quarta-feira, 10 de maio de 2023

STF conclui julgamento e derruba indulto concedido por Bolsonaro a Daniel Silveira

Tribunal decidiu, por oito votos a dois, que medida configurou 'desvio de finalidade'

O então presidente Jair Bolsonaro entrega a Daniel Silveira cópia do indulto concedidoO então presidente Jair Bolsonaro entrega a Daniel Silveira cópia do indulto concedido Cristiano Mariz/Agência O Globo/27-04-2022

O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou nesta quarta-feira que foi inconstitucional o decreto de indulto individual concedido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao ex-deputado federal Daniel Silveira (PTB) em abril de 2022. A decisão foi tomada por oito votos a dois. Prevaleceu o voto da presidente do STF, ministra Rosa Weber, que foi relatora do caso e considerou que a medida editada por Bolsonaro representou um "desvio de finalidade".

E agora? Saiba o que acontece com Daniel Silveira após derrubada do indulto concedido por Bolsonaro

Após quatro sessões, o julgamento foi concluído nesta quarta com os votos dos minitros Luiz Fux e Gilmar Mendes, que seguiram a posição de Rosa Weber. Na semana passada, a maioria já havia sido garantida com os votos de Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. A divergência ficou por conta dos ministros André Mendonça e Nunes Marques, indicados por Bolsonaro.

Parlamentar foi preso por descumprimento de medidas cautelares determinadas pelo STF, após se tornar réu por manifestações antidemocráticas

Em abril do ano passado, Daniel Silveira foi condenado pelo STF a oito anos e nove meses de prisão após dar declarações contra os integrantes da Corte e as instituições democráticas. Na ocasião, o ministro Alexandre de Moraes determinou a perda do mandato político de Silveira e aplicação de multa de 35 dias de cinco salários mínimos, o equivalente a R$ 192 mil.

O anúncio da graça presidencial foi feito por Bolsonaro em uma transmissão ao vivo menos de 24 horas após a conclusão do julgamento no STF. Minutos depois, o texto foi publicado em edição extra do Diário Oficial da União (DOU).

Com a derrubada do indulto concedido, volta a valer a pena determinada pela Corte. O cumprimento desta sanção, no entanto, não é imediato e somente deverá se dar após o julgamento, pelo STF, dos segundos embargos de declaração, um tipo de recurso contra a condenação.

Apesar disso, Silveira está preso preventivamente desde fevereiro, mas por descumprir medidas cautelares impostas pelo STF. A prisão preventiva serve para garantir o andamento do processo e é diferente do cumprimento da pena.

'Peça vulgar'

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes afirmou que, por trás do decreto de Bolsonaro, havia "uma peça vulgar de puro proselitismo político" que validava os atos de Silveira.

— Não é preciso ter grande imaginação para ver que por trás da pomposa invocação de uma competência privativa do poder Executivo para perdoar a pena do ex-parlamentar há uma peça vulgar de puro proselitismo político, cujo efeito prático é o de validar expedientes subversivos praticados pelo agraciado em detrimento do funcionamento de instituições centrais da democracia.

Luiz Fux afirmou que crimes contra o Estado Democrático de Direito não podem ser objeto de anistia.

— Entendo que crime contra o Estado Democrático de Direito é um crime político e impassível de anistia, porquanto o Estado Democrático de Direito é uma cláusula pétrea que nem mesmo o Congresso Nacional, através de uma emenda, pode suprimi-la.

Histórico de prisões

O ex-deputado foi preso pela primeira vez, por determinação de Moraes, em fevereiro de 2021, após ter divulgado um vídeo no qual proferia ataques e ofensas aos ministros da corte. Um mês depois, o ministro concedeu prisão domiciliar a Silveira.

Em junho daquele ano, no entanto, Moraes apontou violações do monitoramento eletrônico e voltou a determinar a prisão. Em novembro, o ministro revogou a prisão e ordenou medidas cautelares, que estavam valendo até fevereiro, quando houve nova prisão.

Daniel Gullino, de Brasília - DF para O Globo, em 10.05.23.

O relógio de Lula

Ignorando o eleitor que votou nele apenas para impedir a reeleição de Bolsonaro e desrespeitando decisões soberanas do Congresso, o presidente quer fazer o Brasil voltar no tempo

O petista Lula da Silva parece não ter entendido por que foi eleito presidente da República. Ao tentar reverter no tapetão a privatização da Eletrobras, pouco depois de ter buscado, por decreto, destruir o Marco do Saneamento para favorecer estatais ineficientes do setor, Lula desrespeita ao mesmo tempo o Congresso e os muitos eleitores que nele votaram não por simpatizarem com a embolorada agenda lulopetista, mas apenas para impedir que Jair Bolsonaro se reelegesse.

No discurso, Lula da Silva se opõe às privatizações porque as considera “um crime de lesa-pátria”, como classificou o caso da Eletrobras, “um patrimônio deste país”, segundo disse. Na prática, contudo, muitas estatais servem como cabide de emprego para arregimentar apoio político, fundamental para um governo incompetente na articulação com o Congresso, e de quebra para acomodar sindicalistas companheiros. Por isso, quanto mais estatais, melhor para os estatólatras.

A afronta de Lula ao que foi decidido pelo Congresso com relação à Eletrobras e ao setor de saneamento básico não passou despercebida pelas lideranças parlamentares.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, classificou como “preocupante” a fixação do presidente em reverter a privatização da Eletrobras no Supremo Tribunal Federal. À CNN Brasil, Lira afirmou que Lula tem todo o direito de não propor mais privatizações em seu governo, “mas mudar um quadro que já está jogado e definido, e com muitos grupos, muitos países investindo, realmente causa ao Brasil uma preocupação muito forte”. Trata-se de constatação óbvia: mudar as regras do jogo de supetão, sem justificativa outra que não seja a adição petista à máquina estatal, amplia a sensação de que contratos no Brasil não valem o papel em que são escritos.

Já o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, lembrou que a privatização da Eletrobras “foi algo muito debatido na Câmara e no Senado”, que o novo status da empresa “é uma realidade” e que seria “mais útil ao Brasil” discutir reforma tributária e o novo regime fiscal.

Mas Lula é incapaz de vencer sua natureza autoritária, convenientemente camuflada pelo figurino do democrata que se apresentou como contraponto ao golpismo bolsonarista. Bastaram alguns meses de governo para se perceber que Lula, sem qualquer pudor, quer impor o atraso petista na marra, recorrendo ao Judiciário para tentar desfazer o que foi decidido pelo Congresso, em particular no que diz respeito às estatais. Não foi à toa que o lulopetismo, por meio de seus aliados, ajudou a fazer carga contra a Lei das Estatais, que acabou com a esbórnia das nomeações políticas para essas empresas, justamente em resposta aos escândalos da trevosa era petista.

Ademais, os brasileiros moderados que foram decisivos para a vitória de Lula não votaram para reverter a reforma trabalhista, como ainda acalentam os petistas, nem para enterrar a reforma do ensino médio e, menos ainda, para fazer letra morta da Lei de Responsabilidade Fiscal, como fica claro na proposta de novo regime fiscal.

Passar uma borracha por cima dessas conquistas, é preciso deixar bem claro, é uma agenda histórica do PT e de partidos coligados, não o desejo da maioria dos eleitores que votaram por uma composição do Congresso que claramente não se coaduna com o ímpeto revisionista que anima o Palácio do Planalto.

Lula nem ao menos pode dizer que as “revisões” que ele propõe para marcos legislativos que mal se consolidaram, como é o caso da privatização da Eletrobras, serviriam para melhorar esses projetos, eliminando, por exemplo, muitos “jabutis” que foram aprovados a reboque deles. Quando fala em reverter a privatização da Eletrobras, Lula está movido apenas pelo desejo de desfazer tudo o que foi feito depois da estrepitosa ruína petista, marcada por escândalos de corrupção, por uma brutal recessão e pelo justíssimo impeachment de Dilma Rousseff. Lula quer fazer o relógio do Brasil andar para trás. Cabe ao Supremo dizer a ele que isso não pode.

Editorial /Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, 10.05.23

A derrota de Boric no Chile mostra os limites da esquerda e das escolhas de Lula no Brasil

Petista devia prestar atenção às razões que levaram a extrema direita a vencer eleição no Chile e aos motivos de Macron tratar a memória da resistência francesa como dever cívico


O ainda pré-candidato à presidência Lula foi recebido por Macron para tratar das mudanças climáticas e do futuro da União Europeia e a integração da América Latina Foto: Ricardo Stuckert/PR

Quando Emmanuel Macron decidiu ir na segunda-feira, 8, ao memorial da antiga prisão de Montluc, em Lyon, onde Jean Moulin foi preso e torturado pelos nazistas, o chefe de Estado francês associou a figura do líder da resistência à do historiador Marc Bloch, deportado e morto pelos alemães. “Moulin e Bloch nos dizem que a República francesa não é, por definição, boa ou má; ela é necessária, vital e justa. Tenhamos confiança em nós e no que vai se seguir.”

Moulin foi preso em 21 de junho de 1943. Torturado pela Gestapo, não falou. Morreu quando o levavam para a Alemanha. Acostar Moulin a Bloch na comemoração do fim da guerra na Europa tem uma razão. Macron pretende não ser apenas julgado, mas compreendido.

Bloch acreditava que a ciência histórica se consumava na ética. “A história deve ser verdade; o historiador se realiza como moralista, um justo”, escreveu Jacques Le Goff sobre o autor de Apologia da História. “Ele procura a verdade e a justiça não fora do tempo, mas no tempo.” Compreender, no entanto, nada tem de passividade. A receptividade passiva só nos leva a negar o tempo e, por conseguinte, nossa própria história.

Acossado pelos protestos por ter feito uma reforma da Previdência que julga necessária e justa, Macron governa em uma Europa conflagrada. As disputas políticas se inflamam na França ao mesmo tempo em que Putin retoma os sonhos imperiais russos. O francês enfrenta essa dupla prova. E resiste.

