terça-feira, 1 de junho de 2021

Amartya Sen: “A desigualdade corrói as vantagens das democracias”

Economista indiano, ganhador do Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais em 2021, prevê uma crise de qualificação profissional entre os desempregados deixados pela pandemia

Amartya Sen, professor de economia e filosofia de Harvard, Nobel de Economia e ganhador do Prêmio Princesa de Astúrias, em uma foto de 2015.GRETCHEN ERTL / AP

Amartya Sen foi agraciado na terça-feira passada com o Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais de 2021. Poucas horas depois, da sua casa em Cambridge (Estados Unidos), sede da Universidade Harvard, o economista (Santiniketan, Índia, 87 anos) atendia ao EL PAÍS cheio de gratidão pelo júri e destacando seus vínculos com a cultura espanhola. Entre constantes telefonemas de felicitação, ele conversou sobre duas de suas grandes preocupações: o recrudescimento da pobreza por causa da pandemia e a situação política e social do seu país natal, a Índia.

Seus estudos há décadas influenciam as políticas de combate à desigualdade extrema desenhadas por diversas organizações internacionais. Entretanto, após anos de avanços, a pandemia do coronavírus causou um sério retrocesso nessa tarefa. Em um recente relatório, a ONU alertou que a pior recessão em 90 anos levou à perda de 114 milhões de postos de trabalho e empurrou 120 milhões de pessoas para a pobreza extrema.

“Esta crise foi uma péssima notícia na luta contra a pobreza. Não só pela perda de renda que gerou para muitos trabalhadores, mas também porque muitos dos que ficaram sem trabalho perderão as habilidades que tinham adquirido anteriormente. Quanto mais você se isola, menos eficiente tende a ser”, responde do outro lado do telefone.

O economista e filósofo repete várias vezes que o maior golpe do coronavírus é a perda de vidas humanas. “Se você não estiver vivo, tanto faz se antes era rico ou pobre. A grande tragédia é a morte”, reflete.

Amartya Sen não é muito pessimista sobre a saída da crise. Considera que não será preciso esperar muitos anos para recuperar o nível de riqueza anterior à chegada do vírus que deixou o mundo de pernas para o ar. “A riqueza perdida poderia ser recuperada mais ou menos rapidamente, mas isso não devolverá a tragédia de que tanta gente tenha morrido”, acrescenta.

O novo ganhador do Princesa de Astúrias se mostra cético sobre a ideia de que as políticas de recuperação oferecidas pelo presidente dos EUA, Joe Biden, possam alterar o paradigma econômico que nasceu na década de 1980 com a revolução conservadora de Thatcher e Reagan: “Não acredito. Não acredito que estejamos pensando de uma nova forma”, diz.

Sen emergiu nos últimos anos como um dos grandes flagelos do Governo nacionalista indiano encabeçado pelo primeiro-ministro Narendra Modi. Agora, com a trágica situação no país por causa da expansão da epidemia, o também ganhador do Nobel de Economia acredita que muitos dos males das políticas impulsionadas pelo partido nacionalista BJP, de Modi, estão vindo à tona. “A resposta do Governo à covid foi péssima. Não foi claro em suas políticas. E teve uma atuação muito lamentável, sobretudo para os pobres, os que mais estão sofrendo a pandemia”, salienta.

Mas as críticas a Modi vão além da gestão dos últimos meses. “Esta má reação ocorreu também em outras decisões políticas, como as políticas econômicas, a falta de atenção à educação e à saúde. A situação na Índia é muito desigual e muito injusta. E a pandemia só agravou esta situação.”

Sen se tornou mundialmente famoso por sua teoria de que as democracias estão imunizadas contra as ondas de fome, já que seus governos têm incentivos para evitar grandes calamidades desse tipo, por seu alto custo eleitoral. Mas será que a catastrófica gestão desta crise na Índia desvirtua essa ideia?

 “Meu argumento é que, se o país que você governa sofre uma onda de fome, você deixará de ser popular e perderá as eleições. E, portanto, você fará todo o necessário para impedir essa catástrofe.” 

Mas em seu país se acrescenta outro elemento à equação: 

“Na Índia, o Governo conseguiu estabelecer um controle ferrenho dos instrumentos do poder, destinando enormes quantidades de dinheiro de uma forma assimétrica. O BJP conseguiu também calar a voz dos protestos. São coisas que a democracia deveria evitar”,

responde, num ataque frontal aos abusos cometidos em nome da preponderância do hinduísmo, a religião majoritária do país, sobre o islamismo.

“A desigualdade e a assimetria do poder têm o potencial de corroer as vantagens da democracia. E isso é o que vemos na Índia”, acrescenta. Diria então que seu país está a caminho de deixar de ser uma democracia funcional? “Não. Seria errôneo afirmar isso. É uma situação muito complexa. Mas acredito que o Governo tenha usado instrumentos que tornam a democracia menos viável”, conclui o premiado economista.

LUIS DONCEL, de Madri para o EL PAÍS, em 29 MAI 2021 - 12:30 BRT

Brasil registra mais de 2,4 mil mortes em 24 horas e passa de 465 mil óbitos pela covid-19

No dia 21/5, a Fundação Oswaldo Cruz alertou para o aumento de casos e o risco de uma terceira onda da pandemia no país.


Homens enterram vítima de covid-19 em Manaus (CRÉDITO,REUTERS)

O Brasil registrou nesta segunda-feira (1/6) 2.408 mortes por covid-19 nas últimas 24h, e o total de óbitos no país chegou a 465.199, segundo boletim do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). A soma oficial de casos da doença já chega a 16.624.480, sendo 78.926 deles nas últimas 24h. A média diária de mortes nos últimos sete dias ficou em 1.881.

O mês de abril registrou mais de 82 mil óbitos pela covid-19 no Brasil e se tornou o mais letal desde as primeiras mortes pela doença no país, em março de 2020. Até então, março deste ano havia sido o pior período, com 66 mil óbitos.

O Brasil foi o segundo país no planeta a contabilizar mais de 400 mil óbitos causados pelo novo coronavírus. Os Estados Unidos foram os primeiros e, hoje, lideram em números da tragédia no mundo, com mais de 594 mil mortes e 33,2 milhões de casos da doença, segundo a Universidade Johns Hopkins.

BBC Nwes Brasil, em 01.06.2021

Copa América: há mais de 100 anos, Brasil desistiu de sediar evento por causa de pandemia da gripe espanhola

No fim de maio de 1919, a seleção brasileira venceu o Campeonato Sul-Americano, hoje conhecido como Copa América, após disputar a final com o Uruguai. 

A competição, que trouxe o primeiro grande título ao futebol brasileiro, estava programada para o ano anterior, mas foi adiada em razão da grave crise sanitária causada pela gripe espanhola.

Em 1918, pandemia de gripe espanhola afetou todo o mundo e matou milhões de pessoas (CRÉDITO,GETTY IMAGES)

Mais de um século depois, o Brasil está novamente no centro de uma discussão que envolve a competição esportiva e uma grave crise sanitária.

O país enfrenta a pandemia de covid-19 com uma vacinação lenta, mais de 462 mil mortes e regiões nas quais especialistas apontam que os casos da doença têm aumentado nas últimas semanas. Apesar do atual cenário, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) anunciou na segunda-feira (31/05) que o Brasil sediará a Copa América deste ano.

O ano em que outra epidemia impediu que Brasil sediasse evento esportivo

Segundo a Conmebol, o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Rogério Caboclo, foi procurado pela confederação após os outros países desistirem de sediar a competição.

O país foi definido como sede da disputa após Argentina e Colômbia desistirem de abrigar a Copa América.

Os jogos estão previstos para ocorrer entre 13 de junho e 10 de julho. O fato se tornou alvo de duras críticas de especialistas e de membros da oposição ao governo Jair Bolsonaro.

No início da noite de segunda, o ministro chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que ainda não há nada decidido e que a realização do torneio dependerá do cumprimento de certas condições.

O imbróglio sobre a Copa América fez com que muitos relembrassem da histórica disputa de 1919.

A gripe espanhola

Presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, disse que Brasil 'vive um momento de estabilidade' na pandemia. (CRÉDITO,REUTERS)

Os primeiros casos de gripe espanhola no Brasil foram registrados por volta de meados de 1918, mesmo ano em que a enfermidade começou a se propagar pelo mundo.

A doença, de rápida propagação e que matava em poucos dias, se espalhou por diversos países por meio dos portos. Estima-se que cerca de 50 milhões de pessoas tenham morrido em decorrência da enfermidade em todo o mundo.

Por volta de setembro daquele ano, navios chegaram de outros países e pessoas infectadas pelo vírus causador dessa gripe desceram em diferentes regiões do Brasil. A doença logo se espalhou.

O governo brasileiro chegou a negar a gravidade da enfermidade. Porém, poucos dias depois, nas últimas semanas de setembro de 1918, decidiu adotar medidas preventivas, como a recomendação de que as pessoas ficassem em suas casas.

Muitos reclamaram do pedido de evitar locais públicos. Sem a devida adoção das medidas sanitárias para conter a propagação do vírus, o Brasil enfrentou uma subida vertiginosa no número de mortes pela doença.

A gravidade da situação exigiu a construção rápida de hospitais de campanha e locais para isolamento de indivíduos infectados com o vírus.

Enquanto o vírus avançava, autoridades do Rio de Janeiro passaram a ficar alertas em relação ao evento que seria sediado na então capital da República naquele ano: o Campeonato Sul-Americano, programado para novembro de 1918.

Dados da época apontam que o Rio de Janeiro contabilizou cerca de 15 mil óbitos entre setembro e novembro de 1918.

Cartaz na Argentina critica a realização de competição de futebol no país, em meio ao pior período da pandemia de covid-19. (CRÉDITO,REUTERS)

Diante da alta de casos e mortes, as autoridades decidiram suspender todos os eventos esportivos.

No período, o clima na recém-criada Confederação Brasileira de Desportos (CBD) foi ruim, porque a entidade havia se empenhado em trazer a disputa, que estava em sua terceira edição, para o Brasil naquele ano.

"Mas os principais entretenimentos, como cinema e teatro, e as escolas estavam fechados por causa da pandemia. Os campeonatos locais estavam suspensos. A situação estava muito complicada, então não havia cabimento continuar com o Sul-Americano", detalha João Manuel Casquinha, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisador sobre a história do esporte no Brasil.

Em meados de outubro de 1918, a CDB enviou um telegrama à Conmebol para comunicar que não havia condições de sediar o campeonato naquele período, em razão da explosão de casos de gripe espanhola no Rio de Janeiro e da orientação para suspender eventos públicos.

Casquinha relata que chegou a haver pressão das confederações das seleções da Argentina e do Chile para que a disputa fosse realizada em outro país. O Uruguai, que também enfrentava um duro período da pandemia de gripe espanhola, chegou a ser cogitado, porque tinha campo apropriado para a disputa. Porém, a disputa acabou adiada.

A competição de 1919

No início de 1919, os números de casos e mortes pela gripe espanhola caíram no país. Diante desse cenário, houve relaxamento nas medidas de prevenção — apesar disso, houve registros de surtos e calamidades em outras regiões do país.

O Carnaval de 1919 se tornou conhecido como uma das maiores festas populares de todos os tempos. O futebol também voltou a ser atração e os estádios dos campeonatos locais passaram a atrair multidões.

