sábado, 20 de maio de 2023

Adeus, reforma!

Com uma estrutura partidária tornada em tragicomédia e o poder parlamentar real exercido pelo Centrão, alguém acredita na instauração da paz e da ordem no País?

“O sistema presidencial de governo só funciona nos Estados Unidos. Em outros países, ele degenera em presidencialismo, ou seja, em ditadura” (Maurice Duverger)

Tivesse tido a oportunidade de acompanhar a eleição norte-americana de 2016 e os desmandos da era Trump, o mestre francês Maurice Duverger por certo teria sido mais sóbrio em sua avaliação do sistema de governo norte-americano.

Aqui, precisamos retroceder ao pleito presidencial de 1960, que deu a vitória ao ex-governador de São Paulo Jânio Quadros, lançado pela minúscula sigla do Partido Trabalhista Nacional (PTN). Consta que Jânio Quadros era um bom dicionarista, mas como político foi um dos mais grotescos espécimes do populismo latino-americano. Espargindo caspa pelos ombros e caprichando em seus dons teatrais, não teve dificuldade em personificar um líder gaiato que o tosco Brasil daqueles tempos acolheria com entusiasmo. Do lado oposto, a União Democrática Nacional (UDN), consciente de sua fragilidade diante da mística getulista – criptografada pela aliança PSD-PTB (Partido Social-Democrático/Partido Trabalhista Brasileiro) –, bandeou-se para o populismo janista. Acrescentemos que a Constituição da época não exigia que os candidatos a presidente e a vice pertencessem a um mesmo partido, e assim Jango, percebendo que Jânio venceria o Marechal Lott por larga margem, em vez de encarnar o evangelho segundo Getúlio, aliou-se por baixo do pano ao Messias da Vila Maria.

O resultado da aliança Jânio-Jango foi o previsível desastre. Tendo cumprido somente oito meses de governo, Jânio Quadros, obviamente tentando efetuar um golpe plebiscitário, enviou ao Congresso Nacional uma carta-renúncia, na intenção de que o povo o levaria nos ombros de volta ao Planalto. Agindo com sabedoria, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, sentenciou: “Uma carta de renúncia não é suscetível de votação. A renúncia do presidente da República é um ato de vontade e não depende do Congresso. Está recebida a carta! Arquive-se!”. Neste momento, Jango, em viagem oficial à China, foi notificado por uma junta militar que tomara o poder de que seria preso assim que pusesse o pé no território nacional.

Decorridos 61 anos, limito-me a lembrar que a possibilidade de uma guerra civil logo se delineou, em razão da resistência do Rio Grande do Sul, hipótese contornada por um improvisado “parlamentarismo” (um típico semipresidencialismo) que radicalizou o País e desembocou diretamente no golpe militar de 1964.

O curioso dessa história é que, na prática, tivemos vários ensaios de “semipresidencialismo” antes mesmo de ele surgir na França – sem maiores consequências até a tentativa de golpe contra o presidente João Goulart, em 1961, que forçou a formalização do sistema sob a falaciosa denominação de parlamentarismo. Até então, uma figura informal semelhante à de um primeiro-ministro já fora investida, com poderes variáveis, ora pelo ministro da Justiça, ora pelo da Fazenda. Durante os governos militares, tivemos no papel o general Golbery do Couto e Silva, Petrônio Portella e o ministro Leitão de Abreu, este chefiando a Casa Civil. Sem esquecer, é claro, que no início dos anos 90 o presidente Itamar Franco retomou o modelo do “semi-informal”, que ganhou seriedade não por suas qualidades intrínsecas, mas porque a função foi entregue ao senador Fernando Henrique Cardoso.

É lógico que a experiência de 1961-1963 nada tinha de parlamentarismo; era um emaranhado de contradições. Em tese, é lícito cogitar que a instauração (ou não) de um sistema parlamentarista mediante plebiscito seria um caminho consistente. E, de fato, chegou a ser voz corrente que o Ato Adicional do referido emaranhado estipulara a realização de um plebiscito cinco anos após o estabelecimento do “parlamentarismo”. Quanto a esse ponto, não há dúvida de que alguém andou vendendo gato por lebre. (A seguir, com grifos meus.) O artigo 22 das Disposições Transitórias apenas autorizava o Legislativo a fazer o que é de sua obrigação: “Poder-se-á complementar a organização do sistema parlamentar de governo ora instituído, mediante leis votadas, nas duas Casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta de seus membros”. À vacuidade do artigo 22, acrescentava-se no artigo 25 uma pérola de engenharia constitucional: “Art. 25. A lei votada nos termos do artigo 22 poderá dispor sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do termo do atual período presidencial”.

Nos dias de hoje, com uma estrutura partidária transformada em tragicomédia e o poder parlamentar real exercido por aquela chusma denominada Centrão, alguém acredita na instauração da paz e da ordem no País?

O presidente Charles De Gaulle não disse, mas poderia com plena razão dizer que o Brasil não é um país sério.

Bolívar Lamounier, o autor deste artigo. é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.05.23

Deltan: ‘Como explicar para a sociedade que o Lula está elegível e o Deltan inelegível?’

Parlamentar cassado afirma que decisão do TSE foi uma fraude e teme pelos riscos à democracia no País

Deltan Dallagnol teve o mandato cassado pelo TSE na terça-feira, 16. Foto: Bruno Spada / Câmara dos Deputados

O deputado cassado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) afirmou em entrevista exclusiva ao Estadão que vai recorrer até o fim para manter seu mandato na Câmara. Nesta semana, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o parlamentar paranaense alegando que ele violou a lei da Ficha Limpa. Deltan disse que a decisão da Corte foi fraudada. “Eu roubei, me corrompi, abusei, torturei? Não”.

Para ele, a preservação de seu mandato depende de uma decisão política do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL, a quem Deltan ainda pretende recorrer para assegurar que a decisão do TSE não seja aplicada automaticamente. “O maior medo que eu tenho é a perda da fé das pessoas na democracia”.

A votação que cassou o mandato de Dallagnol, como mostrou o Estadão, durou um minuto e seis segundos, se considerado o período entre o fim do voto do ministro Benedito Gonçalves - relator do caso - e a proclamação do resultado. O deputado perdeu o cargo por unanimidade, com base na Lei da Ficha Limpa, mas ainda cabe recurso.

“Hoje sou eu, amanhã são outros parlamentares”, afirmou.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista do ex-procurador da Lava Jato e deputado cassado:

O TSE errou ao cassá-lo?

Com certeza o TSE errou. O TSE inventou uma inelegibilidade que não existe na lei. A legislação é objetiva e clara. É inelegível o membro do Ministério Público que sai na pendência de processo disciplinar. Isso não existia no meu caso, não existia nenhum processo disciplinar. A Constituição orienta que restrições de direitos fundamentais não podem ser interpretadas de modo extensivo.

Houve um abuso na interpretação da Lei da Ficha Limpa?

O TSE criou uma hipótese, um caso de inelegibilidade imaginário, que não está previsto em lei, em cima de quatro suposições. A primeira é de que eu teria saído do Ministério Público por conta de um risco de inelegibilidade. A segunda é de que isso aconteceu porque existiam reclamações disciplinares que poderiam se converter em PAD (Processo Administrativo Disciplinar). A terceira é de que PADs poderiam gerar condenação. A quarta é que alguma condenação poderia ser a pena de demissão. Ou seja, é como se eu fosse punido por um crime que eu não cometi, mas poderia cometer no futuro. Ou ainda pior, é como se eu fosse punido por uma possibilidade de que, no futuro, eu fosse acusado. 

Como explicar para a sociedade brasileira que Lula, condenado em três instâncias por corrupção, está elegível e com mandato e que Deltan, que não foi investigado, acusado e processado criminalmente, muito menos acusado administrativamente, porque não existia PAD, se tornou inelegível? Como explicar essa absurda contradição? O TSE alegou que eu fraudei a lei, mas está muito claro que quem fraudou a lei foi o TSE. Certamente foi (um julgamento) político.

O ministro Benedito Gonçalves afirma que o senhor teve o “intuito” de manobrar a lei.

O que eles fizeram foi um exercício de leitura de mente e que, por si só, não era suficiente. Teve que ser combinado com uma futurologia. Eles precisaram, primeiro, supor uma intenção e somar a três possíveis desdobramentos cumulativos. Isso não é possível porque não existe essa hipótese prevista na lei. Hipóteses de inelegibilidade não podem ser estendidas, segundo entendimento pacífico das Cortes Superiores, não podem ser alargadas pela interpretação ou pelo julgador.

A Lava Jato, comandada pelo senhor, acusou Lula de ter uma “real intenção” de adquirir o triplex no Guarujá. Por que no caso do presidente a intenção pode ser levada em consideração e, no seu caso, não?

As duas situações são completamente diferentes. Lula foi acusado de praticar um crime e condenado por corrupção e lavagem de dinheiro. Quando você avalia o cometimento de crime por alguém, você avalia se a pessoa agiu com consciência e vontade, o dolo. Algumas pessoas vão traduzir como intenção. A minha situação é completamente diferente. Eu não pratiquei um crime. Nenhuma conduta que eu fiz está prevista na lei como inelegibilidade. É totalmente diferente. O comportamento dele (Lula) se enquadra perfeitamente num crime descrito na lei. No meu caso, o meu comportamento não se enquadra em nenhuma inelegibilidade descrita na lei. Eles (TSE) tiveram que estender a lei. É como se eu estendesse o crime de corrupção para situações que não são corrupção para enquadrar alguém. Essa decisão do TSE cria uma punição para onde o Direito não prevê. Os meus advogados estavam dizendo: “é impossível deixarem inelegível dentro do Direito. Você só vai se tornar inelegível se for uma decisão muito política”. Todo mundo me dizia isso, eu não acreditava que isso pudesse acontecer.

O senhor foi pego de surpresa?

Eu fiquei absolutamente surpreso. Não só pela decisão, mas por ela ter acontecido em 66 segundos e contrariando todas as posições unânimes dos membros do Ministério Público e dos julgadores que tinham atuado antes nesse caso.

Quando o senhor pediu exoneração, havia sindicancias e reclamações que poderiam virar PAD.

É uma espécie de procedimento preliminar que é, simplesmente, uma capa dada a um pedido feito contra mim no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Todas as semanas, nós sofríamos reclamações disciplinares de pessoas e partidos investigados na Lava Jato. Nós respondemos a dezenas, a centenas de reclamações disciplinares. Agora, elas só são convertidas em processo disciplinar quando existe viabilidade e fundamento. Quantos foram convertidos? Dois. Eu roubei, me corrompi, abusei, torturei? Não. Fui punido por críticas ao Supremo Tribunal Federal e ao (senador) Renan Calheiros. Sem excesso de linguagem, sem ofensa. Dentro dos limites da crítica, da democracia.

