sábado, 29 de novembro de 2025

Quando Celso de Mello enxovalhou o general Villas Bôas

A hora e vez de Nhô Celso quando Villas Bôas Bem-Bem meteu o bedelho na política. Ministro do STF foi vencido, mas pôs a casta verde-oliva no devido lugar

Bruna Barros/Folhapress

Está quatro a três. O time de ex-presidentes presos (Lula, Temer, Collor, Bolsonaro) vence o escrete dos sem-cela (FHC, Itamar, Dilma) desde a volta das eleições diretas. Ver o sol nascer quadrado é o novo normal.

O anormal é a ida para o xilindró de três quatro-estrelas (Augusto Heleno, Braga Netto, Paulo Sergio Nogueira) e um almirante (Almir Garnier). Os caciques da tribo fardada tinham até então o mesmo estatuto dos yanomamis isolados: eram inimputáveis.

Milicos de alto coturno encarcerados: onde iremos parar? A resposta depende do que ocorre agora, no presente, que por sua vez decorre do passado –do fluxo contínuo de fatos, no mais das vezes caóticos, a que se dá o nome de história.

Para aprender com a história há que se selecionar, no turbilhão dos fatos, os momentos marcantes, aqueles em que as decisões e ações humanas moldam o futuro. Bolsonaro foi protagonista de alguns desses momentos.

Boicotou as vacinas contra a peste e contribuiu para a morte de milhares. Atiçou o lumpesinato contra as eleições. Mandou a Polícia Rodoviária sabotar a votação. Traficou e afanou joias. Articulou o banzé na porta de quartéis e a vandalização da Praça dos Três Poderes. Deu OK ao homicídio de Lula, Alckmin e Xandão. Foi chamado de "seu Jair" pela técnica que examinou a tornozeleira eletrônica que arrebentara.

Ao centro da imagem uma onça pintada está olhando para frente enquanto bebe água agachada na beira de um rio. Atrás dela, manchas verdes de lápis de cor sugerem uma vegetação.

"A história é um pesadelo do qual tento acordar", diz um personagem de James Joyce em "Ulysses". Pois a ascensão do Ogro foi um pesadelo que convém recordar. Há quem situe na revolta de 2013 o início da crise que o arremessou ao Planalto. Ou nos abusos da Lava Jato. Ou na missa negra da derrubada de Dilma, na qual exaltou Ustra, o torturador-mor.

Bolsonaro não se elegeu em 4 de abril de 2018, mas esse foi um dia decisivo da história recente, do pesadelo que assaltou o sono da nação. Duas mulheres e quatro homens deixaram que a milicada metesse o bedelho num assunto que a Constituição manda manterem distância, a política.

Lula foi condenado no caso do duplex no Guarujá, que Sergio Moro julgara ser propina da Odebrecht. Seus advogados pediram-lhe um habeas corpus. Com ele seria possível recorrer da sentença em liberdade. Ou seja, o STF decidiria naquela quarta-feira se enjaulava Lula.

A onça rosnou na véspera. O chefão do Exército, general Eduardo Villas Bôas, soltou um tuíte que rascunhara com o Alto-Comando. Como "todos os cidadãos de bem", os pintores de meio-fio externavam "repúdio à impunidade", diziam-se atentos a suas "missões institucionais". Em português de gente: se Lula ficasse livre, ai dos capas-pretas.

Chegara a hora da onça beber água. A expressão designa um instante tenso e perigoso, o cair da tarde, quando a pintada vai ao rio matar a sede. O pavor se espalha pela mata e a bicharada não dá bobeira na hora da onça beber água.

O STF, pois, tinha de tomar uma decisão prévia à do destino de Lula: afrontar a fera ou ficar na toca. Por seis a cinco, o Supremo se acoelhou diante de Darth Vader. Barroso, Cármen, Fachin, Fux, Moraes e Weber fingiram que Villas Bôas não lhes disparara um tuíte na testa.

Poderiam se abster em sinal de protesto. Abandonar o plenário e explicar por quê. Até votar pela prisão do ex-presidente, mas rechaçar a ingerência dos azeitonas. Eram várias as maneiras de se afirmar o poder civil. As seis togas preferiram se submeter à espada.

"A Hora e Vez de Augusto Matraga" é uma novela de Guimarães Rosa que fala do difícil dia em que um homem tem de decidir quem, à vera, é. Rufião regenerado, Nhô Augusto tem de optar entre silenciar ou combater o bandoleiro mais afamado das Gerais, Joãozinho Bem-Bem, "o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha".

Celso de Mello, o decano do STF, não tinha nada do Matraga que acariciou a lâmina da faca e o pescoço da carabina ao encarar Joãozinho Bem-Bem. Lhano, olhou a onça no olho, tomou-se de ira santa e lhe disse na fuça que o "pronunciamento" era "de todo inadmissível", típico de um "pretorianismo que cumpre repelir". Lembrou os "dias sombrios" da ditadura e alertou seus pares e o país: as "intervenções castrenses" causam "danos irreversíveis ao sistema democrático".

Como Gilmar Mendes, Lewandowski, Marco Aurélio e Toffoli, Nhô Celso foi vencido. Mas esteve à altura do momento, teve sua hora e vez quando, altivo como Matraga, enxovalhou Villas Bôas Bem-Bem e pôs a casta verde-oliva no devido lugar.

Mário Sérgio Conti, o autor deste artigo, é jornalista. Autor de "Noticias do Planalto", o mais completo livro-reportagem sobre a era-Collor. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 28.11.25, edição impressa.

A demência do general

Diagnóstico de Alzheimer poderá dar a Augusto Heleno benefício de prisão domiciliar. Seria desejável criar controles para evitar que pessoas em declínio cognitivo assumam cargos políticos?

O general Augusto Heleno, condenado no processo da trama golpista - Evaristo Sá - 8.fev.24/AFP

Está dando certo. O general Augusto Heleno apareceu com um diagnóstico de Alzheimer, seus advogados pleitearam prisão domiciliar e a PGR concordou. É bem possível que Alexandre de Moraes conceda o benefício humanitário. Ao contrário de Jair, Heleno não fez nada que pudesse ser interpretado como tentativa de fuga.

Sei que muitos desconfiarão do oportuno diagnóstico, mas não me embrenho nessa seara. O que me interessa aqui é a questão da capacidade jurídica. A crer no estratego, ele descobriu ter a doença em 2018 e, no ano seguinte, tornou-se ministro de Estado. Passamos quatro anos sob o tacão de uma alta autoridade que já apresentava síndrome demencial ou ao menos sinais de declínio cognitivo suficientes para procurar um médico.