O campeonato Sul-Americano daquele ano se tornou um grande sucesso de público. Milhares de pessoas se aglomeraram para assistir aos jogos no Estádio das Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, construído para abrigar a competição internacional que reuniu Brasil, Argentina, Uruguai e Chile.

No dia 29 de maio daquele ano, o Brasil venceu por um a zero o Uruguai, que havia sido o campeão nas duas primeiras edições do Campeonato Sul-Americano. Na arquibancada, 27,5 mil pessoas acompanharam o jogo.

"Já naquela época quem não tinha dinheiro para assistir o jogo dava um jeitinho, na maioria das vezes se acomodava num morro existente nas Laranjeiras com vista para o campo do Fluminense", diz trecho do texto da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) sobre o jogo da final.

Mais de um século depois


Casos de gripe espanhola no Rio de Janeiro foram fundamentais para adiar evento esportivo no passado. (CRÉDITO,BIBLIOTECA NACIONAL)

O adiamento da competição de 1919 foi citado diversas vezes nas redes sociais na segunda-feira (31/05), após o anúncio do Brasil como sede da Copa América deste ano.

Isso porque muitos comentaram que o país deveria adotar a mesma postura do passado e adiar o campeonato enquanto a pandemia não for considerada controlada.

A ideia de realizar a Copa América no Brasil surgiu após Colômbia e Argentina recusarem sediar o campeonato. Além de enfrentar a pandemia, o primeiro país passa por intensos protestos políticos, cuja repressão já causou dezenas de mortes, segundo organizações de direitos humanos. Já o governo argentino rejeitou a competição devido ao aumento de casos da covid-19 no país, que enfrenta o pior período da pandemia.

Conforme a Conmebol, o presidente da CBF, Rogério Caboclo, foi o responsável por conduzir o diálogo com o governo federal.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) "imediatamente apoiou a iniciativa, com a aprovação dos Ministérios da Casa Civil, da Saúde, das Relações Exteriores e da Secretaria Nacional do Esporte", disse a Conmebol.

No comunicado, o presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, justificou-se dizendo que o Brasil "vive um momento de estabilidade" na pandemia.

Em entrevista à BBC News Brasil na segunda-feira, o médico Miguel Nicolelis, professor de Neurociência da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, afirmou que a realização da disputa no Brasil pode ser a "gota d'água" para a terceira onda de casos e mortes pela covid-19 no país.

O país enfrenta dificuldades relacionadas à pandemia, como o aumento de casos em algumas regiões, após queda nas últimas semanas, e o ritmo da vacinação, considerado lento.

Nicolelis definiu, durante a entrevista à BBC News Brasil, que o anúncio do Brasil como sede do campeonato é um "chute na boca dos brasileiros que perderam familiares, de todos nós que estamos há 14 meses em quarentena em casa. Mas era previsível."

"Nós viramos o escoadouro do lixo do planeta. Tudo que não deve ser feito em questão de pandemia está sendo feito aqui. Essa notícia já correu o mundo, e ninguém consegue acreditar que o segundo país em número de mortes vai sediar um evento continental", acrescentou.

Membros da oposição a Bolsonaro anunciaram medidas para suspender imediatamente a Copa América no país.

Em entrevista coletiva durante a noite de segunda-feira, o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que o governo federal ainda está em fase de negociação sobre a realização do evento no país.

"Ainda não tem nada certo, estamos no meio do processo", disse Ramos. "Mas não vamos nos furtar a uma demanda, caso seja possível de atender", completou o ministro.

O historiador João Manuel Casquinha critica a necessidade de realização da disputa neste ano e afirma que se trata de uma situação puramente financeira.

"Em 1918, havia uma tentativa de não adiar a competição sob o argumento dos contratos que haviam sido firmados com empresas em razão da competição e precisavam ser cumpridos. E nessa época os jogadores eram amadores, não podiam ganhar salários como hoje, recebiam apenas um trocado por fora", diz, ressaltando que mesmo com essas condições a disputa foi adiada por seis meses.

"Hoje, vejo que esse interesse em continuar com a Copa é para render contratos de publicidades, além de adiantamentos de dinheiros recebidos para a competição. Os jogadores precisam trabalhar, as confederações precisam pagar as suas contas e tudo isso precisa acontecer. A questão é que agora, em 2021, o futebol é algo que envolve cifras bilionárias. Isso é um bom exemplo para entender que a vida humana não vale nada perto dos contratos, das movimentações financeiras e do entretenimento", acrescenta o professor de história.

BBC News Brasil, em 01.06.2021

'Jogadores deveriam dizer não à Copa América', defende ex-goleiro Chilavert sobre evento no Brasil

O anúncio da realização dos jogos da Copa América no Brasil levou o ex-goleiro da seleção paraguaia de futebol, José Luis Chilavert, a dizer que os jogadores estarão em perigo diante da gravidade da pandemia no país.

Ex-goleiro da seleção paraguaia, Chilavert afirma que jogadores da Copa América estarão em perigo diante da situação da pandemia (Crédito: Simon M Bruty / Getty Images)

"É uma loucura, uma aberração fazer uma Copa América neste momento. E pior ainda no Brasil, o país que todos sabemos como está na pandemia. O país com a pior situação sanitária, com mais casos (de coronavírus) na região", disse Chilavert à BBC News Brasil.

Os argumentos da Argentina para recusar a Copa América no país

Para ele, o campeonato deveria ser adiado, pelo menos por alguns meses, até que o quadro pandêmico atual possa estar mais controlado.

No domingo, a Argentina, que seria a sede originalmente, comunicou à Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) que decidiu não abrigar o evento, seguindo passo similar ao da Colômbia - que também receberia jogos, segundo o plano original.

Na Argentina, o presidente Alberto Fernández tinha declarado que o país "vive o pior momento da pandemia", mas a possibilidade de que realizasse o campeonato foi mantida até domingo.

'Saúde deve estar em primeiro lugar'

"É uma loucura, uma aberração fazer uma Copa América neste momento. E pior ainda no Brasil, o país que todos sabemos como está na pandemia", declara ex-goleiro. (Crédito: Jerome Prevost / Tempsport / Corbis / VCG VIA GETTY IMAGES)

Na visão do ex-goleiro Chilavert, que mora na Argentina, a situação em torno da realização da Copa América, em plena pandemia, mostra a "vulnerabilidade" a que os jogadores estão sendo submetidos.

Chilavert disse que os jogadores deveriam se rebelar e não participar do evento - "porque a saúde deve estar em primeiro lugar".

"Se eu estivesse hoje na seleção paraguaia, diria que não jogaria a Copa América no Brasil", afirmou. O ex-atleta paraguaio entende que os jogadores estarão "em risco" durante o evento no Brasil.

"Se algum jogador for infectado, voltará para casa e poderá infectar a família, além de poder ficar com sequelas e não poder mais jogar. Quem se responsabiliza por este perigo?", disse Chilavert.

Ele citou o jogador argentino Lionel Messi, do Barcelona, dizendo que, se o goleador for infectado, não seria a Argentina quem arcaria com sua situação sanitária e que, mesmo com possíveis seguros, a prevenção e a saúde devem falar mais forte.

"Os jogadores, se têm coragem e personalidade, deveriam dizer não à Copa América e pedir que ela seja realizada mais para frente", afirmou.

Contradição com orientações da ciência

Protestos demonstraram insatisfação de moradores com possibilidade de Argentina sediar a Copa América. Diante da grave situação da pandemia, governo do país desistiu de receber os jogos. (Crédito: Reuters / Nathalia Angarita).

Ex-goleiro do time argentino Vélez Sarsfield e três vezes eleito melhor goleiro do mundo pela Federação Internacional da História e Estatística de Futebol (IFFHS, na sigla em inglês), Chilavert observa contradições entre as orientações cientificas - e em alguns países, políticas - de defender que as pessoas fiquem em casa e tomem todas as precauções contra o coronavírus, mas permitam que a Copa América aconteça.

"As crianças não vão à escola, nem todos os idosos e pessoas de risco já foram vacinados, e, mesmo assim, se está defendendo a realização do evento. Continua o pão e circo e isso não é bom", afirmou.

Ele acha que o Brasil tem "bons estádios" para as partidas, mas que o panorama sanitário é o que importa neste momento. "Espero que a Justiça impeça (a realização da Copa América)", disse.

Na entrevista, ele fez fortes críticas à Conmebol, dizendo que a questão financeira, que envolve compromissos com os patrocinadores, está falando mais alto do que a prevenção contra a covid-19 e os cuidados dos jogadores e toda a equipe envolvida nos jogos.

"Vejam o que aconteceu com o time River Plate. Os jogadores voltaram da Colômbia infectados e, de volta, na Argentina, o time teve que jogar até sem goleiro. Um motorista do time foi infectado e morreu. Por que isso? Pra quê isso?", declarou o ex-goleiro. Ele entende que o que aconteceu com o River Plate é mais um exemplo de que os jogadores da América do Sul "estão sem proteção".

Procurada pela reportagem, a Conmebol, com sede em Assunção, no Paraguai, afirmou que era aguardada apenas a definição das sedes que realizarão o evento no Brasil.

Quando perguntados sobre as críticas contra o evento no país, diante da situação da pandemia, fontes da instituição afirmaram que "os protocolos têm 99% de efetividade", que os jogadores ficarão em "bolhas" (espécie de ilhas de isolamento) e não terão contatos com os demais.

"Desde o ano passado, quando não foi possível realizar a Copa América, por causa da pandemia, temos trabalhado, revisado e ajustado nossos protocolos, intensamente, com os médicos de forma constante. E os protocolos são efetivos", disseram as fontes, falando da capital paraguaia.

Nos bastidores da Conmebol, há críticas sobre "falhas" no protocolo do time argentino depois que pelo menos vinte integrantes do River Plate foram infectados após um jogo pela Copa Libertadores na Colômbia.

Num comunicado, depois dos contágios em série, o clube afirmou ter tomado todas as precauções, incluindo concentrações isoladas em hotéis, mas que ainda assim foi ampla a lista de infectados.

"O Clube Atlético River Plate possui hoje um time que, apesar de ter cumprido todos os protocolos, tem 25 casos positivos de coronavírus. É desalentador confirmar que não foi suficiente desenhar processos específicos e ampliar cuidados para evitar uma espiral de contágios desse tipo", afirmou-se no comunicado, que destacou ainda as conversas com a Conmebol para participar dos jogos com a menor quantidade de jogadores (aqueles sem problemas de saúde).

No texto, foi dito ainda que a principal preocupação do Clube é a "saúde e bem-estar" dos jogadores, corpo técnico e suas famílias.

Procurada pela BBC News Brasil para comentar as críticas do ex-goleiro paraguaio à realização da Copa América no Brasil, a assessoria de imprensa da CBF respondeu que a competição é coordenada pela Conmebol, quem tem os protocolos também de saúde para o evento.

Marcia Carmo, de Buenos Aires para a BBC News Brasil, em 01.06.2021

Carlos Melo: O outro lado da rua surgiu na foto

No delicado momento de pandemia, foi Jair Bolsonaro quem acionou o dispositivo das ruas. Insistiu em mostrar força e pouco caso com a Covid-19. 

Natural que cedo ou tarde o antibolsonarismo revidasse, na convicção de que mais letal que o vírus é a postura do presidente. A resistência explodiria inevitavelmente e retiraria o monopólio que ilusoriamente o bolsonarismo acreditava ter sobre o que chama de “povo”.

