segunda-feira, 31 de maio de 2021

Pazuello respondeu a inquérito por obrigar soldado negro a fazer papel de animal

‘Ele me fez puxar a carroça’, diz recruta; Força Especial, oficial se livrou da acusação de humilhar o jovem      

Eduardo Pazuello comandava havia quatro meses o quartel do Depósito Central de Munições do Exército, em Paracambi, a 70 km do Rio, quando viu dois soldados passarem em uma carroça. Julgou que estavam velozes demais, que maltratavam o equino, e quis lhes dar uma lição. Mandou parar, desatrelar o animal, e determinou que o recruta Carlos Vítor de Souza Chagas, um jovem negro e evangélico de 19 anos, substituísse o cavalo. O soldado teve de puxar a carroça com o outro soldado em cima, enquanto o quartel assistia à cena, às gargalhadas.

Depois de 16 anos, o antigo soldado ainda se lembra de tudo naquele 11 de janeiro de 2005. Chagas fora escolhido por um tenente para ajudar um colega a carregar uma banheira na carroça. “Ele não tinha como pegar sozinho.” Foi quando Pazuello apareceu. “Eu não estava pilotando o cavalo, estava na carroça. Quem estava era o outro garoto.” Mas foi ele o escolhido para o castigo pelo então tenente-coronel.

Pazuello respondeu a inquérito por obrigar soldado negro a fazer papel de animal

‘Igreja’. Eduardo Pazuello cercou-se no Ministério da Saúde de militares que eram forças especiais (FEs), como os coronéis Élcio Franco e George Divério.  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Ao ser questionado por que Pazuello tomou essa decisão, o ex-soldado disse acreditar em racismo. “Pelo meu tio eu botava para frente (na Justiça), mas eu dei mais ouvido ao meu pai, que é evangélico, por medo de represália. Isso aí agora está nas mãos de Deus, Ele é o Senhor de todas as coisas.”

A história do dia em que Pazuello mandou um jovem puxar carroça no quartel faz parte da carreira militar do homem que está no centro de uma das tantas crises do governo de Jair Bolsonaro: a presença do general de divisão da ativa no palanque montado pelo presidente na República para um ato no domingo, dia 23, no Aterro do Flamengo, no Rio, em apoio ao homem que busca a reeleição em 2022.

Filho de um comerciante de família sefardita estabelecida na Amazônia com uma gaúcha da fronteira, Pazuello considera ter entrado para a vida militar quando tinha 10 anos. Foi quando seu pai o matriculou no Colégio Militar de Manaus.

'FE'

A empresa de navegação da família foi a inspiração para que o cadete da Academia Militar da Agulhas Negras escolhesse o Serviço de Intendência do Exército para seguir a carreira. O futuro ministro se formaria na turma de 1984 e logo pegou um atalho, que teria um grande impacto em sua carreira: o jovem oficial decidiu parar na Brigada Paraquedista e fez o curso de operações especiais, tornando-se ele mesmo um Força Especial (FE), o que garantiu um lugar em uma das mais exclusivas igrejas do Exército.

Foi entre os FEs, a turma da “faca na caveira”, que Pazuello encontraria companheiros que o seguiram até o Ministério da Saúde. São homens como os coronéis Élcio Franco, que se tornaria o secretário executivo da pasta e carregava o broche de FE no terno, e George Divério, o superintendente da Saúde no Rio nomeado por Pazuello e defenestrado após tentar contratar sem licitação empresas para reformar prédios. Foi ainda na Brigada e entre os FEs que Pazuello conheceu o atual ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, outro Força Especial.

Na Brigada, o general conheceu ainda o futuro presidente da República, o capitão Jair Bolsonaro, o homem que 35 anos depois fez dele ministro na maior crise sanitária do século e o demitiu quando o número de mortos atingiu 279 mil, para depois chamá-lo de “nosso gordinho” no palanque no Rio. Ganhou fama de duro entre os subordinados quando estava na 1.ª Região Militar. E, no Depósito de Munições, se viu às voltas com uma investigação sobre o desvio de munição excedente do local para ser vendida como sucata. Foi na mesma época em que o futuro ministro conheceu o recruta Chagas.

Na época, a 1.ª Região Militar resolveu pela abertura do Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar a conduta do oficial. O Estadão encontrou o recruta ainda com medo. Não queria falar por telefone, mas tinha consciência de que a situação que colocava Pazuello em evidência também o levaria a ser procurado por jornalistas. “É sobre o general Pazuello?”, questionou Chagas ao atender ao telefonema. Ele tinha receio de contar pelo telefone o que lhe acontecera no quartel há tanto tempo.

Naquele dia, ele estava na carroça com o também soldado Celso Tiago da Silva Gonçalves. No Inquérito Policial Militar do caso, o soldado disse que estava com o ombro machucado e por isso “não poderia cumprir a ordem de puxar a carroça”. “Foi prontamente atendido pelo tenente-coronel”, conforme registrou a procuradora-geral militar Maria Ester Henrique Tavares, que decidiu arquivar o caso.

O episódio seria um ponto fora da curva na carreira do oficial? O Estadão procurou sua defesa e antigos colegas. Poucos se dispuseram a falar – seu advogado, Zoser Hardman, não respondeu à reportagem. Dois oficiais – um colega de turma e outro que foi seu colega na Brigada – demonstraram restrições à narrativa do “especialista em logística” que levou o oficial à Saúde. Disseram que ele tinha uma fama imerecida, que, se não fosse a “Igreja FE”, não teria recebido o comando da 12.ª Região Militar (Manaus), cargo normalmente reservado aos integrantes das Armas, como infantes e artilheiros, e não a intendentes, como Pazuello.

Candidato

As alegadas humilhações ao soldado não impediram Pazuello de seguir sua carreira. Após o depósito, ele comandou o 20.º Batalhão Logístico da Brigada Paraquedista. E seria mandado à Amazônia para coordenar a Operação Acolhida dos imigrantes venezuelanos. No governo de Jair Bolsonaro viraria ministro da Saúde. A exposição pública poderia lhe garantir a candidatura a um governo estadual ou ao Senado.

É que ninguém mais se lembrava do argumento usado pelo tenente-coronel para se livrar do IPM da carroça. Além de dizer que ele tratava os subordinados com “seriedade e dignidade”, a defesa usou depoimentos de outros militares para atestar que Pazuello não quisera impor maus-tratos ao recruta. “Há aspectos pessoais da vida de Pazuello que demonstram sua familiaridade e, sobretudo, amor aos equinos.”

Tudo se resolveu assim. Pazuello não quis humilhar o soldado; só orientá-lo “para a preservação da boa saúde dos cavalos de tração utilizados na OM (organização militar)”. Quinze anos depois, promovido a general de divisão, Pazuello se viu de novo diante dos limites da disciplina. O afeto e a obediência a Bolsonaro – “É simples assim: um manda e o outro obedece, mas a gente tem um carinho” – o transformaram em alvo da CPI da Covid.

Um mês antes, Pazuello esteve em evento político

Um mês antes de comparecer ao comício de Jair Bolsonaro no Aterro do Flamengo, no Rio, o general de divisão Eduardo Pazuello participou de evento político do governo, em Manaus, que foi encerrado pelo presidente com seu slogan da campanha eleitoral de 2018: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Tratava-se da inauguração do Centro de Convenções do Amazonas, que se transformou em ato de desagravo a Pazuello e à política do governo na pandemia nas vésperas da abertura da CPI da Covid, no Senado. O ministro do Turismo, Gilson Machado, abriu a cerimônia. Saudou os colegas ministros presentes, como general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), deputados federais e os comandantes militares. Em seguida, disse: “Eu quero fazer uma saudação especial. Cadê o general Pazuello? Cadê ele? Venha cá”. A claque bolsonarista interrompeu Machado aos gritos: “Pazuello! Pazuello!”

O ex-ministro da Saúde havia voltado ao Exército e estava à disposição do Comando Militar da Amazônia – naquele dia seria transferido para a Diretoria-Geral de Pessoal, em Brasília. Já havia, portanto, sido revertido à ativa e, como militar da ativa, não poderia participar de atos político-partidários. Trajando roupas civis, Pazuello foi abraçado por Bolsonaro, que acenava ao público como uma celebridade.

Machado continuou: “Fui testemunha da luta desse homem pela erradicação da doença em nosso país”. Pazuello agradeceu. “Obrigado.” E voltou para seu lugar no palanque. Machado prosseguiu com a defesa da ação do governo na pandemia. Depois, Bolsonaro agradeceu o trabalho de Pazuello no ministério. O evento durou pouco mais de 50 minutos e foi encerrado por Bolsonaro com o slogan da campanha de 2018.

Para o ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, a presença de Pazuello no Aterro do Flamengo não foi a única vez que o militar comparecera a evento político. “Essa não foi a primeira vez.”

O caso está nas mãos do Comando de Exército, que decidirá se pune o general por infringir o Regulamento Disciplinar do Exército. O comportamento de Pazuello, como sua presença no evento em Manaus, será levado em consideração.

Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo, em 30 de maio de 2021. 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Disciplina militar em xeque

A punição ao general intendente Eduardo Pazuello é essencial para mostrar que há uma linha que não pode ser cruzada

O tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), considerou “vergonhoso” o episódio da participação do general intendente Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, em comício do presidente Jair Bolsonaro.

Em entrevista ao Estado, o tenente-brigadeiro Ferolla foi duro em sua avaliação. “Caxias está de luto”, disse, referindo-se ao Duque de Caxias, patrono do Exército brasileiro, também conhecido como “O Pacificador”. “A organização militar pura não aceita o que estão fazendo. Militar não deve entrar na política, e a política não pode entrar no quartel, senão vira bando, acabam a hierarquia e a disciplina”, declarou.

Advertência semelhante foi feita pela ministra do STM Maria Elizabeth Rocha, que faz parte do colegiado em uma das vagas reservadas à advocacia. A atitude do intendente Pazuello, “sem dúvida alguma, coloca em xeque a disciplina do Exército”, disse a magistrada em entrevista à BBC Brasil. E acrescentou: “Não é possível que discursos político-partidários adentrem os quartéis, porque isso pode comprometer toda a cadeia de comando”.