No Brasil, Lula assiste a tudo como se nada tivesse a aprender. A esquerda petista sonhava com um estalido no Brasil como o que convulsionou o Chile. Agora, ao lado de Lula, vê ali o triunfo da extrema direita na eleição para a nova Constituinte, resultado da tentativa de impor ao país um pensamento identitário, como se a antipolítica do estalido fosse força hegemônica e não circunstancial.

A lição de Macron vai além da coragem para resistir. Ela mostra que onde a memória é um dever cívico, a Ucrânia não é mais distante, nem um capricho. Nela cresce a história, que se alimenta da memória para salvar o passado a fim de servir ao presente e ao futuro. A memória torna fácil compreender que o sentido da República é a liberdade. E esta nunca está ao lado de quem se nega a viver os desafios de seu tempo.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é colunista d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 10.05.23.

George Santos, deputado brasileiro nos EUA, é preso acusado de lavagem de dinheiro

Segundo o Departamento de Justiça americano, Santos se apresentou para a audiência em um tribunal de NY e foi colocado ‘sob custódia federal’

O deputado americano George Santos foi preso na manhã desta quarta-feira, 10 (Foto: Andrew Harnik/ AP)

O deputado americano de origem brasileira George Santos foi preso acusado de lavagem de dinheiro e outros crimes federais nesta quarta-feira, 10, antes de uma audiência no tribunal de Nova York.

Santos terá de responder à sete acusações relacionadas à fraude eletrônica, três de lavagem de dinheiro, uma de roubo de fundos públicos e duas por fazer declarações falsas à Câmara dos Deputados, segundo o jornal americano The New York Times.

George Santos: defensor de pautas conservadoras participou de concursos de drag queen no Brasil

A acusação diz que Santos induziu apoiadores a doar para uma empresa sob o falso pretexto de que o dinheiro seria usado para apoiar sua campanha. Em vez disso, diz, ele o usou para despesas pessoais, incluindo roupas de grife de luxo e para pagar seus cartões de crédito.

Santos, que se tornou conhecido por mentir no currículo antes de se eleger deputado por NY no ano passado, tem problemas com a Justiça brasileira, inclusive inquéritos por estelionato tramitando na Justiça do Rio de Janeiro.

Na terça, Santos disse à Associated Press que as acusações eram desconhecidas por ele. “Isso é novidade para mim”, afirmou.

Santos admitiu ter mentido sobre ter ascendência judaica, formação em Wall Street, diploma universitário e um histórico como estrela do vôlei.

O procurador federal, Breon Peace, disse que as acusações “buscam responsabilizar Santos por vários esquemas fraudulentos e deturpações descaradas”.

“Em conjunto, as alegações acusam Santos de agir em repetidas desonestidades e enganos para chegar aos salões do Congresso e enriquecer”, disse Peace.

Republicanos sabiam de mentiras de George Santos, mas fizeram vista grossa, diz jornal

O republicano enfrenta pressão de seus correligionários e eleitores, que já pediram sua renúncia. Em março, o Comitê de Ética da Câmara abriu uma investigação contra o congressista. A comissão vai investigar eventuais atividades ilegais em sua campanha, possíveis violações de leis federais na atuação dele em uma empresa e a denúncia de assédio feita por um assessor que trabalhou em seu gabinete.

A rede de mentiras de George Santos

Entre outras alegações, Santos disse ter diplomas da Universidade de Nova York e do Baruch College, apesar de nenhuma das instituições ter registro de sua frequência. Ele alegou ter trabalhado no Goldman Sachs e no Citigroup, o que também não era verdade.

Ele disse falsamente que era judeu e que seus avós escaparam dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Santos, que se identifica como gay, também não revelou que foi casado com uma mulher por vários anos, terminando em 2019.

(AP, NYT e W.Post). Publicado originalmente no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 10.05.23, às 10h40. Atualização: 10/05/2023 | 11h02

segunda-feira, 8 de maio de 2023

O medo do populismo reacionário não é mais assustador

A política tradicional — conservadora e progressista — deve se rearmar de forma inteligente para confrontar uma opção que oferece esperança imediata, um atalho rápido e soluções fáceis e diretas.

É difícil lutar contra o que não é compreendido. E a tentação de usar um repertório esgotado e insuficiente de temas para analisar e competir com novos fenômenos faz parte da incapacidade da política formal e tradicional. É o caso da irrupção avassaladora de atores políticos difíceis de classificar, como os libertários na Argentina ou os republicanos no Chile. Como é fácil reduzi-los a tópicos e rotulá-los de extrema direita! Mas a realidade ⎯teimosa⎯ é mais complexa. Ambos os projetos perseguiram a direita tradicional e a encurralaram com entusiasmo e audácia renovados.o que os torna muito atraentes para uma ampla gama de eleitores: desde os mais conservadores até amplos setores de jovens que, onde a política tradicional vê a involução reacionária, eles veem a inovação revolucionária.

E eles crescem em uma esquerda que continua a olhar para essas realidades do ponto de vista da arrogância intelectual e da superioridade moral. Essa esquerda, por incapacidade ou comodismo, prefere usar o catálogo do medo ⎯com todas as suas variantes⎯ para alertar e afugentar os eleitores do poderoso apelo desse tipo de populismo tão eficaz. “Nós – a esquerda, os acadêmicos, os professores – deixamos a política nas mãos daqueles para quem o poder real é muito mais interessante do que suas implicações metafóricas”, escreveu Tony Judt em The Refuge of Memory .

Em vez de compreender o seu magnetismo e a sua linguagem sedutora e enquadramento formal e estético, a preguiça intelectual prefere o cliché “Eles não vão passar!”, como se esta nova direita fosse um ressurgimento dos reaccionários do século passado. Mas o medo não é mais assustador. Ou pelo menos não como o único mobilizador do anti voto.

Estas podem ser as razões pelas quais este recurso é inútil e outros caminhos devem ser explorados se se quiser competir -e conquistar- uma expressão política difícil de classificar.

1. A autopercepção do negativo. Para muitos eleitores que vivem ⎯ou sentem⎯ que seu metro quadrado, suas expectativas presentes (e muito mais as futuras) não têm horizonte de melhora, a fronteira entre ser ruim ou muito ruim não é mobilizadora. Para quem não tem nada, o que significa ser pior? Para aqueles que consideram que seu mundo está perdendo ou sendo ignorado pela política tradicional, o medo significa outra coisa. Como podem ser piores do que já são?

2. A falta de cultura política. A banalização do fascismo, a relativização moral e a falta de uma cultura democrática profunda transformam a história perigosa da direita radical em uma história superficial. Existem dados impressionantes. De acordo com o último Latinobarômetro , um em cada cinco menores de 25 anos preferiria um sistema autoritário.

3. A história não está presente. O peso e os ensinamentos da história estão cada vez mais ausentes de nossas vidas. O desconhecimento dos factos, o distanciamento dos mesmos, a falta de testemunhos valorizados e a perda de sentimentos de culpa ou dívida, fazem com que a ameaça reaccionária (do passado) não surta efeito na consciência dos eleitores. A história não é mais uma herança a ser preservada, cuidada ou valorizada. A oferta autocrática ou radical não é sentida como uma ameaça por ignorar o passado. O elo das relações causais foi perdido.

4. A naturalização do excesso. O populismo radical polariza, divide, ataca e não hesita em usar a linguagem como arma de guerra. O insulto ou grosseria faz parte de uma pose desafiadora descarada que estimula o pente verbal e é vista por muitos eleitores como uma expressão de raiva legítima, bravura ou extrema sinceridade. Assim, a linguagem politicamente correta é desafiada pelo desabafo que se apresenta como sinal de audácia revolucionária. Cada vez mais, disparates ou provocações embranquecem posições extremas e radicalizadas. Eles não são vistos como radicais, mas como histriônicos, na melhor das hipóteses. E eles tendem a se desculpar. Na sociedade de gritos, insultos ou mentiras simplesmente parecem mais altos.

5. Sem culpa. Muitos eleitores se atrevem a compartilhar ideias, questões e conteúdo abertamente radicais e reacionários. Mas esses cidadãos não se sentem direitistas ⎯muito menos fascistas⎯, não se sentem questionados ou envergonhados pela identificação acusatória de uma suposta identidade reacionária. Esses rótulos perderam o significado para eles. E podem até se tornar um argumento de afirmação e combate. "Se ser da direita é isso... bem, eu sou da direita!", pensam consigo mesmos.

Competir com o novo com a lógica do passado é melancólico e inútil. A política tradicional ⎯conservadora e progressista - deve se rearmar inteligentemente para enfrentar um populismo reacionário que não assusta, ainda que nos escandalize. Esse populismo oferece esperança imediata, atalhos rápidos e soluções fáceis e diretas. O que mais você pode pedir quando o futuro não é mais superior e o presente é decepcionante ? Quando o medo do desconhecido é menor que o medo ⎯e a desesperança⎯ do que já se sabe... a possibilidade do impensável irromper é mais certa do que podemos imaginar.

Antoni Gutiérrez-Rubi, o autor deste artigo é jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 07.05.23

Verdadeiro plano do lulismo tem três frentes

O verdadeiro plano do lulismo tem três frentes complementares: 1) Reescrever o capítulo corrupção; 2) Retomar controle das estatais; 3) Controlar imprensa e redes sociais.

O método da frente 1 é demonizar juízes e procuradores para emplacar a tese da “criminalização da política”, desviando para questões processuais o foco das relações financeiras e imobiliárias de Lula e seus pares com empresas que, em seus governos, receberam contratos públicos e praticaram suborno.

Apesar de decisões judiciais favoráveis a petistas (à exceção, por enquanto, de José Dirceu, condenado em três instâncias por corrupção na Petrobras) e aliados (até Sérgio Cabral teve anulada pelo juiz Eduardo Appio, o “LUL22”, uma condenação imposta por Sergio Moro), a frente 1 busca consolidar narrativas de Lula na sociedade, pois, como ele ouviu de uma jornalista americana, “metade do Brasil o despreza”. Essa metade põe em risco futuras eleições e pressiona o Congresso contra as frentes 2 e 3.