Foto: Taba Benedicto/Estadão

As jornadas do antibolsonarismo não devem parar por aí. Quem vacinado foi às ruas tende a repetir a dose; quem, sem a vacina, correu riscos continuará com a mesma disposição. E quem por falta de vacina se absteve, vacinado, pode aderir a novos protestos. A paisagem se alterou, o lado da Rua que faltava surgiu na foto.

Imagens aéreas sugerem que a rua oposicionista é maior que a governista – embora o extremismo possa contar com recursos espúrios, como a repressão policial. Ações como da PM de Pernambuco podem, paradoxalmente, potencializar o repúdio ao governo — como em 2013, quando uma jornalista foi igualmente baleada no olho, em São Paulo.

A aceleração da contaminação frearia o processo, mas o aumento de casos tampouco seria favorável ao governo. Também interesses eleitorais se colocam e há a quem a eventual queda de Bolsonaro em nada interesse. Mas lideranças do tipo já têm sido atropeladas e vão a reboque da indignação incontida de manifestantes.

Apostar na recuperação econômica é a bala de prata do governo. Resta saber em qual ritmo se daria e o que seria o efeito do desemprego e do recrudescimento da fome, a pouco mais de um ano da eleição. No momento, não há respostas. E, mesmo assim, restarão os mortos — que, infelizmente, não voltarão.

O potencial de piora é impressionante, eis agora a Copa América, no País. Na Colômbia, o evento que lá se realizaria já estimulou protestos; em 2013, a Copa das Confederações, no Brasil, foi explosiva. Difícil saber seus efeitos por aqui, mas positivo não será. O gás dos protestos, uma vez liberado, tende a se expandir.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 31.05.2021

Volta às ruas para novas manifestações divide oposição a Bolsonaro

Possível terceira onda de covid-19 pode frear novos atos contra governo após os de 29 de maio, avaliam organizadores; governistas minimizam atos

    

Manifestantes anti-Bolsonaro no sábado, em SP: movimentos debatem hoje novas convocações Foto: Taba Benedicto / Estadão

Uma eventual convocação de novas manifestações contra o governo Bolsonaro divide organizadores dos protestos de 29 de maio. A maior parte dos movimentos que organizaram as passeatas vai se reunir ao longo da semana para decidir se novos atos serão, ou não, convocados. O temor, como da primeira vez, é com o avanço dos casos da covid-19 no País. 

As manifestações seguiram agendas próprias e reuniram dezenas de milhares de pessoas em mais de 200 cidades – em muitos locais, gerando aglomerações. A avaliação entre os organizadores é de que as manifestações surpreenderam ao levar mais pessoas do que o esperado às ruas. Atitudes e reações do presidente Jair Bolsonaro são apontadas como razões que podem impulsionar novos protestos, incluindo a possibilidade de realização da Copa América no Brasil.

Um dos organizadores do atos do último sábado, Raimundo Bomfim, da Frente Brasil Popular, disse que, apesar da repercussão da mobilização nacional, é preciso ter calma ao se falar em novas manifestações por causa da terceira onda da pandemia. “Não é uma competição de rua. Não há de nossa parte esse campeonato de quem leva mais (pessoas) para a rua a cada fim de semana”. Segundo Bonfim, os coordenadores da frente devem anunciar uma decisão até, no máximo, o início da próxima semana. Protestos simbólicos ou em outros formatos não estão descartados.

Mas na pauta de uma assembleia virtual convocada para hoje está a discussão de uma possível nova data para atos nas ruas. O evento é divulgado pelo partido Unidade Popular (UP). Porém, a ideia não ganhou adesão de outras frentes. Entre os demais partidos de esquerda que levaram sua militância às ruas, há cautela. 

“O PT apoiará a decisão coletiva. As pessoas que foram às ruas, cientes dos riscos, não estavam erradas em protestar. Errado está Bolsonaro e seu governo criminoso”, disse a presidente da sigla, Gleisi Hoffmann. “Não descartamos a realização de novos protestos”, afirmou Paula Coradi, Secretária Nacional de Movimentos Sociais do PSOL. "Já está mais que provado que o Bolsonaro debocha da vida dos brasileiros, a mais recente prova disso é a realização da Copa América no Brasil, rejeitada pela Argentina justamente por conta da pandemia."

Provocações

O governo tenta minimizar os atos contra Bolsonaro. "Sabe por que teve pouca gente nessa manifestação de esquerda neste fim de semana? Porque estão apreendendo muita maconha pelo Brasil. Faltou erva para o movimento", disse o presidente a apoiadores na segunda. Os filhos do presidente, o senador Flávio (Patriota), o deputado federal Eduardo (PSL–SP) e o vereador carioca Carlos (Republicanos), passaram o fim de semana ironizando as manifestações nas redes sociais. Integrantes de “tropa de choque” bolsonarista na Câmara, deputados como Vitor Hugo, Carla Zambelli e Bia Kicis foram na mesma linha.

Além das provocações, a estratégia de desacreditar as manifestações passa por apontar contradições no discurso de oposicionistas e de questionar o número de pessoas que participaram dos atos. “Nunca fomos hipócritas de dizer que defendemos isolamento, lockdown”, disse Zambelli.

O Estadão mostrou que bolsonaristas disseminarem fake news para emplacar nas redes sociais e em aplicativos de mensagens a ideia de que imagens da manifestação na Avenida Paulista seriam na verdade de atos de 2016, de quando a militância pró-Dilma Rousseff (PT) foi às ruas contra o impeachment. Porém, é possível ver nas imagens das publicações faixas contra Bolsonaro e o boneco inflável gigante em que o presidente é representado como a morte segurando uma caixa de cloroquina.

“A tendência é que o governo continue na defensiva que o caracteriza. Bolsonaro sempre se defendeu atacando. Ao ser contrariado, grita”, disse o cientista político Humberto Dantas. “Se essa quantidade de pessoas foi às ruas mesmo com as restrições impostas pela pandemia, imagine em situações normais. Essa conta o presidente e seu entorno fizeram.”

Impeachment

Apesar de opositores apostarem no fortalecimento da pauta pró-impeachment no Congresso após os atos, Dantas diz que é improvável que o tema avance na Câmara. Um dos motivos é a relação construída pelo governo com o presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas/AL), a quem cabe decidir sobre o andamento de uma eventual abertura de processo. Ele cita ainda o apoio sólido de cerca de 28% da população, que têm avaliado o governo como bom ou ótimo em pesquisas recentes apesar da gestão da pandemia, e o "trauma" político deixado pelo impeachment de Dilma. "Partidos que se opuseram a Dilma também foram levados para o buraco. Foi traumático", diz o cientista político.

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas/PR), avalia que a campanha para 2022 foi antecipada e o País deve viver em clima eleitoral de agora até o final do próximo ano. Ele defende que o governo siga com a mesma postura de mobilização dos bolsonaristas que tem marcado o último mês. “O governo não tem de reagir, a esquerda está reagindo à mobilização bem-sucedida do governo. O governo continua com seu jogo, o presidente tem sua agenda e está cumprindo”, diz. Ele avalia, ainda, que muitos oposicionistas que foram às ruas não devem votar em apenas um candidato de oposição. “Vamos assistir, daqui e até a eleição, essas mobilizações e esses discursos que se dirigem, cada um, à sua base. Ninguém fala com a sociedade como um todo.”

Na semana passada, Lira disse em entrevista à Rádio Bandeirantes que há condições dadas para o impeachment de Bolsonaro. "O impeachment se faz por diversas circunstâncias: quando você perde a capacidade política, quando você perde a capacidade de gestão econômica, quando você cria no Brasil uma condição de desemprego absurda, quando você cria no Brasil uma condição de inflação incontrolável, quando a economia vai mal, quando o povo está na rua. Não enxergamos essa situação no Brasil", afirmou. Até agora, 118 pedidos de impeachment contra Bolsonaro já foram protocolados na Câmara.

Matheus Lara e Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo, em 01 de junho de 2021 

As manifestações contra Bolsonaro

Foram muito significativas as manifestações contra Jair Bolsonaro. Não é trivial ir às ruas para expressar descontentamento com o governo em meio à pandemia

Foram muito significativas as manifestações do sábado passado contra o presidente Jair Bolsonaro, não somente em razão da dimensão – houve passeatas em quase todas as capitais e no Distrito Federal, além de cidades menores – e da numerosa participação, mas principalmente pela realização, em si mesma, do protesto.

Afinal, não é trivial ir às ruas para expressar descontentamento com o governo em meio a uma pandemia, que dá todos os sinais de um novo recrudescimento. Até agora, as ruas eram uma espécie de monopólio da militância radical bolsonarista, desde sempre à vontade para desafiar as orientações sanitárias para demonstrar seu apreço por Bolsonaro e sua hostilidade às instituições democráticas.

Já a oposição ao presidente, com a fundada preocupação de que aglomerações poderiam contribuir para a disseminação ainda maior do vírus, demorou a mobilizar os muitos descontentes com Bolsonaro; afinal, não era uma decisão fácil ir às ruas depois de passar meses criticando os bolsonaristas e o presidente por incentivarem ajuntamentos irresponsáveis. Como resultado dessa hesitação, os bolsonaristas investiram na narrativa segundo a qual as manifestações promovidas por eles – sem nenhuma resposta da oposição, salvo inócuos panelaços – provavam que o “povo” estava com o presidente.

Mas isso agora mudou. A detalhada exposição pública, na CPI da Pandemia, da irresponsabilidade do governo Bolsonaro na condução da crise certamente encheu muitos brasileiros de vergonha. Ao mesmo tempo, o presidente mais uma vez causou indignação ao participar ativamente de um comício no Rio de Janeiro em que a pandemia foi ignorada, coadjuvado pelo sorridente ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, símbolo da desídia na administração da pandemia.

Essa caracterização explícita do desprezo bolsonarista pelos brasileiros em geral parece ter sido a gota d’água que levou parte dos grupos de oposição a Bolsonaro a deixar de lado a prudência e convocar manifestações de rua.

Muito se dirá sobre os organizadores desses atos e suas motivações. Não se pode ignorar que o protesto do sábado passado serviu para dar força à campanha de Lula da Silva à Presidência, tão antecipada e fora de hora quanto a de Bolsonaro. Embora o chefão petista tenha silenciado a respeito da manifestação, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, deu o ar da graça, bem como dirigentes de partidos que orbitam o lulopetismo. Ademais, a maioria absoluta dos organizadores era de partidos e movimentos de esquerda, o que tende a reduzir a representatividade do protesto.

Mas seria um erro entender, a partir disso, que o antibolsonarismo seja uma exclusividade da esquerda. As pesquisas de opinião mostram que parte significativa da população rejeita Bolsonaro, e é lícito supor que, se não fossem as reticências sanitárias motivadas pela pandemia, muito mais cidadãos, de diversos credos políticos, poderiam se animar a participar de manifestações contra o presidente.

O mais importante, contudo, é constatar que os protestos da oposição tendem a marcar uma inflexão na atmosfera política. Para muita gente, o risco da continuidade do governo de Bolsonaro é maior do que o perigo representado pelo coronavírus, razão pela qual valeria a pena arriscar-se em manifestações de rua se isso causar problemas para o presidente. Exagerado ou não, esse ânimo é significativo do cansaço com a irresponsabilidade de Bolsonaro, não apenas durante a atual crise, mas praticamente desde a posse.

Tudo indica que, no momento em que o País corre o risco de uma nova onda de contaminações na pandemia, as ruas voltaram a ser a arena política nacional – o que vem se repetindo com frequência desde 2013. O embate entre o bolsonarismo e o antibolsonarismo, que antes estava restrito ao universo das redes sociais, a partir de agora poderá ser travado ao ar livre, com ou sem vírus.