O senhor pediu exoneração para evitar que esses procedimentos virassem PAD e impedissem sua candidatura?

Não. Essas reclamações já estavam pendentes há meses. Eram remanescentes de mais de 50 reclamações que foram arquivadas paulatinamente no CNMP. Algumas ficaram, por exemplo, porque eram baseadas em notícias do The Intercept. Se alguma pudesse conduzir à minha demissão, a minha exoneração não poderia ter ocorrido. Existe uma regra que diz que quando um servidor responde a um procedimento que pode gerar sua demissão, ele não pode se exonerar. Eu pedi minha exoneração depois de receber um convite do (ex-senador) Álvaro Dias para lutar por mudanças no Brasil ao lado de Sérgio Moro que voltava ao Brasil para ser candidato à Presidência da República. A minha entrada na política dependia de uma série de negociações com os partidos. Conversei com o Novo, o Republicanos, o Podemos e o União Brasil. Isso não podia ser feito enquanto eu estava no Ministério Público, porque existe uma vedação de atividade político-partidária. Eu saí para poder manter conversas partidárias e isso precisava acontecer antes do prazo de filiação que era 6 meses antes da eleição. Além disso, existia uma narrativa de que promotores ou procuradores se afastavam da carreira muito perto das eleições quando se deveria existir uma quarentena maior. A tudo isso, se somou a reflexão que eu fiz com a minha família em que a gente entendeu que depois de toda a reação do sistema corrupto, eu não conseguiria mais lutar contra a corrupção dentro do Ministério Público.

Vai recorrer ao Supremo?

Sim.

Nesta semana?

Essa questão está sendo definida pelos nossos advogados. Estão estudando as possibilidades, redigindo as peças. Nós vamos recorrer até o fim, vamos lutar até o fim. Não se trata de Deltan, se trata de três causas: a defesa da democracia, do voto e da soberania do povo. A segunda é conter a juristocracia, (que é) o avanço judicial sem base na lei nas competências de outros poderes ou sobre as liberdades. A terceira é garantir que o combate à corrupção não vai ser enterrado no Brasil.

O senhor agora está sofrendo com uma interpretação abrangente da lei, que era algo muito criticado nos métodos da Lava Jato?

Na Lava Jato, as críticas sobre supostos excessos eram que as pessoas discordavam sobre onde exatamente estava a linha da lei. Alguns achavam que estava um pouco para cá, outros achavam que estava um pouco para lá. Nessa discussão, sujeita à interpretação sobre onde está a linha da lei, algumas pessoas falaram: “olha, eles pisaram na linha, eles foram um pouco para lá”. Naturalmente, os advogados sustentavam isso. Contudo, neste tipo de situação, de abuso de Direito, como definiu (o jurista) Miguel Reale (Jr.), de risco à democracia, como disse a Transparência Internacional, de decisão combinada, como disse (o ex-ministro do STF) Marco Aurélio (Mello), você não questiona se passou um pouco do limite da lei. A lei ficou lá atrás, ficou lá longe. Está completamente fora da lei.

O senhor volta a trabalhar na Câmara nesta semana?

A partir da decisão (do TSE), da comunicação que foi feita ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral do Paraná) e à Câmara, o procedimento será da minha notificação. Em seguida, terei prazo de cinco dias para apresentar uma defesa sobre aspectos formais. Isso vai para o corregedor da Câmara, que vai apresentar um parecer. Esse documento será submetido à Mesa (Diretora). Estima-se que isso aconteça nos próximos 10, 15 dias. Contudo, a implementação da decisão pode ser imediata ou pode demorar meses ou anos. Isso depende muito da vontade e da visão política, especialmente, do presidente (da Casa).

O presidente da Câmara, Arthur Lira, não defendeu o senhor publicamente nem se manifestou contrariamente à decisão do TSE.

Estou buscando marcar um encontro com ele para eu apresentar as razões pelas quais eu entendo que, não só é uma decisão injusta, mas que não deve ser executada de imediato pela Câmara dos Deputados antes de um posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Especialmente, quando você está tratando de algo tão sagrado da democracia que é a soberania popular e o voto de 345 mil pessoas. É preciso que o Parlamento defenda os parlamentares, defenda a soberania do voto.

Se a Mesa Diretora cumprir a decisão e o senhor tiver que deixar o mandato, o que fará daqui para frente?

Eu não estou traçando um plano B agora. Muitas pessoas vieram expressar sua solidariedade e abrir portas, trazer possibilidades. Mas a única possibilidade que eu vejo hoje é lutar com unhas e dentes para honrar a confiança das 345 mil pessoas que votaram em mim. O TSE passa o ano inteiro das eleições falando sobre o valor e a importância do voto. No ano passado, em especial, defendeu firmemente a segurança das urnas eletrônicas. Contudo, agora, fora da lei, o que eles fazem é anular 345 mil votos. O maior medo que eu tenho é a perda da fé das pessoas na democracia.

O TSE vai cassar o senador Moro?

Seria um exercício de especulação. O que eu vejo sendo pavimentado é um caminho para cassação não só de Sérgio Moro, mas de vários outros parlamentares. O que se fez esta semana foi ultrapassar as linhas para cassar alguém que é visto como um adversário político do atual governo e alguém contra quem o atual presidente queria vingança. Hoje sou eu, amanhã são outros parlamentares.

O senhor conversou com Moro?

Sim. Ele expressou solidariedade, irresignação e se colocou à disposição para ajudar e apoiar a mim e à minha família de modo pessoal e profissional naquilo que a gente precisasse. Respondi que, neste momento, nós estamos focados em construir uma solução para o mandato possa ser preservado. Ele se colocou à disposição para ajudar.

Entrevista concedida a Julia Affonso para O Estado de S. Paulo. Pubicada originalmente em 20.05.23, edição online, atualizada às 16h32

Moro culpa Lula e PT por cassação de Deltan e diz que TSE leva insegurança ao Congresso

Senador e ex-ministro de Bolsonaro afirma que tribunal fez interpretação incorreta da Lei da Ficha Limpa

O senador Sergio Moro durante entrevista em seu gabinete no Senado - Pedro Ladeira-28.fev.23/Folhapress

Ex-juiz e ex-ministro da Justiça, o senador Sergio Moro (União Brasil-PR) culpa o governo do presidente Lula (PT) pela decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que cassou o mandato do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR). O PT moveu a ação contra o ex-coordenador da Lava Jato.

"Eu respeito os tribunais, o TSE, os ministros, o entendimento deles e isso tem que ser discutido nos meios recursais próprios. Agora, existe um contexto que a gente não pode ignorar, que é um contexto de perseguição à oposição", afirmou o senador em entrevista à Folha.

Para Moro, os ministros da corte fizeram uma interpretação incorreta da Lei da Ficha Limpa. Além de divergir da decisão, ele criticou a postura de aliados de Lula.

"Não tem motivo para comemorar. O governo tem insistido na polarização como estratégia política, que é a mesma estratégia que se criticava no governo anterior. Então o que mudou? Mudou apenas o chicote de mão? Ou a gente vai trabalhar realmente para construir um país que é para todo mundo e vamos respeitar as divergências políticas?", questionou.

Apesar da decisão do TSE contra Deltan, o ex-ministro declarou estar tranquilo em relação ao próprio mandato e lembrou que, no fim do ano passado, a corte, por unanimidade, manteve a validade de sua candidatura.

Qual sua avaliação sobre a decisão do TSE? 

Eu lamento a decisão. Eu divirjo dela respeitosamente. É uma pena. Eu acho que perde o Brasil e perde a política, mas espero que o próprio TSE ou STF possam eventualmente rever a decisão.

No fundo, eu coloco a culpa no governo, porque o PT e o governo vêm construindo esse clima no Brasil de continuidade da polarização. Então, o tribunal aplicou a lei, acho que fez uma interpretação incorreta da lei, não a melhor. Mas, no fundo, é esse contexto de cassação, de ameaça, de censura, isso não faz bem para o país.

A ação contra Deltan foi movida pelo PT, mas a decisão foi tomada por sete juízes, sendo que três foram indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Eu respeito os tribunais, o TSE, os ministros, o entendimento deles e isso tem que ser discutido nos meios recursais próprios. Agora, existe um contexto que a gente não pode ignorar, que é um contexto de perseguição à oposição. Em qualquer governo, há as pessoas que apoiam o governo e tem a oposição. Temos que discutir projetos, mas o grande problema é que o governo e o Lula, em particular, têm contribuído com discurso que não pacifica o país.

O sr. acredita que o PT e aliados do governo articularam a favor dessa decisão para cassar o Deltan? 

Eu não posso comentar sobre fatos que eu não conheço. Eu vi a decisão. E esse clima provocado pelo governo Lula que favorece a perseguição da oposição dificulta até que uma decisão como essa, que é controvertida, seja bem acolhida.

Deltan disse que os corruptos estão em festa com a decisão do TSE, inclusive o ministro Gilmar Mendes, do STF, e o deputado Aécio Neves (PSDB). O sr. concorda com essa declaração? 

O que eu vi foram manifestações de agentes políticos, de pessoas comemorando a cassação do mandato. Não vi nenhum posicionamento do ministro Gilmar Mendes a esse respeito. Eu vi, sim, alguns políticos comemorando. Falta um pouco de humanidade. Podem não gostar do deputado, mas o deputado sofreu uma cassação de mandato, frustrando aí 344 mil eleitores. Não tem motivo para comemorar.

O governo tem insistido na polarização como estratégia política, que é a mesma estratégia que se criticava no governo anterior. Então o que mudou? Mudou apenas o chicote de mão? Ou a gente vai trabalhar realmente para construir um país que é para todo mundo e vamos respeitar as divergências políticas?

Deltan Dallagnol concede entrevista no Salão Verde da Câmara para falar da cassação do mandato - Pedro Ladeira-17.mai.23/Folhapress

O sr. diz que houve uma inovação na decisão do TSE. Se essa posição for mantida, qual deve ser o efeito disso? 

Pode criar um precedente para os mandatos dos parlamentares diante do Conselho de Ética. Hoje, objetivamente, a gente tem que, se um parlamentar renunciar durante um processo aberto no Conselho de Ética, ele é alcançado pela Lei da Ficha Limpa. Como é que vai ficar agora? Se ele renunciar numa perspectiva de ter um processo, ele fica inelegível? Gera insegurança, porque são situações similares.