Diante dessas manifestações, embasadas no profundo conhecimento das normas militares, como se exige de quem integra a Justiça Militar, fica claro o tamanho da irresponsabilidade protagonizada pelo intendente Pazuello e pelo presidente Bolsonaro no domingo passado.

A gravidade está não somente no ato em si, mas em suas nefastas consequências. O intendente Pazuello sabia muito bem o que estava fazendo ao afrontar a norma das Forças Armadas que proíbe terminantemente qualquer manifestação de caráter político por parte de militares. Um general não pode alegar desconhecimento desse regulamento; logo, Pazuello o fez de caso pensado. Foi convidado a ir a um ato político do presidente e, estimulado a participar ativamente da manifestação, não hesitou em fazê-lo, sorridente e falante, em cima de um carro de som.

O resultado disso é óbvio: se um general participa de ato político, como fez Pazuello, e não é punido pelo Alto Comando, “acabou a disciplina nas Forças Armadas, porque o tenente, o sargento e o cabo têm sido punidos dentro da lei” e “não pode ser diferente com general”, como explicou o tenente-brigadeiro Ferolla. Quanto mais alta a patente, como é o caso de Pazuello, “mais grave é a indisciplina”, disse Ferolla, porque obviamente é ele quem tem de dar o exemplo para seus subordinados. “Queira ou não queira, isso reflete na organização militar. Se (Pazuello) não for punido, como você vai punir um sargento depois?”, questionou o tenente-brigadeiro.

O afastamento dos militares da política é um imperativo constitucional. Forças Armadas são uma instituição de Estado por definição, razão pela qual não podem tomar partido do governante de turno em suas eventuais disputas políticas. O problema é que, na Presidência de Jair Bolsonaro, é cada vez mais tênue a separação entre as Forças Armadas e o governo.

Até aqui, esse envolvimento se deu pela presença de muitos militares, da ativa e da reserva, em Ministérios e outros órgãos da administração, além de estatais. Ao colocar o intendente Pazuello em seu palanque, no entanto, o presidente Bolsonaro foi muito além disso: tentou mostrar que os militares estão alinhados a ele, e não é à toa que frequentemente chama as Forças Armadas de “meu Exército”.

Mesmo diante da escalada da crise, estimulada por Bolsonaro com objetivos golpistas, as Forças Armadas vêm se mantendo estritamente dentro dos limites constitucionais, e não há razão para crer que não continuarão assim. Isso não significa, contudo, que Bolsonaro, cuja medíocre carreira militar foi marcada pela indisciplina, sossegará; ao contrário, é provável que ele siga tentando arrastar as Forças Armadas para as turbulências que trabalha dia e noite para produzir, na expectativa de submetê-las a seu projeto autoritário de poder.

A punição ao general intendente Pazuello é, por isso, essencial para mostrar que há uma linha que não pode ser cruzada, seja pelo praça, seja pelo comandante supremo das Forças Armadas.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 28 de maio de 2021 | 03h00

Covid: por que o Brasil se tornou 'caldeirão de variantes' do coronavírus e qual o perigo disso

A livre circulação do coronavírus no Brasil, um dos países mais afetados do mundo pela covid-19 e um dos poucos a nunca decretar um lockdown nacional, criou as condições ideais para o surgimento de uma "fábrica" de variantes do vírus, o que dificulta e pode prolongar o controle da doença.


Brasil detectou primeiros casos de variante da Índia (Getty Images)

A mais recente é a P.4, descoberta no interior de São Paulo. Ainda não é possível saber se ela é mais contagiosa ou perigosa do que o vírus 'comum'. Some-se a ela dezenas de outras, entre as quais a P.1, identificada em Manaus, a do Reino Unido (B.1.1.7), a da África do Sul (B.1.351) e a da Índia (B.1.617).

Essas quatro últimas são classificadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como "variantes de preocupação" (Variant of Concern ou VOC, na sigla em inglês), uma vez que pesquisas indicam que elas são altamente transmissíveis e capazes de deflagrar casos mais graves da covid. As demais são consideradas "variantes de interesse" (Variant of Interest ou VOI) ou "variantes sob monitoramento" (Variant under monitoring).

Crianças deveriam ou não ser vacinadas contra covid?

5 perguntas-chave sobre a mucormicose, infecção rara que mutila e mata pacientes de covid na Índia
Mais de mil variantes já foram detectadas no mundo - das quais quase 100 circulam no Brasil, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Esse 'caldeirão' de variantes — mutações da cepa original surgidas no país ou importadas — circulando sem medidas restritivas acaba, portanto, por aumentar o número de doentes e lotar os hospitais, levando à saturação do sistema de saúde e a mais mortes.


Nas últimas semanas, saíram as primeiras evidências de que a linhagem P.1 seria mais mortal em jovens. Mas diversos fatores confundem e jogam incertezas sobre essas observações. (Getty Images)

O principal problema disso, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é que, ao deixar o coronavírus circular livremente, o Brasil está jogando uma "roleta russa" epidemiológica, ao gerar circunstâncias propícias para que uma nova variante surja e seja resistente às vacinas atualmente disponíveis — o que, por enquanto, ainda não aconteceu, ressalvam.

"Mas pode acontecer. O Brasil vive uma pandemia descontrolada. Nunca ouvimos falar da variante da Nova Zelândia, da variante da Austrália, da variante do Vietnã. Por quê? Porque o pré-requisito para que essas variantes surjam é a livre circulação do vírus. Como no Brasil a pandemia está sempre descontrolada, porque o país não toma as medidas recomendadas pela ciência, é natural que apareçam uma série de variantes", diz à BBC News Brasil Pedro Hallal, epidemiologista e ex-reitor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas).

"Por isso, usamos o termo 'fábrica de variantes'. Porque a variante surge em locais onde o vírus está circulando de forma mais descontrolada."


Surgimento de novas variantes do coronavírus ajuda a explicar colapso do sistema saúde, mas culpa recai sobre ausência de medidas restritivas rígidas, como lockdown

Mas qual é o perigo disso?

Algumas dessas variantes, como a P.1 ou da África do Sul, são mais contagiosas, com transmissão de 60% a 70% superior ao Sars-CoV-2 original, o vírus que causa a covid, observa Hallal.

"Isso faz com que a epidemia se acelere. É quase como se fosse um turbo de um carro da Fórmula 1", diz.

"O outro perigo é que as vacinas existentes não deem conta de alguma variante. Até agora, todos os estudos que têm sido feitos mostraram resultados positivos."

"A melhor forma de não surgirem novas variantes é controlar a disseminação do vírus e, para isso, precisamos implementar medidas, como lockdown, e acelerar o programa de vacinação", acrescenta.

Hallal destaca que o Brasil nunca fez lockdown.

"Provavelmente, o mundo não sabe, mas o Brasil nunca fez lockdown. O que o Brasil fez foram medidas restritivas 'meia-boca' de longuíssima duração, que estão destruindo nossa saúde pública e nossa economia", diz.

Denise Garrett, infectologista e vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, em Washington (EUA), concorda. Ela trabalhou durante mais de 20 anos no Centro de Controle de Doenças (CDC), órgão ligado ao Departamento de Saúde dos EUA (equivalente ao Ministério da Saúde no Brasil)


Denise Garrett trabalhou mais de 20 anos no Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA (Arquivo pessoal)

"A alta transmissão no país, o que implica em altas taxas de replicação do vírus, é um terreno fértil e muito propício para o vírus sofrer mutações", diz ela à BBC News Brasil.

Por trás disso, há uma explicação biológica. Garrett lembra que as mutações "favorecem o vírus, não a nós".

"E as que o favorecerem mais, vão predominar. Por exemplo, uma que transmite mais rápido, ou que escala imunidade natural e, eventualmente, uma que escape a imunidade vacinal", explica.

"Geralmente, as mutações que tornam a doença mais severa não são muito favoráveis ao vírus, porque 'matam o hospedeiro'", acrescenta.

Em entrevista à BBC News Brasil em dezembro do ano passado, Tulio de Oliveira, o cientista brasileiro responsável por descobrir a variante sul-africana, compartilhou da mesma preocupação sobre o descontrole da pandemia no Brasil. Ele é diretor do laboratório Krisp, na escola de Medicina Nelson Mandela, na Universidade KwaZulu-Natal, em Durban, na África do Sul, onde vive desde 1997.

"A principal mensagem é que, se deixarmos esse vírus circulando em nível médio ou alto, damos muita chance para o vírus se adaptar melhor à transmissão nos humanos", afirmou na ocasião.


Tulio de Oliveira descobriu variante sul-africana do coronavírus

Vacinação sem lockdown

Além disso, há outro perigo: a vacinação sem confinamento rígido, como feito por outros países, como Israel e o Reino Unido, pode acabar criando variantes superpotentes, na opinião de cientistas britânicos.

Segundo pesquisadores da universidade Imperial College London e da Universidade de Leicester, lockdowns e outras medidas de contenção são particularmente necessários durante a vacinação de uma população.

Eles explicam que é justamente o contato entre vacinados e variantes que propicia o aparecimento de mutações "superpotentes", capazes de driblar totalmente a ação do imunizante.

Isso porque, ao entrar na célula humana e se deparar com uma quantidade ainda pequena de anticorpos da vacina, a variante, ao se replicar, pode promover mutações mas resistentes a esses anticorpos.

E, no Brasil, há uma combinação explosiva para esse cenário: vacinação ainda em ritmo lento, variante com a mutação E484k e altas taxas de infecção.

Estudos recentes mostraram que essa mutação, presente na variante de Manaus, dribla os chamados "anticorpos neutralizantes". Isso abre a possibilidade de que pessoas que tiveram doença sejam infectadas novamente se expostas ao SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19.

A vacinação no Brasil segue em ritmo lento. Apenas 20% da população recebeu pelo menos uma dose da vacina.

Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, em São Paulo, que produz e distribui a Coronavac, vacina mais prevalente no país, disse em entrevista recente à BBC News Brasil que "infelizmente, até setembro manteremos um ritmo lento de vacinação".

Luis Barrucho - @luisbarruch, de Londres para a  BBC News Brasil . 

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Fome vai decidir a eleição de 2022

 A eleição de 2018 se resolveu com o fígado. A de 2022, ao que tudo indica, será decidida pelo estômago. 

A realidade da fome ou da insegurança alimentar de milhões de brasileiros está posta à mesa do debate político. 

Isso explica mais que tudo a dianteira alcançada por Lula nas intenções de votos. E pode determinar o rumo do desgoverno de Jair Bolsonaro daqui por diante.

Por Vera Magalhães

Paulo Guedes continua encenando o papel de um ministro liberal num governo que já não faz questão de disfarçar seu verdadeiro caráter: negacionista na gestão da pandemia, reacionário nos costumes, autoritário na política, populista e fisiológico no trato da coisa pública e alheio a pautas que dizem respeito à inserção do país na agenda econômica e geopolítica do século 21.

O ministro já entendeu que é a eleição a única coisa que interessa a Bolsonaro, e que terá de fazer o jogo se quiser continuar onde está. Diante da cada vez mais delicada situação eleitoral do chefe e da inflação galopante de alimentos, que só faz com que essa situação se deteriore mais, Guedes terá de se dedicar única e exclusivamente a entregar uma versão turbinada e de grande potencial de votos do Bolsa Família lulista.

A volta do auxílio emergencial não resolveu em nada a emergência social do país e ainda teve um efeito contrário do ponto de vista político. “Quem recebia R$ 600 no ano passado e agora recebe R$ 150 ou R$ 250 está com ódio de Bolsonaro”, me disse um político do Centrão.

Não só o valor é nominalmente uma fração do anterior, como tudo aumentou. A inflação do dia a dia do eleitor é muito maior que a medida pelos indicadores oficiais, sobretudo a do prato de comida. É isso, combinado à falta de vacinas (que se traduz também em falta de emprego e de perspectiva de luz no fim do túnel), que explica a draga na popularidade de Bolsonaro.

“Quem comeu lembra o que comeu.” Essa frase me foi dita não por nenhum marqueteiro ou político, mas por um parente próximo, que vive na pele os efeitos do desemprego e da carestia. É essa lembrança de um passado não distante, em que havia proteína animal no carrinho de compras, os filhos tinham acesso a crédito estudantil e existia a perspectiva de ascensão social, que explica por que Lula está sendo perdoado pelo eleitor, ainda que não esteja absolvido pela Justiça, como prega a narrativa petista.

Dirigentes do DEM receberam nesta semana o resultado de uma ampla pesquisa qualitativa que analisa o cenário de 2022 para Bolsonaro, Lula e eventuais candidatos alternativos.

Chamou a atenção quanto a decisão de não votar de jeito nenhum em Bolsonaro está consolidada: 49% a manifestam. A rejeição a Lula também é alta, na casa de 35%.

Quando a pesquisa começa a investigar as preocupações do eleitor, um fator emerge sobre todos os demais: inflação, inflação, inflação. E a força de Lula é associada diretamente ao período em que ela estava controlada. “Os políticos todos roubam, mas pelo menos no tempo do Lula…” é a frase que mais foi colhida, com suas variações.

“A inflação do estômago é o grande cabo eleitoral do Lula”, me disse uma pessoa que analisou a pesquisa. Qualquer marqueteiro consegue trabalhar isso de forma clara, basta lembrar os filmes com a comida sumindo do prato que João Santana fez em 2014 na campanha de Dilma Rousseff, que serviram para fustigar Marina Silva.

Bolsonaro é tudo de ruim, mas não é bobo e não queima cédula de papel. Vem aí a pressão máxima do presidente sobre o Posto Ipiranga para roubar do principal rival esse atributo, nem que seja preciso arrombar o que resta do cofre e implodir qualquer miragem de equilíbrio fiscal. Só por isso, aliás, o Centrão ainda está fazendo hora extra em seu barco prestes a adernar.

Vera Magalhães é jornalista especializada na cobertura de poder desde 1993, com passagens por veículos como "Folha de S.Paulo", "Veja" e "O Estado de S.Paulo". Além de colunista do GLOBO, é âncora do "Roda Viva", na TV Cultura, e comentarista na CBN. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 27.05.2021.

Presidencialismo de submissão

O presidente Bolsonaro abriu mão de vez de qualquer papel na administração

O Ministério da Economia editou uma portaria para dar ares de legalidade às manobras destinadas a permitir que congressistas aliados do governo de Jair Bolsonaro possam determinar o destino de vultosos recursos orçamentários, definição que caberia ao Executivo.

Como o Estado revelou, o governo permitiu que, no Orçamento do ano passado, parlamentares de sua base interferissem diretamente na gestão de R$ 3 bilhões, alocados ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Esse dinheiro se origina das chamadas emendas do relator-geral do Orçamento, conhecidas pela sigla RP9.

Por lei, a RP9 se presta somente a remanejar recursos no Orçamento, com o objetivo de fazer correções na elaboração final, em geral para reparar algum erro técnico. Em nenhum momento essa emenda especifica em quais projetos o dinheiro deve ser empenhado, pois se trata de atribuição do Ministério para o qual a verba foi distribuída.

O Congresso tentou impor a destinação das emendas de relator, mas o presidente Bolsonaro vetou o dispositivo, alegando, com razão, que o texto “investe contra o princípio da impessoalidade que orienta a administração pública ao fomentar cunho personalístico nas indicações e priorizações das programações decorrentes de emendas, ampliando as dificuldades operacionais para a garantia da execução da despesa pública”. Obviamente, não foi Bolsonaro quem escreveu essa justificativa, e sim algum funcionário com noção mínima do manejo da coisa pública, que o presidente nunca teve.

O veto continua em vigor, mas a natureza bolsonarista também: para driblar sua própria determinação e assim agraciar aliados no Congresso com verbas, o presidente permitiu que se elaborasse um mecanismo pelo qual os governistas pudessem direcionar o dinheiro da RP9 para obras eleitoreiras.

Depois que o esquema veio à luz, gerando justificada e geral estupefação, o governo tentou desmentir o que os documentos atestavam. Sem sucesso, agora baixa uma portaria para regularizar a prática – ou para “legalizar a bandalha”, como bem qualificou o economista Gil Castelo Branco, da Associação Contas Abertas.

O malabarismo normativo do governo não anula a essência do escândalo: o governo entregou dedos e anéis ao Congresso, em particular ao Centrão, hoje senhor do destino de Bolsonaro.

O presidente abriu mão de vez de qualquer papel na administração, assumindo tão somente a função de animador de reacionários e vivandeiras. Como disse o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello na CPI da Pandemia, o que Bolsonaro vocifera é apenas “coisa de internet”, que não se traduz em ordens ou diretrizes dentro do governo. Quem manda é o Centrão.

Isso ficou claro também no modo como o governo foi apenas coadjuvante, sentado no fundo da sala, nos debates que resultaram no projeto de privatização do sistema Eletrobrás. Permitiu que os parlamentares contrabandeassem “jabutis” que, na prática, determinam como o governo deve gastar parte dos recursos oriundos do negócio. E não é por acaso que uma gorda fatia desse dinheiro ficará sob administração da Codevasf – a estatal do São Francisco que, sob administração do Centrão e com as bênçãos de Bolsonaro, incluiu cidades a centenas de quilômetros do rio e recebeu também boa parte do dinheiro das manobras orçamentárias.

Caracteriza-se assim uma nova etapa na degradação do chamado presidencialismo de coalizão, que marca a política brasileira desde a redemocratização. Depois de ter sido rebaixado a presidencialismo de cooptação com o lulopetismo, agora se transformou em presidencialismo de submissão – em que o presidente se torna vassalo do Congresso.

O modelo bolsonarista nada tem a ver, por exemplo, com a Presidência de Michel Temer, que trabalhou com o Congresso para, de fato, promover reformas requeridas pela nação. Então, a relação era de compartilhamento de poder, reduzindo muito o custo da governabilidade.

Já no caso de Bolsonaro, o presidente decidiu ser mero despachante do Centrão, na expectativa de que o Congresso não o amole enquanto ele brinca de mandão.

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Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 27 de maio de 2021 | 03h00

Pregação de Bolsonaro contra urna eletrônica repete Trump e arrisca judicializar eleição de 2022

Presidente volta a semear a suspeita sobre as garantias do voto eletrônico. Comissão na Câmara debate proposta de alteração no sistema.

Funcionários do Tribunal Regional Eleitoral trabalham no processo para lacrar as urnas de votação eletrônica, em 23 de outubro de 2018. (ERALDO PERES / AP)

Os bolsonaristas que se manifestam de tempos em tempos com a camisa da seleção costumam levar às ruas do Brasil reivindicações variadas: o aval para impor medidas autoritárias camuflado sob o lema “Presidente, eu autorizo” se mistura com críticas ao confinamento, ao Supremo Tribunal Federal e ao que é um orgulho nacional, a urna eletrônica. Há 25 anos os brasileiros deixaram as cédulas para trás. Mas os cartazes que pedem “voto impresso e auditável já” se transformaram em uma constante nas manifestações em apoio ao presidente Jair Bolsonaro empenhado em semear dúvidas sobre o sistema de votação vigente e agitar as suspeitas de fraude. Faltam 16 meses para as eleições presidenciais.

O sistema de voto eletrônico —e suas garantias— se perfila como um dos terrenos de batalha em uma campanha eleitoral cujo cenário mais provável agora é a busca da reeleição contra seu principal opositor, o ex-presidente Lula. As críticas de Bolsonaro à urna eletrônica não são novas. Na última campanha, o militar reformado já alertou que só aceitaria o resultado se ele ganhasse. Venceu. Sua tese, muito divulgada nas redes sociais e negada pelas autoridades eleitorais, é que o voto eletrônico não é auditável.