Bolsonaro menosprezou os protestos da oposição, dizendo que “teve pouca gente nessa manifestação de esquerda” porque a polícia está “apreendendo muita maconha” e “faltou erva para o movimento”. A troça infantil trai um certo nervosismo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 01 de junho de 2021 | 03h00

Protestos contra Bolsonaro: 5 possíveis consequências da mobilização, segundo analistas

Os protestos contra o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), realizados em todo o país neste sábado (29/05), representam uma novidade no já bastante conturbado ambiente político nacional.

Foi a primeira vez, desde o início da pandemia do coronavírus no Brasil, em março de 2020, que um número significativo de manifestantes contrários à atual gestão tomou as ruas, rompendo um longo período marcado por atos políticos realizados apenas por simpatizantes do governo.

Impeachment de volta à mesa e aumento da 'fatura' do Centrão estão entre os possíveis efeitos das mobilizações contrárias ao governo, dizem analistas (Getty Images)

Os atos aconteceram em pelo menos 180 municípios, de 24 Estados e do Distrito Federal, mostrando que há uma ampla diversidade geográfica na parcela da população que se opõe ao atual mandatário.

Também contaram com vasta repercussão na imprensa internacional, com cobertura de veículos tão diversos como Guardian, Economist, Al Jazeera, Le Monde, NY Post, La Nación e Indian Times, contribuindo para ampliar o desgaste da imagem internacional de Jair Bolsonaro.

As manifestações de rua da oposição acontecem num momento em que Bolsonaro se vê pressionado pela queda de sua popularidade nas pesquisas de opinião mais recentes e pelo avanço das investigações da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que avalia a resposta do governo à pandemia que já matou mais de 461 mil pessoas no país.

Mas o que essa novidade política deve trazer de consequências práticas para Bolsonaro?

A BBC News Brasil ouviu Carlos Melo, cientista político e professor do Insper; Pablo Ortellado, coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital e professor da USP (Universidade de São Paulo); e Claudio Couto, cientista político e professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) para saber o que podemos esperar do "dia seguinte" das manifestações.

1. Bolsonaro perde o 'monopólio das ruas'

Uma primeira consequência das mobilizações deste sábado, segundo os analistas, é que Bolsonaro perde o "monopólio das ruas", uma situação confortável em que apenas os seus apoiadores ocupavam o espaço público para se manifestar.

"Agora ele não pode mais falar que o povo está na rua em seu apoio. Aquela ideia de 'eu autorizo, presidente' [slogan usado por manifestantes governistas] não é mais tão simples, porque tivemos um contingente grande de pessoas dizendo que não autorizam o presidente", observa Melo, do Insper.

"Bolsonaro vinha até aqui com uma certa tranquilidade em mencionar essa figura abstrata chamada 'povo', porque havia uma situação em que apenas os seus apoiadores iam para a rua", diz o cientista político. "Agora, ele perdeu o monopólio da mobilização popular e da manifestação."

Cartaz em tecido diz Impeachment, sobre uma imagem de Jair Bolsonaro, com um boneco de Lula usando uma faixa presidencial escrita 'Lula Livre' ao fundo.

"O tamanho da manifestação e sua difusão pelo território nacional colocam de novo no horizonte um impeachment que parecia um pouco 'enterrado'", diz Pablo Ortellado, da USP (Buda Mendes / Getty Images)

2. Impeachment volta à mesa

Para Pablo Ortellado, da USP, uma outra consequência dos protestos deste fim de semana é que aumenta a pressão pelo impeachment no Congresso Nacional.

"O tamanho da manifestação e sua difusão pelo território nacional colocam de novo no horizonte um impeachment que parecia um pouco 'enterrado' pela persistência da aprovação do Bolsonaro", avalia o pesquisador.

Para Ortellado, isso gera diversas consequências, que vão desde novas movimentações para que o impeachment aconteça, até o aumento do "preço" que os deputados e senadores do Centrão cobram pelo apoio ao governo.

Carlos Melo avalia que o fato de o PT, principal partido da oposição, não ter interesse no impeachment nesse momento - já que o partido vê benefícios no desgaste de Bolsonaro para seu próprio projeto eleitoral de 2022 - não é um fator impeditivo para que o clamor pelo impedimento presidencial avance.

"O impeachment é sempre algo que depende muito mais da insatisfação popular e da mobilização de massas do que da vontade dos atores pura e simplesmente", diz o professor do Insper, lembrando dos casos de Fernando Collor e Dilma Rousseff.

"Com isso, não quero dizer que vai ter impeachment, mas não posso afirmar de forma alguma que simplesmente não vai ter porque o establishment não quer. Não é assim que a coisa ocorre."

Claudio Couto, da FGV, por sua vez, avalia que o impeachment volta como uma bandeira de mobilização, mas não necessariamente como "um item real do cardápio".

Segundo ele, são duas as razões para isso: a proximidade das eleições de 2022 e o fato de o vice-presidente Hamilton Mourão não se apresentar como uma alternativa confiável.

"Tem um ditado da política brasileira que diz que 'o Centrão ninguém compra, só aluga'", cita Claudio Couto, da FGV (Cleia Viana - Ag. Câmara de Noticias)

3. Aumenta a 'fatura' do Centrão

Se têm visões distintas sobre as perspectivas para o impeachment, em uma coisa os analistas são unânimes: a demonstração de força da oposição deve aumentar o preço cobrado pelo apoio do chamado "Centrão" - grupo de partidos de centro-direita que costuma estar na base de qualquer governo do país, independentemente da posição ideológica, mediante troca de favores como cargos e verbas.

"Os políticos são sensíveis às mobilizações e entendem elas como uma forma de pressão da população", avalia Melo.

"Isso aumenta a 'fatura' do Centrão e também a possibilidade de o Centrão, depois que 'resgatar essa fatura', não entregar o que prometeu, porque o Centrão é antes de tudo pragmático", observa o analista.

"Conforme a perspectiva de reeleição entra em risco, esses setores tendem a abandonar o barco, para embarcar em projetos mais promissores. Tem uma frase do Tancredo Neves que diz o seguinte: todo político vai com outro até a sepultura, mas não se joga."

Claudio Couto, da FGV, também escolhe uma frase de efeito para falar sobre essa questão.

"Tem um ditado da política brasileira que diz que 'o Centrão ninguém compra, só aluga'", cita o cientista político.

"Essa é uma ideia interessante porque ela mostra o seguinte: o Centrão não está ali para ser um partido orgânico do governo, que vai apoiá-lo até o final. Ele é importante para a aprovação de projetos, para proteger o presidente, por exemplo, de uma tentativa de impeachment, mas ele é insuficiente quando o governo enfrenta dificuldades reais. Se o Centrão perceber que o barco está afundando, ele corre para outro lado."

4. Dificulta a reeleição de Bolsonaro

A debandada do Centrão pode ter uma outra consequência para Bolsonaro: dificultar a aprovação no Congresso de projetos que o governo deve tentar encaminhar nos próximos meses com objetivo de melhorar sua popularidade para as eleições do próximo ano.

Em entrevista publicada pela Folha de S. Paulo na última segunda-feira (24/05), o ministro da Economia Paulo Guedes deixou clara essa intenção.

"Agora vem a eleição? Nós vamos para o ataque. Vai ter Bolsa Família melhorado, BIP [Bônus de Inclusão Produtiva], o BIQ [Bônus de Incentivo à Qualificação], vai ter uma porção de coisa boa para vocês baterem palma", disse o ministro, citando programa planejado pelo governo de incentivo à qualificação para jovens, tendo como contrapartida uma bolsa paga em parte pelo governo (que seria chamada de BIP) e em parte pelas empresas (BIQ).

"O projeto de reeleição depende de uma série de fatores, inclusive da aprovação de medidas na Câmara e no Senado e as manifestações enfraquecem a agenda do governo dentro do Congresso Nacional", avalia Carlos Melo.

"O governo tem desempenho frágil, é pouco realizador - não à toa Bolsonaro tem inaugurado ponte de madeira -, enfrenta o problema seríssimo da pandemia, com 460 mil mortos até agora, e uma economia que dá sinais de recuperação, mas com milhões sem emprego. Nada disso ajuda."

"De alguma forma, legitima a atuação da CPI, produz um efeito favorável no sentido de facilitar que a comissão avance no seu trabalho", diz Claudio Couto, da FGV (Ag. Senado)

5. Empodera a CPI da covid

Por fim, uma última consequência apontada pelos analistas deve afetar o novo entretenimento preferido dos brasileiros: a CPI que investiga a resposta da atual gestão à pandemia.

"A manifestação demonstra que há um grande descontentamento. Que esse setor que não gosta do Bolsonaro está com muito ímpeto", avalia Ortellado. "Isso dá mais respaldo para o bloco de oposição da CPI, porque ele se sente simbolicamente apoiado pela população."

Segundo o professor da USP, isso também deve permitir aos políticos não identificados com a oposição serem mais críticos, caso, por exemplo, do presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM).

Carlos Melo avalia que o clamor das ruas também pode retrair parte da base de apoio ao governo.

"Não acho que o Fernando Bezerra [senador pelo MDB-PE e líder do governo no Senado] amanhã estará intimidado, ou que o Flavio Bolsonaro estará intimidado. Mas uma série de nomes na CPI que andam ali no fio da navalha, fazendo discursos ambíguos, terão um pouco mais de cuidado."

Para Claudio Couto, mais do que as ruas empoderarem a CPI, são os achados da CPI que podem ajudar a esquentar a temperatura das ruas.

"A tendência é muito mais esse tipo de mobilização ser alimentada pela CPI do que o oposto. Mas, é claro, que isso também de alguma forma legitima a atuação da CPI, produz um efeito favorável no sentido de facilitar que a comissão avance no seu trabalho."

Thais Carrança, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 30.05.2021

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Brasil tem 860 novas mortes por covid-19

País registra 30.434 casos da doença em 24 horas, o que eleva o total de infectados para 16.545.554. Número acumulado de óbitos em solo brasileiro é de 462.791.

Média móvel de novas mortes em sete dias está em 1.848

O Brasil registrou oficialmente 860 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta segunda-feira (31/05).

Também foram confirmados 30.434 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 16.545.554, e os óbitos somam agora 462.791.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 14.964.631 pacientes haviam se recuperado da doença até esta segunda.

Com os dados de óbitos registrados nas últimas 24 horas, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 220,2 no país, a 9ª maior do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

A média móvel de novas mortes (soma dos óbitos nos últimos sete dias e a divisão do resultado por sete) ficou em 1.848, e a média móvel de novos casos, em 60.685.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 594 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,2 milhões) e Índia (28 milhões).

Ao todo, mais de 170 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, e 3,54 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença, segundo números oficiais.

Deutsche Welle Brasil, em 31.05.2021

“Copa América no Brasil é inaceitável para a saúde pública e pode impulsionar a terceira onda”

Especialista chama a atenção para os riscos de organizar um torneio continental em momento de nova piora da pandemia no país. Com aprovação de Bolsonaro, sede foi confirmada pela Conmebol a duas semanas do início do torneio

Bolsonaro posa com jogadores após a conquista da Copa América de 2019, no Maracanã.CARL DE SOUZA / AFP

Copa América será disputada no Brasil em meio à pressão da terceira onda da pandemia

“É evidente que a Copa América pode impulsionar a terceira onda. A realização desse torneio no Brasil é absolutamente despropositada, inaceitável do ponto de vista da saúde pública, e só poderia acontecer num país que não tem respeito pela vida”. Assim resumiu Bruno Gualano, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), as possíveis consequências da escolha, anunciada pela Conmebol na manhã desta segunda-feira (31), do Brasil como sede de última hora da edição de 2021 do principal torneio entre seleções sul-americanas, marcado para começar em 13 de junho. 