Como regular isso? Vejam que, na ponta oposta, a dos jovens, não hesitamos em legislar pela média. Brasileiros só se tornam maiores plenamente capazes ao completar 18 anos e, mesmo assim, têm de esperar até os 35 anos para exercer funções que julgamos exigir mais maturidade, como a Presidência.

Deveríamos, então, por paralelismo, criar uma idade máxima para cargos de poder? Já existe a aposentadoria compulsória aos 75 anos para várias carreiras de Estado, mas a justificativa aí é mais abrir espaço para a renovação do que presunção de incapacidade, que quase certamente seria inconstitucional. Outra possibilidade seria submeter a testes cognitivos candidatos a postos eletivos e a cargos de livre nomeação. Já exigimos exame médico de quem quer renovar a CNH.

Eu não iria por esse caminho. Se é lícito avaliar a cognição, por que não testar também a personalidade? Isso poderia nos livrar de tipos tóxicos, mas também daria a um ramo da medicina o desproporcional poder de decidir quem pode ou não ser candidato.

Democracia é um contrato de risco. Se um psicopata decrépito convence a maioria da população de que é o mais indicado para comandá-la, pior para a população. Inelegibilidades precisam ter como base delitos cometidos, não riscos imaginados.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é jornalsta. Foi editor de opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem..." Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 28.11.25 (edição impressa).

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Festival de mediocridades

Às vésperas do novo ciclo eleitoral, Brasília encena uma rinha institucional entre Legislativo e Executivo que nada tem a ver com o interesse público, e sim com a satisfação de ambições pessoais

A cerca de um ano das eleições gerais, Brasília encena uma deprimente rinha institucional. Enquanto o País enfrenta problemas reais que exigem cooperação total entre os Poderes, Congresso e Palácio do Planalto decidiram fazer das lides políticas, de resto legítimas, um duelo por interesses mesquinhos. Ainda que performático, o alardeado “rompimento” dos presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, com o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se pauta pela discussão de qualquer tópico de uma agenda virtuosa para o Brasil. O que há é uma guerrilha miúda entre autoridades que sobrepõem suas ambições privadas ao interesse público.

Para começo de conversa, Lula fomentou o conflito que agora ameaça paralisar seu governo. Neste terceiro mandato, o presidente claramente abdicou da articulação com os parlamentares e a colocou nas mãos de amadores. O resultado aí está. Não se trata de inabilidade política, algo de que o petista jamais poderá ser acusado, mas de um projeto consciente de deslocar a política para fora de seu locus apropriado, o Congresso. Lula escolheu “governar”, por assim dizer, com o Supremo Tribunal Federal (STF), como se o eventual apoio da Corte a questões caras ao Executivo tivesse o condão de suplantar o diálogo com deputados e senadores.

A cada derrota política, o governo recorre ao STF para tentar reverter decisões tomadas legitimamente pelos representantes eleitos. Para piorar, ainda apela às redes sociais para atacar o Parlamento. A hashtag #CongressoInimigoDoPovo, amplificada por alguns dos governistas mais estridentes nas redes, como os deputados Lindbergh Farias e Erika Hilton, além do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Guilherme Boulos, não apenas degradou o ambiente de cooperação institucional, como alimentou uma retórica tão simplista quanto falaciosa segundo a qual oposição a Lula significa sabotagem contra os pobres.

O Congresso, porém, está longe de ser vítima. A súbita “ruptura” de Motta e Alcolumbre com o governo não se escora na defesa de prerrogativas constitucionais nem de princípios republicanos, mas na ampliação dos mecanismos de poder engendrados pelo Legislativo nos últimos anos, particularmente o controle sobre as verbas discricionárias do Orçamento. Ao fim e ao cabo, é do manejo de recursos públicos sem controle que se trata quando os presidentes das Casas Legislativas afetam indignação contra o governo, visto como parceiro do STF no combate ao orçamento secreto.

A coroar essa atitude indigna das altas posições que ambos ocupam na República, Motta e Alcolumbre decidiram faltar à cerimônia de sanção da lei de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais – uma medida amplamente aprovada pelo Congresso e que de resto beneficia a esmagadora maioria dos trabalhadores brasileiros. Pura picuinha. Pura politicagem rasteira.

A postura de Alcolumbre, em particular, sintetiza esse ambiente beligerante no qual o interesse nacional não chega a ser nem sequer uma miragem. Seu rompante ao declarar que será um “novo Davi”, após Lula frustrar sua expectativa de indicar um ministro para o STF, escancarou o problema: o Senado, que deveria ser o fiador da estabilidade institucional, foi transformado por seu presidente em um balcão de barganhas pessoais. A indicação de Jorge Messias para o STF contrariou interesses internos da Casa. Mas, em vez de lidar com a questão nos termos da Constituição, Alcolumbre destila ressentimento e distribui ameaças por não exercer uma prerrogativa que jamais foi sua.

Hugo Motta, por sua vez, tenta demonstrar força explorando o conflito, amparado por lideranças que tratam a Câmara como instrumento de chantagem: ora travam pautas do Executivo para pressionar a liberação de emendas, ora agitam o espectro de derrota política, como no caso da anistia aos golpistas, para extrair novas vantagens. Nada disso constrói políticas públicas duradouras e aptas a melhorar a vida dos brasileiros.

E assim assistimos a um festival de mediocridades. O resultado é um país à deriva, sem projetos estruturantes, sem reformas e sem um líder digno do nome e à altura destes tempos desafiadores.

Editorial \ Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.11.25

Após trama golpista, STF se prepara para julgar primeiros deputados do orçamento secreto

Caso de deputados do PL, o primeiro entre mais de 80 investigações sobre emendas, teve instrução encerrada e Zanin já pediu marcação do julgamento; acusados negam irregularidades; análise de desvios por parlamentares deve abrir nova frente de tensão da Corte com o Congresso em ano eleitoral

Mais de 80 investigações envolvendo deputados e senadores tramitam no STF, a maior parte sob relatoria do ministro Flávio Dino (Foto: VINICIUS LOURES AGENCIA CAMARA)

Após concluir a fase decisiva da trama golpista, que levou à prisão de Jair Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal (STF) entra agora na etapa mais sensível da crise das emendas parlamentares e se prepara para julgar o primeiro caso de desvio envolvendo congressistas, uma investigação aberta durante a apuração do chamado orçamento secreto, revelado pelo Estadão. O desdobramento ocorre a menos de um ano das eleições de 2026 e inaugura uma nova frente de tensão com o Congresso Nacional.

