segunda-feira, 8 de maio de 2023

Solidários na desfaçatez

Petistas e bolsonaristas esquecem as diferenças quando se trata de interesses em comum, como a PEC que anistia partidos que burlaram as regras do fundo eleitoral para mulheres e negros

Este jornal já chamou a atenção para um fato incontornável: os partidos políticos, como todas as organizações privadas, devem se sustentar por meio de recursos financeiros privados. Esse dinheiro pode vir de doações feitas por eleitores, além de filiados, que se sintam representados pelos valores e agendas programáticas que cada partido defende para o País. Tão mais vibrante será nossa democracia representativa quanto mais sólida for a conexão entre eleitores e legendas.

Os partidos, porém, são recalcitrantes em reconhecer a realidade. Essa postura pode ser motivada por comodismo. Afinal, para que trabalhar pela aproximação com eleitores que possam se tornar doadores no futuro se o dinheiro líquido e certo do Orçamento da União entrará na conta dos partidos, incondicionalmente, todos os meses? Pode, também, ser inspirada por interesses inconfessáveis.

O fato é que, historicamente, os partidos têm usado a força óbvia que têm no Congresso para apresentar, de tempos em tempos, projetos de lei e emendas à Constituição que não apenas mantêm o status quo, qual seja, a quase exclusividade de fontes de financiamento público para as legendas e as campanhas eleitorais, como aprofundam essa relação de dependência do erário por interesses paroquiais.

A mais nova ação de socorro financeiro aos partidos à custa dos contribuintes – e por “nova” entenda-se que decerto não será a última – uniu até petistas e bolsonaristas no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. Essa união improvável revela que, quando se trata de salvaguardar o cofre dos partidos, não há ideologia no mundo capaz de distinguir os parlamentares brasileiros.

É na CCJ da Câmara que está em deliberação a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, que estende até as eleições gerais de 2022 a anistia concedida aos partidos que, nas eleições municipais de 2020, burlaram as regras de distribuição de recursos do fundo eleitoral entre candidaturas de mulheres e negros. Caso esse autoperdão seja aprovado, os partidos ficarão isentos do pagamento de multas milionárias, além de outras punições que podem ser impostas a seus dirigentes.

É espantoso, mas não surpreende, que o PT, logo o partido que se apresenta à sociedade como o grande defensor das cotas para mulheres e negros nas mais variadas esferas da vida nacional, não só descumpriu a regra que previa a destinação de 30% dos recursos do fundo eleitoral para aquelas candidaturas, como agora, de mãos dadas com os bolsonaristas, não hesitou em pugnar pela manutenção da PEC 9/2023 na pauta da CCJ, um esforço concentrado multipartidário que garantiu a sobrevida da proposta por 38 votos a 12. “Não é apenas com multa e punições que será assegurada a participação de mulheres e negros (nas eleições)”, disse a presidente do partido, Gleisi Hoffmann (PT-PR).

A deputada petista está em perfeita sintonia com seu colega de Câmara e presidente do Republicanos, Marcos Pereira (SP). Em entrevista ao Valor, no dia 28 passado, Pereira construiu o argumento que decerto será seguido por seus pares que não tenham pruridos em manifestar misoginia e preconceito. Segundo ele, o “descumprimento de determinadas regras” ocorre porque, ora vejam, “não tem mulheres com voto, infelizmente, para poder disputar no nível que a legislação (eleitoral) exige”.

Outra aberração é o fato de a anistia, mais uma, recair sobre a burla de regras que os próprios congressistas aprovaram há não muito tempo em processo legislativo absolutamente regular.

A PEC 9/2023 é em tudo contrária ao interesse nacional. O perdão por irregularidades recorrentes cometidas pelas legendas na distribuição do fundo eleitoral entre grupos sociais sub-representados afasta o Congresso da realidade da sociedade brasileira. Ademais, é um prêmio à irresponsabilidade dos partidos e uma afronta ao Supremo Tribunal Federal ao permitir que as legendas possam arrecadar doações de empresas para quitar dívidas contraídas até 2015, quando a Corte, em boa hora, proibiu doações de pessoas jurídicas para partidos e campanhas. Isso não pode prosperar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.05.23

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