A frente 2 busca: a) Afrouxamento da Lei das Estatais, aprovado na Câmara, mas, diante da repercussão negativa, pendurado no Senado e no STF. Lá, porém, a liminar de Ricardo Lewandowski pelo fim da quarentena para indicações político-partidárias, seguida em julgamento por pedido de vista de Dias Toffoli garante que o governo vá nomeando políticos para empresas públicas, o que dificulta impedimento futuro em caso de definição contrária.

b) Alterações no Marco do Saneamento, para garantir vantagens a estatais em contratos. Os decretos do governo, no entanto, foram derrubados na Câmara por motivos bons (pressão de opinião pública e iniciativa privada; repúdio a mudanças sem projeto de lei) e ruins (insatisfação com ‘toma lá, dá cá’).

c) Retomada do controle da Eletrobras, por ação da AGU no STF para derrubar termos que limitaram influência da União; e pressão de Lula, que se recusa a negociar enquanto não forem substituídos executivos atuantes na privatização.

A frente 3 inclui de recusas similares a quem emprega jornalistas incômodos a escambos com verbas de publicidade e itens de interesse de veículos em projetos de lei, como a remuneração para conteúdo jornalístico prevista no PL 2630. Em relação às redes, a frente 3 apresentou regras convenientes, tentou garantir o controle do órgão fiscalizador, reagiu à posição do Google via Senacon e Cade, e celebrou sua remoção por Alexandre de Moraes. Mas perdeu, por ora, com o adiamento da votação.

O autoritarismo lulista está aí – só não vê a metade do país que não quer.l

Felipe Moura Brasil , o autor deste artigo, é Jornalista. Escreve semanalmente para O Estado de S. Paulo, toda segunda-feira. Publicado originalmente em 08.05.23.

Política externa ideologizada

Diante das manifestações do presidente da República, o que pode bem significar esta nova reinserção internacional do País?


Ucrânia invadida e atacada pela Rússia

Atão propalada reinserção do Brasil no mundo, liderada pelo novo presidente da República, está se revelando uma nave sem rumo, cuja única bússola consiste num regresso a ultrapassadas ideias de esquerda. O ranço fica tão evidente que o próprio presidente fica dizendo e se desdizendo o tempo todo, numa mistura de desconhecimento do mundo, talvez de má-fé, sob a ótica de uma espécie de anti-imperialismo. Isso o leva a alianças as mais esdrúxulas, como o alinhamento à China comunista, ao imperialismo regional russo, de extrema direita, mas recuperando o passado stalinista e czarista. Aliás, como dizia Hannah Arendt, os totalitarismos desconhecem as distinções de esquerda e direita, compartilhando determinações essenciais. Isso sem falar em suas afinidades eletivas com Venezuela, Cuba e Nicarágua. Manifestase, assim, o mesmo desprezo pelos valores da democracia e da liberdade.

A reinserção seria especialmente bem-vinda, considerando o desprezo da política bolsonarista pelo meio ambiente influenciando negativamente a imagem brasileira no mundo. Surgiu uma espécie de aliança contra o País, como se tivéssemos nos tornado responsáveis por todos os males ambientais do Planeta, quando sabemos que boa parte dessas críticas provinha de países rivais do agronegócio brasileiro. Em todo caso, a percepção americana e europeia era essa. Acrescente-se a canhestra tentativa de golpe do dia 8 de janeiro, para dar a Lula todo um verniz de simpatia e, mesmo, de democrata. Ora, é todo esse capital que Lula e sua política externa estão rapidamente pondo a perder.

Um Estado, para afirmar-se no mundo, precisa defender seus próprios interesses, mormente comerciais, conforme uma visão geopolítica que o insira como um ator diplomaticamente respeitável. Não pode alinhar-se politicamente a outros países se isso vier a lhe criar um prejuízo qualquer. Eis por que necessita de um corpo diplomático preparado e de Forças Armadas que mostrem aos outros a sua capacidade de mobilização e de dissuasão. Isso significa que deve negociar com qualquer país, independentemente de suas respectivas posições ideológicas. Ou seja, deve negociar com EUA, China, Europa, África, países asiáticos e do Oriente Médio, para além da vizinhança latino-americana, sem nenhum tipo de preconceito. Daí não se segue, porém, que deva seguir a geopolítica chinesa ou russa, por exemplo, ou privilegiar os hermanos latino-americanos por serem de esquerda.

A equalização estabelecida pelo presidente Lula entre a Rússia e a Ucrânia como igualmente responsáveis pela guerra é estarrecedora. O invasor e o invadido são tidos por iguais, numa justificativa inqualificável da invasão russa. Termina ele, assim, tomando para si a ideologia da Grande Rússia, como se esse país estivesse apenas recuperando uma província sua, subsequente ao desmoronamento da União Soviética. Tal política é de subserviência dos ucranianos, que deveriam estar subordinados ao seu vizinho, supostamente seu mentor e protetor. A ideologia russa, tão bem esboçada por Alexander Dugin, é um prolongamento, em diferentes matizes e nuances, das que guiaram o império dos czares e dos comunistas, com proeminência dada a Stalin. Não foi a Crimeia o motivo da guerra, quando mais não seja por estar já ocupada. Tampouco um pleito de ingresso da Ucrânia na Otan, naquele então não aceito por boa parte dos países europeus, em especial pela Alemanha. Não era uma questão de horizonte imediato, longe disso.

Agora, que Lula se posicione como mediador, defendendo – pasmem – que os países europeus não vendam armas à Ucrânia, para não incentivar a guerra, é um evidente despropósito, pois significaria simplesmente a rendição total desse país. A Rússia certamente ficou muito satisfeita com tal proposta. Chegou a enviar ao Brasil o seu ministro de Relações Exteriores!

Outra pérola geopolítica foi sua declaração de que a ONU, tendo criado o Estado de Israel, deveria fazer o mesmo em relação ao Estado palestino. Ignorância ou má-fé?

Em 1947, a ONU votou pela partilha da Palestina, então sob mandato britânico. A partilha significava a coexistência de dois Estados. A propósito, o outorgado ao Estado judeu foi uma parte menor do que a aspiração dos seus fundadores. O que aconteceu? Foram os árabes – não havia na época a denominação de palestinos – que não aceitaram criar o seu o seu próprio Estado, optando por uma guerra de extermínio do jovem Estado hebreu. Israel criou o seu próprio Estado em 1948, tendo resistido à união dos Estados árabes vizinhos que simplesmente visavam ao seu extermínio. O mufti de Jerusalém, inclusive, apregoava, em seus discursos e conclamações, a destruição pura de simples dos judeus, que deveriam ser jogados ao mar. Já se tinha destacado na guerra por seu antissemitismo, tendo vivido em Berlim, apoiado e financiado por Hitler e como amigo de Himmler. Chegou a visitar Auschwitz a convite de Eichmann.

Logo, o que pode bem significar esta nova reinserção internacional do Brasil? •

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na UFRGS. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 08.05.23

Solidários na desfaçatez

Petistas e bolsonaristas esquecem as diferenças quando se trata de interesses em comum, como a PEC que anistia partidos que burlaram as regras do fundo eleitoral para mulheres e negros

Este jornal já chamou a atenção para um fato incontornável: os partidos políticos, como todas as organizações privadas, devem se sustentar por meio de recursos financeiros privados. Esse dinheiro pode vir de doações feitas por eleitores, além de filiados, que se sintam representados pelos valores e agendas programáticas que cada partido defende para o País. Tão mais vibrante será nossa democracia representativa quanto mais sólida for a conexão entre eleitores e legendas.

Os partidos, porém, são recalcitrantes em reconhecer a realidade. Essa postura pode ser motivada por comodismo. Afinal, para que trabalhar pela aproximação com eleitores que possam se tornar doadores no futuro se o dinheiro líquido e certo do Orçamento da União entrará na conta dos partidos, incondicionalmente, todos os meses? Pode, também, ser inspirada por interesses inconfessáveis.

O fato é que, historicamente, os partidos têm usado a força óbvia que têm no Congresso para apresentar, de tempos em tempos, projetos de lei e emendas à Constituição que não apenas mantêm o status quo, qual seja, a quase exclusividade de fontes de financiamento público para as legendas e as campanhas eleitorais, como aprofundam essa relação de dependência do erário por interesses paroquiais.

A mais nova ação de socorro financeiro aos partidos à custa dos contribuintes – e por “nova” entenda-se que decerto não será a última – uniu até petistas e bolsonaristas no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. Essa união improvável revela que, quando se trata de salvaguardar o cofre dos partidos, não há ideologia no mundo capaz de distinguir os parlamentares brasileiros.

É na CCJ da Câmara que está em deliberação a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, que estende até as eleições gerais de 2022 a anistia concedida aos partidos que, nas eleições municipais de 2020, burlaram as regras de distribuição de recursos do fundo eleitoral entre candidaturas de mulheres e negros. Caso esse autoperdão seja aprovado, os partidos ficarão isentos do pagamento de multas milionárias, além de outras punições que podem ser impostas a seus dirigentes.

É espantoso, mas não surpreende, que o PT, logo o partido que se apresenta à sociedade como o grande defensor das cotas para mulheres e negros nas mais variadas esferas da vida nacional, não só descumpriu a regra que previa a destinação de 30% dos recursos do fundo eleitoral para aquelas candidaturas, como agora, de mãos dadas com os bolsonaristas, não hesitou em pugnar pela manutenção da PEC 9/2023 na pauta da CCJ, um esforço concentrado multipartidário que garantiu a sobrevida da proposta por 38 votos a 12. “Não é apenas com multa e punições que será assegurada a participação de mulheres e negros (nas eleições)”, disse a presidente do partido, Gleisi Hoffmann (PT-PR).

A deputada petista está em perfeita sintonia com seu colega de Câmara e presidente do Republicanos, Marcos Pereira (SP). Em entrevista ao Valor, no dia 28 passado, Pereira construiu o argumento que decerto será seguido por seus pares que não tenham pruridos em manifestar misoginia e preconceito. Segundo ele, o “descumprimento de determinadas regras” ocorre porque, ora vejam, “não tem mulheres com voto, infelizmente, para poder disputar no nível que a legislação (eleitoral) exige”.