O desenlace das últimas eleições dos Estados Unidos deu nova munição a Bolsonaro. A negativa de Donald Trump a aceitar sua derrota e a guerra aberta que empreendeu para tentar demonstrar uma fraude nas urnas da qual as instituições não encontraram indício deram asas a Bolsonaro para emulá-lo. Foi um dos últimos mandatários a parabenizar o hoje presidente Joe Biden e intensificou o discurso de fraude. “Se não tivermos voto impresso em 2022, alguma maneira de auditar o voto, teremos problemas piores dos que nos EUA”, proclamou o ultradireitista em janeiro.

Em suas falas dos últimos meses ganham protagonismo teorias conspiratórias que impediriam sua reeleição. A ideia defendida por Bolsonaro não é voltar ao voto com cédula, e sim manter a urna eletrônica com a novidade de que o eleitor receberá um comprovante impresso de seu voto.

É uma causa que serve como uma luva na estratégia de Bolsonaro, como diz a cientista política Daniela Campello, da Fundação Getulio Vargas: “Este Governo tem grandes dificuldades para construir projetos, alianças. É um Governo que destrói as coisas, destrói a política ambiental, a política externa... Esta é mais uma oportunidade de gerar o caos que ele aproveitará”.

O discurso bolsonarista teve força suficiente para que a Câmara dos Deputados criasse dias atrás uma comissão para debater uma proposta de emenda constitucional que implantaria esse comprovante impresso do voto. Já foi tentada antes, sempre foi recusada.

Mas o ambiente está tão contaminado que o ministro Luís Roberto Barroso, que preside o Tribunal Superior Eleitoral, lidera uma campanha institucional em defesa do sistema vigente. “Jamais aconteceu nenhum caso comprovado de fraude. Pelo contrário, eliminamos os casos de fraude que eram comuns”, afirma categórico Barroso no vídeo em que detalha em tom didático os segredos da urna. Entre outras vantagens que cita, a rapidez da apuração. Em um país de tamanho continental com 150 milhões de eleitores, o resultado é divulgado na mesma noite.

A Força Aérea Brasileira transporta urnas eletrônicas e equipamentos de votação durante as eleições de 2018. (SARGENTO BATISTA / FUERZA AÉREA BRASILEÑA)

Os brasileiros adoram as novidades tecnológicas. Caem rápido no gosto. Quando a pandemia começou, comércios e empresas se mudaram em um abrir e fechar de olhos ao WhatsApp. O voto eletrônico estreou em 57 cidades nas eleições de 1996, quando somente poucas pessoas navegavam pela internet e os celulares eram novidade.

Os pais da urna foram cinco homens funcionários de institutos públicos de pesquisa e do tribunal eleitoral. Foram apelidados de Os Ninjas porque o projeto era supersecreto e três deles descendiam de imigrantes japoneses.

A cientista política Campello também coloca a estratégia de Bolsonaro em sua imitação constante de Trump, mas afirma que o mandatário está cada vez mais frágil e sustenta que essa tendência aumentará nos próximos meses: “Mesmo sabendo que as instituições norte-americanas tiveram capacidade muito maior de responder a Trump do que as brasileiras têm para responder a Bolsonaro, duvido que um presidente que chega muito enfraquecido à eleição tenha a capacidade de mobilizar pessoas suficientes para criar esse caos”.

Durante 25 anos o Brasil realizou eleições sem grandes sobressaltos. O problema mais recente foi um atraso nas municipais do ano passado atribuído a um ataque digital. De qualquer maneira, o resultado não foi divulgado na hora do jantar, mas veio antes da meia-noite.

Com o passar dos anos a urna foi perdendo peso até chegar aos nove quilos que pesa cada uma das 500.000 distribuídas da última vez. São aparelhos fáceis de usar e resistentes o suficiente para aguentar o calor tropical, travessias amazônicas e baterias para 12 horas se a luz acaba. Em cada eleição a imprensa informa as façanhas dos funcionários eleitorais e dos militares para garantir as votações no Brasil mais remoto. Os resultados são enviados por satélite.

A grande vantagem da urna eletrônica, dizem seus defensores, é que não está conectada à internet, o que a princípio a blindaria de ataques. O aparelho, entretanto, é submetido a outros testes incluindo um aberto ao público. Durante uma semana, técnicos em computação, hackers, policiais e partidos são convidados a atacar o sistema para detectar possíveis vulnerabilidades.

A adoção do voto eletrônico também contribuiu para “dificultar a judicialização da política, possibilidade em que Bolsonaro obviamente está apostando”, frisa a cientista política. O juiz Barroso alertou na sexta-feira que, com o voto impresso, “o resultado eleitoral acabará sendo judicializado”. E afirmou que as mudanças significarão mais gastos, maior risco de quebra do segredo do voto. Em sua opinião, será um retrocesso: “Como precisar ir ao banco para fazer uma transferência e usar fichas nos orelhões”.

NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR, de São Paulo para o EL PAÍS, em  26 MAI 2021 - 10:51 BRT

Dimas Covas detalhará na CPI documento do Butantan que expõe a demora de Bolsonaro em comprar vacina Coronavac

Planalto demorou ao menos três meses para dar sinal verde ao principal imunizante usado atualmente no país. Oposição quer demonstrar que presidente insiste em tese de imunidade de rebanho, enquanto que governistas tentarão apresentar interesse político de um subordinado de João Doria

O médico Dimas Covas, em julho de 2020. (AMANDA PEROBELLI / REUTERS)

O presidente do Instituto Butantan, o médico Dimas Covas, deverá expor na CPI da Pandemia no Senado, nesta quinta-feira, que o Governo Jair Bolsonaro demorou o quanto pôde para adquirir as vacinas Coronavac, fabricadas pelo órgão público de São Paulo em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. O teor de seu depoimento está delineado em um documento já em posse da CPI em que Covas explica o vaivém de Bolsonaro para a compra do imunizante contra o coronavírus. Entre o primeiro anúncio de venda, vetado pelo presidente, e a assinatura efetiva do contrato passaram-se quase três meses.

“Em relação às 46 milhões de doses oferecidas ao Ministério da Saúde, após diversas reuniões e discussões, o então senhor ministro [Eduardo Pazuello] anunciou a aquisição do mencionado volume de vacinas do Butantan em outubro do ano de 2020. No dia seguinte ao anúncio, conforme manifestado por vossa excelência em seu prezado ofício, o senhor presidente da República foi a público negar que tal aquisição seria feita. Isso tudo em outubro de 2020”, disse Covas em resposta a um requerimento do senador Ângelo Coronel (PSD-BA).

A cronologia do caso é a seguinte: em 20 de outubro do ano passado, o então ministro Pazuello anunciou em reunião com governadores que havia autorização para o ministério comprar a Coronavac. No dia 21, após ver reações negativas de seus militantes nas redes sociais, Bolsonaro rejeitou o acordo. “Não compraremos a vacina da China”, escreveu o mandatário no Facebook. No mesmo dia, em um evento público em Iperó (SP), ele reafirmou: “O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”. No dia 22, Bolsonaro fez uma transmissão ao vivo na internet com Pazuello, quando ele o visitou no hotel de Trânsito do Exército, onde se recuperava de covid-19 e ouviu seu ministro dizer que o presidente estava dando uma ordem, que seria cumprida. “É simples assim: um manda e o outro obedece”, afirmou Pazuello. Enfim, este episódio reforçou a interferência negativa de Bolsonaro na gestão da crise do coronavírus.

No documento entregue à CPI, o representante do Butantan reforçou a demora para a assinatura do acordo. “Após diversas gestões, somente no dia 7 de janeiro de 2021 é que o contrato das 46 milhões de doses foi firmado entre o Ministério da Saúde e o Butantan.” No documento enviado à comissão, no dia 13 de maio, o médico ainda reforçou que desde junho de 2020 o Instituto Butantan negociava a venda dos imunizantes ao Governo Federal.

Nesta quarta-feira, a CPI aprovou que o Butantan terá de fornecer “todos os protocolos de intenção de aquisição da vacina Coronavac pelo Ministério da Saúde e todos os contratos, especificando datas em que foram realizadas as reuniões/tratativas/contatos”. Ou seja, o objetivo, mais uma vez, é expor a demora do Governo Bolsonaro em adquirir vacinas e qual foi o impacto dessa inércia na tentativa de se obter a imunidade de rebanho por meio do contágio massivo da população brasileira.

Por outro lado, os governistas tentarão colar nele a imagem de que teria interesse político em desgastar a imagem do presidente. A razão é que o instituto que Covas dirige é vinculado ao Governo de São Paulo, sob gestão do ex-bolsonarista e pré-candidato à Presidência da República, João Doria (PSDB).

Até o momento, 52% das 90,7 milhões de doses distribuídas pelo país são da Coronavac. O restante se divide entre a Oxford/AstraZeneca (45,4%) e Pfizer (2,5). Os dados são do Ministério da Saúde. Ao todo, o Butantan tem dois contratos assinados com a União, que resultaram na venda de 100 milhões de doses da Coronavac. O instituto ainda está em fase de testes de sua vacina própria, a Butanvac, e de um soro para combater a covid-19.

Dimas Covas será o segundo representante de produtores de vacinas a ser ouvido na CPI. Antes dele, foi o presidente da Pfizer para América Latina, Carlos Murillo, foi interrogado pelos senadores. Na ocasião, ele ressaltou que o Governo ficou mais de dois meses sem responder às ofertas feitas pela farmacêutica e que o próprio Bolsonaro havia sido alertado sobre a demora. Em duas das propostas, havia a possibilidade de entregar ao menos 500.000 vacinas ao Brasil ainda em dezembro de 2020.

