segunda-feira, 5 de setembro de 2022

7 de Setembro: militantes fichados pela PF por atos extremistas preparam protestos; veja quem são

O grupo de radicais incentiva a presença nas ruas no feriado e fala em mortes entre “inimigos do Brasil”, “expulsar demônios” e fim dos “discursos moderados” contra a “tirania”

Invasão plenário da Câmara em 2016 

Pelo menos 25 militantes e canais fichados na polícia por ações extremistas e notícias falsas estão na linha de frente da mobilização para o 7 de Setembro. Eles reúnem um total de 30 milhões de seguidores. O grupo de radicais incentiva a presença nas ruas no feriado e fala em mortes entre “inimigos do Brasil”, “expulsar demônios” e fim dos “discursos moderados” contra a “tirania”.

Há um mês o Estadão monitora os influenciadores radicais, que argumentam usar apenas “figuras de linguagem” em sua atuação nas redes. Mas eles têm um histórico de ações reais de violência política, como a invasão ao plenário da Câmara, em 2016, além de citações nos inquéritos dos Atos Antidemocráticos e das Fake News, de 2020, e o da desmonetização de canais que faturavam com mentiras, de 2021.

Atualmente, o grupo se articula entorno do discurso de ataque do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) ao Supremo Tribunal Federal (STF), em especial ao ministro Alexandre de Moraes.

Sem impedimentos legais, esses influenciadores estão a postos a aumentar, a todo instante, o tom dos discursos de Bolsonaro – alguns têm experiência no planejamento de ações reais de radicalismo. O ato partidário promovido pelo presidente está previsto para cidades como Brasília, Rio e São Paulo.

Candidata a deputada federal pelo PTB de Santa Catarina, Dileta Corrêa da Silva organiza a manifestação em Balneário Camboriú. Há seis anos, ela e outros 56 militantes formavam o movimento que quebrou a porta de vidro do plenário da Câmara e invadiu o local para defender a intervenção militar. “Faria tudo novamente e faria até melhor, chamaria mais pessoas, colocaria mais pessoas no plenário”, afirmou Dileta ao Estadão.

Após a invasão, ela foi proibida de entrar na Casa e teve de ir ao STF para restaurar o direito de entrar no local. Os advogados da candidata defendem a invasão, alegando que o ato foi “o mais espetacular” dos quais ela participou. E convenceram o ministro Edson Fachin que decidiu a favor dela, contrariando a opinião do Ministério Público Federal.

Não foi a primeira ação envolvendo a militante radical. Em 2017, Dileta foi decisiva nas redes sociais para propagar o motim da Polícia Militar do Espírito Santo, apoiada por Bolsonaro. Quanto ao seu comportamento no dia 7, ela diz que não fará nem mesmo discurso.

Candidato à presidência da República, mas com registro cassado pelo TSE, o ex-deputado Roberto Jefferson, que está em prisão domiciliar, divulgou um vídeo cobrando do presidente Jair Bolsonaro uma reação dura contra o ministro Alexandre de Moraes para garantir que as pessoas se manifestem. Ele classificou o magistrado como o chefe da “milícia judicial” e disse que o presidente deveria mandar prender os atiradores de elite escalados para a segurança do ato em Brasília.

“É o Xandão que vai estabelecer o que o povo pode fazer em 7 de Setembro? Ano passado foi um fracasso, você fez um discursinho meia boca com medo de não sei o quê e agora você vai deixar eles mijarem em você? Poste não mija em cachorro, Bolsonaro. Reaje, Bolsonaro, ou acabou. Ou pede o boné e acabou.”

Sem discurso moderado

Foragido da Justiça brasileira, o blogueiro Allan dos Santos estimulou, em um e-mail a seus seguidores, mais ação. “Não dá mais para usar o ‘discurso moderado’ como ferramenta contra a tirania”, escreveu. “Por isso, 7 de setembro será um dia tão importante. Além de ser o bicentenário da Independência do Brasil, será, também, o dia em que vamos mostrar que nada pode ser maior que a força popular”. Questionado, por e-mail, ele não respondeu.

Entre os influenciadores que tiveram o faturamento de canais barrados pela Justiça Eleitoral está Camila Abdo. Ela mantém uma série de contas nas redes sociais de apoio a Bolsonaro e críticas a ministros do STF. Na última quinta-feira, 1º, promoveu uma live no YouTube com o comentarista José Carlos Bernardi, que foi demitido da rádio Jovem Pan após sugerir ‘matar um monte de judeus’ para o Brasil enriquecer - ele agora é candidato a deputado estadual em São Paulo pelo partido do presidente.

Na transmissão, Bernardi citou um trecho da Bíblia que narra uma guerra e afirmou que a manifestação da próxima quarta-feira, será um “marco de libertação”. “Esse reboliço acontecerá agora no 7 de Setembro entre os inimigos do Brasil, eles mesmo vão se matar”. Em seguida, os dois afirmaram que a declaração se tratava de uma figura de linguagem. “Só para deixar claro, figura de linguagem é tipo assim: ‘entendeu, Supremo?’ Ah, como se fosse. Ele não está incitando morte de ninguém, tá bom? É como se fosse, um exemplo”, disse Camila.

Nos seus canais ela diz que há ministros do Supremo que “precisam sair de lá”. À reportagem, porém, a influenciadora afirmou que a motivação para a convocação é o “respeito pleno à Constituição Federal e a liberdade de expressão” e que o ato será absolutamente pacífico. “Tenho plena convicção que os ministros observarão que é apenas uma comemoração aos 200 anos da nossa independência. Não há o que temer. Tanto da nossa parte, como da parte dos ministros”, declarou. Por sua vez, Bernardi afirmou à reportagem que não iria comentar.

“Chegou a hora de expulsarmos estes demônios”

Blogueiro punido pelo TSE com a perda de receita por vídeos de notícias falsas, em 2021, Emerson Teixeira de Andrade se apresenta nas redes sociais como “Professor Opressor”. Os vídeos dele fazem paródias a Alexandre de Moraes. No mesmo dia em que Bolsonaro chamou o magistrado de vagabundo, ele postou uma convocação no Twitter: “Vagabundos vão comendo pela beirada e acabando com a sua liberdade aos poucos. Você vai permitir isso ou vai para as ruas dia 7 de setembro?”, publicou, seguido de uma imagem com a mensagem: “Chegou a hora de expulsarmos estes demônios”.

Em resposta ao Estadão, ele afirmou que sua motivação é protestar contra a “forma como os ministros do STF vêm desrespeitando a Constituição” e que a manifestação é pacífica. “Essa conversa de ato antidemocrático foi uma desculpa esfarrapada para punir as pessoas que falam aquilo que você não quer ouvir.”

Apoiador de Bolsonaro, o cabo Corrêa Mourão é candidato a deputado federal no Rio pelo PMN. Também veterano da invasão da Câmara, em 2016, ele publicou recentemente um vídeo com a frase “Pela última vez”, na qual disse que estaria em Copacabana no dia 7 de Setembro. “Você não pode perder, estaremos juntos. Eu e toda a equipe do ‘Para cima deles, Brasil’”, disse. A frase é uma referência a um discurso de Bolsonaro. Na convenção nacional do PL, que o oficializou como candidato à reeleição, em julho, ele chamou apoiadores para irem às ruas em setembro pela “última vez”.

“Me perguntaram se eu tinha coragem de tomar o Congresso”

O Estadão identificou 14 manifestantes que participaram da invasão à Câmara para pedir intervenção militar, por meio de vídeos da época, entrevistas e redes sociais. Seis anos depois, lideranças do grupo estão firmes na defesa de Bolsonaro. Além de Dileta, outros dois lançaram candidaturas à Câmara e a Assembleias Legislativas. Era 16 de novembro de 2016. O plenário estava praticamente vazio. O deputado Capitão Augusto (PL-SP) direcionava uma mensagem a eleitores de Ourinhos, no interior de São Paulo, quando foi interrompido pelo grupo que atropelou a segurança e entrou aos gritos no espaço restrito aos parlamentares e assessores. Um servidor que cruzou o caminho dos invasores foi derrubado com uma rasteira. A invasão forçou o fim da sessão.

Participantes da invasão relataram à reportagem que o ato foi premeditado por cinco meses e poderia ter sido ainda mais violento. Os invasores saíram de um grupo com cerca de 490 pessoas acampadas em Brasília dias antes. Só uma parte insistiu na ilegalidade. Entre eles, militares reformados e ativistas da extrema-direita. Havia os designados “para a conversa e para a porrada”.

Seis anos depois, Davi Benedito se apresenta como líder do movimento “Intervencionistas no Congresso”. Segundo ele, a “missão” foi preparada por meses com militantes de vários estados e um financiador oculto. Ele concorre a uma vaga na Assembleia de São Paulo pelo Patriota e estará na Avenida Paulista, no dia 7. Até hoje, está proibido de entrar na Câmara. “A tomada da Câmara foi decidida um tempo depois de uma missão no Rio. Me perguntaram se eu tinha coragem de tomar o Congresso. Cheguei no dia 12 de novembro. Fiquei cinco meses montando essa caravana. Foram várias missões que eu fiz por aí. Viram que eu era um cara competente e me pediram para fazer”, diz Benedito.

Ele conta que deixou de ser intervencionista e acredita no processo eleitoral. Uma das páginas de internet que usa para fazer campanha, porém, chama-se “Intervencionistas no Congresso”. Benedito garante que se manifestará pacificamente na Paulista.

Corrêa Mourão, o outro invasor, contou ao Estadão que “não tinha bandido” no ato. “Algumas pessoas ficaram vetadas de entrar (na Câmara) logo no início. Mas depois que mudou a presidência, mudou toda a história. Eu não fui proibido, eu fui vetado. Toda vez que eu chego lá, o cara vê, chama a segurança, manda olhar tudo, mas eu entro. Sempre entro, nunca fiquei barrado 100%, não”. Ele também se diz contrário ao golpe militar.

O influenciador Alberto Junio da Silva, do canal O Giro de Notícias, também fez convocações e afirmou que Moraes “não tem mais autoridade nenhuma”. À reportagem, ele disse que o ato será “um grito pela liberdade” e pacífico. “Sigo fielmente o que está escrito na nossa Constituição e, mesmo não concordado em 90% das decisões dos ministro do STF, respeito a instituição e oriento a todos a cumprir decisões por eles determinadas.”