Outra aberração é o fato de a anistia, mais uma, recair sobre a burla de regras que os próprios congressistas aprovaram há não muito tempo em processo legislativo absolutamente regular.

A PEC 9/2023 é em tudo contrária ao interesse nacional. O perdão por irregularidades recorrentes cometidas pelas legendas na distribuição do fundo eleitoral entre grupos sociais sub-representados afasta o Congresso da realidade da sociedade brasileira. Ademais, é um prêmio à irresponsabilidade dos partidos e uma afronta ao Supremo Tribunal Federal ao permitir que as legendas possam arrecadar doações de empresas para quitar dívidas contraídas até 2015, quando a Corte, em boa hora, proibiu doações de pessoas jurídicas para partidos e campanhas. Isso não pode prosperar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.05.23

Cheiro de sangue na água

Tubarões do Congresso farejam governos fracos, como parece ser este de Lula, o que tende a encarecer a governabilidade. Mas Lula deve compreender que articular não é só distribuir dinheiro

Com menos de cinco meses de governo, o presidente Lula da Silva sofre as agruras de uma fraqueza política historicamente atípica para o momento. A esta altura, caso não estivesse perdido em outros propósitos, Lula deveria estar aproveitando a força e a popularidade advindas de sua recente vitória nas urnas para vencer resistências e pavimentar, no Congresso, o caminho para a aprovação de medidas difíceis, como o novo arcabouço fiscal e a reforma tributária. Até agora, no entanto, o que se viu foi o exato oposto: uma coleção de reveses.

Disposto a mudar essa situação adversa, Lula anunciou que assumirá pessoalmente a articulação política de seu governo. O quadro de resistências aos interesses do Palácio do Planalto no Congresso, de fato, é de uma complexidade que demanda a ação direta de quem tem a caneta e a palavra final no Poder Executivo, além de, principalmente, a experiência em negociações políticas supostamente testada ao longo de outros dois mandatos presidenciais.

Como tubarões que sentem o cheiro de sangue na água, não faltam parlamentares dispostos a aproveitar esse estado de quase letargia do governo na condução de uma agenda política no Congresso – cada vez mais empoderado – para dele extrair tudo quanto for possível: dinheiro, cargos, poder. Lula, porém, parece olhar para o gigantesco desafio que tem diante de si com lentes embaçadas por convicções pregressas.

O mundo, o Brasil e o Congresso já não são mais os mesmos de 20 anos atrás. O chamado presidencialismo de coalizão opera hoje sob outras bases. É cada vez maior o poder dos parlamentares sobre a disposição de recursos do Orçamento da União, limitando os instrumentos republicanos à disposição do presidente de turno para atrair o Poder Legislativo para a mesa de negociação.

Para ser bem-sucedido nessa nova etapa do governo, e, sobretudo, para que o País seja o grande beneficiado pelos frutos dessa articulação política entre Lula e os líderes dos partidos no Congresso, o presidente precisa compreender que articulação política não é distribuição de dinheiro pura e simples; isso é compra de votos. Uma boa articulação política, a de que o Brasil tanto precisa para resolver seus problemas crônicos, implica, necessariamente, dividir poder, transigir sobre agendas tidas como conflitantes, caminhar para a moderação e gerar compromissos de coesão coadunados com o melhor interesse nacional, não com interesses paroquiais.

Só o tempo haverá de mostrar os resultados que a decisão de Lula de tomar para si a articulação política do governo vai produzir. Até agora, o presidente tem se revelado surpreendentemente inábil para construir uma maioria segura no Congresso em termos republicanos, sobretudo após o fim do orçamento secreto tal como o esquema fora concebido pelo governo de seu antecessor. Basta dizer que a base de apoio ao governo no Congresso nem sequer tem conseguido evitar a convocação de ministros de Estado para serem fustigados pela oposição em comissões temáticas da Câmara e do Senado.

Lula, pessoalmente, tem tido grande dificuldade até para conter a oposição do próprio PT à proposta de arcabouço fiscal formulada pelos Ministérios da Fazenda e do Planejamento. O presidente ainda passou pelo constrangimento de ver seus decretos para alterar a substância do Marco Legal do Saneamento ruírem, em boa hora, como um castelo de cartas.

Tudo isso, somado à instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) contrárias aos interesses do governo e ao adiamento da votação do chamado “PL das Fake News”, evidencia a dimensão dos obstáculos que Lula precisa vencer para entregar ao sucessor um país melhor do que o que recebeu. Com uma base flutuante e uma oposição dividida entre os pragmáticos e os identitários, estes alinhados à extrema direita e infensos à barganha política com o governo, tal como era o PT na oposição, o Congresso é soberano em suas decisões. É o governo, Lula em particular, quem tem de trabalhar melhor para lidar com isso.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, publicado em  07.05.23

O caso Cuca

O Direito, como dado cultural, está sujeito ao mundo da vida, no qual se revelam significados e experiências vivenciadas, geradoras de convicções compartilhadas a presidir as formas de atuar e de perceber a existência. 

Estes modos de pensar e de sentir evoluem no processo histórico, influenciando também a interpretação e aplicação do Direito.

Assim sucede com o assédio e a violência sexual, que passaram a ser continuamente reprovados e cobrados pela sociedade, mormente a partir de 2017, com o movimento Me Too, quando se intensificou levantar o véu protetor dos abusadores, cuja violência se normalizara ao longo dos tempos, sem haver espaço sequer para a denúncia pela vítima, condenada a sofrer no silêncio a dor e a repugnância pela barbárie. A sociedade incriminava, mas não recriminava o abuso sexual sofrido pela mulher, tal como hoje corretamente muitas vezes ocorre.

Há 37 anos, o então jogador do Grêmio Cuca, ao lado de outros três colegas, foi processado e condenado por ter mantido relação sexual com pessoa vulnerável, uma menina de apenas 13 anos. O fato ficou submerso até meados de abril passado.

Agora, recentemente indicado como técnico do Corinthians, houve reação das mais variadas pessoas e entidades, mobilizadas pelas redes sociais, que repudiaram sua assunção, malgrado o tempo passado desde o crime. Cuca é um personagem público e sua vida importa, como hoje importam os comportamentos ofensivos à liberdade e à integridade da mulher. Seu relevo público justifica, neste momento de luta contra o assédio e a violência sexual, a divulgação do fato e a reação da sociedade.

Do ponto de vista jurídico, o caso Cuca suscita três questões: 1) Há um direito ao esquecimento? 2) Deve haver proteção dos dados pessoais sensíveis? 3) Se o fato estiver ainda em juízo, quais limites deve ter o tribunal da opinião pública instalado pela internet?

Há um conflito de valores a ser dirimido diante de cada um dos problemas, devendo remeter-se sempre ao fato concreto. A divulgação de crime que aconteceu há décadas é de ser admitida quando, sendo verdade, há interesse público nessa difusão, não consistindo em conteúdo eminentemente privado, nem havendo intuito exclusivamente caluniador.

O interesse público da divulgação prevalecerá sobre o direito de manter sob sigilo o crime conforme o entendimento de não caber perene lembrança da condenação de priscas eras. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu – resolvendo o Tema 786 da Repercussão Geral – que, se a notícia interessa à coletividade, legítimo é o direito à divulgação. Diz o Supremo: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados”. (veja-se STF RE 1.010.606/RJ – relator ministro Dias Toffoli.)

Ressaltou a ministra Cármen Lúcia, neste julgamento, “haver um direito à veracidade histórica no âmbito do princípio da solidariedade entre gerações”. Assim, é importante o relato acerca da agressão à mulher, a índios e gays, por exemplos específicos, que comprovam sua existência no passado. O ministro Dias Toffoli, no Agravo de Recurso Extraordinário n.º 833.248/RJ, ressaltou o efeito pedagógico da divulgação, pois é “necessário rever o passado para que novas gerações fiquem alertadas e repensem conduta no presente”. No caso de Cuca, é importante relembrar a condenação e aplicar a pena da reprovação social, para fazer presente a punição de fatos dessa natureza.

Na referida decisão do Tema 786 do STF, ressaltou-se que abusos de comunicação social, especialmente relativos à privacidade, devem ser analisados caso a caso. Como regra, a circunstância de ter alguém praticado crime pelo qual foi condenado não justifica que, por curiosidade, se invada sua intimidade e se revelem dados pessoais sensíveis, como crenças ou relacionamento familiar, que nada dizem respeito ao fato ocorrido. Segundo dispõe a Constituição, no artigo 5.º, inciso LX, a “lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade o exigir”.

Portanto, difusão de aspecto da área exclusiva da pessoa é admitida apenas se atender a um interesse público por ser aspecto essencial do crime, guardando relação com o fato delituoso. Pela mesma razão, ataques no anonimato das redes a familiares de Cuca devem ser reprimidos, sendo mesmo preciso uma moderação de conteúdo na internet.

Resta a questão do tribunal especial da internet, em casos ainda em análise pela Justiça, mas já objeto, nas redes, de julgamento antecipado ou de campanha pela condenação, com afronta ao princípio da presunção de inocência. Em tempos nos quais se vive na mídia e pela mídia, há um contraponto entre a força da comunicação social e a fragilidade do magistrado. O silêncio e recolhimento para julgar, reclamados pelo jurista italiano Carnelutti, desaparecem, tal como o rito processual disciplinador da resposta penal. Mas é assunto para muitos outros artigos. •

A divulgação de crime que aconteceu há décadas é de ser admitida quando, sendo verdade, há interesse público nessa difusão

Miguel Reale Júnior, o autor deste artigo, é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Foi Ministro da Justiça (Governo FHC). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.05.23

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Baixo clero

São crimes banais, de gente baixa, vulgares, mas muito graves, não apenas na visão criminal, mas até mesmo simbolicamente.