Depois de tanta demora, o Brasil assinou dois contratos com a Pfizer. Um em março de 2021 ―ou seja, 234 dias após a primeira oferta da farmacêutica, e outro em maio. Ao total, a Pfizer entregará 200 milhões de doses de seu imunizante ao longo de 2021. Se os primeiros contratos fossem assinados em agosto passado, quando ocorreram as primeiras propostas, o país receberia 18,5 milhões de doses até junho deste ano. O atual acordo prevê a entrega de 13,5 milhões de imunizantes no primeiro semestre. O depoimento de Dimas Covas está previsto para começar às 9h desta quinta-feira.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em  26 MAI 2021 - 17:03 BRT

Em alta tensão, CPI desenha estratégia do Governo Bolsonaro que banalizou a morte na pandemia

Depoimentos até agora corroboram para a aposta da imunidade de rebanho sem vacinas, mesmo sob o alto custo de vidas perdidas. Governistas tentam virar a chave da comissão e empurrar foco aos governadores, mas oposição contorna estratégia. Pazuello e Queiroga falarão de novo

CPI da Pandemia convoca governadores e volta a convocar ex-ministro Eduardo Pazuello e ministro Marcelo Queiroga para depor. (EDISON RODRIGUES / AGÊNCIA SENADO)

O clima mudou na CPI da Pandemia e ganhou ares de maior tensão com o encerramento da primeira fase de depoimentos, quando foram ouvidos os principais responsáveis administrativos no Governo Bolsonaro pela condução de ações na crise sanitária. Os depoimentos à CPI desenham, até agora, uma estratégia que banalizou a morte no Brasil durante a pandemia ao sinalizar que o Governo teria, de fato, apostado na tese de imunidade de rebanho sem vacinas mesmo sob o alto custo de vidas perdidas. Enquanto senadores governistas tentam virar a chave da comissão e empurrar possíveis desgastes em direção aos governadores, a oposição contorna a estratégia com o critério de convocar apenas quem foi alvo de operações da Polícia Federal. Nove governadores serão ouvidos, a maioria deles aliados ou ex-aliados bolsonaristas. O impasse sobre a questão elevou a temperatura entre os senadores e ensejou até um pedido de convocação do próprio presidente Jair Bolsonaro para depor ―um requerimento ainda não avaliado pelo colegiado e repleto de questionamentos jurídicos se o Legislativo pode de fato obrigar o chefe do Executivo a depor.

Em minoria na CPI e empunhando a difícil tarefa de defender ações controversas do Governo para tentar blindar Bolsonaro, a chamada tropa de choque do presidente não conseguiu evitar uma reconvocação do ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, e do atual titular da pasta, Marcelo Queiroga. Agora, a oposição deverá trabalhar com as contradições nas ações do Governo e nos depoimentos, além de focar na suposta omissão federal frente ao colapso de Manaus e na existência de um “ministério paralelo da Saúde”. A primeira fase da CPI ouviu principalmente ex-ministros da Saúde e testemunhas que atuaram na gestão da pandemia ou na negociação de vacinas contra a covid-19. Em geral, os depoentes sinalizam que o Governo foi omisso na compra de imunizantes, a única porta de saída da crise sanitária, e incentivou deliberadamente o uso da cloroquina mesmo quando a ciência já apontava sua ineficácia contra a covid-19. Voltada para a atuação errática do presidente na crise, esta etapa culminou em um forte desgaste do presidente, mas poderá nas próximas semanas ter uma guinada na direção com a convocação de governadores.

Em sua segunda ida à CPI, o ministro Marcelo Queiroga, que garantiu ter autonomia para comandar a Saúde no primeiro depoimento diante dos senadores, deverá explicar a saída da infectologista Luana Araújo, que permaneceu apenas dez dias no comando da recém-criada Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19. Enquanto sua reconvocação era aprovada por senadores, Queiroga sinalizava a deputados que ela havia sido barrada pelo Planalto. Segundo ele, Araújo ainda não havia sido nomeada e os cargos de confiança precisam de “validação técnica e política”. “A doutora Luana Araújo é uma pessoa qualificada, que tem condições técnicas para exercer qualquer função pública. E nós encaminhamos para as instâncias do governo”, afirmou Queiroga, sobre a médica que já se posicionou publicamente contra a cloroquina. Os senadores também convocaram a infectologista para depor. Nos primeiros dias de depoimentos da CPI, os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich afirmaram sofrer pressões do presidente por um protocolo do medicamento.

Bate-boca e troca de acusações

Por enquanto, ainda não há datas para os novos depoimentos aprovados nem detalhes se serão feitas acareações para contrapor as afirmações divergentes. Os senadores governistas conseguiram convocar nove governadores cujos testemunhos devem ser usados para tentar empurrar o foco da CPI aos Estados. Entre eles, há opositores, mas majoritariamente aliados de Bolsonaro ―ao menos sete já apoiaram o presidente em algum momento. Desde o início dos trabalhos da comissão, governistas tentam colocar a fiscalização de recursos federais pelos gestores locais no centro da comissão. A estratégia de ampliar o escopo da investigação foi defendida pelo próprio presidente antes da instalação da CPI, em um áudio vazado com o senador Jorge Kajuru no qual pede para ele “fazer do limão uma limonada”, incluindo prefeitos e governadores.

Um embate em torno da convocação de gestores locais, porém, desvelou atritos entre os integrantes da CPI e a falta de coesão dentro do chamado G7 ―o grupo de parlamentares titulares da comissão não alinhados ao Governo. A temperatura do colegiado subiu vertiginosamente na tumultuada sessão desta quarta, aberta exclusivamente para votar requerimentos. Uma reunião secreta de mais de uma hora chegou a ser feita para tentar acordo entre os parlamentares, mas os próprios integrantes do G7 demonstraram divergências. O relator Renan Calheiros (MDB-AL) fez questão de dizer que não havia concordado com a convocação de governadores, enquanto o presidente Omar Aziz defendia repetidas vezes que havia um acordo feito momentos antes. “Não é da competência do Senado Federal fazê-lo”, bradou Calheiros.

Também contrário à convocação articulada por governistas, Randolfe Rodrigues requereu o depoimento de Bolsonaro e ouviu do senador Marcos Rogério (DEM-RO) que seu pedido era uma “piada”. “Vale para um e não vale para outro?”, questionou Rodrigues. Instalou-se então uma série de bate-boca entre os senadores. Até mesmo Aziz subiu o tom, diferente do que vinha adotando até então, quando foi indagado pelo senador governista Eduardo Girão (Podemos-CE) se os prefeitos de capitais realmente não seriam ouvidos ―no acordo feito na reunião secreta, eles teriam sido retirados por ora. Irritado, Aziz chamou o de “oportunista”. “Toda a sociedade brasileira que tem inteligência sabe que Vossa Excelência está aqui com um único objetivo: é que a gente não investigue por que a gente não comprou vacina. E Vossa Excelência, que não entende patavina de saúde, quer impor a cloroquina na cabeça da população”, disparou, enquanto colegas lhe pediam calma.

Se o clima de tensão persistir, será um divisor de águas nos trabalhos da CPI daqui para frente. Por um lado, os governistas deverão usar governadores para tentar retirar os holofotes de Bolsonaro e conter os danos da CPI. Por outro, a oposição abre uma nova porta para aprofundar a investigação da tese do “ministério da Saúde paralelo” no Governo. Foi convocado, por exemplo, o ex-assessor da Presidência da República Arthur Weintraub, que disse em uma live com o deputado Eduardo Bolsonaro ter sido incumbido pelo presidente pesquisar sobre o uso da cloroquina ―ele teria sido responsável por articular o grupo de médicos em defesa do “tratamento precoce”. O empresário Carlos Wizard, um defensor do medicamento sem eficácia que assessorou Pazuello voluntariamente por cerca de um mês, também será ouvido pelos senadores. Foram convocados ainda o assessor da Presidência da República Filipe Martins, bastante próximo do presidente, e o publicitário e braço-direito de Pazuello, Markinhos Show.

Outro tema que deverá prevalecer nas próximas semanas é a investigação sobre a responsabilidade pelo colapso de oxigênio de Manaus. O governador do Amazonas, Wilson Lima ―um aliado do presidente―, e o diretor da empresa fornecedora de oxigênio White Martins, Paulo Baraúna, também foram convocados pelos senadores. Também estão entre os governadores convocados Helder Barbalho (PA), Ibaneis Rocha (DF), Mauro Carlesse (TO), Carlos Moisés (SC), Marcos Rocha (RO), Wellington Dias (PI), Waldez Góes (AP) e Antonio Denarium (RR). Já os requerimentos para convocação e quebra de sigilo do filho do presidente, vereador Carlos Bolsonaro, e o do próprio presidente não chegaram a ser apreciados pelos senadores.

BEATRIZ JUCÁ, de São Paulo para o EL PAÍS, em  26 MAI 2021 - 21:06 BRT

Teoria que aponta acidente em laboratório como origem do coronavírus deixa o campo da conspiração

Biden pede a serviços de inteligência um relatório conclusivo em 90 dias. Notícia do adoecimento de cientistas em Wuhan em 2019 e a conexão com as mortes em uma mina em 2012 dão asas à hipótese

Trabalhadores da equipe de Emergências de Saúde de Wuhah, na China, fazem uma inspeção no mercado de Huanan, em 11 de janeiro de 2020.NOEL CELIS / AFP

O mundo já sabe que a covid-19 se transmite essencialmente pelo ar e em ambientes fechados, afetando principalmente os idosos e os homens. Provou que as máscaras fazem muita diferença, embora não sejam infalíveis, e viu como, em tempo recorde, a indústria farmacêutica conseguiu desenvolver uma ampla e poderosa oferta de vacinas para combatê-la. O que o mundo ainda ignora em maio de 2021 é onde, quando e como exatamente surgiu esse novo coronavírus, que causou a pior pandemia em um século e que, desde que foi conhecido em dezembro de 2020, já ceifou quase 3,5 milhões de vidas.

Hoje, porém, a teoria do acidente de laboratório deixou as margens do boato para entrar no reino da verossimilhança. No dia 13, um grupo de 18 cientistas de universidades de elite como Harvard, Stanford e Yale publicou uma carta aberta na revista Science pedindo que a hipótese fosse considerada “seriamente” até que houvesse dados suficientes para permitir que fosse descartada. Na segunda-feira, quando o Dr. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, foi questionado se ainda acreditava que o vírus havia se desenvolvido naturalmente, ele respondeu: “A verdade é que não. Não estou convencido disso, devemos continuar investigando o que aconteceu na China“.