Perfis que estimulam participação no 7 de setembro:

Cleitomar Basso - Foco do Brasil

Adilson Nelson Dini - Ravox

Alberto Junio Da Silva - O Giro de Notícias

Camila bdo Leite Do Amaral Calvo

Emerson Teixeira De Andrade - Professor Opressor

Fernando Lisboa Da Conceição - Vlog Do Lisboa

Bernardo Kuster - Brasil sem Medo

Folha Política

Jornal Da Cidade On Line

Oswaldo Eustáquio

Roberto Boni - Canal Universo

Allan dos Santos

Terça Livre

Enzo Leonardo Suzi - Enzuh

Marcus Bellizia - Movimento nas Ruas

Rafael Moreno - Movimento Brasil Monarquista

Carla Zambelli - deputada

Filipe Barros - deputado

Luiz Phellipe Orleans e Bragança -deputado

Dileta Corrêa - Invadiu a Câmara em 2016

Davi Benedito - Invadiu a Câmara em 2016

Cabo Corrêa - Invadiu a Câmara em 2016

Jorge Ares - Invadiu a Câmara em 2016

Marilene D’Ottaviano - Invadiu a Câmara em 2016

Roberto Jefferson - Ex-deputado e candidato à presidência com registro cassado pelo TSE

Vinícius Valfré, Julia Affonso, Daniel Weterman e André Shalders para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 05.09.22. Atualizado às 15h21

Pesquisa Ipec/O GLOBO: na opinião pública, políticos estão no topo do ranking da corrupção

Imagem negativa do Congresso é superior à de polícias, empresas privadas ou o Judiciário

O Congresso Nacional, em dia de tempestade em Brasília Cristiano Mariz

Pesquisa do Ipec feita com exclusividade para o GLOBO com 2 mil pessoas na internet revela que a Câmara dos Deputados, o Senado e os governos federal e estaduais foram avaliadas pelos brasileiros como as instituições mais corruptas do país. Os órgãos políticos aparecem à frente do Judiciário, das polícias e de empresas privadas.

O Ipec perguntou se os entrevistados percebiam algum nível de corrupção em diversas instituições e, com base nas respostas, elaborou um ranking. A Câmara dos Deputados foi avaliada como o órgão mais corrupto: para 76% dos entrevistados, existe “muita corrupção” no parlamento. O Senado, o governo federal e os governos dos estados vêm em seguida — com, respectivamente, 70%, 64% e 61% de avaliações de “muita corrupção”. O Poder Judiciário foi avaliado como “muito corrupto” por 47% dos entrevistados e aparece em quinto lugar.

Apesar de a Operação Lava Jato ter trazido à tona pagamentos sistemáticos de propina por várias das maiores empresas do país, firmas privadas foram as instituições mais bem avaliadas pelos entrevistados: só 24% as apontaram como “muito corruptas”. Para Manoel Galdino, diretor da ONG Transparência Brasil, que se dedica a promover o controle social do poder público, os resultados apontam uma tendência de brasileiros considerarem o Estado mais corrupto do que o setor privado.

— Não surpreende o fato de os políticos ainda ocuparem as primeiras posições, porque realmente ocorrem escândalos de corrupção mais graves e em maior quantidade envolvendo essas figuras. No entanto, há dois pontos a serem destacados sobre a percepção sobre as empresas. Só existe corrupção porque alguém recebe e outro alguém paga. No Brasil, como vimos na Lava-Jato, geralmente quem paga são grandes empresas privadas. Mas o brasileiro só vê a corrupção do lado do Estado. Outro ponto é que a maioria das empresas no Brasil são de pequeno porte, comerciantes, microempreendedores. São nessas empresas que o brasileiro pensa, e não nas grandes empreiteiras — explica Galdino.

Os brasileiros consideram a corrupção o segundo maior problema do país, segundo o Ipec. Ao todo, 36% dos entrevistados pelo instituto mencionaram pagamentos de propina e a troca de pagamentos ilícitos por vantagens como um dos três problemas mais graves do Brasil — somente o desemprego foi mencionado por mais entrevistados. No entanto, quando estimulados a escolher somente um desafio a ser enfrentado, a corrupção aparece como maior prioridade dos entrevistados, com 18% das menções, à frente de desemprego e saúde, com 14% cada uma.

Leia aqui os outros temas da série Tem Solução, que investiga os principais problemas do país a partir de dois levantamentos inéditos do Ipec. A primeira pesquisa foi feita de forma presencial com 2 mil eleitores com 16 anos ou mais, entre 1 e 5 de julho em 128 cidades brasileiras. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou menos. A segunda, feita com 2 mil pessoas na internet com 16 anos ou mais das classes A, B e C, entre 20 e 27 de julho, com margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou menos.

Rafael Soares para O Globo, em 05.09.22

domingo, 4 de setembro de 2022

A opção pela ignorância

Como havia desacreditado pesquisas sobre desmatamento e desemprego, Bolsonaro diz que não há fome no Brasil; nenhum governo toma decisões corretas ao escolher ignorar a realidade

Para ser eficiente, um governo precisa de informações de qualidade. É impossível que um presidente da República tenha domínio sobre todos os temas que lhe cabe tratar, mas um bom presidente é aquele que, antes de tomar decisões, especialmente sobre assuntos que desconhece, se esforça para se inteirar dos dados mais confiáveis. Se, contudo, um presidente escolhe deliberadamente ignorar as informações qualificadas a respeito dos problemas graves do País, baseando suas decisões no que seus seguidores dizem nas redes sociais em detrimento da opinião de especialistas e no trabalho de pesquisadores, o resultado é uma administração caótica – e nociva para a população.

Quando o presidente Jair Bolsonaro diz, por exemplo, que “fome para valer não existe (no Brasil) da forma como é falado”, sinaliza que escolheu a ignorância. Abundam informações segundo as quais a fome não apenas existe “para valer” no Brasil, como atinge brasileiros na casa dos milhões. Há alguns dias, neste espaço, destacamos o caso intolerável de um menino de 11 anos que ligou para a polícia pedindo socorro porque sua família estava havia três dias sem comer (ver o editorial Vergonha brasileira, de 23/8).

O episódio dessa criança é o lado humano de uma tragédia fartamente documentada em estatísticas, que deveriam orientar o governo na adoção de medidas urgentes para mitigar o problema. Tendo em vista, no entanto, que o presidente escolheu não levar em conta esses dados, a julgar por sua declaração, é improvável que o governo atue de maneira correta e célere. Norteado apenas por pesquisas eleitorais, o governo atropelou regras fiscais para distribuir dinheiro aos mais pobres, mas sem critérios claros nem preocupação específica com a insegurança alimentar.

Esse é apenas o caso mais recente a comprovar os efeitos deletérios do apedeutismo militante do governo Bolsonaro. Recorde-se que, no auge da pandemia de covid-19, por exemplo, o presidente trocou vários ministros da Saúde até que encontrasse um que defendesse as teses estapafúrdias defendidas nas redes sociais bolsonaristas a respeito da alegada eficácia de “tratamentos precoces” e da suposta ineficácia das vacinas.

Para a Procuradoria-Geral da República (PGR), Bolsonaro “acreditava sinceramente” no tal tratamento precoce e, por isso, não poderia ser qualificado como “charlatão”, como pretendia a CPI que investigou a atuação do governo na pandemia. Segundo a PGR, o tratamento foi “defendido por inúmeros profissionais da área médica” e, por isso, Bolsonaro não tinha como saber que era ineficaz. O que a PGR não disse é que Bolsonaro demitiu ministros da Saúde que lhe disseram que o tratamento era ineficaz – isto é, que Bolsonaro optou por estimular a população a acreditar que havia remédios eficazes contra a covid quando já tinha informações segundo as quais esses remédios não tinham efeito e que poderiam inclusive pôr em risco a saúde de quem os tomasse.

Esse elogio à ignorância talvez seja a marca mais relevante desse governo. Em 2019, poucos meses depois de tomar posse, por exemplo, Bolsonaro disse que os números sobre o avanço do desmatamento divulgados pelo Inpe não eram “condizentes com a verdade” e demitiu o diretor do instituto, reconhecido internacionalmente por sua competência.

Em 2020, quando a pandemia acelerava, o Ministério da Saúde, depois de críticas de Bolsonaro a respeito de supostos exageros na contabilidade de contaminados e mortos pelo coronavírus, decidiu alterar a divulgação dos números, tornando-os menos confiáveis ou inteiramente inúteis. Essa atitude levou vários veículos de imprensa, entre os quais este jornal, a se juntar em um consórcio cujo objetivo era coletar esses dados diretamente dos Estados.

Em 2021, depois da divulgação de números ruins sobre o emprego, o presidente Bolsonaro, em vez de admitir o problema e propor soluções, preferiu desacreditar o IBGE, que produziu a informação. Para Bolsonaro, o número do desemprego aumentou “por causa da metodologia” do instituto.

Os exemplos são muitos e indicam um padrão: Bolsonaro não gosta da realidade quando esta contraria seus devaneios ou prejudica seus interesses. Nenhum governo toma decisões corretas quando é dominado pela fabulação. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04.09.22


Bolsonaro utiliza ações militares para reforçar ato eleitoral no 7 de Setembro

Presidente estará na orla carioca na data em que Marinha realiza parada naval, Força Aérea exibe esquadrilha e canhões do Forte de Copacabana saúdam o bicentenário da Independência


A orla da Praia de Copacabana também rcebeu manifestação de apoiadores de Bolsonaro no 7 de Setembro de 2021. Neste ano, o comício do presidente acontecerá junto a apresentações militares. Foto: Wilton Junior/Estadão

O presidente Jair Bolsonaro vai usar ações militares para engrossar um ato eleitoral no 7 de Setembro, no Rio. O esperado comício do presidente – candidato à reeleição pelo PL – na orla carioca vai ocorrer ao mesmo tempo em que a Marinha faz sua parada naval, a Força Aérea exibe a esquadrilha da fumaça e os canhões do Forte de Copacabana vão saudar o bicentenário da Independência. Os bolsonaristas se misturarão a bandas militares e a uma exibição de paraquedistas do Exército e da Aeronáutica.

Bolsonaro pretendia transferir o desfile cívico-militar do dia 7 da Avenida Presidente Vargas, no centro – onde sempre ocorreu – para Copacabana, onde haverá seu evento de campanha. Historicamente, os presidentes, desde a redemocratização, participam das comemorações do Dia da Independência apenas na parada militar, em Brasília. Foi assim com José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer. Bolsonaro será o primeiro a ir a um segundo ato, no Rio – junto com uma manifestação eleitoral.

Na sexta-feira, o Ministério Público Federal enviou pedidos ao Comando Militar do Leste (CML), ao 1.º Distrito Naval e ao 3.º Comando Aéreo Regional para que informem quais providências tomaram para impedir que a celebração da Independência se confunda com ato político-partidário. Também perguntou o que fizeram para impedir que os subordinados participem de celebrações políticas.