Eu respeito a decisão do TSE, mas divirjo respeitosamente, gera insegurança. Se isso for aplicado, como é que fica no Senado e na Câmara? Qualquer parlamentar que ficar sujeito amanhã a um processo no Conselho, se renuncia antes, ele está inelegível? Não me parece que é a melhor interpretação.

Acha que haverá pressão ou necessidade de mudança na Lei da Ficha Limpa? 

Não creio que seja o caso de rever a Lei da Ficha Limpa. O que existe foi uma interpretação num caso específico. Eu acho que é muito prematuro para se falar nisso [revisão da lei].

Adversários e críticos dizem que o sr. também contribuiu para esse clima de polarização. De forma nenhuma eu vejo dessa forma. Quem foi processado na Lava Jato recebeu suborno ou pagou o suborno. São decisões que foram inclusive mantidas pelos tribunais recursais da 4ª região, foram mantidas pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça]. O que houve depois foi uma revisão, uma revanche contra esse combate à corrupção que eu lamento, mas eu nunca tratei essas questões do ponto de vista pessoal.

Jamais fiz qualquer manifestação minha comemorando, por exemplo, um infortúnio de alguém na época da Lava Jato. O que existiu ali, podem dizer o que quiserem, foi a aplicação da lei. O grande problema é que esse não é um assunto do dia. Nos meus discursos do Senado, eu não falei de tríplex, eu não falei de sítio em Atibaia. A gente está focado no presente e no futuro. Esse tem que ser o foco do governo, e não o revisionismo do passado.

O sr. se sente, de alguma maneira, ameaçado com esse entendimento do TSE diante de ações que são movidas contra sua eleição?

Estou muito tranquilo. O direito e os fatos estão a meu favor. Existem duas ações no TRE [Tribunal Regional Eleitoral] do Paraná, ao meu ver, absolutamente improcedentes [tratam de acusação de caixa 2 e de abuso de poder econômico]. E o TSE, em dezembro do ano passado, por decisão unânime, manteve minha candidatura.

O sr. acredita que eventual indicação de Cristiano Zanin para o Supremo seria aprovada no Senado? 

Qual seria a sua postura? Eu só vou me manifestar quando vier a indicação. O que eu posso apenas adiantar é que qualquer que seja o indicado o Senado precisa cumprir o seu papel de fazer uma sabatina rigorosa, sem questões pessoais envolvidas. Discutir realmente se o indicado preenche os requisitos constitucionais, que são notório saber jurídico e a reputação ilibada. E pensarmos institucionalmente o STF, o que nós queremos de um Supremo Tribunal Federal. Queremos um STF independente.

Qual a sua avaliação sobre a gestão atual do Ministério da Justiça, pasta que o sr. já chefiou? 

O próprio ministro [Flávio] Dino é uma pessoa qualificada, um juiz federal, deixou também a carreira, depois foi governador. É uma pessoa até de afável trato, mas está na hora de a gente colocar, como se diz, a bola no chão e discutir políticas públicas com naturalidade. Esse clima de polarização acaba prejudicando esse próprio debate.

Como está o processo de ameaças contra o sr. que foi desarticulado pela PF? 

O grupo encarregado de fazer aqueles atos está respondendo na Justiça, inclusive presos preventivamente os dois principais responsáveis porque são líderes de crime organizado envolvidos no planejamento de um assassinato. Me parece que a Polícia Federal tem feito um grande trabalho. Aqui no Senado nós apresentamos um projeto, que foi aprovado, que preenche uma lacuna legal importante: criminalizar o planejamento de ataques do crime organizado a autoridades públicas.

O sr. fala muito sobre tornar o debate público mais saudável e, para isso, um passo é reconhecer quando os adversários acertam. O sr. vê algum acerto do atual governo nesses primeiros meses de governo? 

A manutenção desse clima de polarização tem, no fundo, gerado prejuízos para uma avaliação correta e isenta dos fatos e muitas vezes essas políticas públicas têm sido obscurecidas pelos desacertos. A gente vê por exemplo a tentativa de revogação do novo Marco Legal do Saneamento. Isso gera tensão com o Congresso, isso gera tensão com a sociedade e as ações positivas do governo acabam ficando obscurecidas por essas ações que são muito mais ruidosas.

Se a votação sobre o arcabouço fiscal no Senado fosse hoje, o sr. votaria contra ou a favor? 

Hoje provavelmente votaria contra. Eu particularmente discordo da forma como foi feito. Acho que ele é frouxo. No fundo é um projeto que gera um expansionismo fiscal, quando a medida correta na minha opinião é o corte de gastos e assim a gente consegue entrar numa linha de declínio dos juros para ativar a economia e a gente crescer principalmente pelo investimento privado.

RAIO-X | SERGIO MORO, 50

Hoje filiado à União Brasil, foi juiz na Operação Lava Jato e condenou Lula em 1ª instância no processo que depois levou o agora presidente à prisão. Abriu mão da magistratura para ser ministro da Justiça e Segurança Pública no governo Bolsonaro. Deixou a pasta após 16 meses acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal. Moro foi declarado parcial pelo STF em sua atuação nos processos de Lula e teve suas decisões anuladas. Tentou se viabilizar como candidato à Presidência da República na eleição de 2022, mas acabou eleito para o Senado pelo Paraná. Se reaproximou de Bolsonaro no pleito de outubro.

Thiago Resende e Matheus Teixeira, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 19.05.23 na eduçao impressa, às 12h00.

Collor terá tempo de sobra para desfrutar do que mais ama, seu ócio

Como nunca trabalhou, é um laborfóbico incurável. Quer irritá-lo? Fale de trabalho

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 19 de maio de 2023 - Bruna Barros

Quem diria. Collor estava tão por baixo que ninguém se lembrava dele. Demorou, mas agora é oficial. Trinta anos depois de ser chutado do Planalto, o Supremo lhe deu o diploma de corrupto. Terá de devolver os R$ 20 milhões que roubou.

Que ninguém duvide da sua desonestidade. A mãe, irmãs e irmãos, "parças" e rivais, nunca nenhum cristão teve dúvidas de que fosse um larápio, um batedor de carteira que forra os bolsos com isopor para afanar gelo em coquetéis.

Como não faltam coquetéis de uísque paraguaio em Brasília, e de pinga com umbu em Maceió, Collor surrupiou Kilimanjaros de carteiras e Everestes de gelo. Com o tutu, viveu décadas como marajá. Com o gelo, conservou a frieza da alma. Tem-se por único, mas na verdade é ordinário.

Não é um ladravaz do jaez de Maluf, Cabral ou desses lobões de moletom que botam o boné na mesa da balada brasiliense, fungam uma carreira da colombiana, viram um shot e encoxam na marra. É questão de berço. Bolsos de isopor, sim, mas em paletós italianos.

Ao ver Bolsonaro às voltas com overdose de morfina, contrabando de brincos e sobrepreço de sanduíches, dá para ouvir Collor lastimar: tsc, tsc, tsc, que falta de classe, que pé-rapado. Se é para se pavonear, que seja de Rolls-Royce, Maserati, Porsche, Ferrari, Bentley.

Embora difiram na gabolice, o Marajá e o Mito compartilham a mesma burrice. Collor achou que ninguém notaria que ele tinha 15 bólidos de luxo estacionados à sombra das cascatas da Casa da Dinda. Logo ele, que não pagava IPVA e foi destituído devido a um reles Fiat Elba.

Em primeiro plano, um homem está vestido com turbante adornado de joias. Com uma mão, ele segura uma xícara e com a outra, uma maleta por onde escapam notas de dinheiro.  Ao fundo, um sol brilha.

Bolsonaro supôs que seria uma boa guardar os atestados falsos de que tomou vacina. Se o STF descobrisse, os bananas não fariam nada, pensou. Logo ele, que fez campanha contra a imunização, xingou Xandão de canalha e otário, e Barroso, de idiota e filho da puta.

Além da burrice, há a soberba. O profissional que chega ao Planalto se acha léguas acima do baixo clero, um ungido por Xangô, Jeová, Maquiavel, Cristo, um desses. Até FHC se julgou insubstituível e patrocinou a patranha de mudar a lei e se aferrar a seu cargo.

Depois da era das vacas fardadas, só vices vestiram a carapuça de políticos carreiristas: Sarney, Itamar e Temer. Fernando Henrique se fez ver como intelectual. Lula, como sindicalista e herói do povo. Dilma, como gerente. Bolsonaro, como um verdadeiro gorila aspirante a troglodita.

E Collor? Era um pet da milicada que virou a casaca para fazer carreira. Que contratou 15 mil pobres diabos quando prefeito e os demitiu ao se tornar governador de Estado —para posar de verdugo de barnabés e ladrilhar a trilha rumo à Presidência. Que foi conviva de cama, mesa e cofre de usineiros alagoanos.

Era um embuste da cabeça gomalinada aos pés que calçavam Church’s, passando pelas calças largas —para disfarçar as pernas arqueadas—, as gravatas Hermès e as camisas de alfaiataria com punhos dobrados e abotoaduras cafonas. De verdadeiro, nele, somente a sua gélida ambição.

Mercê do medo empresarial do sapo barbudo, do anticomunismo rábico da classe média proto-bolsonarista e da repulsa unânime aos jaquetões da Nova República, elegeu-se. Deu-se então a guarânia: não tinha a mais escassa noção do que fazer. A ambição cedeu lugar à melancolia.

Procurou gente à altura de sua mediocridade e se cercou de poltrões. Do confisco da poupança ao "Besame Mucho" de Zélia e Bernardo Cabral, deu tudo errado. O governo oscilou entre o banzé e a abulia. No final, só era aplaudido por Brizola e Antonio Carlos Magalhães, o avô de Grampinho.

Certos traços de Collor ajudam a explicar seu apego à roubalheira. Como nunca trabalhou na vida, é um laborfóbico incurável. Quer irritá-lo? Fale de trabalho. Seu estado natural é o ócio.

Dá uma importância louca à aparência —a roupas, cremes, cabelos, prendedores de gravata. Passa acetona nas unhas. Não é asqueroso como Bolsonaro, mas está longe, muito longe, de ser agradável.

Transpira insinceridade. Parece representar um papel o tempo todo, mas o personagem que encarna é um espantalho. Vi-o de porre em um Carnaval fora de hora em Maceió. Nem ali disse algo espontâneo. O espaço infinito de seu vazio interior atordoa.

Já PC Farias era a simpatia em pessoa, um pícaro risonho, um novo-rico de bem com a vida. Era o Robin que cumpria ordens do Bruce Wayne ensimesmado no Bat-Planalto.