Uma Copa que, negada na Colômbia pelo caos político e social e na Argentina pela crise sanitária, migrou para o país mais atingido pela pandemia de covid-19 no continente e, recentemente, envolto em protestos contra o Governo federal.

Originalmente, colombianos e argentinos dividiriam as sedes. A Colômbia recuou no dia 21 de maio, enquanto a Argentina comunicou que não receberia o torneio neste último domingo, 30 de maio. Cerca de 12 horas depois, o anúncio do substituto: “A Conmebol agradece ao presidente Jair Bolsonaro e sua equipe, assim como à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) por abrir as portas do país ao que hoje em dia é o evento esportivo mais seguro do mundo”, publicou a entidade do futebol sul-americano no Twitter. 

“O Governo brasileiro demonstrou agilidade e capacidade de decisão em um momento fundamental”, acrescentou Alejandro Domínguez, presidente da Conmebol, que ainda disse que “o Brasil vive um momento de estabilidade, tem estrutura comprovada e experiência acumulada e recente para organizar uma competição dessa magnitude”. 

Nos últimos dias, o Brasil ultrapassou 460.000 mortos e 16,5 milhões de infectados pela covid-19, além de detectar variantes brasileiras e indiana, atrasos na vacinação e aumento da lotação em hospitais que preocupam os especialistas para uma terceira onda ainda mais mortal nos meses em que será realizada a Copa América. 

“E não temos como medir o impacto desse evento nos números porque o Brasil não adotou a testagem e o rastreio de casos como uma política de combate à pandemia. Se você não testa, não sabe a dimensão do problema. Só vamos ver a ponta do iceberg lá no fim, que são o aumento de mortes e as UTIs lotadas”, comenta Bruno Gualano.

O especialista coordena, desde o ano passado, um grupo de estudo da USP que busca dimensionar os impactos que o futebol tem, com todos os seus protocolos, na crise sanitária brasileira. Em uma pesquisa divulgada em março de 2021, o grupo analisou testes feitos em mais de 4.000 atletas, homens e mulheres, de oito torneios realizados pela Federação Paulista de Futebol (FPF) em 2020, e chegou a conclusão de que o índice de infecção entre esses jogadores (11,7%) é equivalente ao de profissionais de saúde na linha de frente da pandemia. 

Foram 25 surtos detectados apenas no futebol paulista —para efeito de comparação, o futebol no Qatar, que foi usado como comparação por apresentar uma realidade semelhante à brasileira, não teve nenhum surto entre 549 atletas e o índice de casos positivos ficou em 4,4%. “É importante lembrar que esse estudo foi feito em 2020, antes da segunda onda, antes das variantes e antes do relaxamento das restrições —e só em São Paulo. Tudo indica que em 2021 foi muito pior”, pontua Gualano.

Para o especialista, a pesquisa prova que os protocolos e medidas sanitárias adotadas pelo futebol para que o setor continue funcionando em meio à pandemia “não serviram de nada”, bem como a abertura desse setor influencia no aumento de transmissões na sociedade —levando em conta somente os dados de jogadores envolvidos diretamente no esporte. 

Esses protocolos são, no entanto, o argumento para que centenas de pessoas envolvidas nas delegações de dez seleções sul-americanas, além de toda a equipe e imprensa responsável por trabalhar em um evento dessa proporção, possam comparecer a jogos em diferentes Estados no Brasil. 

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), apesar de fazer oposição a Bolsonaro durante toda a crise sanitária, afirmou em entrevista coletiva que ”não fará objeção caso a CBF defina São Paulo como um dos locais de jogos, desde que protocolos sejam obedecidos”. Na direção oposta, governadores de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), e Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), anunciaram que barrarão jogos da Copa em seu Estado.

Vacinas em cima da hora

Visando atenuar os efeitos que a realização de seus torneios podem ter na pandemia por todo o continente, a Conmebol fechou um acordo de doação no qual recebeu 50.000 doses da vacina contra o coronavírus do laboratório chinês, Sinovac, para imunizar equipes e delegações de times e seleções que disputam seus torneios continentais, em troca de patrocínio. Atlético-MG e Atlético-GO, que jogam competições sul-americanas, foram os dois times brasileiros que já imunizaram seus atletas com as doses da Conmebol. 

“É um problema ético, porque esses caras estão furando a fila para o circo passar”, opina Gualano, que lembra que, apesar dos jogadores serem perigosos vetores de transmissão, não consistem grupos de risco, enquanto muitos destes grupos não receberam sequer a primeira dose no Brasil. E, no caso da seleção brasileira, boa parte da delegação não foi vacinada a duas semanas da estreia da competição, o que inviabiliza a devida imunidade antes da realização da Copa América. 

“Além de tudo é uma medida simbólica, que passa uma falsa sensação de segurança. Resume como as prioridades são o futebol, o bar, o shopping, e não as UTIs ou os remédios para intubação. Os protocolos são só engodo”, conclui o pesquisador.

Independente das vacinas, a postura adotada pela Conmebol durante a pandemia ainda é alvo de outras críticas. Na final da Libertadores, realizada no Maracanã em 30 de janeiro, a entidade permitiu a presença de 5.000 pessoas nas arquibancadas —precedente que pode servir, inclusive, para a abertura ao público na final da Copa América, que deve ser no mesmo estádio. 

Mais recentemente, a Conmebol forçou a realização de partidas da mesma competição na Colômbia, onde jogadores do Atlético-MG e do América de Cali paralisaram a partida pelo gás lacrimogêneo oriundo da repressão a protestos sociais que aconteciam do lado de fora; e na Argentina, contornando o decreto federal que paralisou o futebol local durante os últimos dias de maio.

As sedes da Copa América ainda não foram confirmadas pela Conmebol —apenas as datas de início e fim, que permanecem em 13 de junho e 10 de julho. Nos bastidores, as maiores possibilidades apontam para partidas realizadas em locais mais estruturados, como Rio e São Paulo, e em cidades que contam com estádios herdados da Copa do Mundo cuja utilização é esporádica, uma vez que o calendário não prevê uma pausa nos jogos dos principais campeonatos nacionais. Seriam os casos de Manaus, Recife, Natal e Brasília. 

Na capital nacional, o evento esportivo já respinga entre a classe política. Randolfe Rodrigues (Rede), senador do Amapá e líder da oposição, avisou em seu Twitter que protocolou um pedido para a convocação do presidente da CBF, Rogério Caboclo, na CPI da Pandemia, que apura supostas negligências do Governo federal no combate à pandemia. Na Câmara, o deputado federal Júlio Delgado (PSB-MG) irá ao Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar a realização do torneio no Brasil.

DIOGO MAGRI, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 31 MAI 2021 - 17:20 BRT

José Roberto Batochio: Não se trata de genocídio, mas de crime contra a humanidade

O incremento do coronavírus se deu por ações e omissões do mecenas da doença

Na candente retórica da política não configura crime qualificar o presidente da República de genocida em razão de sua estratégia de amistosa convivência com o coronavírus. Tampouco é crime desejar a sua morte, pois a causa supralegal do “direito à perversão” isenta de punição quem deseja o falecimento de outrem, desde que não faça preparativos para tanto e, por óbvio, muito menos atue para consumar o ato. Ainda que recorrente como palavra polissêmica nas manifestações populares, a imputação leiga de genocídio estiliza a legítima crítica pública sem encontrar adequação técnica no Direito Internacional, mas é indubitável que, à luz da boa doutrina, tal conduta mais se identificaria com a que vem definida como crime contra a humanidade.

Criados pelo jurista polonês Raphael Lemkin, em 1943, com a união das palavras grega génos (família, tribo, raça) e latina caedere (matar) a partir dos episódios de extermínio de armênios e judeus, os termos genocídio/genocida foram introduzidos no Direito pelo Estatuto de Roma, tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), em 1998, do qual o Brasil se tornou signatário pelo decreto de número 4.388/2002.

O artigo 6.º define o crime de genocídio como “qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo”.

Os crimes contra a humanidade estão conceituados no artigo 7.º, em que se tipificam as iniciativas de ataque sistemático e generalizado a populações civis, sem distinção de características físicas ou culturais, entre eles “atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”.

Nessa barbárie se enquadraria a performance do presidente – suficiente para levá-lo às barras do TPI, a exemplo do general croata Ante Gotovina, do ditador líbio Muamar Kadafi e do ex-ministro queniano William Samoei Ruto. Os “atos desumanos” do presidente do Brasil estão demonstrados em entrevistas, lives, memes e outras manifestações tão trágicas quanto sarcásticas, para sustentar uma política sanitária na qual especialistas identificam, antes de descaso com a saúde pública, uma campanha pró-vírus. Não se trata apenas de manifestações pessoais, mas de atos oficiais – como demonstrou um levantamento de 3.049 normas federais para a covid-19, analisadas pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo e pela Conectas Direitos Humanos.

O incremento descontrolado do coronavírus se deu por ações e omissões. Como um mecenas da doença, o presidente não equipou o serviço de saúde para o combate à pandemia e boicotou medidas recomendadas pelas organizações internacionais, como o confinamento, o uso de máscara e a restrição a aglomerações, tanto quanto deixou de adquirir vacinas em tempo hábil, e ainda pôs em dúvida a eficácia de imunizantes, ao mesmo tempo que, como um taumaturgo desastrado, tentou sobressair com a receita de remédios ineficazes, a buscar um quiproquó diversionista de “tratamento precoce” – contradição terapêutica e semântica. Que mais poderia fazer, se, como justificou, “não é coveiro?”

A coreografia de abre-alas da pandemia, apregoando laissez-faire, laissez-aller, laissez-passer, ou deixai fazer, deixai ir, deixai passar, foi incentivo para a população viver e trabalhar como se o perigo fosse uma “gripezinha” que segrega um agente infeccioso só maléfico para os predestinados à morte, aos portadores de comorbidades e, no linguajar chulo, aos “maricas”. A degenerada epidemiologia do Planalto consistiu em deixar a natureza seguir seu curso, o vírus abater os que, em darwinismo imunológico, não adaptassem o organismo à resistência ao mal, enquanto a maioria ficaria naturalmente refratária, e sobreviesse a chamada imunidade de rebanho – ao custo, quem sabe, de alguns milhões de vidas. De quebra, a economia não sofreria tanto e a reeleição do messias estaria assegurada.

O conjunto da obra aponta para o crime contra a humanidade. Advogados brasileiros já protocolaram pedido de investigação no Tribunal Penal Internacional. Embora lento, pois segue o rito do indispensável devido processo legal, com audiências de instrução e amplo direito de defesa, o inquérito do TPI pode declarar a infâmia de uma administração que elegeu a morte como opção preferencial.

Tudo considerado, porém, não se pode negar que “#genocida” tem força de palavra de ordem e internacionaliza o problema, ao correr o mundo como motivo já invocado para intervenção estrangeira no Brasil.

José Roberto Batochio, advogado criminalista, foi Presidente nacional da OAB e Deputado Federal pelo PDT-SP. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30 de maio de 2021.