Para analistas, Bolsonaro pretende, com o ato, unir os militares aos seus apoiadores. “O que seria uma festa cívica que marca um bem comum para todos os brasileiros, os 200 anos de Independência do País, acaba sendo um caro evento de campanha”, disse Eduardo Heleno de Jesus Santos, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense.

“O que seria uma festa cívica para todos os brasileiros acaba sendo um caro evento de campanha.”

Eduardo Heleno Santos, cientista político

O professor de Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Christian Lynch, concorda. Segundo ele, o presidente vai usar os atos oficiais para exibir apoio de militares e de eleitores. O cenário – prevê – será utilizado em peças de propaganda eleitoral. “Bolsonaro vende a imagem de que tem o apoio irrestrito do povo e das Forças Armadas e está sempre parasitando eventos com a presença das Forças Armadas, de evangélicos, numa tentativa de tomar para si os atos.”

Resistências

Desta vez, o presidente enfrentou resistências no Exército e na Prefeitura do Rio, que informou não ser possível mudar o evento de lugar. O resultado foi que, após dois anos de pandemia sem festas pelo País, o bicentenário da Independência será comemorado sem desfile no Rio. A parada na Avenida Presidente Vargas foi cancelada a fim de não contrariar Bolsonaro. Se ela não podia ser em Copacabana, também não seria em outro lugar.

As tropas do CML vão desfilar em Belo Horizonte, em Vitória e até em São Paulo, para onde as Brigadas Paraquedista e de Montanha enviaram contingentes. Na capital paulista, o Comando Militar do Sudeste prepara uma festa com 6.266 militares das três Forças – incluindo cadetes equatorianos –, 1.015 policiais e 3 mil civis, na Avenida d. Pedro 1.º , ao lado do Museu Paulista, no Ipiranga. Desfiles vão ocorrer em todas as capitais. Salvador terá 6,4 mil civis e militares e no Recife serão 2,5 mil militares.

Políticos bolsonaristas, ouvidos sob condição de anonimato, avaliam que a celebração no Rio servirá para que o mandatário continue a contestar as pesquisas eleitorais. Eles preparam uma grande panfletagem na orla. No Estado, Lula marcou 42% ante 36% do presidente, na mais recente pesquisa Datafolha. Em 2018, Bolsonaro venceu o segundo turno com o dobro de votos de Fernando Haddad (PT).

Para Eduardo Heleno, há outras razões para a escolha do Rio. Berço político do presidente, o Estado concentra uma grande guarnição militar, que sempre serviu de base eleitoral a Bolsonaro. “Não há como deixar de levar em conta, além do público militar, a aproximação com neoconservadores cristãos.”

Ele cita o fato de o presidente ter crescido a partir desse eleitorado, o que inclui ainda defensores da monarquia. O Estado é também chave para a pretensão de se formar bancadas estadual e federal fortes e para questões legais, pois ali estão as principais investigações que envolvem Flávio e Carlos Bolsonaro.

“Bolsonaro vende a imagem de que tem o apoio irrestrito do povo e das Forças Armadas e está sempre parasitando eventos com a presença das Forças Armadas numa tentativa de tomar para si os atos.”

Christian Lynch, cientista político

A mudança para o Rio, por fim, estaria condicionada ao fato de o presidente não contar com o apoio do governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB). Em 2021, Bolsonaro escolheu a Avenida Paulista para o ato do dia 7. Para a antropóloga Isabela Kalil, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, há um cálculo político na mudança. Ela lembra que, em 1972, foi em São Paulo que a ditadura fez o principal ato da comemoração dos 150 anos da Independência, com a chegada dos restos mortais de d. Pedro 1.º ao Museu Paulista. Desta vez, o governo conseguiu que o coração do imperador viesse de Portugal para o Brasil, mas sem despertar a mesma comoção. “Dependendo de como for o 7 de Setembro, vamos saber como será a eleição.”

Interesses

Sem o desfile no centro, as Forças Armadas prepararam oito horas de apresentações. A primeira das salvas de canhão será às 8 horas. Elas se repetirão de hora em hora. Pela manhã, bandas do Exército se exibirão em bairros do Rio. A parada naval, com navios da Marinha do Brasil e de países amigos, partirá do Recreio dos Bandeirantes, às 9 horas, em direção à Baía de Guanabara.

Às 13 horas, haverá a cerimônia comemorativa na Avenida Atlântica, em Copacabana, com show aéreo e apresentação de bandas militares. Às 16 horas, a Marinha e a artilharia no Forte executarão salvas de 21 tiros em homenagem ao Bicentenário. Já Bolsonaro vai participar da parada do dia 7, de manhã, em Brasília. Depois, chegará a Copacabana em uma motociata, que sairá do Aterro do Flamengo até um palco montado perto do Forte, mas distante do núcleo das comemorações oficiais.

Marcelo Godoy e Rayanderson Guerra para o Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 04.09.22

Por que população brasileira fica mais feminina e idosa — e como isso molda futuro do país

O futuro do Brasil é feminino. É também, cada vez mais, idoso e negro.

Ao final do século 21, pessoas com mais de 60 anos devem ser 40% da população do Brasil; maioria será de mulheres (Getty Images)

Predominantemente masculina e jovem até os anos 1940, a população brasileira vem se transformando em ritmo equivalente ao de países asiáticos.

E as mulheres, que demoraram muito mais do que os homens a poderem votar, hoje também superam numericamente os eleitores masculinos — além de impulsionarem o crescimento da população economicamente ativa do país.

Como envelhecimento do eleitorado brasileiro pode afetar as eleições

Essas e outras mudanças ao longo dos últimos dois séculos — desde a proclamação da Independência, em 1822 — são detalhadas pelo demógrafo José Eustáquio Diniz Alves no livro recém-lançado Demografia nos 200 Anos da Independência do Brasil e cenários para o século 21.

Nesse período, a população brasileira cresceu mais de 45 vezes: passou de estimados 4,7 milhões em 1822 para os cerca de 215 milhões que terá no final deste ano.

Por décadas, o país recebeu um influxo de pessoas que eram majoritariamente do século masculino, desde pessoas escravizadas vindas da África até imigrantes vindos de países como Japão e Itália, em uma estratégia do governo para "branquear a população" após a abolição da escravidão.

O foco no fortalecimento da força de trabalho, fosse ela escravizada ou livre, foi um dos principais motivos para que até meados do século 20, o pêndulo demográfico no Brasil pendesse numericamente para os homens.

O que aconteceria depois mudaria rapidamente esse cenário.

Mais anos de vida, menos filhos

Com os avanços socioeconômicos do país, a mortalidade infantil caiu e a expectativa média de vida, que era apenas de 25 anos na época da Independência, subiu para 75.

Ao mesmo tempo, o número de filhos por mulher, em média 6,2 em 1940, caiu para 1,7 em 2020. Essa mudança, chamada de "transição da fecundidade", "é considerada uma das transformações sociais mais importantes e mais complexas", escreve Diniz Alves, cujos levantamentos embasam os gráficos desta reportagem.

"Durante a maior parte da história brasileira, as taxas (de natalidade) eram altas para se contrapor às elevadas taxas de mortalidade e porque as famílias desejavam muitos filhos, já que as crianças traziam mais benefícios do que custos para os pais. Porém, (...) os custos dos filhos subiram e os benefícios diminuíram. Os filhos deixaram de ser um 'seguro' para os pais, que passaram a contar com o sistema de proteção social e previdência. Essa transição tem um grande impacto nas famílias e na sociedade, pois muda a relação entre as gerações e modifica a estrutura etária."

A combinação de menos bebês nascendo e pessoas vivendo mais significou o crescimento da proporção de idosos no país. E a balança da longevidade pendeu para o lado das mulheres.

O país europeu que perdeu 10% da população em 10 anos

Em todo o mundo, segundo Diniz Alves, os homens são menos longevos: são proporcionalmente mais atingidos pela violência urbana e tendem a cuidar menos da saúde. Mas, na América Latina em geral, Brasil incluído, o fenômeno é mais acentuado.

Número de filhos por mulher, que era em média 6,2 em 1940, caiu para 1,7 em 2020 no Brasil (Getty Images)

Um exemplo disso é o fato de que 90% das vítimas de homicídio e latrocínio do país em 2021 foram do sexo masculino, de acordo com o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Homens também são a maioria das vítimas fatais dos acidentes de trânsito. Um levantamento do Detran paulista em 2020 apontou que 93% dos mortos em colisões no Estado eram do sexo masculino.

O documento Dados da Morbidade Masculina no Brasil, elaborado em 2015 pelo Ministério da Saúde, aponta que eles respondiam por 68% das mortes na faixa etária entre 20 a 59 anos.

O dia em que a Terra vai atingir 8 bilhões de habitantes, segundo a ONU

As principais causas de morte nessa faixa etária foram lesões, envenenamento e outras consequências de causas externas; doenças do aparelho digestivo; doenças circulatórias, infecciosas, parasitárias e respiratórias.

"O sexo masculino possui os piores índices de morbimortalidade, e ainda assim não tem o hábito de procurar os serviços de saúde de forma preventiva", diz o Ministério em um boletim epidemiológico de 2022.

Como resultado dessa conjuntura de fatores, os homens brasileiros passaram a viver, em média, 7,1 anos a menos do que as mulheres.

"O Brasil teve mais homens em boa parte da sua história, até cerca de 1940. Hoje, porém, temos cerca de 5 ou 6 milhões de mulheres a mais", explica Diniz Alves à BBC News Brasil.

Os homens também foram mais impactados pela pandemia de covid-19, que reduziu em quase dois anos a expectativa de vida média dos brasileiros.

Segundo um estudo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard, nos EUA, coordenado pela demógrafa Márcia Castro, a pandemia ampliou em cerca de 9,1% a diferença na expectativa de vida entre homens e mulheres.

Com isso, homens estão vivendo cerca de 1,57 ano menos e mulheres, 0,9 por conta da pandemia.

Maioria nas eleições

Esse fenômeno demográfico já tem grandes implicações eleitorais.


Gráfico de mulheres no eleitorado

Se o país já tem 6 milhões de mulheres a mais do que homens, a diferença fica ainda maior se leva-se em conta apenas o contingente de pessoas aptas a votar.

Hoje, o eleitorado brasileiro é composto por 53% de mulheres contra 47% de homens, uma diferença de quase 8 milhões de pessoas.

Essa virada tardou cerca de 70 anos em acontecer. "As mulheres brasileiras conquistaram o direito de voto em 1932. Porém, mesmo sendo maioria da população, continuaram minoria do eleitorado até a virada do século", explica Diniz Alves.