"Não quero mais nada com o Fernando", me disse PC. "Ele é mesquinho e se acha melhor que todo mundo." Tinha razão.

 Mario Sergio Conti, o autor deste artigo, é Jornalista, autor de "Notícias do Planalto". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 19.05.23, às 19h32

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Deltan cassado: juristas contestam decisão do TSE e apontam ‘abuso’

Ex-ministro da Justiça e crítico da atuação do ex-procurador, Reale Júnior repudia decisão da Corte; professor Rafael Mafei, da USP, diz que ‘talvez, se personagem fosse outro, resultado seria diferente’

O jurista Miguel Reale Jr. na Comissão Especial do Impeachment no Senado (Foto: André Dusek|Estadão)

A cassação do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) gerou debate sobre a interpretação da Lei da Ficha Limpa no mundo jurídico. Uma das vertentes é a de que houve “erro” da Corte Eleitoral, com a “ampliação” das hipóteses de inelegibilidade. O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior (governo FHC) vê “arbítrio” na decisão do TSE e aponta ainda a violação da presunção de inocência – alguém somente será considerado culpado, perante a Justiça, após condenação definitiva.

“Acho que houve um grande erro do TSE. Eu fui sempre muito crítico da atuação do Dallagnol, mas, mais do que desgosto com a atuação dele, eu tenho o repúdio ao arbítrio. E houve um arbítrio”, afirmou Miguel Reale Júnior ao Estadão. “Não é por que Dallagnol praticou erros passados que se deve injustamente puni-lo com inelegibilidade”, afirmou.

Na mesma linha, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei vê “incongruências” na decisão do TSE. Ele avalia que foi feita uma “conta de chegada” no julgamento – construiu-se um caminho de argumentos para se chegar à conclusão. “Talvez, se o personagem fosse outro, o resultado seria diferente”, disse o professor.

Reale Júnior afirmou que a hipótese de inelegibilidade prevista na Lei da Ficha Limpa serve para casos de ex-integrantes do Ministério Público ou do Judiciário que tenham deixado o cargo com pendência de processo administrativo disciplinar (PAD).

No caso de Deltan, não havia nenhum PAD aberto quando ele saiu da Procuradoria da República no Paraná, em novembro de 2021. “Ele tinha apurações preliminares em curso, muitas delas de relevo mínimo. Então, cassaram o mandato com base em apurações preliminares, que nem tinham se transformado em processo administrativo, dizendo que ele poderia ser condenado no PAD”, disse.

Segundo o jurista, normas punitivas, como a Lei da Ficha Limpa, que restringe direitos políticos, devem ser interpretadas de “forma restrita”. Para Reale Júnior, houve uma extensão da hipótese de inelegibilidade, ligada ao PAD, para caso de apurações preliminares. O ex-ministro da Justiça vê “abuso”. “Não se pode estender norma punitiva por meio de analogia ou uma interpretação ilática”, afirmou.

Na mesma linha, Mafei explica que a Lei da Ficha Limpa “traçou a risca” de um dos casos de inelegibilidade na existência de um procedimento administrativo disciplinar. Segundo ele, o marco foi estabelecido “justamente para não haver casuísmo”. Mafei também entende que houve, no caso, ampliação das hipóteses de inelegibilidade, abrindo caminho para questionamentos – “como quando há condenação em duas instâncias ou quando uma pessoa é alvo de 15 inquéritos sendo que em um deles pode advir condenação”.

Segundo o professor, o entendimento pode tornar mais “fácil” o reconhecimento de inelegibilidade de funcionários públicos, em especial de carreiras da polícia, do Ministério Público e Receita.

Fora a interpretação da Lei da Ficha Limpa, Mafei considera que o caso de Deltan não é de “fraude à lei”, como entendeu o ministro Benedito Gonçalves, relator da ação que culminou na cassação do deputado. Tal termo descreve uma espécie de “vício” no ato do ex-procurador – para Gonçalves, o deputado cassado praticou conduta que, à primeira vista, “consistiria em regular exercício de direito”, mas, na verdade, acaba por burlar a lei.

O professor Mafei explica que tal “vício” é verificado quando uma pessoa pratica um ato “não visando seus efeitos próprios”. Ele cita o exemplo de uma pessoa que, no curso de uma ação de execução – fase de cumprimento da sentença, quando o condenado tem de pagar multas – faz doações para familiares com o intuito de escapar de medidas que atinjam seu patrimônio.

No caso de Deltan, para Mafei, a renúncia ao cargo de procurador se deu “visando os fins próprios” do ato – a possibilidade de o ex-chefe da Lava Jato se candidatar na eleição de 2022.

‘Fundamentação profunda’

De outro lado das avaliações sobre a decisão do TSE, o ex-juiz e idealizador da Lei da Ficha Limpa, Márlon Reis, defendeu a decisão da Corte eleitoral. Em sua avaliação, o entendimento do colegiado é baseado em “fundamentação profunda”. Para Reis, o voto do relator Benedito Gonçalves foi “muito claro e atento” em relação a como as previsões de inelegibilidade devem ser interpretadas.

Pepita Ortega, originalmente, no blog do Fausto Macedo. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 17.05.23, às 15h55.

Absurdo está na famigerada Lei da Ficha Limpa, não na condenação de Deltan

O caso de Deltan Dallagnol é simples. Um dos líderes da "república de Curitiba" foi arrebatado por uma das mais violentas formas de indeferimento de registro de candidatura da famigerada Lei da Ficha Limpa, a alínea "q"[1].

Quis a lei que magistrados e membros do Ministério Público "que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de oito anos" estão inelegíveis. Em síntese, se já há processo administrativo disciplinar não posso pedir exoneração ou aposentadoria voluntária, sob pena de ficar inelegível e ter o registro de candidatura indeferido.

A ideia é que aquele que pede exoneração ou aposentadoria quer fugir dos efeitos de uma decisão condenatória que poderia redundar em inelegibilidade. Uma perversidade inominável presumir tanta má-fé de pessoas que julgam outras e tem o monopólio da ação penal.

São aquelas inelegibilidades constituídas sem decisão judicial ou pela interrupção de processo administrativo sancionador, em que sequer há decisão judicial, mesmo precária. Nesses casos, soma-se, à violação da presunção de inocência, o "devido processo legal convencional", pois basta para o resultado funesto da inelegibilidade, o pedido de renúncia ou o pedido de exoneração/aposentadoria, pendente o bendito processo administrativo disciplinar.

A inelegibilidade, assim, surge de uma presunção jure et jure da renúncia ou pedido de aposentadoria ou exoneração como confissões de ilícitos, para, daí, gerar a cominação, em claro desrespeito à ampla defesa e ao contraditório que não poderão ser exercidos após esses atos unilaterais, em violação direta ao devido processo convencional e à presunção de inocência[2].

O trágico fim da inelegibilidade e indeferimento do registro do candidato Deltan exigia, deste modo, a conjugação dos três elementos nucleares da norma: i) condição de membro do Ministério Público; ii) pedido de exoneração; iii) existência de processo administrativo disciplinar.

O TSE reconheceu que não havia processo administrativo disciplinar no acórdão que indeferiu o registro de candidatura. Não houve a equiparação de sindicância a processo administrativo disciplinar, como querem alguns mais apaixonados. No caso de Deltan, não havia um só processo administrativo disciplinar. Como condenar Deltan?

Surge a ideia no acórdão da fraude[3], porque a exoneração aí ocorrera para evitar que os fatos apurados se transformassem naquele elemento nuclear exigido pela norma, ou seja, procedimento administrativo disciplinar. Essas epigêneses das infâncias dos procedimentos administrativos disciplinares só não floresceram em face da exoneração.

O acórdão pressupôs que aqueles procedimentos correicionais investigativos e preliminares fossem se tornar procedimentos correicionais acusatórios na modalidade de processo administrativo disciplinar, no exemplo do Manual de Processo Administrativo Disciplinar da Corregedoria-Geral da União[4]. Assim fazendo, Deltan fraudou uma inelegibilidade futura que ocorreria, caso não houvesse o pedido de saída do Ministério Público[5].

A ilogicidade formal do argumento repousa não apenas na inexistência de um requisito nuclear da norma (existência de procedimento administrativo disciplinar), mas no fato solene que, ao tempo do seu registro de candidatura, a existência de mera investigação era irrelevante. Ao tempo dos fatos, o seu pedido de exoneração, para os fins do registro de candidatura, era ato lícito. Nenhuma norma o impedia de exonerar-se exatamente para que não houvesse ainda um processo administrativo disciplinar e sua candidatura fosse legal.

Não se trata de fraude, mas de exercício regular do direito. Aliás, exercício regular e inteligente de um direito para impedir embaraços para sua candidatura. Wederson Advíncula, em irrespondível argumento, aduziu em grupo da Abradep (Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político) que faz o mesmo aquele candidato que tenta evitar a inelegibilidade e se afasta do cargo no prazo de seis meses antes do pleito. Ele se afasta do cargo exatamente para cumprir a lei e ser elegível. O cumprimento da lei pode ser considerado fraude, quando o que se busca é fugir de uma situação geradora de inelegibilidade? Evidente que não.

Deu-se aqui uma interpretação extensiva para sancionar não apenas aqueles exonerados com pendente processo administrativo disciplinar, mas para tornar inelegíveis aqueles exonerados sobre os quais haja fatos que possam se tornar processos administrativos disciplinares. Se há fato disciplinar a ser apurado que possa, no futuro incerto e provável, torna-se um processo administrativo disciplinar, nessa insana futurologia, toda exoneração pode gerar uma elegibilidade potencialmente fraudada...

Noutro extremo, Renato Ribeiro de Almeida, amigo fraterno, não vê interpretação extensiva, porque "Deltan poderia vir a ser demitido dos quadros do MPF"[6].

Aqui o poder estatal não foi deduzido do poder comunicativo dos cidadãos, como diria Jurgen Habermas, na forma de uma lei abstrata, geral impessoal e anterior à conduta. Houve simplesmente a declaração pela autoridade judicial autocrática de norma personalizada (act or bill of attainder), uma norma em forma de acórdão ex post facto — a insegurança jurídica na sua vertente mais crua da imprevisibilidade[7].

Neste caso, o fato futuro não devia mover moinhos presentes, eu diria. Já sancionamos o passado com essa famigerada lei, quando a aplicamos para aqueles condenados antes da sua promulgação e agora criamos inelegibilidade presentes por fatos futuros e prováveis... Só falta a sanção do além-túmulo para tornar a piada integral.