E nesta quarta-feira, o próprio presidente Joe Biden publicou um comunicado enfatizando que as duas hipóteses são igualmente possíveis. Assim que chegou à Casa Branca, diz ele, encomendou aos serviços de inteligência um relatório sobre a origem do coronavírus que recebeu no início deste mês. A comunidade de inteligência chegou a um consenso em torno de “dois cenários prováveis”, o do contato humano-animal e o do acidente de laboratório, mas não chegou a uma conclusão definitiva. “Enquanto dois membros da Comunidade de Inteligência se inclinam para o primeiro cenário e outro se inclina para o último —cada um com confiança baixa ou moderada— a maioria dos membros não acredita que haja informações suficientes para determinar qual deles é mais provável do que o outro”. Assim, solicitou aos seus agentes redobrarem esforços e entregarem o estudo mais definitivo possível no prazo de 90 dias.

O que aconteceu entre o clima de opinião de 2020 e o de agora tem a ver com informações publicadas recentemente sobre o adoecimento de pesquisadores do laboratório e sua conexão com as mortes de mineiros no sudeste da China em 2012. Mas tem a ver principalmente com a passagem do tempo. Um ano e meio depois do surgimento do vírus, sua real origem ainda não foi confirmada, o que nos obriga a deixar em aberto as hipóteses alternativas para o salto do animal ao ser humano. Além disso, Pequim dificultou tanto as pesquisas da tardia missão da OMS que suas pobres conclusões, apresentadas em março, alimentaram ainda mais a desconfiança.

No domingo passado, um dia antes de Fauci fazer as declarações acima mencionadas, o The Wall Street Journal publicou que três pesquisadores do laboratório de Wuhan adoeceram no outono de 2019 e precisaram de atendimento hospitalar, embora na China não seja incomum ir a hospitais por doenças comuns ou sazonais. A Administração de Donald Trump já havia alertado sobre isso, com menos concretude, em um relatório de 15 de janeiro, poucos dias antes de passar o poder ao democrata Joe Biden. Uma ficha de dados do Departamento de Estado indicava que o Governo dos Estados Unidos tinha “razões para acreditar que vários pesquisadores do instituto adoeceram antes que o primeiro surto [de coronavírus] fosse identificado, com sintomas compatíveis com a covid-19 e com doenças sazonais”. Não houve avanços conhecidos na determinação da solidez desta pista.

Seguranças no Instituto de Virologia de Wuhan, em imagem de arquivo.(THOMAS PETER / REUTERS).

O laboratório chinês é suspeito devido à sua pesquisa com vírus obtidos de morcegos, e o fio investigador conduz a mortes por pneumonia detectadas em uma mina na província de Yunnan, no sudoeste da China. De acordo com o Journal, em abril de 2012 seis mineiros ficaram doentes, com sintomas semelhantes aos causados pela covid-19, depois de entrarem na mina para retirar fezes de morcegos. Os testes indicaram que eles sofriam de pneumonia e, em meados de agosto, três deles tinham morrido. Especialistas do Instituto de Virologia de Wuhan (WIV) começaram a investigar e acabaram obtendo cerca de 1.000 amostras na mina.

Os pesquisadores encontraram nove tipos de coronavírus nessas amostras. Entre eles, um conhecido como RaTG13 e que em fevereiro passado, no início da pandemia, indicaram que tinha um código genético 96,2% semelhante ao do SARS-COV-2. É o “parente” mais próximo do vírus que causa a covid-19 encontrado até agora, embora ainda a uma enorme distância evolutiva: os dois tipos se separaram há várias décadas. O virologista Shi Zhengli, o principal especialista nesse tipo de vírus no WIV, afirmou que os mineiros não adoeceram de covid-19.

Em um relatório publicado na última sexta-feira em formato preprint no repositório BioRxiv, sem revisão de outros especialistas, os cientistas do WIV dão detalhes sobre os coronavírus encontrados na mina, afirmando: “Estes resultados sugerem que [os coronavírus] que encontramos nos morcegos podem ser apenas a ponta do iceberg.” No entanto, dizem que os oito que não são o RaTG13, quase idênticos entre si, são apenas 77% semelhantes ao SARS-COv2. Não mostraram capacidade de infectar uma célula humana usando o receptor que utiliza o que provoca a covid-19, de acordo com estes pesquisadores. Tampouco o RaTG13.

“Embora existam conjecturas que falam da possibilidade de um vazamento do RaTG13 do laboratório que teria causado o SARS-COV-2, os testes nos experimentos não o corroboram”, conclui o relatório.

Mas a desconfiança mesmo assim é evidente. A missão da OMS passou apenas três horas no Instituto de Virologia de Wuhan e seus membros tiveram acesso apenas aos dados processados. Seu relatório apresentado no final de março concluiu que a hipótese do acidente de laboratório era “extremamente improvável”, enquanto a transmissão natural de um reservatório animal era “provável ou muito provável”. E dias depois o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, alertou que essa possibilidade não poderia ser descartada e que seria necessária uma investigação mais exaustiva.

Nesta quarta-feira um porta-voz da OMS respondeu a este jornal por e-mail que a organização agora está revisando as recomendações do relatório sobre a origem do vírus em nível técnico e estas equipes técnicas elaborarão uma proposta para os próximos estudos a serem realizados. As próximas investigações incluiriam a hipótese do acidente do laboratório, mas não está claro se serão realizadas.

Pequim sempre rejeitou taxativamente essa teoria e se aferra às conclusões do relatório da OMS. “Os Estados Unidos continuam promovendo a teoria do vazamento de um laboratório. Estão preocupados com a rastreabilidade ou estão apenas tentando distrair a atenção?”, perguntou na segunda-feira o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Zhao Lijian, depois que o The Wall Street Journal publicou suas informações sobre os três supostos trabalhadores doentes do Instituto de Virologia de Wuhan. Embora a China não tenha descartado definitivamente, pelo menos em público, a ideia de uma segunda missão, é improvável que concorde com ela se seus objetivos incluírem uma nova visita ao Instituto de Virologia ou a outras instalações similares.

A China não apenas nega a possibilidade de um vazamento. Também acusa os Estados Unidos. Em plena esgrima verbal com Washington sobre as causas e a gestão da covid-19 quando a pandemia começou a chegar aos EUA, o próprio Zhao —estandarte da nova geração de diplomatas chineses conhecida como “lobos guerreiros”, muito mais agressivos na retórica a favor de seu país— alimentou no ano passado em sua conta no Twitter uma teoria da conspiração: a de que o vírus havia chegado a Wuhan em outubro de 2019 trazido por soldados norte-americanos que participaram dos Jogos Militares realizados naquela cidade.

Mesmo agora Pequim também insiste que os Estados Unidos devem permitir em seus próprios laboratórios militares de armamento biológico em Fort Detrick uma inspeção semelhante à realizada pelos especialistas da OMS em Wuhan no começo deste ano.

As acusações e contra-acusações entre Washington e Pequim acompanharam a evolução da própria pandemia, paralelamente à entrada em parafuso das relações entre as duas grandes potências mundiais. E, arrastados para o meio dessa disputa, estão os trabalhos científicos de busca da origem da covid-19.

AMANDA MARS | MACARENA VIDAL LIY,  de Washington e Pequim  para o EL PAÍS, em  26 MAI 2021 - 21:54 BRT

Ao menos 85 cidades têm protestos marcados contra Bolsonaro no dia 29 de maio

Essa é a primeira vez que grupos como entidades sindicais e movimentos sociais convocam manifestações de rua contra o presidente durante a pandemia. Em janeiro, houve carreatas de grupos de direita e de esquerda pelo impeachment de Bolsonaro.


Manifestações ocorrem no momento de maior fragilidade política de Bolsonaro (Alan Santos / PR)

Atualmente, grupos de esquerda, com reivindicações diversas, ainda se dividem sobre os riscos de os atos acabarem agravando o espalhamento da covid-19 num momento que a doença voltou a avançar no país ou enfraquecendo as críticas às aglomerações promovidas por Bolsonaro.

Grande parte do material de convocação dos atos recomenda o uso de máscara PFF2 (ou N95), além de álcool em gel e distanciamento físico.

A pauta dos atos inclui diversas demandas, como o impeachment de Bolsonaro, a volta do auxílio emergencial de R$ 600, a ampliação das vacinas disponíveis, o fim da violência contra a população negra e a suspensão de cortes de verbas na Educação, das privatizações e da reforma administrativa.

As manifestações previstas em pelo menos 24 Estados e no Distrito Federal ocorrem no momento de maior fragilidade política de Bolsonaro, amplamente criticado por sua condução da pandemia e pela deterioração da economia brasileira.

Segundo a mais recente pesquisa do instituto Datafolha, de 11 e 12 de maio, a aprovação do presidente atingiu o patamar mais baixo de seu mandato.

Ao todo, 24% da população considera o governo ótimo ou bom, uma queda de seis pontos percentuais em relação a março.

Além disso, Bolsonaro aparece atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas intenções de voto para a eleição presidencial em 2022. O petista tem 41% no primeiro turno, e Bolsonaro, com 23%, segundo o Datafolha.