"Em 1974, mais de quatro décadas depois dessa conquista, as mulheres ainda eram apenas um terço do eleitorado. A diferença de gênero diminuiu aos poucos e, em 1998, houve empate, com cerca de 53 milhões de eleitores para cada sexo. Já nas eleições do ano 2000, pela primeira vez, as mulheres superaram os homens no número de eleitores registrados."

No cenário atual, um subgrupo feminino em especial, o das evangélicas, é apontado como um dos pêndulos da eleição presidencial de outubro.

Esse eleitorado votou em peso em Jair Bolsonaro (PL) em 2018 e ainda apoia, em sua maioria, o atual presidente, embora tenha ficado mais dividido entre ele e seu principal adversário no pleito, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Um futuro com 40% da população acima de 60

Ao mesmo tempo, o fenômeno demográfico atual provoca um rápido processo de envelhecimento dos brasileiros, algo que Diniz Alves também destaca em sua pesquisa.

Em 1950, as pessoas de 60 anos ou mais eram apenas 5% da população total do país. No fim século 21, porém, devem chegar a 40%, prevê o demógrafo, a partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e das projeções populacionais da ONU.

Marcha das Mulheres Negras, em julho, em São Paulo; mulheres vivem mais, estudam mais e acumulam mais tarefas — mas ganham menos (Reuters)

É um caminho semelhante ao visto em grande parte da população mundial, mas com consequências importantes para a "cara" do país no futuro.

As estimativas da ONU indicam que, nos padrões atuais, o Brasil terá cerca de 184,5 milhões de habitantes em 2100, na entrada do século 22. Desse total, impressionantes 73,3 milhões — 40% da população — terão mais de 60 anos.

"E, entre a população no topo da pirâmide etária, as mulheres vão predominar durante todo o período" dessa transição demográfica, prevê Diniz Alves.

Dentro desse contingente de pessoas com mais de 60 anos, haverá, segundo as previsões, quase 4 milhões de mulheres a mais do que homens.

É por isso que o futuro do Brasil vai ser cada vez mais idoso, mais feminino e, seguindo a tendência atual, de renda mediana, antecipa o demógrafo. Provavelmente também crescerá a parcela que se autodeclara negra.

"No século 19, a maioria da população era negra (em decorrência da escravidão), e depois houve um processo de embranquecimento, impulsionado pela imigração europeia e asiática. No século 20, a maior parte se autodeclarava branco. Agora, nos anos 2000, aumentou a autodeclaração de pretos e pardos", diz o demógrafo.

De fato, segundo o IBGE, o número de pessoas que se autodeclaram pretos aumentou de 7,4% em 2012 para 9,1% em 2021 e os pardos foram de 45,6% para 47% nos últimos dez anos. Os autodeclarados brancos caíram 46,3% para 43%.

Mulheres puxam 'bônus demográfico', mas enfrentam barreiras

Gráfico da população economicamente ativa

Diniz Alves ressalta ainda que, enquanto a transição a um país mais idoso não se completa, o país ainda está no período chamado de bônus demográfico — janela de oportunidade em que a população economicamente ativa, mais jovem, ainda é bem mais numerosa do que a idosa, que depende mais de aposentadorias.

Esse período, se aproveitado, ajuda a aumentar o Produto Interno Bruto (PIB) de um país e sua estrutura de previdência, poupança, investimento e bem-estar social, preparando-o para a mudança na população.

"Com certeza o bônus demográfico brasileiro é puxado totalmente pelas mulheres", afirma o demógrafo.

Isso porque a população economicamente ativa, que em grande parte do século passado foi predominantemente masculina, foi ganhando cada vez mais mulheres.

"E elas não só entraram no mercado de trabalho como passaram os homens em todos os níveis escolares no Brasil", do ensino médio até a pós-graduação. O problema é que elas ainda enfrentam muito mais obstáculos em suas carreiras.

O relatório de 2019 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) "Education at Glance" apontou que, ao mesmo tempo em que as mulheres brasileiras tinham 34% mais probabilidade de se formar no ensino superior do que seus pares do sexo masculino, também tinham menos chance de conseguir emprego.

"Embora a disparidade de gênero na educação favoreça as mulheres, a situação no mercado de trabalho é ao revés", afirmou o relatório.

Os possíveis motivos para isso incluem as decisões sobre qual curso estudar — vieses que podem levar homens a profissões mais bem pagas — e desigualdades na progressão de carreira e na divisão de tarefas não remuneradas.

O levantamento mais recente do IBGE mostra que, em 2019, as mulheres gastavam 21,4 horas semanais com afazeres domésticos e cuidado de pessoas, contra 11 horas gastas pelos homens.

Gráfico da população brasileira com educação superior

Hoje, em média, as trabalhadoras brasileiras ganham cerca de 22% a menos do que os trabalhadores, uma diferença que se sustenta mesmo entre pessoas que ocupam cargos semelhantes e têm nível educacional parecido.

Mas esse percentual é diferente de região para região — e é maior no Norte e no Nordeste.

Existem também diferenças que prejudicam em particular as mulheres negras. Os dados do IBGE mostram que a cada real ganho por um homem branco, uma mulher negra recebe R$ 0,43 — isso é 57% menos do que o salário de homens brancos, 42% menos do que o de mulheres brancas e 14% menos do que o de homens negros recebem.

O Censo e a Pesquina Nacional de Domicílios (Pnad) mostram ainda que a diferença nos rendimentos de homens e mulheres aumenta conforme a faixa etária.

Se elas ganham em média 88% do que ganham os homens entre os 16 aos 24 anos, quando passam dos 60, ganham somente 64% do que recebem os homens desse mesmo grupo de idade.

Por fim, as mulheres sofrem com taxas maiores de desemprego e informalidade, segundo dados do IBGE citados por Diniz Alves.

Tudo isso indica que "a sociedade brasileira não faz justiça a essa contribuição feminina ao bônus demográfico" e não está aproveitando a oportunidade de enriquecer antes que a população envelheça, conclui o pesquisador.

"Uma parte dessa discriminação contra as mulheres é 'culpa' do mercado de trabalho, mas outra é da sociedade, que joga as responsabilidades da vida reprodutiva e o cuidado com idosos no ombro das mulheres. Entre as mulheres mais pobres, isso é ainda mais sério."

Observando historicamente, escreve Diniz Alves, "as mulheres brasileiras (...) adquiriram níveis crescentes de educação, aumentaram as taxas de participação no mercado de trabalho e avançaram nas diversas áreas sociais. O desafio do século 21 será construir uma sociedade mais justa e com equidade de gênero."

Paula Adamo Idoeta e Camilla Costa, da BBC News Brasil em Londres. Publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62632851 / 04.09.22

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Dinheiro impresso não é auditável

Comprar imóveis por valores fantasiosos esconde origem da bufunfa

Ilustração de Débora Gonzales para coluna de Renato Terra publicada em 1º de setembro de 2022 - Débora Gonzales

Uma comissão de pastores, empresários, radialistas e deputados foi convocada para debater sobre um dilema que se instaurou nesta semana depois da revelação feita pelos jornalistas Juliana Dal Piva e Thiago Herdy de que "metade do patrimônio do clã Bolsonaro foi comprada em dinheiro vivo".

A pergunta complexa que emergiu foi a seguinte: a transparência nas eleições pode ser defendida por uma pessoa que não defende a transparência?

De bate-pronto, ninguém arriscou falar em voz alta a resposta que decerto todos tinham na ponta da língua. Era necessário refletir, ponderar.

Sobre um fundo  amarelo há um splash vermelho promocional, sobre o splash há uma impressora portátil azul imprimindo dinheiro que voa por todas as partes da página.

Um radialista grisalho de pele alva quebrou o silêncio. "Há uma coerência entre pedir o voto impresso e usar dinheiro impresso", afirmou.

Dois pastores concordaram e lembraram que o pagamento em barras de ouro também está livre de fraudes eletrônicas.

"O problema é que o dinheiro vivo não deixa rastros. A pessoa pode declarar a compra de um imóvel de R$ 2 milhões e pagar R$ 150 mil em cédulas. Ninguém consegue checar se o valor pago é o mesmo valor declarado. É um método muito usado para quem quer lavar dinheiro. Ou seja, a pessoa ganha fortunas de maneira ilegal e depois tem que arrumar um jeito de declarar essa grana.

Comprar imóveis por valores fantasiosos é uma prática perfeita para esconder a origem da bufunfa sem deixar pistas. Ou até o contrário. A pessoa pode comprar um imóvel de R$ 500 mil e declarar R$ 300 mil para pagar menos impostos. Quem está interessado em fazer tudo certinho faz transferência bancária.

"Ou seja, o dinheiro vivo pode ser impresso, mas não é auditável", disse uma empresária.

Tachada de comunista, essa empresária foi expulsa da reunião. Deputados lembraram a possibilidade de decretar sigilo de cem anos para a imprensa e para todas as mulheres.

O radialista grisalho ficou com o rosto levemente vermelho. Ainda não havia uma boa resposta. Num estalo, argumentou que a culpa poderia ser do Lula por não ter criado o Pix na época em que os imóveis foram comprados.

A discussão ganhou corpo -afinal, Lula também tem acusações de compras ilegais de imóveis. "E tem mais! Lula está dizendo aí que criou o Portal da Transparência. O que só pode significar que esse negócio de transparência é ruim", falaram, entusiasmados, os deputados.

Enfim, todos concordaram. Em suma, a resposta para o dilema "a transparência nas eleições pode ser defendida por uma pessoa que não defende a transparência?" seria "e o PT?".

Renato Terra, o autor deste artigo, é roteirista e documentarista. Dirigiu "Uma Noite em 67" e "Narciso em Férias". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 01.09.22

Simone Tebet se tornou mais conhecida nas redes sociais e de quebra conquistou votos

Candidata à Presidência com menos seguidores entre os melhores colocados, senadora cresceu em todas plataformas

A senadora Simone Tebet (MDB-MS), candidata da chamada terceira via à Presidência em 2022. Foto: Reprodução/Facebook - 21/8/2022

A campanha de Simone Tebet, do MDB, certamente comemorou os dados da pesquisa Datafolha, divulgados na quinta-feira, 1º de setembro. A candidata pulou de 2% para 5% das intenções de voto. Pouco para aspirar ambições maiores? Provavelmente, mas o desempenho corrobora algo que fica cada vez mais evidente: independentemente dos resultados, a senadora já obteve uma importante conquista: tornar-se mais conhecida nas redes sociais.