O processo, sob relatoria de Cristiano Zanin, mira os deputados Josimar Maranhãozinho (PL-MA), Pastor Gil (PL-MA) e o suplente de deputado Bosco Costa (PL-SE). A Procuradoria-Geral da República (PGR) acusa o grupo de cobrar propina para liberar pouco mais de R$ 6 milhões em emendas de saúde destinadas a São José de Ribamar, Maranhão. O caso veio à tona após denúncia do então prefeito da cidade, José Eudes Sampaio, em 2021, que relatou ter sido alvo de cobranças de propina pelo grupo. Os nomes dos três deputados foram antecipados em outubro do ano passado pelo Estadão.

Nesta quarta-feira, 26, as defesas apresentaram alegações finais, etapa em que os réus fazem suas últimas manifestações antes do julgamento. A fase ocorre após a PGR pedir, em novembro, a condenação dos três parlamentares por corrupção passiva e organização criminosa. Na sequência, Zanin abriu prazo de 5 dias úteis para que os demais réus que não apresentaram suas alegações finais o façam e, paralelamente, já solicitou ao presidente da Primeira Turma, Flávio Dino, datas para pautar o julgamento da ação penal.

De acordo com a PGR, mensagens obtidas pela Polícia Federal durante a investigação mostram que o grupo exigia parte dos repasses de prefeituras em troca da indicação das verbas por meio de emendas, numa espécie de “rachadinha” operacionalizada por contratos com empresas de fachada.

Na peça acusatória, a PGR afirmou que a destinação dos recursos ocorreu entre dezembro de 2019 e abril de 2020, durante o período do chamado orçamento secreto, mecanismo de baixa transparência que mantinha em sigilo o nome do parlamentar responsável pela indicação e que acabou declarado inconstitucional pelo Supremo em 2022.

Nas alegações finais, porém, as defesas dos parlamentares afirmam que não há provas de que as verbas investigadas tenham origem em emendas e sustentam que os repasses questionados foram feitos por decisão do Ministério da Saúde, sem participação dos acusados.

Os advogados dizem ainda que os diálogos citados pela PGR tratam de articulações políticas locais, não de cobranças ilícitas, e que o então prefeito José Eudes negou ter recebido pedidos de propina em nome dos deputados. As defesas também apontam falhas na investigação, como o “acesso tardio às mensagens” usadas na denúncia, e pedem absolvição por falta de provas.

Este será o primeiro processo sobre supostos desvios de emendas envolvendo parlamentares a chegar à fase de julgamento no STF, em um total de mais de 80 investigações que envolvem deputados e senadores e que tramitam na Corte, a maior parte sob relatoria do ministro Flávio Dino.

O avanço dessas apurações ocorre em meio a um novo desgaste entre o Congresso e o Supremo, após a prisão definitiva de Bolsonaro e de outros seis réus no caso da trama golpista, que reacendeu críticas de deputados e senadores da oposição ao ministro Alexandre de Moraes, relator do processo.

Como mostrou o Estadão, avançam no Congresso diversos projetos que buscam reduzir o poder dos ministros do STF, de propostas que restringem decisões individuais a textos que autorizam o Parlamento a anular julgamentos da Corte e criam um novo rito para processos de impeachment de ministros.

Em outra frente, a oposição, capitaneada pela família Bolsonaro, busca formar maioria no Senado em 2026. A eleição para a Casa é tratada como decisiva pelo ex-presidente, já que uma maioria bolsonarista daria ao grupo força para pressionar o Supremo com pedidos de impeachment de ministros. O Senado é o órgão responsável por processar e julgar esses pedidos, exercendo a prerrogativa constitucional de funcionar como instância de controle sobre o STF.

Bolsonaro já disse em público que, se tiver mais de 50% de cadeiras no Congresso, vai “mandar mais que o presidente da República”, ainda que ele esteja fora do jogo.

Para o professor do Insper Leandro Consentino, o início das investigações contra parlamentares relacionadas às emendas tende a tensionar ainda mais a relação entre os dois Poderes, especialmente a um ano das eleições.

Ele avalia que essas apurações atingem diretamente o centro da dinâmica política atual, que gira em torno do controle das verbas parlamentares, e colocam deputados e senadores sob risco real de responsabilização criminal. “Há ainda a percepção, entre parte da classe política, de que existe um ‘jogo casado’ entre o STF e o governo nesses casos”, afirma.

Segundo Consentino, esse cenário incentiva o Legislativo a reagir de forma corporativa e a intensificar a pressão sobre o Supremo, ampliando o clima de confronto institucional às vésperas de 2026. “A tensão com o STF tende a aumentar porque essas investigações ocorrerão em ano eleitoral. Mais uma página de tensionamento entre os dois Poderes pode começar”, diz.

Hugo Henud, originalmente, para O Estado de S. Paulo. Publicado em 28.11.25

Brasil vive apropriação continuada de poder, com empecilho para negros na política, diz ativista

José Adão de Oliveira defende bancas de heteroidentificação para barrar fraudadores de cotas. Cofundador do MNU afirma que proporcionalidade de negros é essencial para democracia

José Adão de Oliveira, cofundador do MNU (Movimento Negro Unificado), nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, onde foi realizada, em 1978, a primeira manifestação do movimento - Rafaela Araújo /Folhapress

Para o cofundador do MNU (Movimento Negro Unificado) José Adão de Oliveira, 70, o Brasil vive, desde a distribuição de capitanias hereditárias em tempos coloniais, uma história marcada pela apropriação de poder por uma minoria.

Segundo ele, essa minoria cria empecilhos para que a população negra alcance espaços de decisão ao tentar minar as políticas de cotas vigentes no país, seja a partir da anistia aos partidos que não cumprem a legislação seja por meio da fraude na identificação racial.

Cotas para negros em espaços de poder são uma demanda de décadas da população negra, incluindo o MNU, surgido em 1978 para lutar contra a discriminação racial em plena ditadura militar (1964-1985).

Atualmente conselheiro do movimento, José Adão fala sobre a política racial do terceiro governo Lula (PT), que ele considera ser prejudicada pela necessidade de negociação com grupos conservadores, defende bancas de heteroidentificação para combater fraudes de candidatos autodeclarados negros nas eleições e traça considerações sobre a criação de um partido negro no Brasil.

Como avalia a inserção de negros na política?

Muita gente que era lida como branca e nunc a se autodeclarou negra, de repente, começou a se declarar. Houve um crescimento exponencial de autodeclaração visando se apropriar da verba pública. Parlamentares de esquerda votaram com a direita pela não aplicação da lei [de cotas nas eleições]. Isso impede que as instâncias de poder expressem democraticamente o percentual de negros e mulheres na população.