Polícia Federal faz busca e apreensão na casa do ex-presidente Jair Bolsonaro em BrasíliaPolícia Federal faz busca e apreensão na casa do ex-presidente Jair Bolsonaro em Brasília Cristiano Mariz / O Globo

Embora as trapalhadas sugiram o enredo de uma chanchada da Atlântida — nosso estúdio cinematográfico mais famoso nos anos 40 e 50 do século passado—, não se trata de uma comédia rocambolesca, mas de uma tragédia brasileira. Contada, ninguém acreditaria. Temos exemplos por vários países da América Latina de presidentes, civis e militares, envolvidos em tráfico de drogas. Temos presidentes envolvidos em corrupção de toda espécie. Agora, áudios e mensagens de celulares comprovam tudo, desvendam uma operação tão rastaquera quanto os que dela participaram.

Rudes, sem sutileza, descem ao submundo do crime para obter vantagens, desde rachadinhas até a tentativa de reter joias das Arábias. Supostamente, ficar com o colar avaliado em R$ 16 milhões implicaria vender as pedras preciosas em mercado clandestino. A falsificação do certificado de vacinação contra Covid-19 em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, levou a contatos com um militar que se gaba, em conversa com o tenente-coronel Mauro Cid, de saber quem matou Marielle.

Cid só não queria que o ex-vereador Marcello Siciliano fosse acionado porque “não é aquele envolvido no caso Marielle?”. O intermediário de contato tão estreito com milicianos garante que Siciliano não tem nada a ver com o crime, embora tenha sido dos primeiros investigados. Bastou para tranquilizar Cid, que não se incomodou, nem se impressionou, de estar conversando com alguém que garante saber o que todo mundo quer saber: “Quem matou Marielle?”.

Esse militar, pasmem, foi nomeado comandante de um batalhão estratégico em Goiânia. Ainda bem que foi impedido de tomar posse do comando, justamente por ser suspeito de ter participado de diversas atividades ilegais para proteger Bolsonaro. Quer dizer, numa operação tabajara, há envolvimento pressuposto com milicianos e mercado clandestino de pedras preciosas. São detalhes exóticos, até risíveis, de um governo tóxico. Até o computador da sala do presidente da República foi identificado como tendo sido usado na falsificação dos dados no ConecteSUS, sistema digital fundamental para o Ministério da Saúde acompanhar a vacinação contra a Covid-19 em todo o país. Quantos certificados falsos foram fabricados por essa quadrilha?

Não se pode esquecer que, por trás dessa história absurda, está a criminosa atuação de Bolsonaro como presidente da República, culpado por milhares de mortes ao desincentivar a vacinação pública contra a Covid-19 e ao acusar as vacinas de provocarem efeitos colaterais graves. Para entrar nos Estados Unidos, Bolsonaro mandou falsificar certificados de vacina para si, assessores pessoais, até para sua filha menor. Uma história mambembe para fugir do país antes do final de seu mandato, com receio de ser preso.

Cometeu vários outros crimes. A ação da Polícia Federal ontem na casa de Bolsonaro mostra bem quem eram as figuras no comando do país. Uma ligação de promiscuidade com ilegalidade. Tudo muito vulgar, crimes banais, de gente baixa, mas muito graves, não apenas na visão criminal, mas até mesmo simbolicamente.

Como pode um presidente da República falsificar documento para entrar noutro país? Impressiona também como os militares se deixaram levar por ele. Nesse triste episódio, vários militares, de diversas patentes, até mesmo um tenente-coronel, estão envolvidos. Como sempre faz, Bolsonaro quer tirar o corpo fora e insinua que, se houve fraude, não foi por parte dele, deixando seu protegido, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid, pendurado na brocha.

Merval Pereira, o autor deste tartigo, é jornalista e escritor. Analista de política de O Globo e Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O Globo, em 04.05.23

Que crimes Bolsonaro pode ter cometido caso se confirme falsificação do certificado de vacina contra covid

A Polícia Federal (PF) realizou nesta quarta-feira (3/5) uma operação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e pessoas do seu entorno. 

O grupo é suspeito de ter inserido dados falsos de vacinação contra a covid-19 no sistema do Ministério da Saúde, para emissão de certificados que viabilizariam uma viagem de Bolsonaro aos Estados Unidos.

Foram realizadas buscas na casa do ex-presidente, que teve o celular apreendido. A PF cumpriu também seis mandados de prisão contra outras pessoas, entre elas o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid Barbosa.

A operação foi determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A suspeita é que foram forjados os certificados de vacinação de Bolsonaro e da filha dele de 12 anos; de Cid Barbosa, da sua mulher e de três filhas do casal (duas menores de idade); e de mais dois assessores do ex-presidente, Max Guilherme Machado de Moura e Sérgio Rocha Cordeiro.

Segundo comunicado da PF à imprensa sobre a operação, os investigados podem ter cometido quatro crimes: infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores. A continuidade da apuração deve esclarecer se de fato esses ou outros ilícitos ocorreram e quem seriam os autores.

O relatório da PF a Moraes, por sua vez, atribui especificamente a Bolsonaro os crimes de uso de documento falso e de corrupção de menores e diz que há indícios de que ele tinha conhecimento da alteração fraudulenta dos dados no sistema do Ministério da Saúde.

Já a eventual entrada nos Estados Unidos com um certificado de vacinação falso configuraria crime federal naquele país, com pena de até dez anos de prisão. Quando Bolsonaro ingressou em solo americano no final de 2022, porém, ainda era presidente e tinha imunidade diplomática. Por isso, não era obrigado a apresentar comprovante vacinal.

Questionado por jornalistas ao sair de sua casa em Brasília sobre as suspeitas de adulteração nos cartões de vacina, Bolsonaro disse que "não tem nada disso".

"Havia gente que me pressionava para tomar a vacina e eu não tomei. Não tomei porque li a bula da Pfizer. Não tem nada disso. Se eu tivesse que entrar (nos EUA) e apresentar o cartão vocês estariam sabendo", disse.

Entenda melhor a seguir os possíveis crimes cometidos pelos investigados:

Falsificação de dados

O crime de inserção de dados falsos em sistemas de informação, também chamado de peculato digital, está previsto no artigo 313-A do Código Penal.

Ele estabelece pena de dois a doze anos de prisão e multa para o funcionário que se aproveitar do seu acesso a sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública para inserir dados falsos ou alterar dados corretos buscando vantagens para si ou para outros.

“A pessoa que fornece os dados pode responder como coautora ou partícipe, dependendo de quanto contribuiu para o crime”, nota artigo sobre o tema do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

Segundo a investigação da PF, a inserção dos dados falsos foi realizada por meio da Prefeitura do município de Duque de Caxias (RJ).

No caso de Bolsonaro, por exemplo, foram inseridas informações de que o ex-presidente teria sido vacinado naquele município com doses da Pfizer em 13 de agosto e 14 de outubro do ano passado.

No entanto, o relatório da PF diz que não há qualquer comprovação que o presidente tenha estado em Duque de Caxias no dia 13 de agosto, quando cumpriu agenda no município do Rio de Janeiro. Já no dia 14 de outubro, Bolsonaro teve agenda curta em Duque de Caxias, sem registro de que tenha sido vacinado nessa data, apontou a investigação.

Também não há evidências de que a filha de Bolsonaro estivesse naquele município nas datas em que teria sido vacinada (24 de julho e 13 de agosto de 2022), segundo as informações suspeitas registradas no sistema do Ministério da Saúde.

“Além disso, cabe destacar que LAURA BOLSONARO, com 11 anos de idade, residia à época dos fatos, obviamente, com seus pais na cidade de Brasilia/DF, não fazendo qualquer sentido ter que se deslocar até o município de Duque de Caxias para se vacinar”, nota o relatório da PF.

O delegado do caso, Fábio Shor, destaca ainda como evidência de fraude o grande tempo transcorrido entre a suposta vacinação e o registro da aplicação das doses no sistema, realizado por João Carlos Brecha, secretário de Governo de Duque de Caxias.

“Os dados relativos a JAIR BOLSONARO e LAURA BOLSONARO foram inseridos em 21/12/2022 no intervalo entre 18h59min e 23h11min”, nota o relatório, ou seja, cerca de dois a cinco meses após as supostas datas de imunização.

Uso de documento falso

O crime de uso de documento falso está previsto no artigo 304 do Código Penal. A pena é de dois a seis anos de prisão, quando se trata de um documento público.

Segundo a investigação da PF, certificados de vacinação para Jair Bolsonaro foram emitidos quatro vezes entre dezembro de 2022 e março deste ano.

“O usuário associado ao ex-Presidente JAIR BOLSONARO emitiu o certificado de vacinação contra a Covid-19, por meio do aplicativo ConecteSUS, nos seguintes dias: 22/12/2022 às 08h00min, 27/12/2022, às 14h19min, 30/12/2022, às 12h02min e 14/03/2023 às 08h15min”, diz o relatório da PF.

A Polícia Federal identificou que os acessos partiram de um computador de dentro do Palácio do Planalto e do celular de Mauro Cid. A apuração apontou ainda que era Cid que administrava o acesso de Bolsonaro ao ConecteSUS, já que a conta do presidente estava associada a um e-mail do seu então ajudante de ordens.

Depois, a conta foi passada para o e-mail de outro assessor de Bolsonaro, Marcelo Costa Câmara, que inclusive viajou em três oportunidades a Orlando para acompanhar Bolsonaro.

Como ex-presidente, Bolsonaro tem direito a manter oito assessores pagos pela Presidência da República.

"Os elementos informativos colhidos demonstraram coerência lógica e temporal desde a inserção dos dados falsos no sistema SI-PNI até a geração dos certificados de vacinação contra a Covid-19, indicando que JAIR BOLSONARO, MAURO CESAR CID e, possivelmente, MARCELO COSTA CAMARA tinham plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação, se quedando inertes em relação a tais fatos até o presente momento", aponta a PF no relatório.

Infração de medida sanitária preventiva

Segundo o artigo 268, esse crime consiste em “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.