Levantamento feito pela Torabit, parceira do Estadão na criação do Monitor de Redes Sociais, mostra que Tebet cresceu em todas as plataformas, sobretudo no Instagram. É verdade que o mesmo ocorreu com todos os candidatos mais bem colocados na corrida eleitoral - Ciro, Lula e Bolsonaro -, mas Tebet era (é) de longe a menos conhecida deles em todo o País. Prova disso é que durante o horário eleitoral desta quinta-feira a senadora se apresentava ao eleitor, voltava à sua cidade e por aí foi.

Os dados mostram a conquista de seguidores entre os dias 16 de agosto, início do horário eleitoral gratuito, e a última terça-feira, dia 30 de agosto. A rede em que ela obteve mais seguidores foi o Instagram. Simone amealhou 175.201 novos seguidores. Uma alta que impressiona, de 90,6%, mas é justificada pela base ser pequena: ela era acompanhada por 193.276 pessoas e agora é seguida por 368.477.

No Facebook, a candidata ganhou 13,5 mil novos seguidores (alta de 8,4%). No Twitter, o ganho foi de 19.856 perfis (+ 5,9%) e, finalmente, no YouTube, ela saltou de 9.580 inscritos em seu canal para 12.100 - mais 2.520 inscritos, ou 26,3% de alta. Como escreveu a jornalista Adriana Ferraz, a pauta feminina tende a ganhar espaço nas campanhas após o debate mas, para atrair as eleitoras, os candidatos precisam entender as demandas do público feminino.

Daniel Fernandes para O Estado de S. Paulo, em 02.09.22

Guzzo: sonho de Lula é uma campanha sem falar de corrupção

É duro para o ex-presidente convencer alguém de sua inocência dizendo que ‘o processo foi resolvido pelo STF’

Primeiro debate dos candidatos à Presidente promovido na TV Bandeirantes (Band) teve a presença dos candidatos: Luiz Felipe D’Avila (Novo), Soraya Thronicke (União Brasil), Simone Tebet (MDB), Jair Bolsonaro (PL), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT). Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

O ex-presidente Lula não quer que seja assim, e tem nisso o apoio de muita gente, mas vai ser dessa forma: daqui até a eleição de outubro, ele será obrigado a ficar rolando na calçada numa briga corpo a corpo com a corrupção. É, entre todos, o assunto do qual Lula quer falar menos.

Seu sonho dourado é uma campanha eleitoral inteira, toda ela, igual à “sabatina” que recebeu de presente dos apresentadores da Rede Globo. Não teve, ali, de responder à nenhuma pergunta de verdade; em vez disso, recebeu uma homenagem. “O senhor não deve nada à Justiça”, declarou o entrevistador, antes de mais nada e acima de tudo.

Foi tão bom para Lula, mas tão bom, que a frase de absolvição da Globo passou a fazer parte da propaganda oficial do PT na televisão; é difícil que se consiga chegar de novo a tal ponto. Mas esse paraíso não existe na vida real. Já no debate entre os candidatos, logo a seguir, não havia mais apresentadores como os que houve na “sabatina”, e a vida ficou dura.

Apareceram na ocasião, é claro, os militantes mais agitados do “antibolsonarismo” – só que isso não melhorou a vida de Lula. Na maior parte do tempo, teve de ouvir dos outros candidatos que o seu governo foi o mais corrupto da história do Brasil – e não conseguiu dar nenhuma resposta coerente para nada disso.

Primeiro debate dos candidatos à Presidente promovido na TV Bandeirantes (Band) teve a presença dos candidatos: Luiz Felipe D’Avila (Novo), Soraya Thronicke (União Brasil), Simone Tebet (MDB), Jair Bolsonaro (PL), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT).

O problema central de Lula, nesta campanha eleitoral, é que não são os adversários que estão dizendo que ele é ladrão – quem diz isso é a Justiça brasileira, que o condenou pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em três instâncias e por nove juízes diferentes.

É uma questão de prontuário; não há o que se possa fazer a respeito. Houve, é claro, o número de vassalagem da “sabatina”, mas provavelmente não dará para fazer de novo. De mais a mais, o que é que adianta esse tipo de bajulação explícita? É o exato contrário: Lula continua devendo tudo à Justiça. Não foi absolvido de absolutamente nada – ganhou de presente do STF a anulação dos seus processos penais, mas nosso tribunal supremo não disse uma sílaba sobre culpa, provas e fatos. Houve apenas um erro de endereço quanto ao lugar de julgamento, segundo decidiu o ministro que fez a “descondenação”. Que coisa, não?

É duro para Lula, ou para qualquer um, convencer alguém de sua inocência dizendo que “o processo foi resolvido pelo STF”. Que moral tem hoje essa gente para decidir alguma coisa sobre corrupção? Ganhar uma decisão favorável desse STF que está aí, aos olhos da maioria do público, equivale a receber um atestado de boa conduta do PCC. O que adianta, então, Lula ficar falando que foi “inocentado pelo STF”? Melhor, talvez, não dizer nada.

A dificuldade é que não dá para chegar ao dia da eleição só ouvindo hinos de honra ao mérito como os que recebeu na “sabatina”. Não poderia haver demonstração melhor de que as coisas não vão bem do que o pedido do PT para mudar as regras dos próximos debates. Só time que perde, como é bem sabido, parte para cima do juiz no fim do jogo para reclamar.

J.R. Guzzo, o autor deste artigo, é Jornalista. Escreve semanalmente sobre o cenário político e econômico do País. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22.09.22

Setembro chegou e Bolsonaro vai botar navios e aviões na campanha e ‘canhões’ contra Lula

Com o presidente acossado pela compra de 107 imóveis por familiares, 51 deles em dinheiro vivo, petista ganhou munição numa área-chave: a corrupção.

Setembro chegou com Bolsonaro atrás nas pesquisas. Foto: Albari Rosa/AFP

Com sua obsessão em transformar o 7 de Setembro e o bicentenário da República nos maiores espetáculos da Terra e da sua campanha à reeleição, Jair Bolsonaro criou um problemão para a prefeitura do Rio e uma saia-justa para as Forças Armadas, particularmente o Exército. Mas não foi só isso. Mais uma vez, gerou enorme constrangimento para países amigos do Brasil.

Que alguma entidade da sociedade civil comece o desafio e pressione os candidatos à Presidência a deixar o eleitorado conhecê-los de verdade: abrindo suas declarações do IR dos últimos anos

As forças navais do Brasil e de 18 outros países das Américas estão no País para participar da Operação Unitas, exercício conjunto que vem desde 1960 e, neste ano, justamente ano eleitoral, ocorre no Brasil, a partir do Rio. E agora? Os países discutem nos bastidores se vão ou não reforçar o bicentenário da independência brasileira, o que corresponde a dar mais visibilidade à campanha de Bolsonaro.

São 5,5 mil militares, 20 navios de guerra, um submarino e 21 aeronaves que fazem a alegria das famílias e serão chamariz para a campanha. A operação começa oficialmente no dia seguinte, mas muitos países participarão do 7 de Setembro/bicentenário e um dos mais importantes, senão o mais, os EUA, faz suspense. “Duvido que isso mude a opinião do eleitor que não decidiu em quem votar”, diz um diplomata de um dos 18 países.

O problema são os países amigos serem usados grosseiramente não para manobras militares, mas para manobras eleitoreiras de um presidente que já convidou embaixadores estrangeiros para servir de figurantes naquela cena lamentável em que ele achincalhou o sistema eleitoral, o TSE e ministros do STF, ao vivo e em cores. Navios e aviões estrangeiros serão, certamente, um chamariz para o ato de campanha bolsonarista.

Nas Forças Armadas brasileiras, imagine-se o espanto quando o presidente se dispôs a exigir que a parada do 7 de Setembro seja na Praia de Copacabana. O jeito para nem desobedecer a Bolsonaro nem cumprir ordem absurda foi cancelar a parada no centro e quebrar um galho em Copacabana.

Setembro chegou com Bolsonaro atrás nas pesquisas, acossado pela compra de 107 imóveis por familiares, 51 deles em dinheiro vivo. Para tentar confundir a galera, diz que a maioria dos imóveis era do ex-cunhado, mas eram só oito, dentro do esquema. E alegou que “moeda corrente não é dinheiro vivo”, mas, sim, a moeda do País, atualmente, o real. Ah, sei!

Como Bolsonaro torrou todos os cartuchos e não atingiu o alvo – encostar ou superar Lula (PT) –, ele vai partir para a ignorância. Exigir um 7 de Setembro e um bicentenário da independência em Copacabana é parte disso. Tem mais: os canhões de fake news estão voltados para o favorito nas pesquisas. Mas Lula ganhou munição numa área-chave: a corrupção.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 02.09.22

Bolsonaro deve explicações

A compra de imóveis em dinheiro vivo costuma servir à lavagem de dinheiro. A família Bolsonaro comprou 51 imóveis em dinheiro vivo. Está claro que o presidente deve explicações


Este é apenas um dos imóveis comprados em dinheiro vivo

O governo Bolsonaro tem problemas sérios envolvendo corrupção e gestão obscura de recursos públicos, com destaque para negociações suspeitas de vacina anti-covid, pedidos de dinheiro por pastores evangélicos no Ministério da Educação e, principalmente, o orçamento secreto – que cria as condições ideais para o florescimento da corrupção, por permitir gastos sem transparência e sem critério. Tudo isso é rigorosamente contrário à promessa de Jair Bolsonaro de combate implacável à corrupção. No entanto, há algo ainda mais explicitamente avesso à moralidade pública e diretamente relacionado ao presidente da República: o sistema metódico de compra de imóveis com o uso de dinheiro vivo da família Bolsonaro. 

O caso é gravíssimo e deveria merecer mais atenção dos eleitores brasileiros. Afinal, o Brasil aprovou a Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, justamente porque a sociedade se cansou de políticos delinquentes. Está claro que Bolsonaro precisa explicar a origem dos milhões de reais em dinheiro que ele e sua família conseguiram movimentar na negociação de dezenas de imóveis, aparentemente sem ter renda suficiente que a justifique.

O site UOL revelou que, desde os anos 90, o presidente, seus irmãos e seus filhos negociaram 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com o uso de dinheiro vivo. Em valores corrigidos pelo IPCA, o montante pago em dinheiro vivo equivale a R$ 25,6 milhões.

Não é crime comprar um imóvel usando dinheiro vivo. Mas essa modalidade de pagamento, especialmente se é recorrente, consiste em forte indício de lavagem de dinheiro. É justamente um dos crimes pelos quais o ex-presidente Lula da Silva foi condenado no caso do triplex do Guarujá. O crime de lavagem de dinheiro consiste em “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Uma vez que o dinheiro vivo não tem rastreabilidade, seu uso é muito propício para ocultar ou dissimular a real origem de determinado recurso. 