Essa proporcionalidade tinha que estar em todas as cadeiras do Parlamento, para cumprir o conceito de democracia. Nem democracia representativa nós temos. Temos uma apropriação continuada do poder pelas famílias das capitanias hereditárias da colonização, que permanece inalterada até hoje. Melhorou um pouquinho, mas, em essência, são essas as estruturas que continuam usufruindo do trabalho suado da maioria da população.

Como seria possível resolver a autodeclaração potencialmente incorreta?

A banca de heteroidentificação é parte da evolução da política pública. Ela tem que estar em todos os processos. Também é necessário ter uma formação pública e ética dos servidores em todas as instâncias.

A falta de ética está no princípio. Se a pessoa não tem ética para ocupar aquele espaço, ela não deve ocupá-lo, para o bem-estar da sociedade.

Homem negro com cabelo grisalho e óculos segura corrimão de escada em frente a edifício histórico com colunas e porta de ferro ornamentada

José Adão de Oliveira volta a local de apresentação do MNU, no centro de São Paulo, 47 anos depois de lançado o movimento pelos direitos da população negra - Rafaela Araújo /Folhapress

Considerando esses aspectos, qual é o saldo da política de cotas raciais nas eleições?

A política em si é exitosa, porque conseguiu ser implantada. Agora, dado o atraso em que ainda vivemos —estamos na semirrepública, no semicolonialismo—, há ainda muita rejeição. Essa rejeição não vai desqualificar a política [de cotas]. São as pessoas que não estão à altura da política, que estão atrasadas no tempo.

Existe algum nome forte de candidato negro para concorrer à Presidência em 2026? Como avalia o cenário?

Não existe. Essa não existência é fruto dessa política que deu razão ao surgimento do MNU. É preciso haver um processo de construção da cidadania em relação a educação, saúde, moradia, participação social e respeito. Tudo isso faz um conjunto formativo de cidadania, participação social e reconhecimento de pessoas que geram confiança para a delegação de tarefas.

Se as pessoas não conseguem chegar a cargos de gerência, não há referência para a pessoa de baixo que está olhando para cima. Se não há referência, não tem como delegar. Como votar no que não existe?

É por isso que não temos uma candidatura forte para governador, prefeito ou presidente. Eu poderia citar a Benedita da Silva [deputada federal pelo PT do Rio de Janeiro], que é o nome mais famoso que temos, mas ela não chega a ter uma densidade eleitoral de, no mínimo, 20%. [Tem a ver com] esse histórico de invisibilidade e de crimes continuados contra a população negra.

Qual tem sido o saldo do governo Lula 3 em relação a políticas públicas para a população negra?

Poderia ser bem melhor, mas é a expressão dessa articulação política que foi feita, na qual se tem que negociar com a maioria conservadora. Pautas progressistas não avançam muito, mas tivemos avanços na política de saúde para a população negra.

No MEC [Ministério da Educação], os avanços estão no investimento no ensino médio e no Pé de Meia [programa do governo federal que dá incentivo financeiro a estudantes]. Há também uma política de apoio a cursinhos populares, o que é muito importante, porque o pessoal dos cursinhos e da EJA [Educação de Jovens e Adultos] são cidadãos que não tiveram o seu direito à educação respeitado desde pequenos.

E no Judiciário, como avalia a absorção de negros neste Poder e a pressão de movimentos sociais por uma mulher negra no STF (Supremo Tribunal Federal)?

São a continuidade e o aperfeiçoamento da política de cotas que vão propiciar mais acesso ao Judiciário. Sobre a pressão por uma mulher negra no STF, é totalmente justa e necessária. O Supremo sem a Cármen Lúcia, com ela se aposentando, vai ficar como? Um Judiciário de homens brancos.

É mais que necessário ter mais pessoas negras e mulheres participando. É um fator de justiça, na verdade. Sem muitas delongas, é simplesmente fazer justiça. Se o Judiciário não faz justiça consigo mesmo, como é que pode dar exemplo para a sociedade?

No ano de sua fundação, em 1978, o MNU lançou texto no qual tratou da falta de representação da população negra "nos meios de decisão, o que consequentemente nos impede de levar as nossas reivindicações às mais altas esferas políticas". No texto, o movimento se diz consciente de estar "numa fase embrionária de organização", daí a impossibilidade de ter lançado, na época, candidatos próprios. Desde então, pensaram em fundar um partido?

Não posso falar pela totalidade do MNU, mas nunca debatemos em nenhum congresso nosso a possibilidade de o MNU ser um partido. O que nós colocamos, desde 1993, é a construção de um projeto político a partir da perspectiva da população negra, do povo negro para o Brasil, para o conjunto, e não de a gente ser um partido político.

Na nossa história, não lançamos candidatos próprios porque não somos partido político. Mas pessoas filiadas ao MNU foram candidatas, dentre elas o Abdias Nascimento. Atualmente temos várias candidatas, como Simone Nascimento (PSOL), codeputada estadual em São Paulo e coordenadora do MNU.

Como o MNU avalia a possibilidade da criação de um partido negro no Brasil? Existem iniciativas nesse sentido.

É um direito. Mas eu acho que o MNU não se constituiria nessa alternativa. O MNU tem uma carta de princípio, tem um programa em execução. A gente quer ver as pessoas negras ocupando os vários espaços que estão aí.

O Republicanos, do governador Tarcísio [de São Paulo], por exemplo. Quantos secretários estaduais são negros e negras no governo Tarcísio? No partido do Tarcísio? E nos demais partidos?

A evolução seria ter a ocupação equitativa em todos os partidos, cumprindo a lei existente de cotas. Criar um partido negro é um direito, mas não vejo como a solução. É uma das soluções, mas não a mais adequada.

O MNU se define como apartidário, mas alinhado à esquerda. Como o movimento encara negros de direita?

É igual o branco de direita. Não tem distinção. A questão de direita e da esquerda surgiu na Revolução Francesa. De quando é Zumbi dos Palmares? De quando é Ganga Zumba? Muito, mas muito antes disso. Quando Pero Vaz de Caminha veio para cá e classificou os indígenas como pardos, essa divisão já veio. A nossa questão [racial] vem antes [de esquerda e direita].

RAIO-X | José Adão de Oliveira, 70

Cofundador e integrante do Conselho dos Griots do MNU (Movimento Negro Unificado). É educador social, escritor, coautor do livro "Movimento Negro Unificado: a resistência nas ruas" (Edições Sesc São Paulo e Fundação Perseu Abramo, 2019) e coordenador do "I Livro GRIOT do MNU: memórias de vida e luta da Idosidade Negra" (Sabedoria Griot, 2024).