Quem comete o crime pode ser condenado a pagar multa e ficar preso de um mês a um ano, sendo que a pena é aumentada em um terço se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Para um integrante do Ministério Público Federal ouvido pela reportagem, não está claro se Bolsonaro poderia ser enquadrado por esse crime no Brasil, se de fato tiver falsificado o documento, mas usado a falsificação apenas nos Estados Unidos.

As informações divulgadas até o momento também não permitem concluir que o ex-presidente apresentou alguma documentação falsa ao viajar no final do seu mandato para a Flórida, onde viveu por três meses.

Até 12 de maio desde ano, está em vigor a exigência de comprovante de vacinação contra covid-19 para entrada nos Estados Unidos – a falsificação de documento para cumprir essa obrigação pode configurar crime federal naquele país, com pena de até dez anos de prisão.

No entanto, pessoas com passaporte diplomático, como era o caso de Bolsonaro durante seu mandato presidencial, são liberadas de cumprir essa exigência.

Em janeiro, Bolsonaro solicitou um visto de turista para permanecer nos Estados Unidos. A BBC News Brasil questionou a embaixada americana no Brasil se havia exigência de comprovante de vacinação quando foi solicitado o visto, mas ainda não obteve retorno esclarecendo a questão.

Associação criminosa

O artigo 288 do Código Penal diz que o crime de associação criminosa ocorre quando mais de três pessoas se juntam para cometer crimes. A pena é de um a três anos de prisão.

Segundo o integrante do Ministério Público Federal ouvido pela reportagem, para que fique configurado esse crime, deve estar comprovado que o grupo se articulou para realizar crimes repetidos. Ou seja, não bastaria ser uma prática delituosa pontual.

O comunicado da PF sobre a operação diz que as inserções falsas no sistema do Ministério da Saúde ocorreram entre novembro de 2021 e dezembro de 2022.

Além do coronel Mauro Cid Barbosa, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, foram presos pela operação o sargento Luis Marcos dos Reis, que integrava a equipe de Cid; o policial militar Sergio Guilherme e o militar do Exército Sérgio Cordeiro, que atuavam na segurança presidencial; o ex-major do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros; e o secretário municipal de Governo de Duque de Caxias (RJ), João Carlos de Sousa Brecha.

Corrupção de menores

O crime de corrupção de menores está previsto no artigo 244-D do Estatuto da Criança e do Adolescente e consiste em “corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la”. A pena prevista é de um a quatro anos de prisão.

Os investigados são suspeitos de cometer esse crime porque teriam sido falsificados os certificados vacinais da filha mais nova de Bolsonaro e de duas filhas também menores de idade de Mauro Cid.

Ao falar sobre a operação em sua conta no Instagram, a ex-primeira-dama Michele Bolsonaro reafirmou que sua filha não foi vacinada.

"Hoje a PF fez uma busca e apreensão na nossa casa, não sabemos o motivo e nem o nosso advogado não teve acesso aos autos. Apenas o celular do meu marido foi apreendido. Ficamos sabendo, pela imprensa, que o motivo seria 'falsificação de cartão de vacina' do meu marido e de nossa filha Laura. Na minha casa, apenas EU fui vacinada", escreveu Michelle na rede social.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 04.05.23

quarta-feira, 3 de maio de 2023

PF faz buscas na casa de Bolsonaro e prende ex-assessores

Seis pessoas foram presas, incluindo o tenente-coronel Mauro Cid Barbosa. Celulares de Bolsonaro e Michele são apreendidos. Investigação mira suspeita de fraude em certificados de vacinação da família do ex-presidente.

A Polícia Federal (PF) realizou nesta quarta-feira (03/05) buscas na residência de Jair Bolsonaro em Brasília e prendeu seis pessoas, entre elas ex-assessores do ex-presidente, incluindo o ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid Barbosa e o ex-PM Max Guilherme.

Os telefones celulares de Bolsonaro e da ex-primeira-dama Michele Bolsonaro foram apreendidos pela PF. Bolsonaro não foi alvo de mandado de prisão, mas deverá depor ainda nesta quarta na PF.

A operação, batizada de Venire, investiga a inserção de dados fraudulentos de vacinação contra a covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde, que teriam sido usados para garantir a entrada de Bolsonaro e membros do círculo do ex-presidente nos EUA, burlando a exigência de imunização. Ao todo, estão sendo cumpridos 16 mandados de busca e apreensão e seis mandados de prisão preventiva em Brasília e no Rio de Janeiro.

 A operação foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Um dos membros do círculo de Bolsonaro, o tenente-coronel Cid, que foi preso nesta quarta-feira, é um personagem frequente de escândalos. Seu nome já apareceu no inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) que investiga a organização e o financiamento de atos antidemocráticos e mais recentemente ele foi um dos personagens centrais do escândalo envolvendo  joias sauditas avaliadas em milhões de reais.

Cid também é filho do general Mauro Cesar Lourena, um antigo colega de Bolsonaro na Academia das Agulhas Negras.

Outros alvos de mandado de prisão são os militares Sergio Cordeiro e Max Guilherme, que atuavam na equipe de segurança de Bolsonaro. Outro detido é o secretário municipal de Governo de Duque de Caxias (RJ), onde os dados falsos teriam sido inseridos. 

Fraude para provar vacinação contra covid-19

A PF comunicou que está sendo feita análise do material apreendido durante as buscas e a realização de oitivas de pessoas que detenham informações sobre o caso. 

"As inserções falsas, que ocorreram entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, tiveram como consequência a alteração da verdade sobre fato juridicamente relevante, qual seja, a condição de imunizado contra a covid-19 dos beneficiários", destacou a PF.

"Com isso, tais pessoas puderam emitir os respectivos certificados de vacinação e utilizá-los para burlarem as restrições sanitárias vigentes impostas pelos poderes públicos (Brasil e Estados Unidos) destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa", completou.

A PF não identificou quem chamou de "tais pessoas", mas a imprensa brasileira afirma que se trata de Bolsonaro, da filha dele, Laura, e de Mauro Cid e familiares deste. A falsificação teria garantido a entrada deles nos EUA, driblando as exigências locais de imunização obrigatória. 

Bolsonaro retornou ao Brasil em março de 2023 e desde então mora em sua casa em Brasília. O ex-presidente se notabilizou durante a pandemia por declarar publicamente que não tomaria a vacina e por espalhar desinformação sobre os imunizantes.

Ainda conforme a PF, o objetivo do grupo seria "manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a covid-19". 

As ações ocorrem dentro do inquérito policial que apura a atuação das chamadas milícias digitais, em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF). Os fatos investigados configuram crimes de infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores.

O ex-presidente negou qualquer fraude após a operação. "Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina. Ponto final. Em momento nenhum eu falei que tomei a vacina e não tomei."

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 03.04.23 (asj/ps  - Lusa, Agência Brasil, ots)

Entenda a operação da PF contra Bolsonaro

Novo caso de suspeita de falsificação de comprovantes de vacinação se soma à série de inquéritos que envolvem ex-presidente. Investigação também mira coronel que já foi personagem de outros escândalos.


A Polícia Federal (PF) realizou nesta quarta-feira (03/05) buscas na residência de Jair Bolsonaro em Brasília e prendeu seis pessoas, entre elas assessores do ex-presidente.

O telefone celular de Bolsonaro foi apreendido pela PF. Ao todo, foram cumpridos 16 mandados de busca e apreensão, que miram militares e políticos do Rio de Janeiro.

A operação, batizada de Venire, investiga a inserção de dados fraudulentos de vacinação contra a covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde, que teriam sido usados para garantir a entrada nos EUA de Bolsonaro e membros do círculo familiar e pessoal do ex-presidente, burlando a exigência de imunização.

Segundo a PF, o nome da operação é uma referência ao princípio Venire contra factum proprium, que em latim significa "ninguém pode comportar-se contra seus próprios atos"

A nova operação se soma a uma série de investigações em curso que envolvem o ex-presidente. Ao todo, Bolsonaro é alvo de oito inquéritos, que abordam suspeitas de participação no caso das milícias digitais, os ataques golpistas de 8 de janeiro, a tentativa de entrar ilegalmente no país com joias sauditas avaliadas em milhões de reais, ações para desestimular medidas de prevenção na pandemia, suspeita de interferência na PF, ataques ao sistema eleitoral, apologia ao estupro e vazamento de um inquérito sigiloso.

A operação desta quarta-feira foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), dentro do inquérito das milícias digitais.

Entenda a nova investigação contra Bolsonaro:

Fraude em comprovantes de vacinação

O esquema investigado pela PF aponta que dados falsos de vacinação teriam sido inseridos em dois sistemas do Ministério da Saúde – o Programa Nacional de Imunizações e a Rede Nacional de Dados em Saúde – entre novembro e dezembro de 2022, com o objetido de gerar compravantes fraudulentos de vacinação.

Teriam sido forjados comprovantes de vacinação dos seguintes personagens:

Ex-presidente Jair Bolsonaro

Laura Bolsonaro, filha de 12 anos de Jair e Michele Bolsonaro

Tenente-coronel Mauro Cid Barbosa

A mulher e a filha do coronel Cid

Segundo a TV Globo, os sistemas adulterados do Ministério da Saúde chegaram a indicar que duas doses de vacinas da Pfizer contra Covid teriam sido aplicadas em Jair Bolsonaro. Após a operação, o ex-presidente negou que ele e a filha tenham se imunizado.

Os suspeitos de participarem do esquema são investigados, segundo a PF, pelos crimes de infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores.

De acordo com a PF, Bolsonaro tinha ciência da inserção fraudulenta de dados nos sistemas do Ministério da Saúde.

"Jair Bolsonaro, Mauro Cid e, possivelmente, Marcelo Câmara [os dois últimos assessores do ex-presidente] tinham plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação, se quedando inertes em relação a tais fatos até o presente momento", diz a PF. 