A inconstitucionalidade como tática

Bolsonaro tenta fustigar o Supremo por meio de ações acintosamente inconstitucionais

Não há nada de anormal em que, vez por outra, haja alguma tensão nas relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário. A autonomia de cada Poder não é absoluta, cabendo aos outros promover ou restabelecer o equilíbrio. Fundamento da separação dos Poderes, essa dinâmica de freios e contrapesos é o cerne do sistema proposto por Montesquieu.

O presidente Jair Bolsonaro tem, no entanto, se valido desse sistema de controle para uma nefasta manobra. O objetivo tem sido fustigar o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de atos acintosamente inconstitucionais.

A manobra se dá da seguinte forma. O governo Bolsonaro propõe ações judiciais ou edita atos que, desde o início, já se sabe que o Supremo rejeitará, em razão de manifesta inconstitucionalidade. O objetivo, no entanto, não é obter o que foi pedido. O que se quer é a decisão negativa do Judiciário.

Depois, esse conjunto de decisões judiciais contrárias ao governo Bolsonaro – afinal, não se trata apenas de uma ação manifestamente inconstitucional, mas de uma série de medidas contrárias à Constituição – é usado como desculpa para a incompetência do próprio governo. A mensagem de irresponsabilidade é simples: o presidente Jair Bolsonaro tenta fazer o bem para o País, mas o Supremo não deixa.

Exemplo dessa tática é a mais nova manobra do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia. A Advocacia-Geral da União (AGU) acionou o Supremo para questionar as medidas de restrição dos governadores de Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Norte.

O tema é pacífico. A Constituição prevê a competência compartilhada da União, Estados e municípios em relação à saúde pública.

Além disso, o Supremo, no primeiro semestre de 2020, já reconheceu que governadores e prefeitos podem decretar restrições para conter a pandemia. Ou seja, não há nenhuma dúvida sobre qual será a decisão do STF em relação à nova ação da AGU, mas mesmo assim – ou melhor, precisamente por isso – o governo Bolsonaro acionou o Supremo.

Outro ato para fustigar o Supremo diz respeito ao decreto, anunciado pelo Executivo federal, sobre as redes sociais. Sob o pretexto de regulamentar o Marco Civil da Internet, o presidente Jair Bolsonaro deseja proibir que as redes sociais excluam publicações ou suspendam perfis que contrariem as normas dessas plataformas.

As redes sociais não podem ser passivas no combate à desinformação. É crescente a percepção de que – para a saúde pública, para o livre debate de ideias e para a própria democracia – as redes sociais não podem ser um espaço sem lei.

O presidente Jair Bolsonaro promete, no entanto, fazer o exato oposto, impedindo que as redes sociais zelem pelos respectivos ambientes virtuais e pela validade de suas regras. É óbvio que um decreto com tal conteúdo não tem como prosperar no Supremo, por manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade. Mas isto é o que Jair Bolsonaro deseja: mais um pretexto para dizer a seus apoiadores que ele defendeu – e o Supremo negou – a liberdade de expressão.

Uma terceira medida sem a menor viabilidade, mas que por isso mesmo Jair Bolsonaro vem dedicando cada vez mais energia, é o voto impresso. O STF já declarou que é inconstitucional, pelos riscos de manipulação e pela desproporção do custo econômico, a obrigatoriedade da impressão de registros de votos depositados de forma eletrônica na urna. Na decisão, o Supremo lembrou que não há nenhum indício de fraude nas urnas eletrônicas. A fraude existia antes, quando se utilizava cédula de papel nas eleições.

A inviabilidade do voto impresso pouco importa, no entanto, a Jair Bolsonaro. Seu objetivo é disseminar a desconfiança no sistema eleitoral, para que possa apresentar sua eventual derrota eleitoral como resultado de um complô contra ele – um complô com a participação do Supremo.

O uso do aparato público – em última análise do dinheiro público – para produzir continuamente inconstitucionalidades não é apenas uma afronta ao Supremo. É um deboche com a Constituição e um vil insulto à Nação.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 30 de maio de 2021 

Conmebol agradece apoio de Bolsonaro e diz que protocolo da competição tem '99% de eficácia'

Torneio foi retirado da Argentina de última hora; datas serão mantidas e jogos devem ser realizados com portões fechados

Alejandro Domínguez, presidente da Conmebol Foto: Divulgação/Conmebol

A escolha do Brasil para ser a nova sede da Copa América passou pela aprovação do Presidente da República, Jair Bolsonaro (Sem partido). O principal mandatário da Conmebol, Alejandro Domínguez, e do país conversaram na manhã desta segunda-feira, e o apoio do governo foi decisivo para que levar a competição para o Brasil, que não era uma opção no começo da reunião, virasse a solução.

Apesar de considerar o protocolo da CBF suficiente, a Conmebol prentende adotar o próprio durante a Copa América.

Um dos dados que a entidade faz questão de mostrar é a porcentagem de eficácia do protocolo sanitário da entidade, o mesmo da Copa Libertadores e Sul-Americana. A eficácia é superior a 99%, segundo dados oficiais da Conmebol. Em 2021, entre janeiro e maio, a entidade organizou 45 jogos da Libertadores, da Sul-Americana e Recopa, em cidades e estádios do Brasil. A Copa América, de 13 de junho a 10 de julho, terá 28 jogos.

Nas redes sociais, Alejandro Domínguez agradeceu pelo apoio.

"Hoje, recebemos o firme respaldo dos membros do Conselho da CONMEBOL que, por unanimidade, aprovaram a proposta da CONMEBOL Copa América 2021 ser disputada no Brasil. É um prazer contar com o apoio constante de nossos colegas", escreveu Alejandro.

A Conmebol anunciou na manhã desta segunda-feira que a Copa América 2021 acontecerá no Brasil. A competição de seleções estava sem sede após Argentina e Colômbia desistirem de realizar o evento, que acontecerá entre 13 de junho e 10 de julho. É a 6ª vez que o país recebe o torneio.

"A Conmebol Copa América 2021 será disputada no Brasil! As datas de início e término do torneio estão confirmadas. Os locais e os jogos serão informados nas próximas horas. O torneio de seleções mais antigo do mundo fará vibrar todo o continente!", escreveu a entidade ao anunciar a mudança em suas redes sociais.

O Globo, em 31/05/2021 - 17:15 / Atualizado em 31/05/2021, às17:25 hs.

Copa América: Pernambuco e RN rejeitam, São Paulo e Bahia só aceitam se jogos forem sem público

Jogos serão disputados sem público e até o momento, dentro da Conmebol, não há a intenção de fazer alterações neste sentido

Tão logo o Brasil foi anunciado como nova sede da Copa América, começou-se a discussão sobre quais cidades serão as sedes do torneio. A entidade e a CBF estão reunidos para tentar encontrar locais em que a realização da Copa América não interfira na realização do Campeonato Brasileiro. 

Oficialmente, a Conmebol anunciará as datas e locais ainda nesta segunda-feira. Segundo o blog do Lauro Jardim, as cidades-sedes serão Natal, Brasília, Cuiabá, Recife e Manaus. O governo de Pernambuco, uma das possíveis sedes, emitiu nota oficial informando que "nas últimas semanas foi identificada uma nova aceleração de casos, que motivou medidas restritivas no Agreste e na Região Metropolitana". E que "reforça que o atual cenário epidemiológico não permite a realização de evento do porte da Copa América no território de Pernambuco".

Nova sede da Copa América, Brasil tem média de mortes por Covid-19 próxima à da Argentina

Fátima Bezerra, governadora do Rio Grande do Norte, também foi ao Twitter afirmar que o estado não receberá quaisquer jogos. Declarou que, “apesar de sermos um dos estados com estrutura física disponível, não temos hoje níveis de segurança epidemiológica para realização do evento”.  

Ela frisou que não foi procurada por ninguém de forma oficial sobre a realização do torneio no estado. 

O Governado do Distrito Federal, uma das cidades dadas como quase certas para receber as partidas, disse que não recebeu nenhum contato oficial e tudo o que sabe é sobre a imprensa.

Já o governador da Bahia, Rui Costa, afirmou em sua conta no Twitter que "não há possibilidade de flexibilizar regras para que a Bahia seja sede". Costa frisou que jogos no estado apenas se forem sem público:

– Não será permitido público. Se a exigência é ter público, aqui na Bahia não terá.

O Governo de São Paulo informou que "não fará objeção caso a CBF defina São Paulo como um dos locais de jogos da Copa América, desde que os protocolos do Plano São Paulo sejam obedecidos", ou seja, assim como na Bahia, jogos sem público.

Wilson Lima, governador do Amazonas, também aceitou receber jogos em seu estado, mas ponderou que a contrapartida é que não haja público no estádio. 

— Não recebi nenhum contato formal. Mas em princípio não teria nenhum problema, desde que os jogos sejam sem público.

Os jogos serão disputados sem público e até o momento, dentro da Conmebol, não há a intenção de fazer alterações neste sentido.

Athos Moura, O Globo, em 31/05/2021 - 14:12 / Atualizado em 31/05/2021, às 16:28 hs.

Copa América no Brasil é desrespeito

Por Merval Pereira

A CPI da COVID terá muito assunto essa semana, mas a notícia de que a Copa América de futebol será no Brasil é uma verdadeira calamidade. 

É inacreditável que esteja acontecendo isso, com o país na iminência de uma terceira onda. É um desrespeito, mais uma tentativa de fingir que está tudo bem no Brasil. 

Foi uma decisão claramente política, que a CBF ajudou a montar.  Brasil é atualmente um pária mundial; os brasileiros estão impedidos de sair e vamos trazer gente de fora para fazer uma grande manifestação esportiva. 

Acredito até que algumas seleções não venham porque a imagem do Brasil no exterior não favorece a realização de qualquer evento internacional por aqui. 

O depoimento na CPI amanhã da médica Nise Yamaguchi será naturalmente polêmico e deve dar uma confusão no plenário. Será uma sessão midiática, mas não deve mudar nada de concreto, porque a defesa e a contestação da cloroquina já foram feitas. 

A convocação dos governadores está no STF. É uma disputa política dentro da CPI e reflete o ambiente de contestação do governo Bolsonaro e dos objetivos da CPI.

Merval Pereira participa do Conselho Editorial do Grupo Globo. É membro das Academias Brasileira de Letras, Brasileira de Filosofia e de Ciências de Lisboa. Recebeu os prêmios Esso de Jornalismo e Maria Moors Cabot, da Columbia University. Este artigo foi publicado n'O Globo online, em 31/05/2021,às 13:19hs.

A dúvida é a arma do negócio

Por Marcello Serpa

Nos anos 50, um maço de cigarro nas mãos era tão comum quanto um celular é hoje. Foi quando dois pesquisadores ingleses, Richard Doll e Austin Hill, perceberam que os casos de câncer no pulmão cresceram seis vezes no Reino Unido em apenas 15 anos. Suspeitaram do cigarro e iniciaram uma pesquisa que salvaria muitas vidas, mudaria a história da saúde pública e do marketing político.

Para muita gente, a razão do aumento de casos de câncer estava na fumaça de carros, ônibus e caminhões que se multiplicavam com as novas estradas do Pós-Guerra. Como quase todo mundo fumava, inclusive os pesquisadores e os médicos do sistema de saúde, fazia sentido achar um culpado que não questionasse o sagrado ritual do cigarrinho de cada dia.