Ana Gabriela Oliveira Lima, originalmente para a Folha de S. Paulo, em 17.11.25 (edição impressa)

Novo estudo aponta idade surpreendente para o fim da adolescência

Pesquisadores da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, revelam que cérebro passa por cinco épocas principais ao longo da vida. Trabalho revela "momentos-chave" da existência humana

As grandes mudanças cerebrais acontecem entre os 9 e os 83 anos -  (crédito: Freepik)

Cientistas da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, descobriram que a estrutura cerebral humana passa por cinco "grandes épocas" ao longo dos anos. As mudanças ocorrem à medida que o cérebro se reconfigura para suportar diferentes formas de pensar enquanto crescemos, amadurecemos e envelhecemos. O estudo publicado na revista Nature Communications sugere ainda que a adolescência termina, na verdade, aos 32 anos.

Para o trabalho, a equipe comparou os cérebros de 3.802 pessoas até 90 anos. Os cientistas usaram dados de exames de ressonância magnética de difusão, que mapeiam as conexões neurais rastreando como as moléculas de água se movem pelo tecido. 

A "topologia" do cérebro infantil se desenvolve desde o nascimento até um ponto de virada aos 9 anos, quando entra na fase da adolescência; esse período, por sua vez, dura, em média, até os 32, quando a estrutura neural começa a se transformar, entrando no modo adulto. Um terceiro ponto de inflexão, por volta dos 66 anos, marca o início do "envelhecimento precoce" da arquitetura cerebral. Já o "envelhecimento tardio" se consolida aos 83 anos.

Vulnerabilidade

Segundo Alexa Mousley, bolsista da Fundação Gates em Cambridge, e coautora da pesquisa, as eras fornecem um contexto importante para entender no que os cérebros podem ser mais eficazes ou mais vulneráveis em diferentes fases da vida. "Isso pode nos ajudar a compreender por que alguns cérebros se desenvolvem de maneira diferente em momentos-chave da vida, sejam dificuldades de aprendizagem na infância ou demência na terceira idade."

Conforme a publicação, desde a infância até a adolescência, o cérebro é definido pela "consolidação da rede", à medida que a abundância de sinapses produzidas em excesso no bebê é reduzida, restando apenas as mais ativas. Em todo o órgão, as conexões se reorganizam seguindo o mesmo padrão do nascimento até aproximadamente os 9 anos.


Por volta dos 9 anos, no primeiro ponto de virada, o cérebro passa por uma mudança radical na capacidade cognitiva e por um risco maior de transtornos de saúde mental. Na segunda fase, a adolescência, a substância branca continua aumentando em volume, de modo que a organização das redes de comunicação se torna cada vez mais refinada.

A adolescência é definida pela eficiência das conexões, tanto dentro de regiões específicas quanto pela comunicação rápida em todo o cérebro, o que está relacionado a um melhor desempenho cognitivo. "Como você pode imaginar, a eficiência neural está bem conectada por caminhos curtos, e a adolescência é a única fase em que essa eficiência está aumentando", destacou Mousley.

Aos 32 anos acontece o que os pesquisadores definem como o "ponto de virada topológico mais forte" de toda a vida. "Por volta dessa idade, observamos as mudanças mais significativas na direção das conexões neurais e a maior alteração geral na trajetória, em comparação com todos os outros pontos de inflexão",  sublinhou Mousley.

É então que começa a fase mais longa, a adulta. A arquitetura cerebral se estabiliza em comparação com os períodos anteriores, sem grandes pontos de virada durante 30 anos. Isso corresponde a um "platô na inteligência e na personalidade", com base em outros estudos, afirmaram os pesquisadores.

Em cada época

Thiago Taya, neurologista e neuroimunologista do Hospital Sírio-Libanês, em Brasília, as fases de desenvolvimento e envelhecimento do cérebro e a própria história de vida são fractais. "Na infância fazemos associações entre tudo, absorvemos uma quantidade absurda de informações em pouco tempo, mas sem organização e sem coerência objetiva, na adolescência os nossos conhecimentos começam a se consolidar, começamos a ter um perfil de personalidade mais bem definido, às vezes até demais por ainda existir um excesso de conexões neuronais."

Taya avalia ainda que na vida adulta já temos conhecimento basal do mundo e da realidade como um todo, assim como maior maturidade emocional e comportamental. "Na terceira idade, começamos a reduzir lentamente a nossa capacidade cognitiva, ficamos mais enrijecidos do ponto de vista cognitivo e de comportamento, e tudo isso refletindo de maneira direta as fases de desenvolvimento e envelhecimento cerebral."

A nova virada que acontece aos 66 anos é muito mais suave e não é definida por grandes mudanças estruturais, embora os pesquisadores ainda tenham encontrado alterações significativas no cérebro, em média, por volta dessa idade. "Esta é uma idade em que as pessoas enfrentam um risco maior de desenvolver uma variedade de problemas de saúde que podem afetar o cérebro, como a hipertensão", afirmaram os pesquisadores no estudo.

O último ponto de virada acontece por volta dos 83 anos. Embora os dados sejam limitados, a característica definidora segundo os estudiosos é uma mudança "do global para o local", à medida que a conectividade de todo o cérebro diminui ainda mais, com maior dependência de certas regiões. 

"Estações do ano"

Para Marcos Alexandre Carvalho Alves, coordenador da neurologia do hospital Mater Dei Goiânia e especialista em doença de Parkinson, as descobertas têm grande impacto. "Pensávamos que o cérebro se desenvolvia de forma contínua, como uma linha reta. Agora vemos que ele passa por fases bem definidas, como estações do ano. Saber que existem momentos específicos de reorganização nos ajuda a entender quando o órgão está mais preparado para aprender e quando está mais frágil. Isso explica por que certas doenças mentais aparecem em idades específicas. Elas estão ligadas a esses pontos de virada."

"Olhando para trás, muitos de nós sentimos que nossas vidas foram caracterizadas por diferentes fases. Acontece que o cérebro também passa por essas eras", acrescentou o autor sênior, Duncan Astle, professor de neuroinformática em Cambridge. "Muitas condições neurodesenvolvimentais, de saúde mental e neurológicas estão ligadas à forma como o cérebro está conectado. De fato, diferenças na conectividade cerebral predizem dificuldades com atenção, linguagem, memória e uma série de outros comportamentos", completou. 