O objetivo da fraude

Segundo a investigação, o esquema fraudulento tinha como objetivo garantir que Jair Bolsonaro e membros do círculo, incluindo sua filha, Laura, e vários assessores e os familiares destes pudessem entrar nos EUA. Bolsonaro se notabilizou durante a pandemia por declarar publicamente que não tomaria a vacina e por espalhar desinformação sobre os imunizantes.

Pelas regras que entraram em vigor nos EUA desde 2021, a entrada a partir do exterior de viajantes não-cidadãos e não-residentes no país só é permitida com a apresentação de comprovante de vacinação. Recentemente, o governo americano informou que deve acabar com a exigência a partir de 11 de maio de 2023.

"Com isso, tais pessoas puderam emitir os respectivos certificados de vacinação e utilizá-los para burlarem as restrições sanitárias vigentes imposta pelos poderes públicos (Brasil e Estados Unidos) destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa, no caso, a pandemia de Covid", diz a Polícia Federal.

Ainda segundo a PF, o grupo ainda teria como objetivo "seria manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a covid-19”, no que parece uma referência às ações do ex-presidente durante a pandemia, caracterizadas por sabotagem a medidas de prevenção, oposição à vacinação e campanhas de desinformação sobre a doença.

Bolsonaro abandonou o governo em 30 de dezembro e seguiu para o estado americano da Flórida junto com Michele e uma série de assessores, evitando a posse do seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Ele retornou ao Brasil em março.

A conexão Goiás e Duque de Caxias (RJ)

Segundo o jornal O Globo, o esquema de fraude nos dados de vacinação começou em Goiás, quando um médico da prefeitura de Cabeceiras preencheu a mão uma série de cartões de vacinação, que incluíam os nomes de Jair Bolsonaro, Laura Bolsonaro, o coronel Cid e familiares deste.

Membros do esquema tentaram então inserir os dados no sistema de dados do SUS da prefeitura de Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro, com o objetivo de obter comprovantes oficiais, necessários para entrar nos EUA.

No entanto, segundo o jornal, o sistema de dados rejeitou a inserção, porque as vacinas indicadas constavam como um lote que havia sido distribuído em Goiás. Os membros do grupo, incluindo o coronel Cid, trocaram uma série de mensagens para tentar contornar o bloqueio. Eles acabaram conseguindo o número de outro lote de vacinas, distribuído no Rio de Janeiro, para inserir os dados sem problemas.

Segundo a reportagem do jornal, a PF descobriu que após imprimir os comprovantes, o grupo tentou apagar seus rastros. De acordo com o jornal, em 27 de dezembro de 2022 – poucos dias antes da viagem de Bolsonaro aos EUA – o grupo apagou os dados do sistema. Quem procurasse os dados não conseguiria encontrar os registros. Os dados só foram recuperados após uma perícia da PF.

Além dos membros de um núcleo duro formado por ex-assessores, a PF também investiga políticos do Rio de Janeiro que teriam intermediado o esquema, como o deputado federal Gutemberg Reis (MDB-RJ), irmão do ex-prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis, e o ex-vereador carioca Marcello Siciliano (PP-RJ).

Os presos

Tenente-coronel Mauro Cesar Barboda Cid

A Polícia Federal colheu provas do esquema por meio da quebra de sigilo das comunicações do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ou "coronel Cida", que atuou como ajudante de ordens do ex-presidente. Preso nesta quarta, Cid é um personagem que já apareceu em outros escândalos da era Bolsonaro. Ele é filho do general Mauro Cesar Lourena Cid, um antigo colega de Bolsonaro na Academia das Agulhas Negras. Durante o governo Bolsonaro, o coronel Cid se tornou um notório "faz tudo" do então presidente.

O nome do tenente-coronel já apareceu no inquérito do STF que investiga a organização e o financiamento de atos antidemocráticos e também é apontado como participante em ações de desinformação executadas por Bolsonaro para contestar a segurança das urnas eletrônicas e vacinas.

No último caso, a PF apontou que ele teve participação direta na notória live de Bolsonaro que associou falsamente vacinas ao risco de contrair HIV.  Mais recentemente, Cid foi um dos personagens centrais do escândalo envolvendo a entrada ilegal de joias sauditas avaliadas em milhões de reais.

João Carlos de Sousa Brecha

O secretário municipal de Governo de Duque de Caxias (RJ), João Carlos de Sousa Brecha, suspeito de inserir de maneira fraudulenta os dados de vacinação para beneficiar as famílias de Bolsonaro e do coronel Cid. Brecha faz parte do grupo político do ex-prefeito da cidade, Washington Reis, um aliado de Bolsonaro.

Max Guilherme

Sargento da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Max Guilherme atua como segurança de Bolsonaro. Na última segunda-feira, ele esteve ao lado do ex-presidente durante uma visita à Agrishow, feira de tecnologia agrícola que ocorre anualmente em Ribeirão Preto (SP). Ele também fez parte da comitiva que viajou com Bolsonaro aos EUA no final de 2022, antes da posse de Lula. Hoje ele ocupa um dos cargos de assessor a que Bolsonaro tem direito como ex-presidente.

Sergio Rocha Cordeiro

Capitão da reserva, Sérgio Rocha Cordeiro também atua como segurança de Bolsonaro e esteve na comitiva que foi aos EUA. Ele também é dono do imóvel no Diustrito Federal onde o ex-presidente passou a fazer suas lives de campanha em 2022 após ser impedido pela Justiça de usar o Alvorada para tal finalidade. Assim como Guilherme, Cordeiro ocupa um dos cargos de assessor a que Bolsonaro tem direito como ex-presidente.

Luis Marcos dos Reis

Antigo supervisor a Ajudância de Ordens da Presidência da República, o segundo-sargento Luis Marcos dos Reis trabalhou diretamente com Bolsonaro e o coronel Cid desde o início de 2019 até agosto de 2022. Depois disso, foi transferido para um cargo no Ministério do Turismo. Nos anos 2010, ele também atupou como motorista de Eduardo Villas-Boas, ex-comandante do Exército.

Ailton Moraes Barros

Ex-major do Exército, Ailton Gonçalves Moraes Barros foi candidato pelo PL a deputado estadual no Rio de Janeiro em 2022. Ele se apresentou como "01 do Bolsonaro" no Rio de Janeiro durante a campanha. Ele conseguiu a suplência durante a eleição.

Possíveis implicações nos EUA

Segundo o site da embaixada americana no Brasil, quem chega aos EUA precisa estar ciente que informar dados falsos para entrar no país pode ser indicado por fraude.

"As consequências são sérias. Se você cometer fraude, você não receberá o benefício imigratório que você busca. Você também pode enfrentar multas ou prisão ", diz o site.

Segundo a legislação americana, a punição para quem fornece dados falsos pode chegar a até 10 anos de prisão.

Não está claro se Bolsonaro mostrou algum comprovante falso para entrar nos EUA. Como viajou aos EUA quando ainda cumpria mandato, o ex-presidente ainda contava com privilégios diplomáticos, que dispensavam apresentação de comprovantes.

Reações

Após a operação, Bolsonaro negou qualquer fraude e disse que não tomou a vacina contra a covid-19, assim como sua filha, Laura Bolsonaro. "Não tomei a vacina. Nunca me foi pedido cartão de vacina [para entrar nos EUA]. Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina, ponto final. Nunca neguei isso. Havia gente que me pressionava para tomar, natural. Mas não tomava, porque li a bula da Pfizer", disse o ex-presidente.

Em sua conta no Instagram, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro também se manifestou e negou que seu celular tenha sido apreendido, como foi divulgado mais cedo pela imprensa. "Hoje a PF fez uma busca e apreensão na nossa casa, não sabemos o motivo e nem o nosso advogado não teve acesso aos autos. Apenas o celular do meu marido foi apreendido. Ficamos sabendo, pela imprensa, que o motivo seria 'falsificação de cartão de vacina' do meu marido e de nossa filha Laura. Na minha casa, apenas EU fui vacinada", escreveu Michelle.

O presidente do PL, partido de Bolsonaro, Valdemar Costa Neto defendeu o ex-presidente em um tuite. "Bolsonaro é uma pessoa correta, íntegra, que melhorou o país e procurava sempre seguir a lei". Valdemar ainda disse que confia que todas as dúvidas da Justiça serão esclarecidas e "que ficará provado que Bolsonaro não cometeu ilegalidades".

O presidente Lula evitou comentar publicamente o caso envolvendo seu adversário político, mas publicou uma mensagem no Twitter que foi interpreta por seus apoiadores como uma pequena celebração. "Bom dia e boa quarta-feira!", escreveu o presidente, quando a operação já havia sido divulgada pela imprensa.

Já o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, foi direto. "Falsificar dados oficiais do Governo para falsificar documentos pessoais e corromper menor de idade para entrar em território estrangeiro descumprindo as leis locais. Filme de criminoso internacional? Não, o ex-presidente da República! Bolsonaro precisa pagar pelos seus crimes!", escreveu o ministro no Twitter.

Jean-Philip Struck, o autor desta reportagem, é Repórter do Deutche Welle. Publicado originalmente em 03.05.23

sábado, 29 de abril de 2023

Bolsonarismo, risco para o agronegócio

‘Desconvite’ a ministro da Agricultura para a solenidade de abertura da Agrishow, na próxima segunda-feira, quebra tradição e não condiz com a importância do setor agrícola

O agronegócio puxa o crescimento da economia brasileira e exporta alimentos para o mundo inteiro. Setor pujante, deve estar no centro das preocupações de qualquer governo, com políticas adequadas de crédito e fomento agrícola, além de investimentos em pesquisa para aumentar a produtividade no campo − algo, aliás, que já é feito exitosamente há décadas. Se o Brasil quer mesmo deixar o subdesenvolvimento para trás, precisa dobrar a aposta no que dá certo. Sem perder de vista, porém, que o caminho de sucesso trilhado até aqui pelo agronegócio foi construído a muitas mãos, com atores-chave remando no mesmo rumo. A começar pelo governo federal, esteja quem estiver na Presidência da Repú

É surpreendente, então, que a edição deste ano da maior feira de tecnologia agrícola do Brasil, a Agrishow, esteja prestes a produzir uma cena que não deveria interessar a ninguém: a ausência de representantes do governo federal na cerimônia de abertura do evento, no dia 1.º de maio, em Ribeirão Preto (SP). Detalhe: não por iniciativa do governo, já que o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, era presença confirmada − assim como também estava prevista a ida do vice-presidente e ministro da Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin. A decisão, conforme informou o Valor, partiu da organização do evento, que achou por bem “desconvidar” o ministro, uma vez que o ex-presidente Jair Bolsonaro deverá comparecer à solenidade do dia 1.º.

