma “desmedida” o acesso a armas e munições pelos cidadãos comuns. Argumentam ainda que, embora pretendam disciplinar o Estatuto do Desarmamento, os decretos ferem suas diretrizes e violam o princípio da separação dos Poderes e o regime democrático, uma vez que o Planalto teria assumido a função do Legislativo ao decidir sobre política pública envolvendo porte e posse de armas de fogo.

Em manifestação enviada ao Supremo, o Planalto explicou que as mudanças foram pensadas para “desburocratizar” procedimentos. O governo ainda argumentou que, ao sair vencedor das últimas eleições, Bolsonaro ganhou “legitimidade popular” para “concretizar, nos limites da lei, promessas eleitorais”. O Planalto disse também que a “insuficiência do aparelho estatal para blindar o cidadão, por 24 horas, em todo o território nacional”, justifica mecanismos de legítima defesa.

Em sua decisão, Fachin disse que a Constituição condena a “privatização dos meios de violência legítima”. Ele disse que a União tem o dever de “mitigar os riscos de aumento da violência” e que esse controle deve ser exercido também sobre os agentes privados. “O dever de proteção à vida não se esgota, apenas, no controle interno exercido sobre os agentes do Estado”, observou.

O ministro decidiu que a posse de armas de fogo só pode ser autorizada para quem demonstrar necessidade concreta, por razões profissionais ou pessoais. A decisão prevê ainda que a aquisição de armas de uso restrito só pode ser autorizada no “interesse da própria segurança pública ou da defesa nacional”, não em razão do interesse pessoal. A comercialização de munições também fica limitada.

Rayssa Motta para O Estado de S. Paulo, em 05.09.22. Atualizado às 14h11.