segunda-feira, 31 de maio de 2021

“Copa América no Brasil é inaceitável para a saúde pública e pode impulsionar a terceira onda”

Especialista chama a atenção para os riscos de organizar um torneio continental em momento de nova piora da pandemia no país. Com aprovação de Bolsonaro, sede foi confirmada pela Conmebol a duas semanas do início do torneio

Bolsonaro posa com jogadores após a conquista da Copa América de 2019, no Maracanã.CARL DE SOUZA / AFP

Copa América será disputada no Brasil em meio à pressão da terceira onda da pandemia

“É evidente que a Copa América pode impulsionar a terceira onda. A realização desse torneio no Brasil é absolutamente despropositada, inaceitável do ponto de vista da saúde pública, e só poderia acontecer num país que não tem respeito pela vida”. Assim resumiu Bruno Gualano, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), as possíveis consequências da escolha, anunciada pela Conmebol na manhã desta segunda-feira (31), do Brasil como sede de última hora da edição de 2021 do principal torneio entre seleções sul-americanas, marcado para começar em 13 de junho. 

Uma Copa que, negada na Colômbia pelo caos político e social e na Argentina pela crise sanitária, migrou para o país mais atingido pela pandemia de covid-19 no continente e, recentemente, envolto em protestos contra o Governo federal.

Originalmente, colombianos e argentinos dividiriam as sedes. A Colômbia recuou no dia 21 de maio, enquanto a Argentina comunicou que não receberia o torneio neste último domingo, 30 de maio. Cerca de 12 horas depois, o anúncio do substituto: “A Conmebol agradece ao presidente Jair Bolsonaro e sua equipe, assim como à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) por abrir as portas do país ao que hoje em dia é o evento esportivo mais seguro do mundo”, publicou a entidade do futebol sul-americano no Twitter. 

“O Governo brasileiro demonstrou agilidade e capacidade de decisão em um momento fundamental”, acrescentou Alejandro Domínguez, presidente da Conmebol, que ainda disse que “o Brasil vive um momento de estabilidade, tem estrutura comprovada e experiência acumulada e recente para organizar uma competição dessa magnitude”. 

Nos últimos dias, o Brasil ultrapassou 460.000 mortos e 16,5 milhões de infectados pela covid-19, além de detectar variantes brasileiras e indiana, atrasos na vacinação e aumento da lotação em hospitais que preocupam os especialistas para uma terceira onda ainda mais mortal nos meses em que será realizada a Copa América. 

“E não temos como medir o impacto desse evento nos números porque o Brasil não adotou a testagem e o rastreio de casos como uma política de combate à pandemia. Se você não testa, não sabe a dimensão do problema. Só vamos ver a ponta do iceberg lá no fim, que são o aumento de mortes e as UTIs lotadas”, comenta Bruno Gualano.

O especialista coordena, desde o ano passado, um grupo de estudo da USP que busca dimensionar os impactos que o futebol tem, com todos os seus protocolos, na crise sanitária brasileira. Em uma pesquisa divulgada em março de 2021, o grupo analisou testes feitos em mais de 4.000 atletas, homens e mulheres, de oito torneios realizados pela Federação Paulista de Futebol (FPF) em 2020, e chegou a conclusão de que o índice de infecção entre esses jogadores (11,7%) é equivalente ao de profissionais de saúde na linha de frente da pandemia. 

Foram 25 surtos detectados apenas no futebol paulista —para efeito de comparação, o futebol no Qatar, que foi usado como comparação por apresentar uma realidade semelhante à brasileira, não teve nenhum surto entre 549 atletas e o índice de casos positivos ficou em 4,4%. “É importante lembrar que esse estudo foi feito em 2020, antes da segunda onda, antes das variantes e antes do relaxamento das restrições —e só em São Paulo. Tudo indica que em 2021 foi muito pior”, pontua Gualano.

