sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Dinheiro impresso não é auditável

Comprar imóveis por valores fantasiosos esconde origem da bufunfa

Ilustração de Débora Gonzales para coluna de Renato Terra publicada em 1º de setembro de 2022 - Débora Gonzales

Uma comissão de pastores, empresários, radialistas e deputados foi convocada para debater sobre um dilema que se instaurou nesta semana depois da revelação feita pelos jornalistas Juliana Dal Piva e Thiago Herdy de que "metade do patrimônio do clã Bolsonaro foi comprada em dinheiro vivo".

A pergunta complexa que emergiu foi a seguinte: a transparência nas eleições pode ser defendida por uma pessoa que não defende a transparência?

De bate-pronto, ninguém arriscou falar em voz alta a resposta que decerto todos tinham na ponta da língua. Era necessário refletir, ponderar.

Sobre um fundo  amarelo há um splash vermelho promocional, sobre o splash há uma impressora portátil azul imprimindo dinheiro que voa por todas as partes da página.

Um radialista grisalho de pele alva quebrou o silêncio. "Há uma coerência entre pedir o voto impresso e usar dinheiro impresso", afirmou.

Dois pastores concordaram e lembraram que o pagamento em barras de ouro também está livre de fraudes eletrônicas.

"O problema é que o dinheiro vivo não deixa rastros. A pessoa pode declarar a compra de um imóvel de R$ 2 milhões e pagar R$ 150 mil em cédulas. Ninguém consegue checar se o valor pago é o mesmo valor declarado. É um método muito usado para quem quer lavar dinheiro. Ou seja, a pessoa ganha fortunas de maneira ilegal e depois tem que arrumar um jeito de declarar essa grana.

Comprar imóveis por valores fantasiosos é uma prática perfeita para esconder a origem da bufunfa sem deixar pistas. Ou até o contrário. A pessoa pode comprar um imóvel de R$ 500 mil e declarar R$ 300 mil para pagar menos impostos. Quem está interessado em fazer tudo certinho faz transferência bancária.

"Ou seja, o dinheiro vivo pode ser impresso, mas não é auditável", disse uma empresária.

Tachada de comunista, essa empresária foi expulsa da reunião. Deputados lembraram a possibilidade de decretar sigilo de cem anos para a imprensa e para todas as mulheres.

O radialista grisalho ficou com o rosto levemente vermelho. Ainda não havia uma boa resposta. Num estalo, argumentou que a culpa poderia ser do Lula por não ter criado o Pix na época em que os imóveis foram comprados.

A discussão ganhou corpo -afinal, Lula também tem acusações de compras ilegais de imóveis. "E tem mais! Lula está dizendo aí que criou o Portal da Transparência. O que só pode significar que esse negócio de transparência é ruim", falaram, entusiasmados, os deputados.

Enfim, todos concordaram. Em suma, a resposta para o dilema "a transparência nas eleições pode ser defendida por uma pessoa que não defende a transparência?" seria "e o PT?".

Renato Terra, o autor deste artigo, é roteirista e documentarista. Dirigiu "Uma Noite em 67" e "Narciso em Férias". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 01.09.22

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