Lugares com protestos previstos

A BBC News Brasil identificou protestos marcados, com diferentes pautas, em ao menos 85 cidades de 24 Estados e no DF. São elas:

AL: Maceió

AM: Manaus, Tefé, Presidente Figueiredo, Itacoatiara e Humaitá

AP: Macapá

BA: Ilhéus e Salvador

CE: Fortaleza e Juazeiro do Norte

DF: Brasília

ES: Vitória

GO: Goiânia e Catalão

MA: Caxias, São Luís e Imperatriz

MG: Belo Horizonte, Barbacena, Caratinga, Divinópolis, Governador Valadares, Itabirito, Juiz de Fora, Mariana, Montes Claros, Ouro Branco, Ouro Preto, Pouso Alegre, São João Del Rei, Uberaba, Uberlândia e Viçosa

MS: Dourados, Aquidauana, Campo Grande e Três Lagoas

MT: Cuiabá e Rondonópolis

PA: Belém, Abaetetuba, Altamira, Castanhal e Santarém

PB: João Pessoa, Campina Grande e Patos

PE: Recife, Caruaru e Garanhuns

PI: Teresina

PR: Curitiba, Foz do Iguaçu, Cascavel, Ponta Grossa e Maringá

RJ: Rio de Janeiro e Campos dos Goytacazes

RN: Mossoró e Natal

RO: Porto Velho

RS: Caxias do Sul, Passo Fundo, Porto Alegre, Bagé e Pelotas

SC: Florianópolis, Blumenau e Joinville

SE: Aracaju

SP: São Paulo, Ribeirão Preto, São Bernardo do Campo, São José dos Campos, Assis, Campinas, Indaiatuba, Jacareí, Praia Grande, Santos, Taubaté e Ubatuba

TO: Araguaína e Palmas

Reivindicações dos protestos

Há diversas demandas citadas nas convocações para os atos contra o presidente.

Para a CSP-Conlutas, Bolsonaro "é o principal responsável pela extensão e agravamento da pandemia e pela explosão do desemprego e da fome. São inúmeros os seus crimes e a sua prática e discurso tem sido impulsionadora de atrocidades como a chacina do Jacarezinho".

Entidades estudantis como a UNE falam em ir para a rua contra cortes orçamentários para a educação e "a iminência de fechamento de universidades e institutos federais que estão sem verbas".

Entenda abaixo algumas das demandas dos grupos que convocam os protestos para 29/5 além do impeachment de Bolsonaro.

- Auxílio emergencial e vacinas

Duas das principais reivindicações dos organizadores são a ampliação da oferta de vacinas contra covid-19 e o aumento do valor do auxílio emergencial.

Desde fevereiro, o país leva de 12 a 14 dias para aplicar 10 milhões de vacinas. Quase 42 milhões de brasileiros receberam a primeira dose e 21 milhões, as duas (cerca de 10% da população). Só que uma em cada cinco cidades têm enfrentado falta de vacinas, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM).

Grupos cobram volta do auxílio emergencial de R$ 600 (Ag. Brasil)

Por outro lado, a versão reduzida do auxílio emergencial aprovada para 2021 excluiu quase 20 milhões de brasileiros em situação vulnerável do benefício. Além disso, o auxílio caiu de R$ 600 para R$ 200 neste ano, e manifestantes cobram que o valor volte a ser de R$ 600.

O Brasil encerrou o primeiro trimestre com 14,2% de desempregados, a maior taxa já registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na série histórica, iniciada em 2002. São 14,3 milhões de pessoas sem trabalho.

- Verbas para educação

O orçamento das universidade federais está em queda desde 2013, ainda no governo Dilma Rousseff (PT), mas a situação se agravou mais durante os governos Michel Temer (MDB) e Bolsonaro. O aumento das verbas para educação está na pauta de grande parte dos protestos.

No início de maio deste ano, a reitora e o vice-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a maior do país, afirmaram em artigo no jornal O Globo que a instituição poderia fechar as portas no segundo semestre por falta de verbas.

"O orçamento discricionário aprovado pela Lei Orçamentária para a UFRJ em 2021 é 38% daquele empenhado em 2012. Quando se soma o bloqueio de 18,4% do orçamento aprovado, como anunciado pelo governo, seu funcionamento ficará inviabilizado a partir de julho. A UFRJ fechará suas portas por incapacidade de pagamento de contas de segurança, limpeza, eletricidade e água."

Entidades estudantis também criticam os cortes orçamentários de bolsas de pesquisas no ensino superior, o que deixa "residentes, mestrandos e doutorandos sem possibilidade de dar continuidade aos seus trabalhos", segundo a Associação Nacional de Pós-Graduandos.

- Reforma administrativa e privatizações

Parte do material de convocação aos atos faz críticas à proposta de reforma administrativa do governo Bolsonaro.

O texto atual da PEC 32, em tramitação na Câmara dos Deputados, restringe a estabilidade dos funcionários públicos, por exemplo, mas só serão afetadas novas contratações feitas pela máquina pública, sem mexer com salários, carreiras e benefícios de servidores atuais.

A proposta passou pela Comissão de Constituição e Justiça e será apreciada em seguida por uma comissão especial na Casa.

Paulo Guedes repetiu diversas vezes o valor de R$ 1 trilhão em seus planos de venda de estatais brasileiras. ( Reuters / Adriano Machado).

Outro pilar do programa econômico do governo federal proposto ainda na eleição de 2018 é a privatização de estatais. Essa pauta perdeu força ao longo do mandato de Bolsonaro, o que levou à saída de Salim Mattar, secretário especial de desestatização.

Em balanço divulgado por Mattar em agosto de 2020, operações de "desestatização e desinvestimento" no governo Bolsonaro geraram, por enquanto, R$ 134,9 bilhões. Um valor bem aquém do R$ 1 trilhão em ativos a serem privatizados, segundo Paulo Guedes, ministro da Economia.

Numa tentativa de reverter a imagem de que a agenda de privatizações do governo está parada, Bolsonaro entregou no fim de fevereiro uma medida provisória que busca acelerar a privatização da Eletrobras. O texto foi aprovado pela Câmara em 19 de maio e precisa ser aprovado pelo Senado até 22 de junho para não perder sua validade.

Matheus Magenta, de Londres para a BBC News Brasil, em 26 de maio de 2021.

CPI da Covid: o que a comissão pretende investigar com convocação de 9 governadores

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid aprovou na quarta-feira (26/5) a convocação de nove governadores e um ex-governador para prestar depoimento.

Comissão Parlamentar de Inquérito aprovou a convocação de nove governadores (Ag. Senado)

A CPI inicialmente foi criada para investigar ações e omissões do governo federal no combate à pandemia de covid-19.

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A pedido de senadores governistas que também fazem parte da comissão, a pauta foi ampliada para investigar também o uso dos recursos federais enviados aos Estados e municípios

O governo Bolsonaro diz que cabe aos Estados a responsabilidade pelo atual estado da pandemia no Brasil, que teve mais de 452 mil mortes por covid-19 até agora.

Após a mudança na pauta da comissão, no entanto, senadores oposicionistas e independentes também apresentaram requerimentos para convocação de governadores.

O partido com maior número de governadores convocados é o PSL, pelo qual Bolsonaro se elegeu e do qual depois o presidente saiu - mas os deputados e senadores da sigla continuam votando com o governo.

Foram convocados:

Wilson Lima (PSC), Amazonas;

Waldez Góes (PDT), Amapá;

Ibaneis Rocha (MDB), Distrito Federal;

Helder Barbalho (MDB), Pará;

Wellington Dias (PT), Piauí;

Marcos Rocha (PSL), Rondônia;

Antonio Oliveira Garcia de Almeida (PSL), Roraima;

Carlos Moisés (PSL), Santa Catarina;

Mauro Carlesse (PSL), Tocantins.

Todos esses Estados tiveram operações da Polícia Federal para investigar se houve desvio de recursos públicos enviados pelo governo federal para combate à pandemia.

À CPI, o ex-ministro Eduardo Pazuello afirmou que o Ministério da Saúde fez uma investigação sobre o uso de recursos no Estados, mas não encontrou nenhuma irregularidade.

Dias, do Piauí, foi convocado também por ser presidente do Consórcio do Nordeste e responsável pela temática da vacinação do Fórum Nacional dos Governadores.

O ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), também foi chamado. Witzel sofreu um impeachment e foi retirado do cargo em abril de 2021, mas governou o Estado durante a maior parte da pandemia.

Wilson Witzel, ex-governador do Rio de Janeiro, também foi convocado pela CPI (Antonio Cruz / Ag. Brasil).

O que dizem os governadores

O governador do Amazonas, Wilson Lima, é investigado por causa da compra de 28 respiradores, sem licitação, de uma empresa de vinhos, em meio ao colapso de saúde no Estado.

Em uma nota divulgada à imprensa, o governo amazonense afirmou que "aguarda o desenrolar e informações mais detalhadas da operação que a Polícia Federal realiza em Manaus para, posteriormente, se pronunciar sobre a ação". Lima ainda não se pronunciou sobre a convocação à CPI. No Pará, a investigação envolve a suspeita de irregularidades na compra de respiradores, que foram entregues com atraso, não eram do modelo requisitado e não serviam para o tratamento de covid-19.

O governo do Estado disse em nota que "reafirma seu compromisso de sempre apoiar a Polícia Federal no cumprimento de seu papel em sua esfera de ação" e que "o recurso pago na entrada da compra dos respiradores foi ressarcido aos cofres públicos por ação" do governo.

Afirma também que o governo "entrou na Justiça com pedido de indenização por danos morais coletivos contra os vendedores dos equipamentos." O governador Helder Barbalho ainda não comentou a convocação para a CPI.

Antes da convocação pela CPI, na terça-feira (25/5), o governador Carlos Moisés, de Santa Catarina, afirmou no Twitter que "todas as informações referentes ao combate à pandemia em Santa Catarina, bem como o resultado de quaisquer investigações da Polícia Federal, MPF, MPSC e decisões judiciais, serão encaminhadas" ao Senado para auxiliar na CPI.

"A tentativa de criar um factoide por parte de um dos integrantes, que até agora pouco tem acrescentado aos trabalhos, não será suficiente para desvirtuar a Comissão de seu verdadeiro papel", afirmou.

Em nota à imprensa, o governador de Roraima, Antonio Denarium, como ele é mais conhecido, disse que sua gestão "não compactua com atos de corrupção" e que assim que o governador assumiu o governo "fez auditoria em todos os contratos e cancelou o pagamento dos que estavam suspeitos."

O governador Ibaneis Rocha, do Distrito Federal, afirmou ao portal G1 que "recebe com tranquilidade" a convocação para a CPI e que "no que for necessário, pretende contribuir". O Estado é alvo de operação da PF que investiga supostas fraudes na compra de exames de covid.