O estudo publicado em 1954 provou, de forma irrefutável, que fumar aumentava em 16 vezes a chance de desenvolver câncer de pulmão, além de ser também a causa de um surto de doenças cardiovasculares. Os próprios Doll e Hill deixaram de fumar, assim como os médicos, que, expostos a uma avalanche de dados, foram os primeiros a largar o vício.

Parecia ser questão de tempo para o consumo de cigarros diminuir, mas a lógica é frágil quando bate de frente com os interesses de uma indústria bilionária. Com a publicação dessa primeira pesquisa, começou uma guerra de narrativas que duraria décadas. Os executivos da indústria do tabaco se reuniram para discutir como enfrentar a ameaça à saúde de sua galinha dos ovos de ouro: o cigarro. Durante um desses encontros foi criada a arma psicológica que, se injetada nas cabeças da população, ganharia a guerra: a dúvida.

A indústria não atacava os pesquisadores, mas questionava os dados. Contratava outras pesquisas relacionando a poluição à incidência de câncer, ou as doenças cardiovasculares à má alimentação. Profissionais de relações públicas inundando a mídia com resultados conflitantes e com alarmantes pesquisas sobre qualquer outro vilão da saúde que tirasse o foco do cigarro. A nicotina adicionada ao cigarro era uma aliada, fazendo do fumante um dependente ávido por duvidar de qualquer dado questionando o hábito que lhe dava tanto prazer.

Décadas depois, graças a vários vazamentos de documentos secretos, a indústria do tabaco acabou exposta. Produtos criados para criar dependência, dados e índices manipulados levaram os CEOs das companhias ao Congresso americano, onde confessaram, de cabeça baixa, saber, desde os anos 50, do mal que o cigarro provocava. A dúvida se dissipou, fumar virou pecado e foi proibido em espaços públicos.

Turbinada pela chegada das mídias sociais, a maior arma de manipulação de massas já criada, essa estratégia de marketing de combate renasceu nas mãos dos ideólogos e marqueteiros da extrema-direita, prontos para declarar a guerra santa contra o statu quo.

A tática continua a mesma: questionar certezas para criar dúvidas. Negar a ciência, embaralhar dados, reescrever a história, inundar a rede de fake news oferecendo uma realidade paralela a todos os que têm como hobby desconfiar de qualquer fato que contradiga suas próprias opiniões e certezas. O inimigo agora é a imprensa, a academia, a ciência, o liberalismo, todos parte de uma conspiração da elite intelectual de esquerda, que teria como único objetivo o domínio mundial.

A indústria do petróleo e do carvão gerando pesquisas conflitantes com a opinião unânime da comunidade científica sobre a influência do homem no aquecimento global, colocando a pulga da dúvida atrás das orelhas de muita gente e atrasando políticas para a mudança da matriz energética mundial.

O movimento antivacina e seus médicos de Facebook, criando o mito da cloroquina, da vacina com chips da Microsoft, DNA mutante, efeitos colaterais em números astronômicos, minando a confiança da população na única ferramenta disponível para erradicar a pandemia: a vacina.

O marketing da dúvida não conseguiu salvar a indústria do cigarro. Assistindo na CPI às mentiras de ministros sobre a má-fé do governo na condução da pandemia expostas por cartas, documentos, dados e fatos, não tenho dúvida de que, um dia, ser trumpista, negacionista, obscurantista, terraplanista ou bolsonarista será tão constrangedor quanto acender um cigarro num elevador.

Marcello Serpa é jornalista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 31.05.2021

Comissão do PSDB apresenta modelo de prévias com peso maior para quem tem mandato e contraria Doria

Governador defendia que voto de todos os filiados valesse o mesmo, mas proposta de comissão interna dá mais poder a quem foi eleito


João Doria, Eduardo Leite e Tasso Jereissati Foto: Editoria de Arte

A comissão do PSDB criada para discutir o modelo de prévias para escolha do candidato tucano à Presidência da República em 2022 apresentou nesta segunda-feira (31) sua proposta para a eleição interna. Por maioria, os integrantes do grupo escolheram uma proposta em que os votos daqueles que têm mandato eletivo terá peso maior que o dos filiados, que responderão por 25% do colégio eleitoral. O texto ainda precisa ser aprovado pela Executiva Nacional da sigla, o que deve ocorrer até 8 de junho.

O modelo representa uma derrota para as pretensões do governador de São Paulo, João Doria, que vinha fazendo campanha por uma proposta em que os votos de todos os filiados tivesse o mesmo peso. Dirigentes do partido de outros estados viam com preocupação esse projeto, alegando que quase metade dos filiados ativos do partido estão em São Paulo, onde o PSDB tem cerca de um terço das prefeituras e Doria comanda o diretório estadual.

Já o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que também já manifestou o interesse de disputar as prévias defendia um modelo de "equilíbrio federativo", que acabou prevalecendo.

— A decisão da comissão foi por uma proposta democrática que dá voz aos filiados e a todos que têm mandato eletivo no partido. Não beneficia ninguém — disse ao GLOBO o presidente da comissão que definiu o modelo de prévias, o ex-senador José Anibal. 

Aprovado por maioria absoluta dentro da comissão, o modelo apresentado nesta segunda-feira prevê a divisão do colégio eleitoral do PSDB em quatro grupos, sendo que três deles são formados por detentores de mandato - cada conjunto vale por 25% da votação. Segundo documento encaminhado à direção do partido, os candidatos poderiam se inscrever até 20 de setembro e participariam de debates a partir de 18 de outubro. A eleição aconteceria em 21 de novembro. Se houver necessidade de segundo turno, seria no dia 28.

O primeiro grupo, que terá o peso de 1/4, é formado por filiados que se registraram até 31 de maio deste ano. A sigla estima que tenha cerca de 1,3 milhão de filiados, mas que cerca de 500 mil participem ativamente da vida partidária. O segundo grupo, com igual  peso, é o de prefeitos e vice-prefeitos. O grupo 3 é o Vereadores, deputados estaduais e distritais. Por fim, há um grupo destinado a governadores, vice-governadores, senadores, deputados federais, presidente e ex-presidentes da Executiva Nacional.

Este quarto grupo garante que estados em que o PSDB teve melhor resultado eleitoral, elegendo governadores, senadores e deputados, possam influenciar o debate para a escolha do candidato à Presidência.

Além de Doria e Leite, o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio Neto também tem interesse em participar das prévias. Recentemente, ganhou apoio dentro do partido o nome do senador cearense Tasso Jereissati, que tem a simpatia da bancada tucana na Câmara e de integrantes da Executiva. O parlamentar já admitiu que pode disputar a eleição interna, mas disse que a escolha deveria ser feita só no ano que vem.

Gustavo Schmitt, O Globo, em 31/05/2021 - 15:35 / Atualizado em 31/05/2021 - 17:07

Esquema do orçamento secreto pode configurar crime de responsabilidade

'Estadão' ouviu 16 advogados, professores e especialistas da área fiscal sobre modelo de compra de apoio no Congresso; parte deles fala em indícios de desrespeito às leis

 O orçamento secreto do presidente Jair Bolsonaro, revelado pelo Estadão, escancarou a permanência de velhos vícios na forma como os recursos públicos são tratados no Brasil. Pela Constituição, o Orçamento deve procurar atender às necessidades da sociedade. Mas Bolsonaro, descumprindo uma de suas mais destacadas promessa de campanha, reabilitou o toma lá, da cá que já produziu vários escândalos no País.

O Estadão entrevistou 16 renomados advogados, professores e economistas especializados em contas públicas para discutir o esquema montado para aumentar a base de apoio de Bolsonaro no Congresso e alternativas para evitar que o Orçamento seja usado pelo Executivo para barganhas com os congressistas. 

Todos defendem investigação rigorosa e, entre eles, incluindo o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, há quem fale em indícios de crime de responsabilidade. A configuração pode levar ao impeachment do presidente Jair Bolsonaro por infração às leis orçamentárias e à Constituição, que exige transparência, equidade e impessoalidade no manejo das verbas.

Executivo. Mecanismo criado pelo presidente Jair Bolsonaro é questionado por analistas.  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Também é unânime a opinião segundo a qual o esquema criado por Bolsonaro é um retrocesso nos avanços obtidos após o escândalo dos Anões do Orçamento, que, na década de 90, desviou recursos de emendas.

Em 2019, Bolsonaro criou um mecanismo que permitiu a um grupo mandar bilhões de reais de emendas de relator (RP9) para suas bases eleitorais, tudo de forma sigilosa. Uma engenharia questionada pelos analistas.

Isso contraria a Constituição, que estabeleceu que o princípio da transparência deve reger a elaboração e a execução do Orçamento. Entre as atribuições do Congresso, uma das mais nobres é a aprovação do orçamento federal. É na lei orçamentária que, a cada ano, o País decide suas prioridades, em termos de alocação de recursos para políticas públicas, na busca do desenvolvimento e da melhoria do padrão de vida de seus habitantes.

'STF deve suspender de imediato'

Heleno Taveira Tôrres, professor de Direito Tributário da USP.  Foto: Twitter/Reprodução

Heleno Taveira Tôrres, professor de Direito Tributário da USP: 

As emendas de relator são todas inconstitucionais. Cabe ao STF, se provocado, suspender de imediato a execução. Por serem regimes excepcionais ao Orçamento, somente poderiam ser permitidas as emendas individuais ou de bancadas de Estados, segundo as limitações previstas no art. 166 da Constituição. 

A LDO não tem competência para criar despesas por ‘emendas de relator’, que só serviram para evitar as restrições quantitativas e materiais, como a de reservar 50% para a Saúde. Agora, com a Portaria 6.145, de 2021, tenta-se ‘salvar’ o impossível, que é a inconstitucionalidade dessas fontes de despesas. 

É tudo parte de uma grande luta eleitoral.

‘Constituição não fala em sigilo, segredo’

Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal.  Foto: André Dusek/Estadão

Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal: O TCU tomou uma boa medida, justa e jurídica (a Corte exigiu do governo acesso aos documentos do orçamento secreto). Queremos saber das coisas do poder. Quando a Constituição fala de maneira detalhada e minudente sobre Orçamento, em nenhum momento fala sobre sigilo. O artigo 165 da Constituição, sobre Orçamento, diz tudo, mas em nenhum momento fala em sigilo, segredo, bastidores, coxia. Quando você transfere recursos públicos a partir de uma postulação, é preciso vir a lume quem tomou a iniciativa do pedido, principalmente, se partiu de um agente público. Como é que um deputado e um senador vão se relacionar com o Executivo em sigilo?

‘Fere-se aqui uma lógica republicana’

Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da USP.  Foto: Bruna Guerra

Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da USP: Tudo indica que a tendência moralizadora adotada a partir de 2005, no que se refere às emendas parlamentares, foi alterada com esse mecanismo criado ou ressurgido pelo governo atual. Por isso que várias pessoas apontam esse negócio todo como os Anões do Orçamento, porque já existia lá atrás. 

No geral, é gravíssimo, porque você retira transparência do processo, você retira legitimidade do processo e você acaba colocando o gasto público dirigido para finalidades políticas. Também se fere aqui uma lógica republicana, afinal o recurso público deve ser dirigido para quem mais precisa, e não parece ser o que está acontecendo.

‘Configura crime de responsabilidade’

Ricardo Lodi, professor de Direito Financeiro da Uerj e advogado.  Foto: André Dusek/Estadão

Ricardo Lodi, professor de Direito Financeiro da Uerj e advogado: 

O chamado orçamento secreto, com a mera efetivação de transferência voluntária para os municípios sem a prévia publicação dos critérios distributivos, conforme determinado pelo artigo 77 da LDO de 2020, configura a tipificação do crime de responsabilidade.