Quando veio à tona que a família Bolsonaro comprou 51 imóveis envolvendo pagamento em dinheiro vivo, o presidente não contestou o dado. Limitou-se a perguntar, com sua habitual truculência: “Qual o problema comprar com dinheiro vivo algum imóvel?”.

Ora, não foi apenas “algum imóvel”. Foram 51. E tudo fica ainda mais suspeito quando se toma conhecimento de que as declarações de bens e renda da família Bolsonaro entregues à Justiça Eleitoral, como revelou o Estadão, não indicam guarda de dinheiro em espécie em casa. De 1998 até agora, apenas o filho Carlos informou ter guardado R$ 20 mil em espécie por ao menos oito anos.

Tudo isso é escandaloso – e demanda pronto e inequívoco esclarecimento. Os mesmos eleitores que, com razão, cobram de Lula da Silva explicações sobre os casos cabeludos de desvio de recursos públicos nos governos do PT devem exigir de Bolsonaro que explique qual foi a mágica financeira que permitiu que ele e seus filhos parlamentares, cujos salários não superam R$ 40 mil brutos, fossem capazes de movimentar milhões de reais no ramo imobiliário, e tudo em cash.

Nem Bolsonaro nem seus filhos foram capazes, até agora, de esclarecer os muitos indícios da prática de rachadinha (apropriação de salários de assessores parlamentares) por parte do clã. Ou seja, há a suspeita de ocultação da origem de bens (pelo uso de dinheiro vivo na compra de 51 imóveis) e, ao mesmo tempo, há a suspeita da origem ilícita desses recursos (a rachadinha), elementos do crime de lavagem de dinheiro. Por muito menos, e com base em indícios muito mais frágeis, inúmeras pessoas foram denunciadas e chegaram a ser presas na época da Lava Jato.

Como candidato à reeleição e, sobretudo, como candidato que se apresenta como incorruptível, Bolsonaro tem o dever de esclarecer a origem desses recursos. Quem quer ser (ou continuar a ser) presidente da República não pode deixar dúvidas sobre sua honestidade, ainda mais quando se está diante de suspeitas de lavagem de dinheiro.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 02.09.22

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Outra Rússia é possível

A dissolução da União Soviética sob a liderança de Gorbachev mudou o sentido da história contemporânea

Um homem coloca uma rosa em uma escultura dedicada a Mikhail Gorbachev no Monumento aos Padres da Unificação em Berlim na quarta-feira. (LISI NIESNER (REUTERS)

Com a morte, fixa-se definitivamente a trajetória do personagem político. Já se passaram 30 anos desde que Mikhail Gorbachev perdeu o poder e encerrou sua carreira como governante, quando a União Soviética, o Estado que ele presidia, foi dissolvida. Mas o seu desaparecimento aos 91 anos, após uma longa doença, colocou à luz do contraste com Vladimir Putin o verdadeiro valor da sua vida política, das suas decisões, da sua coragem e, sobretudo, da sua decência como governante, que acabaram preferindo a liberdade de seus concidadãos de usar a força para mantê-los sob um sistema comunista esclerosado e irreformável.

O saldo é histórico. Durante os breves mas intensos sete anos de sua liderança, ele empreendeu o desarmamento nuclear, retirou tropas do Afeganistão, permitiu a emigração em massa de cidadãos judeus para Israel, libertou dissidentes e iniciou o que é mais popularmente associado ao seu governo: as reformas políticas e econômicas da perestroika sem muito sucesso e a liberdade da glasnost, a transparência que rompeu a opacidade do regime soviético. Rompeu com a doutrina Breznev de soberania limitada, de modo que as transições democráticas foram abertas em regimes comunistas como os da Polônia, Hungria ou República Democrática Alemã. Deu luz verde à unificação alemã na Aliança Atlântica, dissolveu o Pacto de Varsóvia, a aliança militar oposta à OTAN, e o Comecon, o falso mercado comum socialista. Com ele a Guerra Fria terminou, o Muro e a Cortina de Ferro caíram e a Europa recuperou sua unidade.

A admiração e gratidão que sua figura desperta, e especialmente nos países da Europa Central e Oriental da antiga órbita soviética, é diretamente proporcional à difamação que ele ainda levanta entre os líderes da Rússia de hoje e outros regimes hostis à democracia e ao pluralismo. Alguns não perdoam o desaparecimento da União Soviética e do bloco de ditaduras socialistas, exercendo sua função de ameaça histórica necessária para conter os excessos do capitalismo (e ao mesmo tempo desconsiderando o alto preço pago por aqueles que sofreram sob seus regimes totalitários) por 70 anos). Outros, do nacionalista russo e do conservadorismo imperial, não o perdoam pela redução do território imperial e pela perda do status da Rússia como superpotência.que destaca a frieza do Kremlin.

Mas não se trata apenas de sua dimensão internacional. Com Gorbachev são inauguradas três décadas de multilateralismo, paz e cooperação internacional e desarmamento, enquanto Putin é o homem do unilateralismo, da guerra, da polarização e do rearmamento. Se o primeiro representa o sonho de um mundo pacífico e estável governado pelo direito internacional, o segundo significa a cunha da violência e da guerra como instrumentos de instabilidade com os quais os mais fortes poderão impor sua lei a todos. Pior ainda é o contraste interno, entre uma Rússia esperançosa que ampliou o ar da liberdade, e a Rússia deprimida pela guerra contra um país irmão e por uma economia abalada pelo esforço de guerra, as sanções e a corrupção de uma oligarquia mafiosa.

Ainda teremos que esperar a poeira das batalhas baixar para que o balanço de Gorbachev adquira toda a sua dimensão na própria Rússia. Mas seu legado de liberdade e respeito é sólido e indiscutível, assim como foi até o último momento sua atitude esperançosa em relação ao futuro e à juventude que deve liderá-lo.

Editorial do EL PAIS, em 01.09.22

Líderes para poderes com pés de barro

A única coisa que Putin e Gorbachev compartilham é terem sido figuras-chave na compreensão da evolução da URSS então e da Rússia hoje, além de agentes determinantes da dinâmica de mudança e conflito na ordem internacional

Um mural em Roma pelo artista Harry Greb dedicado à guerra na Ucrânia.  MARILLA SICILIA / ZUMA PRESS / CONTACTOPHOTO (MARILLA SICILIA / ZUMA PRESS / C)

Em The Rise and Fall of Great Powers , Paul Kennedy argumenta que as nações ocupam um lugar de destaque no mundo com base em seus recursos internos, sua capacidade produtiva ou as mudanças tecnológicas que são capazes de empreender. Se seu poder diminui em relação a outras potências, ou seja, seu poder relativo diminui, sua posição na ordem internacional também diminui.

Outras análises sistêmicas se baseiam no inevitável conflito internacional que deriva do confronto entre uma potência hegemônica e uma potência emergente que ameaça tomar seu lugar (a famosa armadilha de Tucídides). Seguindo uma lógica semelhante, John Mearsheimer evoca que o conflito entre as grandes potências é inevitável, pois somente em raras ocasiões as mudanças no equilíbrio do poder mundial ocorrem pacificamente.

O colapso da URSS foi uma dessas raras ocasiões. A então segunda potência internacional foi desmembrada e seu poder no sistema foi diluído como o açúcar. Fê-lo por conta própria, sem guerra aberta contra os Estados Unidos ou como consequência de um plano viável para recuperar o terreno perdido: um caso digno de estudo para refutar as crenças e postulados tradicionais da disciplina das relações internacionais.

As ideias, o carisma e o caráter de seu então líder, Mikhail Gorbachev, foram fundamentais para entender o que aconteceu. Ele não agiu pela força de ações decisivas, mas sim por aversão ao uso da força, combinando suas ideias reformistas com uma abordagem hesitante às transformações radicais. A consequência de seus menos de sete anos no poder foi o fim do regime comunista de partido único, a queda do império soviético, o nascimento de novos estados na Europa Central e Oriental e a interrupção da corrida armamentista global.

É de se perguntar se um sistema soviético em crise terminal teria tomado um rumo diferente sob um líder diferente . Talvez a debilidade e corrupção do Kremlin, a situação econômica e social da URSS ou sua perda de poder em relação a Washington fossem fatores mais determinantes do que qualquer tentativa de mudança ou liderança alternativa, como alegavam os detratores de Gorbachev na época. Seja como for, a figura de Gorbachev demonstra que os líderes podem influenciar tanto quanto os fatores estruturais no curso da política global.

A Rússia hoje continua sendo um gigante com pés de barro, embora com um líder determinado a desfazer o legado de Gorbachev . Vladimir Putin e seu expansionismo beligerante consideram a queda da URSS como a maior catástrofe geoestratégica do século XX. Sua referência é Pedro, o Grande , não um Gorbachev que para o Kremlin é uma figura desprezível. Putin parece determinado a se estabelecer como o autocrata com mão de ferro que a URSS teria exigido no tempo de Gorbachev para evitar seu desmembramento. A guerra na Ucrânia mostra que Putin questiona a soberania e o direito de existência dos países que já fizeram parte do império soviético.

A Rússia, apesar de permanecer uma potência militar determinante, hoje tem uma economia estagnada, desigualdade e corrupção desenfreadas e crescente agitação social. Sua política externa não é um sinal de força, mas sim de aspiração para recuperar o status perdido. A única coisa que Putin e Gorbachev compartilham é terem sido figuras-chave na compreensão da evolução da URSS então e da Rússia hoje, além de agentes determinantes da dinâmica de mudança e conflito na ordem internacional.

Pol Morillas, o autor deste artigo, é diretor do CIDOB (Barcelona Center for International Affairs) @polmorillas. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 31.08.22

Emenda Constitucional 125/22 é inconstitucional e tem de ser revogada

Tendo como pano de fundo o grande volume de recursos que sobem ao Superior Tribunal de Justiça, o Congresso votou e o Executivo sancionou a Emenda Constitucional nº 125/22, estabelecendo barreiras visando minorar o número de recursos ajuizados. 

Com esse propósito acresceram ao artigo 105 da CF os §§2º e 3º nº §2º, para restringir os recursos restou estabelecido que o requerente deverá demonstrar, obrigatoriamente, a relevância da questão discutida para que possa ser admitido o recurso. Estabeleceu ainda que a questão tenha valor fiscal de pelo menos 500 salários mínimos.

Inafastável, portanto, que a EC é rigorosamente inconstitucional pois, declaradamente, infringe o artigo 5º, caput, da CF que disciplina os princípios fundamentais dos cidadãos e fixa a igualdade entre todos como valor fundamental. Em consequência, explicita nos incisos XXXV, LIV e LV que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito"; assegura também que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" e, ainda, que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo é assegurado o contraditório e a ampla defesa".