É bem interessante mostrar que é possível segregar, de fato, como é a conectividade do cérebro em diferentes pontos da vida da pessoa. Mas se isso tem relação com alguma coisa que já é programada, que é esperada, ou se é produto de interações com doenças e com o meio ambiente, é difícil de determinar. Mas esse é um ponto de partida para futuros estudos compararem, por exemplo, pessoas que têm uma doença mental, que se desenvolveu na juventude, e comparar com aqueles que não desenvolveram essa condição. Talvez consigam identificar essa mudança antes de acontecer o adoecimento, por exemplo. Ou então comparar se indivíduos que têm trajetórias diferentes por volta dos 66 anos vão evoluir com demência ou não. Isso são cenas dos próximos capítulos.

Carlos Uribe, neurologista do Hospital Brasília, da Rede Américas

Postado originalmente por Isabella Almeida no Suplemento Ciência e Saúde, do Correio Braziliense, em 26.11.25

PL suspende salário de Bolsonaro; veja quanto recebia o ex-presidente

Partido cita a suspensão dos direitos políticos como motivo para o interrompimento das atividades partidárias e remuneração de Bolsonaro

Somando todas as remunerações que recebia até o mês passado, a renda mensal de Bolsonaro chega a R$ 100 mil  -  (crédito: Evaristo Sá/AFP)

O Partido Liberal (PL) anunciou nesta quinta-feira (27/11) a suspensão do salário e das atividades partidárias de Jair Bolsonaro. Em comunicado, o partido informa que o motivo da decisão é a suspensão dos direitos políticos do ex-presidente, preso por tentativa de golpe de Estado.

“Infelizmente, por decorrência da lei (Lei 9096/95 – REspEl n° 060026764; AGR-RO 060023248) e em razão da suspensão dos direitos políticos do nosso Presidente de Honra, Jair Bolsonaro, as respectivas atividades partidárias de nosso líder estarão igualmente suspensas, inclusive a sua remuneração, enquanto perdurarem os efeitos do acórdão condenatório na AP 2668”, diz o informe.

O ex-presidente, preso no fim de semana, se filiou ao PL em novembro de 2021. Antes disso, ele foi eleito presidente pelo antigo PSL (atual União Brasil) e saiu, em 2019, para tentar criar o partido Aliança Brasil. A tentativa, no entanto, nunca se concretizou.

Quanto recebe Jair Bolsonaro?

De acordo com o Portal da Transparência, o ex-presidente recebe, como capitão reformado do Exército, a remuneração bruta de R$ 12.861, 61. 

Deputado aposentado, Jair Bolsonaro também recebe R$ 41.563,98 da Câmara dos Deputados, em valores brutos.

Publicado originalmente pelo Correio Braziliense, em 28.11.25

Leia também: Bolsonaro terá direito ao Saidão de Natal? Entenda as regras

Segundo o G1, antes de ter os direitos políticos suspensos, Bolsonaro recebia um salário de R$ 46 mil do Partido Liberal. 


Somadas, as quantias resultam em uma remuneração mensal de R$ 100 mil

'Se pensar só em proteína e carboidrato, o pão vira inimigo'

Há 25 anos, a chef de cozinha Rita Lobo lançava o site Panelinha com um intuito simples: ensinar qualquer pessoa a cozinhar em casa para ter uma alimentação mais saudável baseada em comida de verdade.

Rita Lobo durante entrevista

A ideia era ajudar o público, de forma simples e democrática, a evitar os chamados ultraprocessados, alimentos feitos majoritariamente com ingredientes industriais, aditivos químicos e poucos itens in natura.

A missão se provou cada vez mais relevante: os alimentos ultraprocessados já respondem por cerca de 20% das calorias diárias ingeridas pela população brasileira, segundo um estudo pesquisa da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

No mundo, os dados são ainda mais alarmantes: em alguns países de alta renda, como o Reino Unido, os alimentos ultraprocessados já respondem por mais de 50% das calorias consumidas, segundo estudo da revista Lancet.

Neste mês de novembro, a mesma publicação científica lançou uma série especial focada nos efeitos dos alimentos ultraprocessados sobre a saúde humana.

O conjunto reúne três artigos assinados por 43 pesquisadores de diferentes países e pede adoção de políticas públicas que combatam o avanço dos ultraprocessados.

A chef brasileira foi uma das convidadas para o lançamento presencial, em Londres, e conversou com a BBC News Brasil sobre a responsabilidade da indústria, o papel das políticas públicas e o desafio de tornar a comida de verdade acessível em um mundo cada vez mais dominado por produtos ultraprocessados.

Confira a entrevista abaixo.

Rita Lobo: 'Se pensar só em proteína e carboidrato, o pão vira inimigo'

BBC News Brasil  - Se precisasse traduzir o que essa série traz para um público leigo, como faria?

Rita Lobo - Eu diria assim: "Leia a lista de ingredientes do rótulo. Se tiver nomes de coisas que você não tem na sua cozinha, deixe no supermercado".

O que a revista está dizendo é que esses produtos que parecem comida, têm cheiro de comida, têm sabor de comida, na verdade, são formulações industriais que o corpo não entende mais como comida.

E, em função disso, o consumo desses produtos, que tira da mesa a comida de verdade, está adoecendo as populações.

Os índices de obesidade no mundo só crescem, e com eles crescem as doenças crônicas não transmissíveis, como doenças coronárias, diabetes, alguns tipos de câncer e até problemas ligados à saúde mental.

O que a Lancet está dizendo é que não basta só os indivíduos fazerem escolhas melhores. São necessárias políticas públicas que levem comida de verdade às pessoas e que dificultem o acesso e o consumo dos ultraprocessados.

BBC News Brasil - Como reconhecer um ultraprocessado?

Rita Lobo - O principal é a lista de ingredientes. Mas também existe uma lógica: é um produto pronto para comer, que você não precisa cozinhar?

E é importante saber o que é comida de verdade, que é aquela feita a partir de alimentos in natura ou minimamente processados. Não é só o que você compra na feira. Quando você compra um pacote de feijão, ali dentro tem feijão. Não é "feijão sabor feijão".

Um iogurte natural, por exemplo, não é ultraprocessado, porque só tem leite e fermento. Não tem adição de açúcar, adoçante, corante, saborizante ou emulsificante. É basicamente leite e fermento.

A comida de verdade é feita por mãos humanas, não é feita na fábrica, e ela leva em conta um padrão alimentar tradicional.

No Brasil, é o arroz com feijão, os legumes, as verduras, a farofinha. O problema não é a batata frita — o problema é a batata frita ultraprocessada, aquelas congeladas, cheias de amidos modificados e aditivos.