Há muitos anos venho apontando o desacerto da famigerada Lei da Ficha Limpa, após influência direta dos amigos Adriano Soares da Costa, Eneida Salgado e Ruy Samuel Espíndola, este mais de perto, da tribuna do TRE-SC (Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina)[8]. Escrevi o primeiro livro no Brasil sobre a violação dessa lei à Convenção Americana e à jurisprudência da Corte e venho, desde então, aqui e ali, sublinhando a irracionalidade e tragédia do diploma e do seu particular zeitgeist (espírito do tempo) para a derrocada da democracia nacional ao tentar melhorá-la pela restrição moral dos direitos políticos e limitação do universo dos candidatos, na busca idealizada de candidatos angelicais inexistentes — uma impossibilidade em si[9].

É bem verdade que nos últimos tempos tem crescido o esforço nacional em favor da pauta do Direito Internacional dos Direitos Humanos no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e no site do STF (Supremo Tribunal Federal). Há até uma hoje uma recomendação aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro de observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.[10]

Quanto aos direitos políticos, contudo, nossa absoluta falta de crença na capacidade do povo de escolher tem nos embretado em soluções jurisdicionais para melhorar a democracia pelo rompimento violento dos subsistemas do direito e da política. Temos ignorado a recomendação do CNJ de "observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil e a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas".

O avanço do tema geral dos direitos humanos não faz verão nos direitos políticos e o artigo 23 da Convenção Americana e os hard cases da Corte Interamericana são desprezados.

Vige a ideia de um povo infantilizado e incapaz a ser constantemente tutelado e impedido de suas decisões por colegiados judiciais, não raro com soluções autocráticas, envolvidos que estamos nesse espírito de porco da famigerada Lei da Ficha Limpa[11]. No fundo, o medo do povo perpassa todo o direito eleitoral atual.

A primeira promessa falsa dessa Lei da Ficha Limpa foi o seu propósito evangelizador para as boas práticas republicanas[12], o "espírito da lei na alma do povo", a proclamada "bandeira da moralização da política" nas palavras do ex-senador Demóstenes Torres, para extirpar aqueles que "não possuem conduta adequada à dignidade das relevantes funções públicas". Nessa religiosa barafunda uniram-se OAB, CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e um Parlamento amedrontado em ser contra tão importante ideário.

Olvidamos — eu também embarquei nessa toada evangelizadora — que a moralidade é má conselheira do direito eleitoral e da democracia. A história tem demonstrado que a moralidade, quando incidente sobre o direto eleitoral, tem servido ao longo do tempo para perseguir opositores e deformar a cidadania. Os eleitos têm outros filtros como a decisão dos partidos e o voto. Quando se cassa e se "caça" uma candidatura (e aqui a correção da expressão "indeferimento do registro" escamoteia a violência política), quase nunca se lembra, está se negando validade a milhares de votos. Quando se afirma a inelegibilidade, está se proibindo que o povo escolha determinado candidato ou que seu escolhido exerça a função pública. Sanção maior à cidadania em uma democracia é difícil apontar. Por isso mesmo são econômicas as inelegibilidades na Europa, o disfranchising nos Estados Unidos [13] e na América Latina, enfim, nas democracias ocidentais, cada vez mais raras.

Adriano Soares da Costa tratou da necessidade de refinamento e de construção de uma ciência do Direito Eleitoral, este ramo prenhe de conceitos indeterminados e que geram uma liberdade inaudita da jurisprudência, como se fossem não apenas indeterminados, mas conceitos vazios: "há apenas, como consectário disso, a irracionalidade jurídica, o decisionismo voluntarista e uma crise de segurança jurídica"[14].

Só uma doutrina malcriada nos salvará. A bajulação incentiva o desastre da famigerada sempre novidadeira lei das inelegibilidades.

Enfim, nada espelha melhor a tragédia dessa lei que o indeferimento do registro de candidatura de Deltan, em face desse ambiente de correção dos males de nossa democracia pela cassação judicial de mandatos, sob a ótica da periculosidade de Michel Foucalt[15]. A decisão seguiu o que se vê todos os dias para milhares de candidatos: a ausência de preocupação com a fundamentalidade dos direitos políticos. Absolva-se a decisão, portanto.

E nosso Antoine-Joseph Santerre encontrou-se com sua injustiça guilhotina. Para alguns, merecida recompensa de uma carreira de hostilidade à própria política pela falta de compreensão da complexidade do fenômeno, uma "falta de aderência à realidade". Para outros, uma chance de voltar ao tema, repetir-se e reclamar que se salvem pelos menos as almas dos candidatos desse caldeirão insensato de inelegibilidades mundanas e criativas.

[1] "q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)".

[2] A Convenção Americana repudia essa antecipação, porquanto expressamente, afirma no seu art. 9º que a presunção de inocência deve perdurar “enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. Ora, a culpa somente será comprovada ao término do procedimento judicial (afastado o mero procedimento administrativo) e não durante, em um ponto aleatório escolhido pelo legislador como a decisão colegiada, sendo, ela, pressuposto da cominação da sanção. Do contrário, poder-se-ia afirmar que a mesma presunção de inocência vale até o momento do ajuizamento de uma ação de improbidade ou de uma denúncia criminal ou da primeira audiência, por exemplo, esvaziando-se a proteção conferida pela ideia de não se presumir o resultado antes que ele ocorra.

[3] “Em outras palavras, o objeto da controvérsia em apreço não é, como quer fazer crer o recorrido, a possibilidade ou não de se conferir interpretação ampliativa ao termo “processo administrativo disciplinar”. O que aqui se tem é uma conduta anterior e contrária ao Direito para evitar a instauração desses processos, ou seja, fraude à lei”.

[4] São eles “15 procedimentos administrativos de natureza diversa no CNMP, sendo nove Reclamações Disciplinares, uma Sindicância, um Pedido de Providências, três Recursos Internos em Reclamações Disciplinares e, ainda, uma Revisão de Decisão Monocrática de Arquivamento em Reclamação Disciplinar”. Acórdão do Recurso Ordinário 0601407-70.

[5] “Referida manobra, como se verá neste tópico, impediu que os 15 procedimentos administrativos em trâmite no CNMP em seu desfavor viessem a gerar processos administrativos disciplinares (PAD) que poderiam ensejar a pena de aposentadoria compulsória ou de perda do cargo”. Acórdão do Recurso Ordinário 0601407-70.

[6] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-18/renato-ribeiro-cassacao-deltan-consequencias Acesso em 18.05.2023.

[7] A segurança jurídica perde-se, enfim, na impossibilidade do “direito de calcular as consequências do comportamento próprio e alheio”.  HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 182.

[8]SALGADO, Eneida Desiree; ARAÚJO, Eduardo Borges. Do Legislativo ao Judiciário: a Lei Complementar nº 135/2010 (“Lei da Ficha Limpa”), a busca pela moralização da vida pública e os direitos fundamentais. A&C- Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 54, p. 121-148, out./dez. 2013. Disponível em: http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com/2010/07/vida-pregressa-e-inelegibilidade-hora.html; http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com/2012/03/quitacao-eleitoral-e-hipermoralizacao.html; Acesso em: 18.05.2023.

[9] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino Ferreira. O controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: direitos políticos e inelegibilidade. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2019, 3ª edição; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino; MEZZAROBA, Orides. A Lei da Ficha Limpa: o Cavalo de Troia do protagonismo do Poder Judiciário. Revista dos Tribunais [Recurso Eletrônico]. São Paulo , n.974, dez. 2016;  Disponíveis em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-22/opiniao-detracao-condenacao-criminal-lei-ficha-limpa; https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/lawfare-a-revanche-contra-o-ministerio-publico/; https://noticias.uol.com.br/colunas/abradep/2021/11/09/o-pix-eleitoral-e-deltan.htm Acesso em: 18 maio 2023.

[10] Cuida-se da Resolução CNJ n. 123 de 07/01/2022. Disponível em:  https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4305 Acesso em: 18 maio 2023.

[11] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial: o caso brasileiro no divã. Florianópolis: Habitus. 2020.

[12] JUNIOR, Ophir Cavalcante. Ficha Limpa: A Vitória da Sociedade Comentários à Lei Complementar 135/2010. Conselho Federal da OAB.

[13] Comissão de Veneza Trata-se do corpo consultivo do Conselho da Europa sobre temas constitucionais. European Commission for Democracy through Law, Code of Good Practice in Electoral Matters: Guidelines and Explanatory Report - Adopted by the Venice Commission at its 51st and 52nd sessions (Venice, 5-6 July and 18-19 October 2002). Disponível em:

<http://www.venice.coe.int/webforms/documents/?pdf=CDL-AD(2002)023-e>. Acesso em: 18 maio 2023.

[14] COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 10º. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 17.

[15] "A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam". FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau edit., 1996, p .85.e

Marcelo Ramos Peregrino Ferreira , o autor deste artigo, é doutor em Direito (UFSC), membro fundador da Abradep (Associação Brasileira de Direito Eleitoral), presidente da Caoeste (Conferência Americana de Organismos Eleitorais Subnacionais) pela Transparência Eleitoral e integrante do Iasc (Instituto dos Advogados de Santa Catarina). Publicado originalmente pela Revista Consultor Jurídico, em 19.05.23

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Não se aplica sanção por meio de interpretação extensiva. É inconstitucional.

O TSE, sem o devido processo legal, ou melhor, sem o devido processo legal administrativo, culpou Dallagnol. Absurdo: julgou sem ser o juiz natural, constitucional, preestabelecido pela lei.

O deputado federal cassado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) sai em busca de tábua de salvação, sem desistir do papel de taumaturgo circense. 

Algumas considerações sobre a perda do mandato do ex-procurador que coordenou a força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba:

1- Suspender a cassação

A decisão relâmpago do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) resultante na cassação do mandato popular de Deltan Dallagnol (Podemos-PR) tem eficácia imediata. Em outras palavras: Dallagnol não é mais deputado federal.

A cassação tornou-se pública, sem precisar de publicação no Diário Oficial da União. A decisão foi publicada na própria sessão plenária de ontem.

Segundo se sabe, Dallagnol vai tentar obter uma tábua provisória de salvação junto ao STF (Supremo Tribunal Federal).

Seria uma medida acautelatória liminar, com fundamento na irreparabilidade do dano sofrido e numa existente e visível fumaça de bom direito (fumus boni juris).

A alegação de dano irreparável vai estar ligada ao princípio da soberania popular do voto, em tempo passado denominada de garantia ao sufrágio universal.