Tais fundamentos não se coadunam com as restrições desenhadas no acrescido §2º trazido, vez que "estipular a relevância da questão em discussão" é estabelecer exercício absolutamente ilegal pois que sobre ser subjetivo ainda é cerceamento de liberdade. Ademais, ao requerente é rigorosamente garantido insucesso posto que a necessidade da fundamentação foi estabelecida com o propósito de barrar a admissibilidade do recurso. Dessa forma, flagrantemente infringindo os requisitos fundamentais acima retratados. Da mesma forma é o limite mínimo de 500 salários posto que agride o fundamento pétreo da igualdade entre todos.

Se válido for esse princípio, estará consagrado que o cidadão com demanda de valor inferior a 500 salários, ou de valor inestimável, terá vetada a regra pétrea fundamental da ampla defesa. Consequentemente transformando o STJ em tribunal para poucos e privilegiados, ou seja, tribunal voltado à elite e assim, infringindo o princípio fundamental da igualdade entre todos.

Trata-se, portanto, de EC absolutamente infringente aos direitos dos cidadãos e como tal, por sua inequívoca inconstitucionalidade, impõe-se revogá-la.

Porém, mais republicano tivesse sido o Legislativo e menos elitista teria aproveitado para melhorar o ordenamento processual, para diminuir o volume de feitos. Para tanto deveria ter reordenado as funções dos Tribunais de Justiça dos Estados, vez que nestes se originam os recursos especiais. Tribunais que se encontram, também, "atolados de recursos" — apelos e embargos de declaração que advém de julgados de piso, estes também assoberbados e desapetrechados.

Como se vê, não basta editar EC restritiva para "solucionar o problema do STJ"; o que se fez não foi resolver o problema, mas aplicar inconstitucional cerceamento de liberdade.

Assim deveria o Legislativo ter estabelecido que as cortes estaduais criassem câmaras superiores com atribuição específica de julgar, fundamentadamente, a admissibilidade do recurso especial, deduzido em razão de decisões proferidas nas câmaras ordinárias. Mecanismo que suprimiria, nesses casos, não só a hipótese dos embargos de declaração, como também a do agravo, posto que toda matéria seria discutida nas câmaras especiais, que julgariam a admissão do REsp.

Da decisão proferida na câmara especial somente caberia "recurso de divergência" que estaria condicionado a que o recorrente comprovasse a existência de decisão divergente proferida em qualquer outro Tribunal de Justiça, em outro Estado da Federação. Assim sendo consagrado e homenageado o fundamento constitucional do STJ, que é uniformização da jurisprudência.

Não cabendo recurso de divergência, o recorrente poderá ainda, se o tema for constitucional, deduzir o RE encaminhando a questão ao STF. Não havendo a hipótese de cabimento do RE restaria transitada a questão, dessa forma encerrando o feito em definitivo, trazendo economia processual, celeridade, e nos feitos penais o cumprimento definitivo da pena.

Tivesse havido no Legislativo federal menos ânimo de restrição, e mais espírito republicano, certamente o país estaria no rumo para cumprir o ordenamento "ordem e progresso".

José Roberto Cortez, o autor deste artigo, é especialista em Direito Empresarial e sócio fundador do escritório Cortez Advogados. Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 01.09.22.

Oligarca russo morre após cair de janela de hospital em Moscou

Ravil Maganov era presidente do conselho da Lukoil, maior empresa privada de petróleo da Rússia e uma das poucas empresas do país a pedir publicamente o fim da guerra na Ucrânia 

Ravil Maganov ao lado do presidente russo Vladimir Putin. (Foto: Mikhail Klimentyev/ Sputnik/ AFP - 21/11/2019)

O presidente do conselho da Lukoil, maior empresa privada de petróleo da Rússia, Ravil Maganov, após cair da janela do 6° andar de um hospital em Moscou, informaram agências internacionais nesta quinta-feira, 1°.

Um comunicado da Lukoil informou apenas que Maganov “faleceu após uma doença grave”, sem detalhar o caso.

The Economist: Putin está levando a Rússia a um tipo russo de fascismo

Reportagens da imprensa russa disseram que o corpo do oligarca foi encontrado nas dependências do Hospital Clínico Central, onde a elite política e empresarial da Rússia é frequentemente tratada. Ele havia sido internado no hospital após sofrer um ataque cardíaco.

A agência de notícias estatal Tass citou uma fonte policial não identificada, dizendo que o incidente aconteceu por volta das 07h00 (01h00 em Brasília). O caso está sendo investigado como suicídio. Apesar da internação motivada pelo problema cardíaco, Maganov, de 67 anos, estava tomando antidepressivos, segundo a mesma fonte policial.

A Lukoil foi uma das poucas empresas russas a pedir publicamente o fim da operação militar da Rússia na Ucrânia, pedindo em março a “cessação imediata do conflito armado”.

O presidente do conselho da Lukoil trabalhava em cargos executivos na petroleira desde 1993. Ele foi o primeiro vice-presidente executivo e supervisionou a exploração e produção. Em 2020, o conselho de administração da Lukoil nomeou Maganov como presidente no lugar de Valeri Greifer, que faleceu em abril daquele ano./ AP e EFE

Redação d'O Estado de S. Paulo, em 01.09.22

Veja como Bolsonaro e os filhos pagaram imóveis com dinheiro vivo

Documentos emitidos por cartórios registram compras feitas em ‘moeda corrente’, em diferentes transações ao longo de anos; mesmo legal, prática gera suspeitas de órgãos de controle, mas presidente não vê problema


Foto: Reprodução/Instagram Eduardo Bolsonaro

“Moeda corrente do País contada e achada certa.” Com pequenas mudanças, essa expressão, que significa pagamento em dinheiro vivo, se repete em escrituras de compra e venda de imóveis pelos políticos da família Bolsonaro, obtidas em cartórios pelo Estadão. A prática não é ilegal, mas é vista com desconfiança por órgãos de controle e investigação, como o Ministério Público. O motivo é que esses recursos aparentemente não passam pelo sistema bancário, o que torna difícil ou até impossível rastrear se sua origem é lícita. O presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição pelo PL, demonstrou não ver problema no procedimento. A família em geral atribui as denúncias a “perseguição”.

Entre os Bolsonaros envolvidos com política, o comportamento vem de décadas. Em 12 de maio de 2006, por exemplo, o então deputado Jair Bolsonaro e Ana Cristina Siqueira Valle, sua então mulher, compareceram ao cartório do 17º Ofício de Notas do Rio. Foram fechar a compra de uma casa na Rua Divisória , 30, casa XV, e respectivo terreno. Os vendedores foram um dos irmãos do hoje presidente, Renato Antonio Bolsonaro, e sua mulher, Maria Aparecida Leite Bolsonaro. O preço de R$ 40 mil foi todo quitado no ato, em cédulas de reais. Se corrigido pela inflação oficial (IPCA) medida até julho de 2022, o total chegaria hoje a R$ 99,4 mil.

Ana Cristina Valle, uma das ex-mulheres do presidente Jair Bolsonaro, também é investigada por suposto esquema de rachadinha. Foto: Fabio Motta/Estadão - 2018

Três anos antes, em 3 de junho de 2003, o filho “Zero Dois” do presidente, vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), então com 20 anos de idade e no primeiro mandato na Câmara Municipal do Rio, foi ao mesmo cartório. Pagou, por um apartamento na Tijuca, na zona norte carioca, R$ 150 mil, em “moeda corrente do País, contada e achada certa”, segundo a escritura. Corrigido pela inflação medida pelo IPCA, o valor, em julho de 2022, seria de R$ 441.501,34.

Já Eduardo Bolsonaro, atualmente deputado federal pelo PL de São Paulo, quitou quase um terço de uma transação imobiliária em dinheiro vivo, segundo escritura do 24º Ofício de Notas. Em 3 de fevereiro de 2011, Eduardo comprou um apartamento em Copacabana por R$ 160 mil. Pagou R$ 110 mil por cheque administrativo e R$ 50 mil “através de moeda corrente do País, tudo conferido, contado e achado certo”. Onze anos depois, esse valor, corrigido pelo IPCA, quase dobrou: chegou a R$ 99.489,76 de acordo com os índices de inflação medidos até julho de 2022.

Eleito para seu primeiro mandato em 2014 e empossado em 2015, Eduardo Bolsonaro comprou, em 29 de dezembro de 2016, um apartamento em Botafogo por R$ 1 milhão. De acordo com a escritura do 17º Ofício de Notas, o parlamentar pagou, no ato da compra, R$ 100 mil. Em julho de 2022, seriam R$ 134.664,06, segundo correção pelo IPCA. Também financiou R$ 800 mil pela Caixa Econômica Federal e pagou um sinal de R$ 81,038,28 e uma parcela de R$ 18.961,72 – não há mais detalhes da maneira como foram pagos.

Presidente reage a questionamentos

Abordado por repórteres nesta terça-feira, 30, o presidente reagiu com irritação a perguntas sobre as compras de imóveis pelo clã, apontadas inicialmente em reportagem do UOL. “Qual é o problema de comprar com dinheiro vivo algum imóvel? Eu não sei o que está escrito na matéria... Qual é o problema?”, questionou, impaciente, após evento promovido pela União Nacional do Comércio e dos Serviços (Unecs) em Brasília.

Os nomes do deputado Eduardo Bolsonaro, do presidente Jair Bolsonaro e do vereador Carlos Bolsonaro, entre outros familiares, são encontrados em documentos de imóveis pagos em dinheiro vivo.

Os nomes do deputado Eduardo Bolsonaro, do presidente Jair Bolsonaro e do vereador Carlos Bolsonaro, entre outros familiares, são encontrados em documentos de imóveis pagos em dinheiro vivo. 

Wilson Tosta para O Estado de S. Paulo, em 01.09.22

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Os negócios da família Bolsonaro

Se pretende ser visto pelo eleitor como campeão da luta contra a corrupção, Bolsonaro tem de explicar ao País de onde veio o dinheiro vivo com o qual ele e a família compraram 51 imóveis

Em 2018, Jair Bolsonaro elegeu-se prometendo combater a corrupção. Agora, tenta a reeleição com a mesma tática. Coloca-se como o candidato antipetista, cuja missão é impedir a volta da corrupção do PT. De fato, o partido de Lula da Silva tem muito a explicar ao País e, principalmente, a dizer sobre o que fará de diferente para não acontecer de novo tudo o que se viu nas gestões petistas. No entanto, enquanto não esclarecer as muitas questões obscuras envolvendo o patrimônio e as finanças de sua família, Bolsonaro não tem moral para cobrar transparência ou lisura de Lula. É literalmente o roto falando do esfarrapado.