BBC News Brasil - E o que mantém as pessoas mais longe hoje de cozinhar?

Rita Lobo - Essa é uma pergunta complexa. Durante muito tempo, até os anos 90 no Brasil, as pessoas comiam mais comida de verdade. Em países como Estados Unidos e Inglaterra, isso foi até as décadas de 60 ou 70.

As mulheres não trabalhavam fora. Quando elas foram para o mercado de trabalho — o que foi essencial — os homens não ocuparam esse lugar na cozinha. E a cozinha virou uma espécie de terra de ninguém.

A indústria que antes ajudava a conservar alimentos passou a perceber que era muito mais lucrativo oferecer comida pronta, com uma validade enorme e com ingredientes cada vez mais baratos, cheios de aditivos que fazem o produto parecer comida.

Hoje, são bilhões de dólares em marketing dizendo, desde que a criança nasce, que aquelas misturinhas industriais são melhores que a comida de verdade.

E trago outro ponto: você disse que comeu ovos mexidos hoje no café da manhã. Muita gente escolhe essa refeição por ser uma fonte de proteína.

E a maioria das pessoas não diz "eu comi ovos", diz "eu comi minha proteína". "Estou evitando carboidrato simples."

Esse jeito de falar muda tudo. Quando o que você "precisa" é proteína, tanto faz se vem do ovo ou do whey. Tanto faz se você vai comer frango ou um iogurte proteico. Até o jeito de falar sobre comida é moldado por essa indústria.

A gente passa a chamar os alimentos pelo nutriente que eles entregam. E, a partir daí, tanto faz estar escolhendo comida de verdade ou um produto. Porque o foco vira o nutriente — e você começa a perder a capacidade de diferenciar o que é comida e o que não é.

BBC News Brasil - Essa onda desumaniza o jeito que a gente vê a comida?

Rita Lobo - Totalmente. Isso tem nome na nutrição: reducionismo nutricional. Quando você passa a escolher a comida só pelo nutriente que ela vai te entregar, você perde a referência do que é comida de verdade.

Até o jeito de falar muda. Em vez de "vou beber água", a pessoa diz "preciso me hidratar". E aí alguém aparece dizendo que tem algo "melhor que água", como um isotônico. E você cai nessa armadilha.

'Quanto menos a gente comer comida de verdade, mais baratos vão ficar os ultraprocessados e mais caras vão ficar as opções realmente saudáveis', diz Rita Lobo à BBC News Brasil (Crédito,Getty Images)

BBC News Brasil - Algum ultraprocessado entra na sua casa?

Rita Lobo - Quando você vira a chave, você percebe que não precisa de ultraprocessados. Pelo contrário: hoje, se alguém me oferece um "chocolate" que já nem é mais chocolate — esses confeitos com sabor de chocolate dos produtos comerciais —, para o meu paladar é doce demais, artificial demais. Não é algo que eu ache gostoso, nem algo que eu queira comer.

E eu sei, por experiência própria, que é possível ter uma alimentação baseada em comida de verdade. Mas tem duas coisas essenciais.

A primeira: não existe querer ter uma alimentação saudável e não saber cozinhar.

A segunda coisa é o planejamento. Se você decide o que vai comer só na hora da fome, você vai fazer piores escolhas.

As nossas avós já faziam isso: cardápio semanal, lista de compras, para não comprar demais nem de menos. Se você compra mais, joga comida fora — e joga dinheiro fora. Se compra menos, falta ingrediente o tempo todo: "Esqueci de comprar cebola, não dá para fazer o arroz".

Planejar é essencial, inclusive para o orçamento. E pensar em comida três vezes por dia cansa. Se você pensa nisso uma vez por semana, planejando, fica muito mais fácil manter uma alimentação saudável. Você compra melhor, cozinha mais, divide porções, congela.

Planejamento é fundamental. Aprender a cozinhar é fundamental.

E isso não é "assunto de dona de casa". É assunto da casa. É o motivo de eu ter me aproximado tanto do mundo da saúde pública, porque hoje a ciência e a medicina entendem que transformar alimentos in natura e minimamente processados em comidas gostosas é uma ferramenta poderosa para ter uma vida melhor, mais saudável — e mais saborosa também.

BBC News Brasil - E eu queria perguntar o que acha da inteligência artificial na cozinha, que é sempre um espaço tão humano.

Rita Lobo - Eu vejo de forma muito positiva, porque a inteligência artificial ajuda em coisas que as pessoas já não têm tanta habilidade.

Por exemplo: planejar. Se eu te disser agora "faz um planejamento básico de quatro dias do que você vai comer e uma lista de compras", você vai demorar muito tempo. E talvez nem faça tão bem quanto as nossas avós faziam, porque elas tinham essa habilidade.

A inteligência artificial sabe fazer isso. Você precisa saber perguntar, mas eu acho uma coisa muito boa.

Para criar receita, eu ainda não estou totalmente satisfeita. Eu adoraria que fosse melhor.

No Panelinha a gente tem uma equipe testando receitas todos os dias, das 9h às 18h.

A gente testa receita para quem mora sozinho, por exemplo. Porque quando você mora sozinho, você tem praticamente um relacionamento com o repolho. Ele dura. Mas você faz uma vez e, no dia seguinte, pensa: "de novo repolho?". Então a gente testa inúmeras formas de preparar o mesmo ingrediente.

Uma hora grelhado, outra hora assado com bacon, outra hora refogado com cominho, que muda completamente o sabor, outra hora em salada com maçã... A gente fica testando possibilidades.

A inteligência artificial ainda não está totalmente pronta para criar receitas assim, mas para planejamento eu acho que ela é muito boa.

BBC News Brasil - E falando de política pública, para quem quer cozinhar mais em casa, tem um cenário ideal que poderia ajudar e fazer alguma diferença contra esse lobby milionário dos ultraprocessados?

Rita Lobo - Quanto mais a gente cozinha e compra alimentos in natura e minimamente processados, mais a gente estimula esse mercado.

E quanto menos a gente consome ultraprocessados, mais a gente desestimula esse outro mercado. Claro que essa comparação não é simples, nem totalmente justa. Tem gente que realmente não consegue ter outro tipo de alimentação.

Aqui na Inglaterra, por exemplo, cerca de 52% das calorias vêm de ultraprocessados. Então é mais complexo.

A sensação de que cozinhar é um peso muda quando você entende que cozinhar é a melhor ferramenta que você tem para ter uma vida melhor. Quanto mais você cozinha, mais fácil fica.