Sem mandato, haveria um dano aos cerca de 400 mil votantes em Dallagnol e à representação por mandato (procuração) conferida democraticamente. A lembrar que se tornou inelegível por oito anos.

Trocado em miúdos: o cidadão (na definição constitucional, cidadão é sinônimo de eleitor) perderia o representante e no lugar ingressaria um suplente, não escolhido pela vontade do eleitor.

Os danos irreparáveis à pessoa de Dallagnol, um ex-procurador que buscou carreira política, também serão considerados.A fumaça do bom direito tem conexão com a possibilidade, diante do direito invocado, de o recurso ao STF poder prosperar.

2- Inconstitucional interpretação extensiva

O marquês Cesare Beccaria é considerado o precursor do direito penal (criminal) moderno. Foi um humanista.

O seu livro intitulado "Dos Delitos e das Penas" (Dei Delitti e delle Pene), publicado em 1764, é, no mundo ocidental, de leitura obrigatória nas faculdades onde se ensina o direito e a jurisprudência.

Beccaria, usando linguagem do século 21, inspirou o garantismo de matriz iluminista e brecou a selvageria e as ordálias, ou juízos de Deus.

A partir de Beccaria chegou-se ao "nulla poena nullum crimen sine lege", que é o princípio da legalidade que está expresso na nossa Constituição. Não existe crime sem lei e, também, pena sem previsão legal. O princípio vem do filósofo e jurista alemão Anselm von Feuerbach e foi para o código penal da Baviera de 1813.

Como decorrência, o direito penal (criminal) não admite a denominada interpretação extensiva, salvo se for para favorecer o acusado, no caso Dallagnol.

O TSE usou de interpretação extensiva para condenar Dallagnol. Entendeu que 15 reclamações protocoladas poderiam ser presumidas e que virariam um processo administrativo disciplinar contra Dallagnol.

As 15 reclamações, arquivadas por decisão do governo do Ministério Público Federal, teriam, na visão de adivinho do TSE, potencial para virar processo administrativo. As 15 estão arquivadas diante do fato de Dallagnol ter deixado o Ministério Pùblico Federal.

Atençao: a lei de inelegibilidade exige processo administrativo. E exoneração ou renúncia postuladas pelo funcionário público ( engloba órgão de poder) para evitar o seu julgamento, com eventual imposição de sanção-pena.

O TSE, sem o devido processo legal, ou melhor, sem o devido processo legal administrativo, culpou Dallagnol. Absurdo: julgou sem ser o juiz natural, constitucional, preestabelecido pela lei.

Reclamações, como já decidiu o STF, representam expectativa de direito. Os que apresentaram as 15 reclamações contra Dallagnol tinham uma expectativa dele ser sancionado, não direito reconhecido num devido processo administrativo.

A decisão do TSE fez o supracitado marquês de Beccaria revirar na sepultura. Não se aplica sanção por meio de interpretação extensiva. É inconstitucional.

Com efeito, aí está a chamada fumaça do bom direito que o STF, se provocado por Dallagnol, deverá apreciar para decidir pela concessão ou não de uma medida liminar acautelatória.

3 - STF e a liminar

O pedido de liminar acautelatório — que deverá ser seguido depois por um recurso solicitando o reexame da decisão do TSE — será examinado por um ministro sorteado por sistema eletrônico.

Estarão impedidos de votar o ministro Alexandre de Moraes e a ministra Cármen Lúcia, por terem participado e votado pela cassação de Dallagnol. Precisará se dar por suspeito o ministro Gilmar Mendes. Isso pelo que já disse sobre Dallagnol, seu inimigo de carteirinha.

Se a decisão do ministro sorteado for técnica e não política, Dallagnol tem grande chance de obter a liminar.

Caso não obtenha a liminar, o seu recurso de reexame da cassação pelo STF poderá levar anos para ser colocado em pauta de julgamento.

E poderá até não ser julgado. Isso ocorrerá se for colocado em pauta quando a legislatura já estiver encerrada e não se poder mais falar em mandato.

Enquanto isso, Dallagnol prepara uma saída jurídica. Politicamente, sem mandato, inaugurou ontem, em entrevista, o circo de esperneios e ele no papel de injustiçado taumaturgo.

 Wálter Maierovitch, o autor deste artigo, é magistrado federal aposentado e colunista do UOL. Publicado originalmente em 18.05.23

Bolsonaro admite conversas com major investigado por trama golpista

Em depoimento à PF, ex-presidente foi confrontado com troca de mensagens entre Barros e contato chamado ‘PR 01’

Trecho do depoimento de Bolsonaro à PF; conversas com Barros

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) admitiu à Polícia Federal que conversava diretamente com o major da reserva do Exército Ailton Barros, que está no centro da investigação sobre “tratativas para a execução de um golpe de Estado”. Em depoimento anteontem, Bolsonaro disse que mantinha conversas “esporádicas” com Barros, preso no início do mês na Operação Venire – que apura fraude em cartões de vacinação.

Bolsonaro foi confrontado com mensagens enviadas pelo major a um contato identificado como “PR 01”. Os diálogos colocaram Barros na mira do inquérito dos atos golpistas de 8 de janeiro, e podem implicar ainda mais Bolsonaro nessa apuração, na qual ele é investigado por incitação.

As mensagens foram obtidas pela PF a partir da quebra de sigilo do ex-ajudante de ordens da Presidência no governo Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid. Ele é implicado em diferentes investigações no Supremo Tribunal Federal: sobre atos antidemocráticos, das milícias digitais e é figura central na apuração sobre pagamentos de contas da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Cid está preso desde o início do mês por suspeita de liderar um esquema de fraudes na carteira de vacinação de Bolsonaro.

Em uma das mensagens usadas pela Polícia Federal para questionar Bolsonaro, o major cita a mobilização de grupos que, segundo ele, “organizaram” atos antidemocráticos em 7 setembro de 2021. Em seguida, ele menciona a intenção dos grupos em “acampar em Brasília”, em 31 março de 2022 – data em que aliados do expresidente comemoram o golpe militar de 1964 – “até os 11 ministros do STF saírem de suas cadeiras”.

Ao “PR 01”, Barros diz que é possível operar nos grupos “para as pautas serem de seu interesse”, sugerindo algumas delas, como ataques ao ministro Alexandre de Moraes, do STF, e a “questão das urnas eletrônicas”. As mensagens foram posteriormente apagadas por Barros, após ele dizer que “pegou orientação com Cidinho” – em referência a Mauro Cid.

À PF, o ex-presidente negou ter orientado “qualquer ato de insurreição ou subversão” contra o estado de direito”. Sobre a menção de Barros às “orientações” de Cid, Bolsonaro disse não conhecê-las e afirmou “duvidar” que seu exassessor teria “dado reforço para as referidas pautas”. Ele também negou ter sido procurado diretamente por Barros para dar “orientações”.

PROXIMIDADE. Em seguida, a PF mostrou mensagens enviadas pelo militar. Bolsonaro reafirmou que não teve conhecimento das pautas antidemocráticas citadas. Ele admitiu conversas esporádicas com o major, mas negou manter “relacionamento pessoal” com ele. Bolsonaro disse que as aproximações de Barros “se davam principalmente em momentos eleitorais” – o major reformado se candidatou a cargos eletivos em 2006, 2020 e 2022, sem sucesso.

Na decisão que autorizou a fase ostensiva das apurações da Venire, Moraes apontou que a milícia digital sob suspeita “transbordou” para além da esfera virtual. O relator viu elemento de “união” na atuação do grupo, “seja nas redes sociais, seja na realização de inserções de dados falsos de vacinação contra a covid-19, ou no planejamento de um golpe de Estado”. 

Pepita Ortega para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 18.05.23

Avança a PEC da sem-vergonhice

Anistia a partidos aprovada pela CCJ da Câmara afronta a Constituição e tem de ser barrada pelo STF

No dia 16 passado, entre a deliberação sobre um projeto que torna o forró uma manifestação cultural nacional e outro para que a conta de luz passe a notificar sobre audiências públicas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara encaixou um golpe contra a Constituição de 1988. Mais especificamente, contra o caput do artigo 5.º da Lei Maior, princípio basilar da República: a igualdade de todos perante a lei.

Por 45 votos a 10, o colegiado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que concede anistia aos partidos políticos – a quarta em 30 anos – que violaram a lei que dispõe sobre as regras de distribuição dos recursos do fundo eleitoral, além de estabelecer cotas para candidaturas de mulheres e negros. As dez maiores bancadas na Câmara têm contas a prestar à Justiça Eleitoral, o que explica esse placar, expressão da solidariedade na desfaçatez.

A audácia dessa PEC é tanta que, a um só tempo, se faz letra morta da isonomia inscrita no texto constitucional, dificulta-se o acesso de grupos sub-representados ao Congresso e, como se não bastasse, afrontase o Supremo Tribunal Federal (STF) ao autorizar que partidos políticos peçam dinheiro a empresas para quitar dívidas contraídas até 2015, ano em que o STF proibiu a doação de pessoas jurídicas para legendas e candidatos.

Caso seja aprovada pelo plenário da Câmara e, ao final do processo, a PEC da sem-vergonhice seja promulgada pelo Congresso, partidos políticos tornar-seão entidades acima do bem e do mal no Brasil. A nenhuma outra organização privada é dado afrontar as leis e a Constituição de forma tão descarada e inconsequente – o que Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e articulista do Estadão, chamou, com razão, de “autoproclamação da anarquia”.

Em qualquer país democrático no mundo, que cidadão ou empresa pode arrogar para si o estupendo poder da autoanistia? Essa PEC, mais que um escárnio, é uma evidente demonstração de que a maioria dos membros da CCJ da Câmara considerou que o Brasil é uma republiqueta de idiotas, formada por uma massa ignara que nem sequer é capaz de dimensionar a barbaridade que foi cometida por alguns de seus representantes eleitos.