No debate na Band, Bolsonaro chamou Lula de ex-presidiário. O líder petista esteve preso em razão de uma condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no caso do triplex do Guarujá. Lula foi solto depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) considerar que o juiz da primeira instância Sérgio Moro, além de ter atuado de forma parcial no caso, era incompetente para julgar a causa. Encaminhado depois à Justiça Federal de Brasília, o processo foi arquivado em razão do decurso do prazo prescricional.

Ou seja, os benefícios de uma empreiteira, entregues na modalidade de reforma de um imóvel na praia e reconhecidos numa delação, suscitaram a prisão de Lula, prisão esta que Bolsonaro faz questão de relembrar na campanha eleitoral. A ironia – ou a incrível desfaçatez – é que Jair Bolsonaro e sua família não têm problemas apenas com um único imóvel na praia. Levantamento realizado pelo site UOL, a partir de dados públicos, revelou que, desde os anos 90, o presidente, seus irmãos e seus filhos negociaram nada menos que 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com uso de dinheiro vivo. Em valores corrigidos pelo IPCA, o montante pago em dinheiro vivo equivale a R$ 25,6 milhões.

Não é crime comprar imóveis usando dinheiro vivo, mas é muito estranho esse peculiar padrão de comportamento ao longo de tanto tempo, envolvendo quantias tão grandes. Além disso, há duas circunstâncias agravantes. Durante o período, Jair Bolsonaro sempre ocupou cargos políticos, recebendo seu salário em conta bancária. A princípio, não havia por que movimentar tanto dinheiro vivo.

Em segundo lugar, existem fundadas suspeitas de que, nos gabinetes parlamentares de Jair Bolsonaro e de seus filhos, foi corrente a prática da “rachadinha”, um sistema de apropriação pelo parlamentar dos salários de seus assessores. Revelado pelo Estadão, o assunto veio à tona depois das eleições de 2018, quando o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro investigava Flávio Bolsonaro por condutas suspeitas em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Um dos principais investigados era Fabrício Queiroz, amigo de Jair Bolsonaro e homem de confiança da família. Em 2020, Flávio foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Depois de muitas idas e vindas processuais – o filho mais velho do presidente obteve o foro privilegiado no caso –, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro rejeitou a denúncia.

Ao longo desses anos, as suspeitas de rachadinha e lavagem de dinheiro envolvendo a família Bolsonaro só ganharam novos indícios, em especial dois fatos: os cheques de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro e a movimentação atípica de dinheiro vivo na loja de chocolate de Flávio no Rio de Janeiro. No entanto, Jair Bolsonaro nunca explicou essas suspeitas. Sempre que questionado, respondeu agredindo, ironizando ou simplesmente encerrando a entrevista.

Não é possível que, neste ano, Jair Bolsonaro peça o voto do eleitor falando em combate à corrupção do PT sem antes explicar essa combinação de dinheiro vivo na compra de imóveis, movimentações bancárias suspeitas e indícios de rachadinha nos gabinetes parlamentares. Não basta imitar Lula e dizer que a Justiça encerrou o processo contra seu filho ou se dizer perseguido pela imprensa que o questiona. É preciso explicar de onde veio tanto dinheiro vivo para comprar os numerosos imóveis da família.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 31.08.22

Patrimonialismo eleitoral

Financiamento público aos partidos drena recursos de políticas públicas e degrada a representação democrática

Historicamente, as eleições no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Agora, conforme apurou o Estadão, os gastos em 2022 devem igualar ou até ultrapassar os de 2014, a disputa mais cara até então, com uma diferença: em 2014 a maior parte foi bancada por empresas; agora, será com dinheiro público.

A boa notícia, por sinalizar o engajamento dos cidadãos, é que as doações de pessoas físicas devem atingir um recorde. A péssima notícia é que os R$ 165 milhões arrecadados nos dez primeiros dias de campanha, que durará 45, são só uma fração irrisória dos R$ 6 bilhões em recursos públicos dos Fundos Eleitoral e Partidário.

Partidos políticos são entidades privadas, que devem ser sustentadas com dinheiro privado doado por seus simpatizantes.

Nos últimos anos houve avanços. Em 2015, a Suprema Corte proibiu a doação de empresas, que, afinal, não votam nem têm direitos políticos. A vinculação das campanhas aos interesses empresariais era uma distorção do processo político e abriu margem a casos vultosos de corrupção.

Mas não se corrige uma distorção com outra. Como mecanismo provisório, até que os partidos reorganizassem seu financiamento, o Fundo Eleitoral, criado em 2017, até poderia ser defensável. Mas desde então ele saltou de R$ 1,7 bilhão, em 2018, para quase R$ 5 bilhões, em 2022. Some-se a isso a escalada do Fundo Partidário, que, entre 1995 e 2018, descontada a inflação, cresceu 9.766%. 

Enquanto o financiamento aos partidos cresce, os investimentos em saúde, educação ou infraestrutura se contraem. Mas, mais do que drenar recursos do Tesouro, o financiamento aos partidos empobrece a representatividade democrática. A subvenção é injusta, por obrigar os cidadãos a custear legendas com as quais não raro discordam, e é corrosiva, por habituar os políticos a aliciar eleitores nas eleições e, depois, lhes darem as costas, entregando-se a administrar feudos controlados por poucos caciques.

Segundo a Transparência Partidária, entre 2008 e 2018, o porcentual de mudança da composição das Executivas Nacionais foi de ínfimos 24%. Não surpreende que o número de filiados esteja em queda.

Para piorar, como disse o diretor da Transparência Brasil, Manoel Galdino, “o Fundo Eleitoral ficou maior sem aumentar a transparência e a fiscalização”, ampliando a margem para candidaturas “laranjas”, gastos fictícios e enriquecimento ilícito.

Tudo isso contribui para a quantidade aberrante de legendas amorfas, que atuam exclusivamente como um balcão de negócios. A credibilidade dos partidos e do Legislativo entre a população diminui, abrindo margem a aventureiros populistas.

É difícil imaginar um mecanismo mais apto a perpetuar a crise de representatividade, que só se aprofundou desde 2013, do que o financiamento público aos partidos. O seu fim é crucial para que as legendas se obriguem a criar conteúdos programáticos aptos a cativar os corações e mentes dos cidadãos. Se, ao contrário, ele continuar a crescer, a distância entre os eleitores e os representantes eleitos também aumentará.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 31.08.22

Família Bolsonaro compra imóvel com dinheiro vivo, mas não tem prática de guardar valores em casa

Declarações de bens e renda da família Bolsonaro entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que o presidente e seus filhos não têm o costume de guardar dinheiro vivo em casa. 

De 1998 até as eleições deste ano, apenas o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) informou à Corte ter guardado R$ 20 mil em espécie por ao menos oito anos.

A postura informada pela família ao TSE é diferente daquela adotada para fazer negócios imobiliários. Como revelou o portal UOL, o presidente Jair Bolsonaro (PL), duas ex-mulheres - Rogéria e Ana Cristina - e os três filhos mais velhos compraram 51 casas, apartamentos, salas comerciais e lotes de R$ 18,9 milhões, em valores corrigidos, com dinheiro vivo.

‘Qual é o problema?’ pergunta Bolsonaro sobre compra de imóveis com dinheiro ‘vivo’

O vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente da Republica Jair Bolsonaro, declarou ter R$ 20 mil em espécie guardados em casa  Foto: Dida Sampaio/Estadão

O TSE registra o patrimônio de candidatos a cada eleição. O Estadão identificou que Jair Bolsonaro e seus filhos Flávio e Eduardo nunca informaram ter dinheiro vivo em casa. A ex-mulher do presidente, Rogéria Bolsonaro, se candidatou a vereadora em 2020 e no ano 2000. Também não declarou valores em espécie à Corte Eleitoral.

Carlos Bolsonaro informou ter R$ 20 mil em espécie nas eleições de 2012, 2016 e 2020, quando concorreu ao cargo de vereador no Rio. Nas quatro declarações aparece: “Dinheiro em espécie guardado em casa”.

Na terça-feira, 30, após ser questionado sobre a compra de imóveis com dinheiro vivo, Bolsonaro minimizou: “Qual é o problema de comprar com dinheiro vivo algum imóvel, eu não sei o que está escrito na matéria... Qual é o problema?”, afirmou. O presidente e candidato à reeleição pelo PL também frisou que não se importaria com possíveis investigações. “Então tudo bem. Investiga, meu Deus do céu.”

Fazer pagamentos com dinheiro vivo ou andar com valores em espécie não é proibido no Brasil. Existem, no entanto, iniciativas para coibir a prática, muitas vezes usada para lavagem de dinheiro. Em agosto no ano passado, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou a proposta para proibir transações com dinheiro em espécie em quatro formas distintas: operações acima de R$ 10 mil, pagamento de boletos acima de R$ 5 mil reais; circulação acima de R$ 100 mil (ressalvado o transporte por empresas de valores), e posse acima de R$ 300 mil, salvo em situações específicas. Até agora, porém, o presidente da comissão, Davi Alcolumbre (DEM-AP), não nomeou um senador para ser o relator.

Rachadinha

As compras de 25 dos imóveis viraram objeto de investigações do Ministério Público do Rio e do Distrito Federal, de acordo com a apuração do UOL. Esse numero abrange aquisições e vendas dos filhos e das ex-mulheres do presidente - não necessariamente com dinheiro vivo.

Entre as apurações abertas está o caso das rachadinhas (desvio de salário de assessores) do senador Flávio Bolsonaro. Em maio, o Tribunal de Justiça do Rio aceitou o pedido do Ministério Público e rejeitou a denúncia por peculato, organização criminosa e lavagem de dinheiro oferecida contra ele. No entanto, com a decisão, o MP diz que poderá recomeçar as investigações, com a coleta de novas provas, com base no primeiro relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Esse documento apontou movimentação atípica de R$ 1,2 milhão em uma conta no nome de um ex-assessor de Flávio, Fabrício Queiroz, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. A movimentação atípica que deu origem à investigação sobre as rachadinhas foi revelada pelo Estadão.

Como também mostrou o Estadão, em março do ano passado, transações com imóveis foram alvos privilegiados do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) nas investigações envolvendo o parlamentar. Promotores suspeitavam que o filho Zero Um do presidente usava transações imobiliárias para lavar dinheiro ilegal repassado pelos funcionários “fantasmas”.

Julia Affonso para o Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 31.08.22