Para o especialista, a pesquisa prova que os protocolos e medidas sanitárias adotadas pelo futebol para que o setor continue funcionando em meio à pandemia “não serviram de nada”, bem como a abertura desse setor influencia no aumento de transmissões na sociedade —levando em conta somente os dados de jogadores envolvidos diretamente no esporte. 

Esses protocolos são, no entanto, o argumento para que centenas de pessoas envolvidas nas delegações de dez seleções sul-americanas, além de toda a equipe e imprensa responsável por trabalhar em um evento dessa proporção, possam comparecer a jogos em diferentes Estados no Brasil. 

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), apesar de fazer oposição a Bolsonaro durante toda a crise sanitária, afirmou em entrevista coletiva que ”não fará objeção caso a CBF defina São Paulo como um dos locais de jogos, desde que protocolos sejam obedecidos”. Na direção oposta, governadores de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), e Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), anunciaram que barrarão jogos da Copa em seu Estado.

Vacinas em cima da hora

Visando atenuar os efeitos que a realização de seus torneios podem ter na pandemia por todo o continente, a Conmebol fechou um acordo de doação no qual recebeu 50.000 doses da vacina contra o coronavírus do laboratório chinês, Sinovac, para imunizar equipes e delegações de times e seleções que disputam seus torneios continentais, em troca de patrocínio. Atlético-MG e Atlético-GO, que jogam competições sul-americanas, foram os dois times brasileiros que já imunizaram seus atletas com as doses da Conmebol. 

“É um problema ético, porque esses caras estão furando a fila para o circo passar”, opina Gualano, que lembra que, apesar dos jogadores serem perigosos vetores de transmissão, não consistem grupos de risco, enquanto muitos destes grupos não receberam sequer a primeira dose no Brasil. E, no caso da seleção brasileira, boa parte da delegação não foi vacinada a duas semanas da estreia da competição, o que inviabiliza a devida imunidade antes da realização da Copa América. 

“Além de tudo é uma medida simbólica, que passa uma falsa sensação de segurança. Resume como as prioridades são o futebol, o bar, o shopping, e não as UTIs ou os remédios para intubação. Os protocolos são só engodo”, conclui o pesquisador.

Independente das vacinas, a postura adotada pela Conmebol durante a pandemia ainda é alvo de outras críticas. Na final da Libertadores, realizada no Maracanã em 30 de janeiro, a entidade permitiu a presença de 5.000 pessoas nas arquibancadas —precedente que pode servir, inclusive, para a abertura ao público na final da Copa América, que deve ser no mesmo estádio. 

Mais recentemente, a Conmebol forçou a realização de partidas da mesma competição na Colômbia, onde jogadores do Atlético-MG e do América de Cali paralisaram a partida pelo gás lacrimogêneo oriundo da repressão a protestos sociais que aconteciam do lado de fora; e na Argentina, contornando o decreto federal que paralisou o futebol local durante os últimos dias de maio.

As sedes da Copa América ainda não foram confirmadas pela Conmebol —apenas as datas de início e fim, que permanecem em 13 de junho e 10 de julho. Nos bastidores, as maiores possibilidades apontam para partidas realizadas em locais mais estruturados, como Rio e São Paulo, e em cidades que contam com estádios herdados da Copa do Mundo cuja utilização é esporádica, uma vez que o calendário não prevê uma pausa nos jogos dos principais campeonatos nacionais. Seriam os casos de Manaus, Recife, Natal e Brasília. 

Na capital nacional, o evento esportivo já respinga entre a classe política. Randolfe Rodrigues (Rede), senador do Amapá e líder da oposição, avisou em seu Twitter que protocolou um pedido para a convocação do presidente da CBF, Rogério Caboclo, na CPI da Pandemia, que apura supostas negligências do Governo federal no combate à pandemia. Na Câmara, o deputado federal Júlio Delgado (PSB-MG) irá ao Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar a realização do torneio no Brasil.

DIOGO MAGRI, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 31 MAI 2021 - 17:20 BRT

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