Contra essa violência, primeiro, a sociedade civil precisa se insurgir e mostrar que está atenta à ação insidiosa de parlamentares que agiram não em seu nome, mas em nome dos interesses privados das organizações às quais pertencem. Além disso, o STF, evidentemente, não pode deixar de intervir nesse caso. Fez bem a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP), membro da CCJ, ao impetrar mandado de segurança para que a tramitação da PEC da sem-vergonhice seja interrompida. A judicialização da política, como este jornal já sustentou não poucas vezes, é quase sempre indesejável. Não é incomum que o Judiciário seja visto como valhacouto de derrotados em debates que devem estar circunscritos ao Legislativo. Todavia, a quem recorrer senão ao guardião maior da Constituição quando nada menos que a CCJ da Câmara rasga um dispositivo constitucional de forma tão desabrida? 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.05.23

Caso Deltan expõe ações que podem tirar líderes da Lava Jato do Congresso

Cassação de mandato de deputado em ação de frente liderada pelo PT gera debate sobre interpretação da Lei da Ficha Limpa; Moro, ex-juiz da operação, é alvo de investida do PL

Deltan Dallagnol, na Câmara;discurso com ataques a ‘inimigos’(Crédito: Wilton Junior/Estadão)

A cassação da candidatura – e consequentemente do mandato – do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) expôs uma ampla investida política que pode excluir do Congresso os mais simbólicos representantes da Lava Jato. Mesmo desgastada por críticas aos seus métodos, a operação que nos últimos anos levou para a prisão políticos, empreiteiros, doleiros e lobistas impulsionou no ano passado as eleições do ex-procurador e de Sérgio Moro (União Brasil-PR), dono de uma cadeira no Senado. Moro, ex-juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, também é alvo de ação na Justiça Eleitoral que pode lhe cassar o mandato.

Os dois principais protagonistas da Lava Jato ficaram na mira dos espectros da mais recente polarização nacional. A decisão unânime do TSE foi tomada após representações apresentadas pela Federação Brasil da Esperança, liderada pelo PT (com PCdoB e PV) do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e pelo PMN.

Tramita no Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TREPR) um pedido de cassação contra Moro baseado em suspeitas de irregularidades nos gastos de sua campanha e a prática de caixa 2. O processo foi aberto a pedido do diretório paranaense do PL, sigla do ex-presidente Jair Bolsonaro.

A Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) corre sob sigilo, mas o PL aponta irregularidades no financiamento da campanha ao Senado. Ela foi ajuizada mesmo depois de Moro manifestar apoio a Bolsonaro – de quem foi ministro da Justiça e saiu rompido – no segundo turno da disputa presidencial de 2022. Apesar de ser patrocinado pelo diretório no Paraná, o processo recebeu aval do presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto.

Se conseguir alijar o ex-juiz, o PL pode ficar com a sua vaga no Congresso. Moro foi eleito com 33,82% dos votos, em uma disputa apertada com o segundo colocado, o deputado federal Paulo Martins (PL), que alcançou 29,12% dos votos. O partido cita na ação o caso da ex-juíza Selma Arruda, eleita em 2018 pelo Podemos. Ela foi cassada por irregularidades na prestação de contas. Selma ficou conhecida como “Moro de saias” por impor duras penas ao grupo político do ex-governador Silval Barbosa (MDB). Segundo o TSE, o exjuiz gastou cerca de R$ 5,1 milhões na campanha.

Em meados de dezembro, após três reprovações, as contas de Moro foram aprovadas poucos dias antes da data-limite. O fato, entretanto, não anula a ação movida pelo PL. Conforme mostrou a Coluna do Estadão, motivados com a perda de mandato de Deltan, advogados de alvos da Lava Jato organizam um périplo nos gabinetes de ministros do TSE para defender a cassação do senador.

INELEGÍVEL. Além de cassar seu mandato, a Corte Eleitoral deixou Deltan inelegível por oito anos. O argumento do ministro Benedito Gonçalves, relator do processo, foi o de que o ex-procurador pediu exoneração do cargo para driblar a lei e evitar a inelegibilidade. A decisão teve como base a Lei da Ficha Limpa, segundo a qual são inelegíveis por oito anos magistrados e integrantes do Ministério Publico que “tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”. Deltan respondia a processos no Conselho Nacional do Ministério Público.

A decisão, que ainda permite recurso no próprio TSE ou no Supremo Tribunal Federal (STF), gerou debate sobre a interpretação da Lei da Ficha Limpa no mundo jurídico. Uma das vertentes é a de que houve “erro” da Corte Eleitoral, com a “ampliação” das hipóteses de inelegibilidade. O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. (governo FHC) vê “arbítrio” na decisão do TSE e aponta ainda a violação da presunção de inocência.

“Acho que houve um grande erro do TSE. Fui sempre muito crítico da atuação do Dallagnol, mas, mais do que desgosto com a atuação dele, eu tenho o repúdio ao arbítrio. E houve um arbítrio”, afirmou ao Estadão.

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei vê “incongruências” na decisão do TSE. Ele avalia que foi feita uma “conta de chegada” no julgamento – construiu-se um caminho de argumentos para se chegar à conclusão. “Talvez, se o personagem fosse outro, o resultado seria diferente”, disse.

Já Márlon Reis, ex-juiz eleitoral e idealizador da Lei da Ficha Limpa, defendeu a decisão do TSE. Segundo ele, a sentença é baseada em “fundamentação profunda”. Em entrevista ao Estadão, o hoje advogado afirmou que a tese documentada e apresentada pelo relator foi “muito clara e atenta para o modo como as normas para inelegibilidades devem ser interpretadas”.

A votação para cassar o mandato de Deltan levou um minuto e seis segundos – tempo que conta o fim do voto do relator do caso no TSE à proclamação do resultado. O agora deputado cassado classificou a decisão como uma “vingança de Lula” (mais informações na página ao lado).

O governo do presidente Lula – que chegou a cumprir prisão por condenação, depois anulada, na Lava Jato – usou o Twitter para fazer uma sátira com a cassação do deputado. O perfil oficial publicou uma imagem com o mesmo design do PowerPoint usado por Deltan, então procurador e coordenador da força-tarefa da operação, para indicar ligações do petista com casos de corrupção. •

Natália Santos, Pepita Ortega, Sofia Aguiar e Gustavo Cortês para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 18.05.23

Incompetência não tem ideologia

Estudo mostra que custo Brasil não caiu significativamente nem num governo declaradamente liberal, como era o de Bolsonaro e Guedes; baixa qualificação da mão de obra é o maior entrave

As empresas no Brasil continuam pagando muito mais do que suas concorrentes em outros países para fazer negócios. E, apesar do discurso a favor da livre-iniciativa do governo de Jair Bolsonaro, sobretudo de seu superministro da Economia, Paulo Guedes, não houve redução nos entraves que oneram o mundo corporativo nos últimos quatro anos, como mostra estudo do Movimento Brasil Competitivo, entidade criada e liderada por empresários para promover a bandeira da necessidade de melhorar a competitividade das empresas no País.

Logo no início do governo Bolsonaro, Guedes foi taxativo ao criticar o emaranhado burocrático para abrir uma empresa no País, dizendo que o processo demorava oito ou nove meses. O governo, afirmou, estava empenhado em reformas importantes que provocassem mudanças conceituais no País a favor de maior liberdade de abertura de negócios, que seria, nas suas palavras, “caminho para a prosperidade”.

O cenário de dificuldades para ser empreendedor no Brasil, porém, pouco mudou, como evidencia o levantamento do Movimento Brasil Competitivo. A dúvida, agora, é se o novo governo, de Lula da Silva, será capaz de promover alguma melhora no panorama. Algumas manifestações, inclusive do presidente, assustam o empresariado, por sugerirem reversão de reformas e excessiva interferência estatal. Em abril, por exemplo, Lula comparou a reforma trabalhista a um “tratamento do tempo da escravidão”. E tanto a proposta de âncora fiscal como a reforma tributária não parecem encontrar entusiastas no governo, com exceção da equipe econômica.

O chamado “custo Brasil”, segundo o estudo, atingiu R$ 1,7 trilhão, valor que representa as despesas adicionais que as companhias têm para produzir por aqui em comparação com a média de custos nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O levantamento foi feito em parceria com a Fundação Getulio Vargas e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e leva em consideração o ciclo de vida de uma empresa, analisando-se indicadores em 12 áreas importantes para a competitividade empresarial.

Ao ser medido pela primeira vez, em 2019, chegou ao valor de R$ 1,5 trilhão, ou 22% do Produto Interno Bruto (PIB). Em termos nominais, houve uma melhora, porque o custo Brasil apurado agora corresponde a 19,5% do PIB, mas o próprio estudo do Movimento Brasil Competitivo alerta que é preciso levar em consideração a inflação do período e que, portanto, se considera que houve estabilidade entre os dois indicadores. Não piorou, mas também não melhorou.

O detalhamento do estudo deixa claro que um dos maiores custos para o setor empresarial continua sendo o emprego de mão de obra, que inclui qualificação do trabalhador, encargos e processos trabalhistas. E isso, apesar do impacto da reforma trabalhista, que tinha como objetivo baixar o custo de contratação de pessoas e facilitar esse processo. Para os autores do trabalho, a baixa qualificação da mão de obra brasileira segue como o fator de maior peso na composição do custo Brasil, chegando a 8% do total.

Também chamam a atenção os cálculos de quanto as empresas gastam com os impostos cobrados no País pelas várias esferas governamentais. No caso, o estudo identificou que, por causa da complexidade tributária brasileira, as empresas precisam gastar aproximadamente 62 dias e meio com a preparação para pagamento dos impostos. A média das nações que fazem parte da OCDE é de seis dias. Talvez haja esperança de mudanças nessa área específica, com a possibilidade de reforma tributária, em debate no Congresso Nacional.

O estudo mostrou um aumento nos custos de financiamento das empresas – o que seria mesmo de esperar porque as taxas de juros no Brasil subiram muito nos últimos quatro anos como política do Banco Central no combate à inflação.

Reduzir os custos de produção no Brasil não é uma questão ideológica, de governos mais à esquerda ou mais à direita. É uma questão de competência para enfrentar os problemas pela raiz e de forma permanente. Como em tantas outras questões, nesta também o País tem pressa. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.05.23

quarta-feira, 17 de maio de 2023

‘Há algo de podre quando petistas e bolsonaristas dão as mãos’

Para Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), a proposta de emenda à Constituição (PEC) da Anistia é uma “autoproclamação da anarquia”. 


Procurador de Justiça em São Paulo, Livianu considera que a proposta “rasga a Constituição” por fazer com que partidos que não cumpriram leis anteriormente aprovadas. 

• Como o sr. analisa a aprovação sucessiva de anistias a partidos?

Isso é extremamente danoso, especialmente o caráter naturalizado dessas anistias. Não estamos falando de um acontecimento episódico isolado, isso vem acontecendo ao longo do tempo. Vemos os partidos praticando essas atitudes repetidamente. Temos uma liturgia democrática, mas os partidos querem ser tratados como seres intocáveis. Isso aniquila o estado democrático de direito porque a igualdade de todos perante à lei é destroçada. É absolutamente inaceitável.

• Tanto o líder do governo como da oposição assinaram o requerimento da PEC. O que isso significa? 