O governador do Tocantins, Mauro Carlesse, é investigado pela compra do Estado de máscaras por R$ 35 cada, um valor muito acima da média do mercado.

Carlesse ainda não se manifestou sobre a CPI, mas disse no ano passado que as compras de insumos foram feitas sem licitação por causa de uma "iminente necessidade das Unidades Hospitalares" e que, em "razão do sobrepreço, a própria gestão realizou a denúncia aos órgãos competentes, que embasaram as investigações da PF".

Os governadores Waldez Góes, do Amapá, e Marcos Rocha, de Roraima, ainda não se manifestaram sobre a convocação à CPI.

O governador do Piauí, Wellington Dias, afirmou que "sempre se colocou à disposição, como presidente do Consórcio Nordeste e como Coordenador do Fórum dos Governadores do Brasil, na temática da vacina, para colaborar com a CPI da Covid no Senado Federal" e que estará presente para prestar "todas as informações necessárias."

O ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel não se manifestou oficialmente sobre sua convocação à CPI, mas afirmou ao comentarista da GloboNews Octávio Guedes que vai apresentar à comissão indícios contra Bolsonaro, contra o procurador-geral da República Augusto Aras e contra Lindora Araújo, coordenadora da operação Lava Jato na PGR.

A CPI pode convocar governadores?

O senador Renan Calheiros (MDB-AL), lembrou nesta quarta, no entanto, que não há previsão legal para que a CPI possa convocar governadores e se opôs às convocações.

O constitucionalista Wallace Corbo, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica que é muito provável que todas essas convocações sejam contestadas no Supremo Tribunal Federal.

Isso porque "o poder público está limitado ao que é autorizado pela Constituição ou pelas leis" e não há previsão de convocação por CPI de chefes do Poder Executivo.

A professora de Direito Constitucional Estefânia Barbosa, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica que o artigo 50 da Constituição Federal prevê apenas a convocação de titulares de órgãos subordinados ao presidente da República. Governadores e prefeitos não estariam incluídos, portanto, sua convocação seria inconstitucional.

Eles ainda poderiam ser convidados a comparecer à comissão, no entanto, e nesse caso seu comparecimento não seria obrigatório.

O presidente da República pode ser convocado pela CPI?

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou também um requerimento para a convocação do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), para depor.

O entendimento de Rodrigues, segundo disse o senador da CPI, é que se "foi aberto precedente" para convocação de governadores, a chamada do presidente deveria seguir a mesma lógica.

O requerimento, no entanto, ainda não foi votado pelos senadores, e a questão está em aberto. Se aprovado na CPI, o requerimento provavelmente também deve ser contestado no STF.

"A convocação do presidente em CPI pode gerar uma dificuldade em termos de separação dos poderes, segundo um entendimento mais antigo do Supremo", afirma Corbo.

O Palácio do Planalto ainda não se manifestou oficialmente sobre o assunto.

Letícia Mori, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 26 maio 2021

CPI da Covid pode convocar Bolsonaro a depor?

O vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), apresentou nesta quarta-feira (26/5) requerimento para convocar o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a depor como testemunha.

O Senador Randolfe Rodrigues quer convocação de Bolsonaro à CPI, mas requerimento não foi votado ainda (Reuters).

O pedido ainda não foi apreciado, e é incerto se será aprovado pela maioria do colegiado. Caso seja, é provável que a questão tenha que ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), já que há controvérsia jurídica sobre se a CPI de fato pode realizar essa convocação.

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Outra questão que deve ser levada ao Supremo é a convocação aprovada pela comissão nesta quarta-feira de nove governadores: Wilson Lima (PSL-AM) , Helder Barbalho (MDB-PA) , Ibaneis Rocha (MDB-DF), Mauro Carlesse (PSL-TO), Carlos Moises (PSL-SC), Antonio Oliverio Garcia de Almeida (Sem partido-RR), Waldez Góes (PDT-AP), Wellington Dias (PT-PI) e Marcos José Rocha dos Santos (Sem Partido-RO).

Os nove convocados podem aceitar depor ou recorrer ao STF pedindo para serem liberados, já que há um precedente de 2012, quando o ministro Marco Aurélio autorizou o então governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), a não comparecer à CPI do Cachoeira.

Randolfe Rodrigues disse considerar inconstitucional a convocação de governadores pela CPI. No entanto, como a comissão aprovou os nove depoimentos, o senador argumentou que, "por coerência", Bolsonaro também deve ser convocado.

No requerimento em que pede a presença do presidente na comissão, Rodrigues diz que "a cada depoimento e a cada documento recebido, torna-se mais cristalino que o presidente da República teve participação direta ou indireta nos graves fatos questionados por esta CPI".

Entenda a seguir os debates jurídicos em torno da convocação de Bolsonaro e dos governadores.

Convocação do presidente da República

Juristas ouvidos pela BBC News Brasil se dividem sobre se Bolsonaro pode ser convocado pela CPI.

A Constituição Federal não prevê explicitamente se uma comissão do Congresso pode ou não obrigar o Presidente da República a prestar depoimento. O que ela autoriza, no seu artigo 50, é a convocação de "Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República".

Para Marcelo Labanca, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco, o fato de a Constituição listar as autoridades que podem ser convocadas e não incluir o presidente da República nessa autorização exclui a possibilidade de Bolsonaro ser convocado.

"Se a Constituição prevê ministros de Estados, que são uma autoridades de hierarquia menor, é como se ela tivesse implicitamente vedado a possibilidade de convocar o presidente", argumenta.

Para relator da CPI, Renan Calheiros, não é possível convocar governadores e o presidente Bolsonaro (Ag. Senado)

Na avaliação de Labanca, essa impossibilidade de convocar Bolsonaro está fundamentada também no princípio constitucional da separação dos Poderes. Dessa forma, diz, não é possível que uma comissão do Congresso (um órgão de menor dimensão dentro do Parlamento) convoque o chefe do Poder Executivo.

"Interpretando o princípio da separação dos Poderes, o Supremo Tribunal Federal construiu uma jurisprudência muito firme em relação a CPIs. Há decisões do STF, por exemplo, que não permitem convocar juízes", destaca.

Ainda que, na sua avaliação, Bolsonaro não possa ser convocado, o professor ressalta que isso não impede que a CPI investigue o presidente e aponte eventuais responsabilidades em seu no relatório final. A comissão, diz ele, também pode convidar Bolsonaro a depor e, nesse caso, ficaria a critério do presidente aceitar comparecer ou não.

O professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei também considera que a omissão da Constituição, ao não autorizar expressamente a convocação do presidente, pode ser interpretada no sentido de que Bolsonaro não deve ser obrigado a depor.

Na sua avaliação, porém, há margem para que o STF libere seu depoimento por causa do artigo 221 do Código de Processo Penal (CPP), que prevê que o presidente da República, quando convocado como testemunha de um processo criminal, poderá marcar o dia e a hora de seu depoimento com o juiz do caso, ou mesmo optar por responder às perguntas por escrito.

Como comissões parlamentares de inquérito têm poderes de investigação equiparados aos das autoridades judiciais, Mafei considera que a previsão de que o presidente da República possa ser convocado como testemunha no Código de Processo Penal se aplicaria também à CPI.

"O artigo 221 do CPP prevê expressamente a possibilidade de presidente participar de processo judicial como testemunha, e esse artigo já foi apreciado recentemente pelo STF, que não viu inconstitucionalidade nele", afirma Mafei.

O professor de refere ao depoimento do então presidente Michel Temer, em 2017, quando ele foi autorizado a responder por escrito a perguntas do Ministério Público Federal. Naquela ocasião, Temer falou na condição de investigado, não de testemunha, mas o ministro Edson Fachin autorizou que fosse por escrito.

Eloísa Machado, professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do Supremo em Pauta, projeto dedicado a estudar a Corte, também avalia que Bolsonaro pode ser convocado.

"Esclarecer a condução da política do governo federal durante uma pandemia que vitimou 450 mil pessoas é uma obrigação, um dever do presidente da República", defendeu a professora no Twitter.

Toda essa discussão se refere a hipótese de Bolsonaro ser convocado como testemunha. Se ele for chamado como investigado, não seria obrigada a depor, pois a Constituição garante o direito ao silêncio a pessoas investigadas.

Convocação de governadores


Os senadores da base governista defenderam a convocação dos governadores (Ag. Senado)

A convocação dos nove governadores atendeu à pressão de senadores bolsonaristas que argumentam que a CPI da Covid precisa investigar todas as autoridades suspeitas de ilegalidades na pandemia, em vez de focar apenas no governo federal.

Com isso, foram convocados os nove governadores cujos Estados foram alvos de ações da Polícia Federal que investigam possíveis desvios de recursos federais repassados às unidades federativas para o enfrentamento da crise do coronavírus.

Para Marcelo Labanca, governadores não podem ser convocados devido ao princípio da federação, que estabelece a autonomia dos Estados em relação as Poderes federais.

Foi justamente esse argumento usado pelo ministro Marco Aurélio para liberar o então governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), de falar à CPI do Cachoeira, comissão que investigou práticas criminosas no seu Estado.

Perillo aceitou depor em junho de 2012 àquela CPI, mas depois solicitou um habeas corpus para não ser mais convocado.

Até a publicação desta reportagem, nenhum dos nove convocados havia acionado o STF. Apesar do precedente de Perillo, governadores ainda avaliam se recorrerão ao Supremo porque deixar de comparecer pode também causar um desgaste político, no sentido de estar resistindo a prestar esclarecimentos sobre sua gestão.

O governador do Piauí, Welligton Dias, por exemplo, disse que vai comparecer. "Tendo chamamento para comparecer à CPI com base na lei, ali comparecerei para contribuir, para esclarecer, mas principalmente para apontar caminhos para salvar vidas", disse, em vídeo divulgado por sua assessoria.

Mariana Schreiber - @marischreiber, de Brasília para a BBC News Brasil, em 26 maio 2021