Ora, saias-justas fazem parte do dia a dia da política, e é preciso saber lidar com elas. Nada que os encarregados do cerimonial não possam resolver na hora de definir assentos ou por onde cada convidado vai entrar e sair. A abertura de uma feira do porte da Agrishow não precisa ter ares de confraternização − e o compromisso das autoridades ali reunidas, antes de mais nada, deve ser com o avanço de um setor vibrante da economia nacional e, portanto, com o desenvolvimento do País.

Mas o bolsonarismo não consegue conversar com quem não segue sua cartilha. Em vez disso, queima pontes e encara adversários como inimigos. Uma triste lição que ficou evidente nos últimos quatro anos, com efeitos deletérios nas mais diversas áreas.

Resta lamentar que tal atitude possa seduzir representantes do agronegócio, a ponto de macular a abertura da Agrishow − cuja perspectiva, felizmente, é bater recordes de vendas e atrair milhares de visitantes. Vale lembrar que o evento tem patrocínio do Banco do Brasil e, como informou o Estadão, o ministro Fávaro deveria anunciar mais de R$ 1 bilhão em recursos suplementares para a equalização de crédito para o Plano Safra 2022/23.

Divergências políticas, por óbvio, são o oxigênio da democracia, e é natural que produtores rurais, assim como os demais eleitores, se identifiquem com partidos e governantes que melhor representem seus interesses. Em poucos meses de governo Lula, o Movimento dos Sem Terra (MST) voltou a afrontar a lei e a invadir propriedades, o que deve ser repudiado e combatido por todas as autoridades do País – como, aliás, fez o próprio ministro Fávaro, uma das vozes que prontamente condenaram as recentes invasões de terra pelos baderneiros do MST.

Note-se que até mesmo para divergir cabe dialogar, e exemplo disso é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas − com quem Jair Bolsonaro deverá ir à Agrishow. Apadrinhado por Bolsonaro nas últimas eleições, o governador tem buscado agir republicanamente desde que tomou posse. Sua relação com o governo federal pauta-se, acima de tudo, pelos interesses do Estado e da população. Corretamente, ele foi a Brasília para a reunião de governadores com o presidente Lula da Silva após a tentativa de golpe no 8 de Janeiro. Também somou esforços com o presidente após a tragédia provocada pela chuva no litoral norte paulista. É com esse espírito que se governa e faz política.

O “desconvite” ao ministro da Agricultura, lamentavelmente, caminha em outra direção. Fiel retrato dos estragos que o bolsonarismo é capaz de provocar, será a quebra de uma tradição, que não reflete a modernidade e a pujança do agronegócio brasileiro.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.04.23

Lei desmoralizada

Anistia para partidos tira sentido de legislação que o próprio Congresso aprovou

Fachada do Congresso Nacional, em Brasília (DF) - Beto Barata/Folhapress

Armand Jean du Plessis (1585-1642), mais conhecido como cardeal de Richelieu, ministro de Luís 13 e arquiteto do absolutismo francês, certa vez afirmou que criar uma lei e não mandar executá-la significava o mesmo que autorizar a coisa que se queria proibir.

Richelieu não conhecia o Congresso brasileiro. Nosso Parlamento não apenas aprova normas sem se preocupar com sua execução como ele próprio, quando seus interesses estão em jogo, se encarrega de aprovar regra subsequente que esvazia inteiramente a anterior.

É bem esse o sentido da proposta de emenda constitucional 9/2023, com apoios da direita à esquerda.

O texto traz três dispositivos. No primeiro, ele anistia as legendas que não destinaram os valores previstos em lei para campanhas de mulheres e negros; no segundo, proíbe a Justiça Eleitoral de aplicar qualquer penalidade às siglas por irregularidades em prestações de contas; e, no terceiro, autoriza partidos a receberem doações de empresas para quitar dívidas contraídas até agosto de 2015.

Louve-se a objetividade dos parlamentares. No primeiro mecanismo, contrariam a lei de cotas de financiamento de candidaturas; no segundo, disparam contra o sistema de freios e contrapesos, pelo qual um Poder fiscaliza e modula o outro; no terceiro, debilitam o veto às doações empresariais, decisão do Supremo Tribunal Federal depois transformada em lei.

Pode-se discutir a oportunidade de cada uma dessas medidas. As cotas de financiamento, por exemplo, são polêmicas. Aqueles mais identificados com as questões identitárias as consideram muito tímidas —gostariam de ver instaurada uma cota mínima de parlamentares mulheres e negros.

Já os liberais mais radicais julgam que mesmo essa intervenção sobre as campanhas já é excessiva. Para eles, não é necessária nenhuma regra de alocação de recursos que limite as decisões partidárias.

Mas, se o Parlamento está convencido de que as regras das cotas de financiamento (ou quaisquer outras) não são as mais adequadas, deve propor uma discussão sobre o mérito, que pode ou não resultar em alteração.

O que não tem cabimento é promover uma tratorada constitucional que tire a eficácia daquilo que o próprio Legislativo já decidira.

Ao fazê-lo, os congressistas não apenas autorizam o que se queria proibir, para retomar o tropo de Richelieu, como ainda contribuem para erodir a própria ideia de que as leis devem ser respeitadas —o que tende a produzir efeitos daninhos sobre a institucionalidade.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 29.04.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Golpismo não é efeito colateral de remédio

Jair Bolsonaro nunca precisou de medicamentos para dar vazão aos seus desígnios liberticidas. O problema nem de longe está no remédio. O problema é o prontuário do paciente

O ex-presidente Jair Bolsonaro escarneceu da inteligência e da memória de muitos brasileiros ao dizer, durante depoimento à Polícia Federal (PF), que publicou “por equívoco” em uma rede social um vídeo que lançava suspeitas infundadas sobre o resultado da eleição. É curioso que um “equívoco” desses tenha sido cometido logo por Bolsonaro, tido como um ás no manuseio de smartphones. Mas, vá lá. A explicação dada pelo ex-presidente é que ele estaria fora de seu juízo normal, “sob tratamento com morfina” para aliviar fortes dores abdominais. Ora, a farmacologia descreve uma série de efeitos que o uso de morfina pode provocar no organismo, mas incitação ao golpe não está entre eles. Ademais, o problema nem de longe está no remédio; está no prontuário do paciente.

Por mais estapafúrdia que tenha sido a versão apresentada por Bolsonaro à PF, que investiga a responsabilidade do ex-presidente pelo 8 de Janeiro, nem original ela é. Não faz muito tempo, a deputada norte-americana Marjorie Taylor Greene, do Partido Republicano, talvez a mais fiel adoradora de Donald Trump, publicou vários tuítes de conteúdo racista, islamofóbico e antissemita. Sob a ameaça de ter de responder por suas palavras na Justiça, a parlamentar alegou que estaria sob efeito de um ansiolítico quando fez as publicações. Foi desmentida peremptoriamente pelo laboratório, sob a alegação de que o tal medicamento poderia apresentar muitos efeitos colaterais, mas não transformava ninguém em uma pessoa preconceituosa.

É importante considerar que o vídeo golpista foi publicado por Bolsonaro no dia 10 de janeiro, enquanto ele se homiziava na Flórida. Veio a público, portanto, apenas 48 horas depois do assalto às sedes dos Poderes em Brasília perpetrado por uma horda de bolsonaristas furiosos pela vitória do presidente Lula da Silva. Ou seja, o País mal estava refeito da mais grave tentativa de subversão da ordem democrática desde a ditadura militar, enquanto Bolsonaro jogava mais gasolina na fogueira ao espalhar uma teoria da conspiração segundo a qual a vitória de Lula decorrera de um conluio entre a cúpula do Poder Judiciário, e não da supremacia da vontade popular.

Em que pese a extrema gravidade do vídeo, sobretudo tendo sido difundido por ninguém menos que o candidato derrotado na eleição, é preciso dar àquela postagem a exata dimensão que ela tem. A publicação golpista se tratou de uma entre uma infinidade de atitudes e palavras de Bolsonaro nos últimos quatro anos para desqualificar o sistema eleitoral brasileiro, seus adversários políticos e as instituições democráticas, em particular o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nesse sentido, poder-se-ia considerar que Bolsonaro pudesse mesmo estar atrapalhado das ideias caso, ao invés de publicar o vídeo que publicou, tivesse publicado outro, de teor diametralmente oposto, reconhecendo a vitória de seu adversário na eleição. Todo o seu comportamento ao longo do mandato indicava um desfecho exatamente como aquele a que o País tristemente assistiu no segundo domingo do ano. A suposta conspirata entre ministros do STF e do TSE em tudo se coaduna com o discurso de Bolsonaro. Estranho seria se acaso ele posasse como genuíno democrata.

A versão de Bolsonaro para sua postagem sediciosa nas redes sociais soa tão abilolada que, talvez, o ex-presidente não tenha se dado conta de que ele possa ter lançado suspeitas sobre muitos atos de sua administração. Ora, Bolsonaro assumiu a Presidência depois de ter sobrevivido a um grave atentado a faca. Logo, já iniciou o mandato fazendo uso de medicações fortes para dar conta das dores decorrentes daquela agressão e de uma série de cirurgias.

Seria o caso de suspeitar que algumas de suas decisões de governo foram tomadas sob efeito desses medicamentos? É evidente que não. Eis por que o depoimento de Bolsonaro à PF não se prestou a outra coisa senão a uma tentativa de tirar dos ombros do ex-presidente a responsabilidade por ter incitado, para dizer o mínimo, uma insurreição contra sua derrota.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.04.23