Quando se vê petistas e bolsonaristas dando as mãos para a PEC da Anistia ou para derrubar a lei de improbidade administrativa, citando Hamlet, há algo de podre no reino da Dinamarca. Há algo de muito podre em curso. Não é normal ver antípodas políticas se unindo em prol disso.

• Qual é a mensagem à sociedade que essa anistia dá?

É uma vergonha absolutamente inaceitável. No final do mês vamos todos apresentar a declaração de Imposto de Renda. 

Por que os partidos podem se autoproclamar que não irão cumprir leis eleitorais? 

Agora vamos nos autoanistiar. Tudo o que foi feito de errado, não vamos cumprir a lei? 

É a autoproclamação da anarquia. Isso não é republicano, não é democrático. • Como combater medidas como essa?

O caminho é o constrangimento geral da República. Se berrarmos para (o presidente da Câmara Arthur) Lira, para o Congresso, que não somos palhaços, pode ser o único caminho. Temos que gritar na cara deles: “Não aceitamos isso!” É a chance que temos que isso não se concretize. Mesmo assim não temos certeza que vamos conseguir.

Entrevista a O Estado de S. Paulo, publicada em 17.05.23

Quem ‘enquadra’ Lula?

Petista avisou que não admitirá oposição do PT à tramitação do arcabouço fiscal. Mas, ao propor ele mesmo exceções ao texto, o presidente desmoraliza a proposta da Fazenda

Há poucos dias, o presidente Lula da Silva reuniu os ministros palacianos e os líderes do governo na Câmara e no Senado. Segundo consta, nesse encontro o presidente “enquadrou” o PT, deixando claro que, em hipótese alguma, admitirá oposição de seu partido à tramitação do Projeto de Lei Complementar (PLC) 93/2023, que institui o novo arcabouço fiscal.

Em tese, Lula tem razão ao chamar seus correligionários às falas. O mínimo que se espera do partido do presidente, que está à frente de dez Ministérios e de tantos outros postos de destaque na administração pública federal, é a defesa dos projetos elaborados pelo próprio governo. Mas, ao contrário disso, pululam exemplos de que a oposição mais ferrenha ao arcabouço fiscal tem vindo justamente dos petistas, sobretudo na Câmara

É bom ter em mente que, se dependesse da vontade da ala mais sectária do PT, o Congresso não estaria deliberando sobre arcabouço fiscal algum neste momento. No fundo d’alma, petistas como a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do partido, e os deputados Lindbergh Farias e Zeca Dirceu, entre outros, querem que o governo tenha liberdade absoluta para gastar. Alguns economistas heterodoxos que andam fazendo a cabeça dessa turma têm sustentado uma teoria esotérica segundo a qual governos que se endividam na própria moeda jamais seriam insolventes, pois bastaria imprimir dinheiro na medida de sua necessidade para quitar dívidas.

Devaneios à parte, ao fim e ao cabo, Lula teve o bom senso de privilegiar a ala mais moderada do PT, que tem no ministro da Fazenda, Fernando Haddad, uma de suas faces mais conhecidas. Como já dissemos neste espaço, a proposta de arcabouço fiscal apresentada por Haddad, em meados de abril, sem dúvida foi melhor do que a sonhada por muitos de seus colegas de partido, mas ainda está distante de ser um sistema de controle de gastos públicos com a seriedade de que o País precisa como o substituto do regime fiscal anterior, o teto de gastos, o mesmo que é execrado pelos petistas como a raiz de todos os males do Brasil – depois do impeachment de Dilma Rousseff, é claro.

Falta quase tudo no texto original do PLC 93 para que a proposta de arcabouço fiscal possa ser reconhecida como tal. Não há gatilhos rigorosos para deter uma escalada de gastos diante de um cenário fiscal adverso; há muitas exceções para manutenção de subsídios, os chamados gastos tributários; e, principalmente, não estão previstas sanções para agentes públicos que descumprirem as regras fiscais, ferindo de morte a Lei Complementar 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, e fazendo do texto não mais do que uma carta de intenções.

Ao que tudo indica, porém, o relatório do deputado Cláudio Cajado (PP-BA) resolverá, se não todos, quase todos esses problemas, em especial a questão do enforcement, vale dizer, a ausência de punição por descumprimento de metas, e a previsão de gatilhos mais arrojados para o bloqueio de despesas na eventualidade de um cenário de desequilíbrio fiscal.

Para que não haja dúvidas: Lula “enquadrou” os petistas para que, no mínimo, não desconfigurem o trabalho de Haddad por meio de emendas que teriam como objetivo enfraquecer ainda mais um texto que já veio a público desacreditado por sua frouxidão. Lula não cobrou a participação dos petistas na negociação política na Câmara para tornar o arcabouço um projeto crível, de fato.

Diante da inexorabilidade da atuação do Congresso, que, cumprindo seu papel, aprimorará o PLC 93, o presidente em pessoa tem defendido que o aumento real, ou seja, acima da inflação, dos benefícios do programa Bolsa Família e do salário mínimo e os recursos do Fundeb sejam tratados como exceção às regras do novo arcabouço fiscal. Seria o caso de perguntar, então: quem “enquadrará” Lula? Sabe-se que são temas caros ao presidente. E exatamente por isso Lula deveria ser o primeiro a defender um marco fiscal mais rigoroso, ainda que isso seja extremamente improvável.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 17.05.23

Agora pode-se chamar a ex-primeira-dama de MiCash

Para não ser controlada pelo marido, teve que usar uma laranja

Jair e Michelle Bolsonaro participam de evento do PL Mulher, na Alesp - Marlene Bergamo - 6.mai.23/Folhapress

A certeza da impunidade produz episódios que, se estivessem num roteiro de filme, seriam considerados estapafúrdios. Só isso explica a declaração dada por Michelle Bolsonaro, segundo o advogado da família, Fabio Wajngarten, sobre usar o cartão de crédito em nome de uma amiga nos últimos dez anos: "meu marido sempre foi muito pão-duro".

Coitada. Para não ter os gastos controlados pelo companheiro, Michelle teve que usar uma laranja e agora entra para as estatísticas. Uma em cada cinco mulheres fazem compras escondidas do parceiro, segundo levantamento da fintech Onze. Por outro lado, o site Gleeden, especializado em relações não monogâmicas, mostra que 59% dos maridos ocultam parte de suas finanças da esposa.

Tem até nome esse hábito de omitir como são gastos os recursos que teoricamente são do casal: infidelidade financeira. Uma situação difícil quando se tem um marido que anda com um escorpião no bolso, caso de Bolsonaro, segundo Michelle. Poderia ser pior.

Imagine ter as contas pagas por um sujeito suspeito de corrupção, que usa auxílio moradia para comer gente, embolsa parte dos salários dos funcionários e que pode ter se beneficiado dos contratos feitos por uma empresa com o governo federal para pagar os boletos da mulher. Pois é. Muito pior

E, convenhamos, chamar Bolsonaro de pão-duro? Um pouco exagerada, para não dizer mal-agradecida. Não é de hoje que jorra dinheiro na conta da ex-primeira-dama. Nunca soubemos por que Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, depositou R$ 89 mil em sua conta, entre 2011 e 2016. Em cheques, importante dizer.

Talvez agora Michelle se livre da alcunha conquistada no começo do governo do marido quando a lambança dos cheques veio a público. Micheque é coisa do passado, talvez já possa ser chamada de MiCash. Para que Pix, se dá para pagar as contas em dinheiro vivo.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é Jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 16.05.23

A dura vida de Lula

Entre a pressão internacional para proteger a Amazônia e uma das elites mais predadoras do planeta, o presidente do Brasil se aproxima de uma situação impossível

Presidente Lula da Silva. ( Foto: Evaristo Sá, AFP)

Luiz Inácio Lula da Silva sempre pareceu muito confortável no poder. Tanto nos dois primeiros mandatos (2003-2010) quanto neste terceiro, iniciado em janeiro, ele sempre se movimentou como se tivesse nascido naquele habitat, mesmo em crises graves. O ex-sindicalista gosta visivelmente de sua posição e aprecia estar no centro das atenções. Mas talvez isso mude agora que ele está preso entre duas forças radicalmente opostas. Hoje, com menos de cinco meses no cargo, só os políticos mais ávidos gostariam de estar no lugar de Lula.

Por um lado, Lula só alcançará reconhecimento internacional se for capaz de proteger a Amazônia e outros biomas estratégicos do país de maior biodiversidade do planeta e, conseqüentemente, proteger os povos indígenas que mantêm a natureza viva. Por outro lado, Lula tem que governar com um Congresso dominado por uma elite predatória, negacionista e retrógrada, representada pelo que no Brasil é chamado de “bancada ruralista”, altamente organizada e financiada por empresas ligadas ao agronegócio.

Os limites estreitos de Lula ficaram evidentes em abril, no Acampamento Tierra Libre , o mais importante evento indígena anual, realizado na capital federal, Brasília. Para não agravar sua difícil relação com o Congresso, Lula só conseguiu anunciar a demarcação de seis terras indígenas, número irrisório diante da necessidade de justiça e das expectativas das lideranças indígenas que o apoiavam. Por lei, todas as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas até 1993, o que significa que o Estado tem um déficit de três décadas não só com sua população originária, mas também com sua própria Constituição.

O exemplo mais emblemático da situação em que se encontra Lula, entre um planeta em colapso climático e uma elite empenhada em agravar o aquecimento global em nome de benefícios imediatos, é a promoção de Tomás Oliveira de Almeida ao prestigiado cargo de coordenador-geral do o Secretariado dos Comitês do Senado, revelou o The Intercept na segunda-feira. Almeida foi um dos jovens que, em uma manhã de abril de 1997, ateou fogo no índio Pataxó Galdino Jesus dos Santos, que dormia em um ponto de ônibus em Brasília. No dia 19 de abril, data em que se comemora no Brasil o Dia dos Povos Indígenas, o governo Lula homenageou o indígena assassinado. No mesmo momento, o Senado promoveu Almeida, um de seus assassinos.

Esse é o Brasil que Lula tem que governar. Se a sociedade internacional quiser salvar a Amazônia, terá que punir com muito mais rigor o agronegócio brasileiro e, o que é muito importante, tirar de lá as mineradoras de seus próprios países. Se tudo depende da elite predadora que domina o Congresso, logo a Amazônia vai virar ilustração para contar às crianças que um dia existiu um planeta com uma grande selva e dias muito melhores para os humanos.

Eliane Brum, a autora deste artigo, é colunista do EL PAÍS. Pubicado originalmente em 17.05.23. Tradução de Meritxell Almarza.