Comprovada esta, restará também configurado o crime de responsabilidade pela utilização dos seus recursos para influenciar decisões parlamentares, além da própria Constituição, consagradora do princípio da publicidade e do caráter equânime e objetivo da distribuição dos recursos relativos às emendas. Restaria delineado o embasamento legal para o impeachment e a rejeição das contas de 2020. 

‘Ilegais e inconstitucionais’

O economista Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas Foto: Arquivo Pessoal

Gil Castello Branco, economista, fundador da Associação Contas Abertas: 

As emendas do relator-geral, na forma como estão sendo utilizadas, são ilegais e inconstitucionais. O STF, a meu ver, se provocado, deverá suspender imediatamente a execução dos cerca de R$ 18 bilhões existentes no orçamento de 2021. 

A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 requer que as transferências voluntárias de recursos da União, cujos créditos orçamentários não identifiquem nominalmente a localidade,  estejam condicionadas à prévia  divulgação em sítio eletrônico e tenham aderência aos indicadores socioeconômicos  da população beneficiada pela política pública. 

O artigo 37 da Constituição têm como princípios legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Nenhum desses princípios está contemplado na liberação das ementas de relator, tal como ocorreu em 2020. A Portaria Interministerial 6.145, de 24 de maio, especificamente o artigo 40, tentou dar ares de legalidade ao que é flagrantemente ilegal. 

As indicações do Autor da Emenda não podem ser considerados critérios aderentes a indicadores socioeconômicos. 

‘Constituição é violada com falta de transparência’


Irapuã Santana, doutor em Direito pela UERJ.  Foto: Arcevo pessoal

Irapuã Santana, doutor em Direito pela UERJ: 

A falta de transparência no que diz respeito ao orçamento público viola frontalmente o caput do artigo 37. da Constituição Federal (que exige na administração pública a obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade). 

Em uma democracia, é necessário haver o exercício do controle social sobre os atos estatais, tendo em vista que o poder do Estado deva sempre ser limitado. Nessa perspectiva, vemos que a falta de observância desses parâmetros fundamentais fazem surgir crimes de responsabilidade, previstos na Lei 1.079, de 1950, em especial no artigo 7.º, inciso 9, no artigo 10, inciso 4, e no artigo 11, incisos 1 e 2.

‘Liberação não pode ser para aprovar projeto’

Tathiane Piscitelli, professora da FGV Direito SP.  Foto: Uniceub/Divulgação

Tathiane Piscitelli, professora da FGV Direito SP: 

O critério para a liberação da emenda ou a liberação de recursos não deve ser o desejo do governo de aprovação de alguma matéria no Congresso, mas a necessidade específica de implementação de políticas públicas. 

Não se admite, no contexto da aprovação da lei orçamentária, remessas ou destinações de receitas que não sejam transparentes. Na medida em que se prove que esse orçamento era secreto e que os critérios de distribuição de recursos não estavam públicos e são pouco republicanos, pode-se dizer que não houve observância da condição estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

‘Emendas não têm a devida transparência’

Gustavo Fossati, professor da FGV Direito Rio.  Foto: FGV/Divulgação

Gustavo Fossati, professor da FGV Direito Rio: 

Com mudanças na Constituição entre 2015 e 2019, de um lado, as emendas individuais trouxeram avanço, transparência, aspecto equitativo e imparcialidade na distribuição de recursos pelo governo.

Mas, de outro lado, apesar de todos os esforços, a Lei de Diretrizes Orçamentárias ampliou a possibilidade das emendas de relator-geral, não trazendo a transparência devida. 

É prematura, por ora, eventual pretensão de enquadramento do presidente em crime de responsabilidade fiscal, pois devemos aguardar a prestação de informações, em respeito à ampla defesa e ao contraditório. Mas eu diria que há indícios dignos de uma investigação acurada.

‘Transparência é princípio da administração’

Vital do Rêgo, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU).  Foto: Marcos Brandão/Senado Federal

Vital do Rêgo, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU): O Orçamento avançou nos últimos dez anos com a equalização das emendas impositivas, porque isso dá ao Parlamento a independência que ele tem que ter. 

Essa novidade do empoderamento extraordinário ao relator tem que ser discutida porque, se você inclui esse tipo de diferenciação, efetivamente, você desequilibra aquilo que passou tanto tempo para conquistar. 

Mas o Congresso tem que se autorregular neste momento. Pode e deve fazer uma discussão. A transparência, para mim, é princípio da administração pública, em qualquer situação. Se você não tem uma postura, um exercício de transparência, você tem que efetivamente buscá-la.

‘Orçamento é usado para a reeleição’

Élida Graziane, procuradora do MP de Contas do Estado de São Paulo.  Foto: Michael Paz/Ag}encia ALRS

Élida Graziane, procuradora do MP de Contas do Estado de São Paulo: 

Se, de fato, a liberação de recursos atendeu a ofícios de parlamentares, sem transparência e critérios técnicos, frustrou-se a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Uma erosão das regras editadas desde 2015, em retrocesso que remonta os Anões do Orçamento. 

Retomar a lógica paroquial e obscura burla as regras impessoais de emendas individuais e de bancada impositivas. Sem observância ao devido processo legislativo orçamentário e sem planejamento, prevalecem o curto prazo eleitoral dos agentes políticos e o trato patrimonialista dos recursos públicos. 

Infelizmente, o Orçamento é tratado apenas como meio de assegurar a reeleição dos que já estão no poder.

‘É inequívoca a transgressão à lei orçamentária’


Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda.  Foto: Iara Morselli/Estadão

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda: A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020 exige transparência e critérios justificadores da transferência de recursos, como as condições socioeconômicas. A transgressão a ela é inequívoca. Essas liberações foram feitas ao arrepio da lei orçamentária. No processo no TCU, pode ficar evidenciado que a distribuição e a aplicação de emendas do relator ocorreram sem a observância de princípios orçamentários sadios e previstos na Constituição e nas leis. Neste caso, pode-se arguir a transgressão de normas orçamentárias e, assim, justificar um processo de impeachment, o qual dependerá de condições políticas. Foi assim no caso de Dilma Rousseff.

‘Congresso tem de rever prática distorcida’



José Maurício Conti, professor de Direito Financeiro da USP.  Foto: Wilton Junior/Estadão

José Maurício Conti, professor de Direito Financeiro da USP: Na evolução do processo orçamentário, o artigo 77 da LDO 2020 trouxe critérios importantes para aperfeiçoar a distribuição justa dos recursos, mas há indicativos de que possa não ter sido ainda efetivamente implementado. É importante verificar se houve efetivamente falhas nesse processo, onde e quem as cometeu, para apurar as responsabilidades e melhorar o sistema. E a sistemática de distribuição dos recursos pela Comissão Mista de Orçamento por meio das emendas de relator, pelo que se divulgou, evidencia uma prática distorcida que o Congresso Nacional precisa rever, para que o processo orçamentário seja totalmente transparente.

‘Problema é mais sério e profundo’

Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente.  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente: A ideia do RP9 é um equívoco. Se o Congresso e o Executivo acham que deve haver mais espaço para emendas parlamentares, isso deveria ser feito por meio da ampliação da fatia das emendas individuais, que estão bem regulamentadas na Constituição. 

Da forma como está, o processo orçamentário distorce a lógica, a liturgia e a transparência. 

O RP9 não foi apenas para parlamentares, mas para abarcar demandas do próprio Executivo. Então, por que a PLOA de 2020 já não contemplou esse espaço? Claro, porque o teto não permitia. Estamos diante de um problema muito mais sério e profundo: a confusão do processo orçamentário e fiscal.

‘Toma lá dá cá, sem transparência e fora da lei’

Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil.  Foto: Gute Garbelotto/CMSP

Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil: 

O orçamento é secreto porque o critério é desconhecido. Parlamentares indicaram recursos, contrariando a lei, e não está na transparência ativa quais são os parlamentares que indicaram cada recurso. O debate sobre o orçamento depende da transparência. 

Eu não acho que é um problema fazer acordos políticos, desde que haja transparência e que se respeitem critérios técnicos mínimos. Para mim, de tudo o que é mais grave desse episódio é o desrespeito ao planejamento orçamentário. Porque a Lei de Diretrizes Orçamentárias é importante para esse planejamento. 

Se o governo veta um artigo da lei, que permitiria aos parlamentares escolher os beneficiários, não pode descumprir. Na minha visão, a Lei de Diretrizes Orçamentárias foi descumprida e, assim, é possível caracterizar crime de responsabilidade. Toma lá dá cá, sem transparência e fora da lei, está completamente errado.

‘É preciso apuração dos órgãos de controle’

O analista do Senado e especialista em contas públicas Leonardo Ribeiro Foto: Divulgação/Agência Senado

Leonardo Ribeiro, analista do Senado e especialista em contas públicas: 

Há indícios de ilegalidade no ‘tratoraço’ que podem ensejar crime de responsabilidade - caso fique comprovado que recursos do orçamento federal foram transferidos desrespeitando limites ou condições previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias. 

O poder executivo federal não pode direcionar verbas do orçamento para emendas parlamentares com o intuito de influenciar a tramitação de proposições legislativas no Congresso Nacional. Nesse caso, a transparência deve ser máxima, inclusive no tocante aos critérios da distribuição dos recursos. 

Portanto, é importante que os órgãos de controle apurem o que aconteceu para que a sociedade tenha clareza do como os recursos públicos estão sendo aplicados. Me parece que o Tribunal de Contas da União está se movendo nesse sentido. 

Falta de transparência nas emendas é incompatível com princípio republicano

O procurador do Estado do Espírito Santo Evandro Maciel Barbosa, doutorando em Direito Financeiro pela USP

Evandro Maciel Barbosa, procurador do Estado do Espírito Santo e doutorando em Direito Financeiro pela USP: 

A construção anual das leis orçamentárias requer ampla transparência durante seu processo de elaboração, o que inclui as emendas apresentadas ao orçamento, sendo incompatíveis com os princípios republicano e democrático qualquer ideia de sigilo ou falta de transparência na condução dos processos de emendas parlamentares. 

Um outro aspecto que chama a atenção é o fato de que a aprovação das emendas, ato de competência do Poder Legislativo, impõe que eventuais emendas ao orçamento sejam compatíveis com a Lei de Diretrizes Orçamentárias, conforme artigo 166, § 3º da Constituição. É ilógico o chefe do Executivo propor o projeto de lei de diretrizes, o Parlamento votá-lo, e posteriormente tais atores inobservem norma legal por eles mesmos estruturada, por ocasião da elaboração do orçamento. 

É preciso enfatizar que as leis orçamentárias previstas no artigo 165 da Constituição, quais sejam, o plano plurianual, a lei de diretrizes e a lei orçamentária, são normas que possuem uma relação de coordenação entre si, se integram, viabilizando a estruturação das ações governamentais de forma coesa e harmônica. 

Eventual inobservância de determinações previstas na LDO, quando da aprovação de emendas ao orçamento, fere norma constitucional expressa, viola o equilíbrio que deve sustentar o sistema de leis de caráter orçamentário brasileiro, mormente quando os processos de emenda não se revestem da transparência republicanamente exigida.

Breno Pires, O Estado de S.Paulo, em 31 de maio de 2021