Tem uma coisa que me incomoda muito — mas eu sou educada, não saio brigando com ninguém. Quando as pessoas dizem: "Ai, o que você faz é um dom. Cozinhar é uma arte. Eu acho lindo, mas não é para mim, eu não tenho mão."

Quando você diz isso, você está dizendo que ou a pessoa nasce com isso, ou nunca vai cozinhar. E não é verdade. Cozinhar é como ler e escrever: você não nasce sabendo, você aprende.

Todo mundo aprende a ler e escrever. Uns viram grandes escritores, outros não conseguem escrever uma mensagem direito, mas aprenderam. Cozinhar é a mesma coisa.

Não estou dizendo para ninguém virar chef, mas aquele básico para garantir uma alimentação saudável, saborosa e dentro do orçamento, todo mundo pode aprender.

BBC News Brasil - Você viaja bastante. Está em Londres essa semana. O que vê nos supermercados em comparação com o Brasil, com os Estados Unidos, outros países?

Rita Lobo - Caro. Esse é o primeiro ponto. Muito caro. No Brasil, hoje, comer comida de verdade custa mais ou menos o mesmo que basear a alimentação em ultraprocessados. Aqui, comer comida de verdade é mais caro, e isso você sente no supermercado. Os ultraprocessados são muito mais baratos.

Parte disso é porque no Brasil ainda se come muita comida de verdade, ainda existe mercado para isso.

Quanto menos a gente comer comida de verdade, mais baratos vão ficar os ultraprocessados e mais caras vão ficar as opções realmente saudáveis.

Outra coisa que me chama atenção em qualquer lugar que eu vou é que, quando estamos no Brasil, o melhor jeito de se alimentar é seguindo a dieta brasileira. Quando estamos na Itália, o melhor jeito é comer como os italianos.

Isso acontece porque essas culinárias foram sendo construídas a partir dos alimentos abundantes daquela região. Aqui na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, não existe um padrão alimentar tradicional tão claro, tão equilibrado.

Quando eu chego nesses lugares, eu tento buscar coisas mais frescas, que viajaram menos. Eu adoro cozinhar onde eu vou. Vou ao mercado, compro comida e tento entender os ingredientes locais.

No Brasil, por exemplo, a gente nem imagina que cheddar pode ser um queijo maravilhoso, porque a nossa referência é aquele "plástico" amarelo. Aqui você encontra queijos cheddar incríveis, com diferentes tempos de maturação. Então é isso: buscar comida local, comer o que é da região.

BBC News Brasil - Falando em comida local, o nosso PF brasileiro… Ele é tudo isso mesmo? O que os outros países podem aprender com ele?

Rita Lobo - Ele é tudo isso e muito mais. Pensa o seguinte: há cinco grupos de alimentos que a gente precisa comer.

Um grupo é o dos cereais, raízes ou tubérculos. Esses três alimentos — um cereal como o arroz, como a aveia, raiz ou tubérculo como a mandioca, como a batata — formam um grupo, porque eles têm um papel nutricional parecido.

Aí a gente precisa comer uma leguminosa, que são os feijões, o grão-de-bico, a lentilha.

Aí a gente precisa comer hortaliças, que é tudo que vem da horta: os legumes e as verduras.

A gente precisa — quer dizer, não precisa obrigatoriamente, mas pode — comer carnes e ovos.

E a gente precisa comer frutas.

Então, o PF já tem quatro desses grupos, porque ele tem o arroz, que é o cereal; o feijão, que é uma leguminosa; o bife, o frango, o ovo ou o peixe, que entram como a carne.

E aí, nas hortaliças, ora é um chuchu refogadinho, uma saladinha com tomate, a cenoura ralada… e assim por diante.

Então, o PF é uma fórmula de alimentação saudável. Ele já traz tudo isso.

E um outro ponto: o feijão tem 19 aminoácidos. Para virar uma proteína, precisava de mais um. E o arroz tem esse essa proteína essa esse aminoácido que faltava. Então, é por isso que juntos o arroz com feijão formam uma potência nutricional.

Só fica faltando a fruta, que a gente pode — e deve — comer como sobremesa, mesmo que vá comer um doce.

Giulia Granchi, da BBC News Brasil em Londres. Publicado em 28.11.25

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Irresponsabilidade institucional

A Constituição é clara ao fixar que cabe ao presidente da República indicar ministros ao STF, prerrogativa que o presidente do Senado tentou usurpar à luz do dia, na base da chantagem

Lula e Messias

Aindicação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) é prerrogativa exclusiva do presidente da República, conforme se lê em nada menos que três artigos da Constituição (52, 84 e 101). Ao Senado, segundo esses mesmos artigos, cabe aprovar ou rejeitar a indicação, depois de sabatinar o candidato. Nada mais.

Contudo, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), parece entender que tem o poder de nomear ministros do STF. Sem que nada o autorize a fazê-lo – nem a Constituição, nem os códigos morais, nem os valores republicanos –, Alcolumbre quis forçar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a indicar um protegido seu, o também senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). E o fez sem qualquer sutileza, tentando usurpar à luz do dia a competência presidencial.

Como Lula não cedeu e indicou para a vaga no STF o advogado-geral da União, Jorge Messias, Alcolumbre partiu para a vendeta e passou a ameaçar o Palácio do Planalto com a ingovernabilidade. Como apurou o Estadão, Alcolumbre disse a amigos que, a partir de agora, será “um novo Davi” e mostrará a Lula “o que é não ter o presidente do Senado como aliado”.

Como aperitivo, Alcolumbre pautou – e conseguiu aprovar – o projeto que concede aposentadoria especial a agentes comunitários, um despautério político e fiscal que já reprovamos no editorial Demagogia previdenciária (12/10/2025) e que vai impor custos bilionários ao governo. É uma tremenda irresponsabilidade por parte do presidente do Senado.

A atitude de Alcolumbre, contudo, deve ser lida para além dos interesses particulares do senador. Trata-se de mais um movimento de expansão dos poderes do Congresso sobre o Executivo. Os parlamentares hoje dispõem de substancial parcela da dotação discricionária do Orçamento, da qual fazem uso sem qualquer compromisso com políticas públicas coordenadas pelo governo federal. Ou seja, desfrutam do bônus do dinheiro do contribuinte sem o ônus político da gastança, que recai quase todo sobre o Executivo.

Agora, a julgar pelo comportamento do presidente do Senado, a intenção é dobrar o presidente à vontade dos parlamentares também em relação ao Judiciário. Isso não acontece por acaso.

Consolidou-se no Brasil a percepção de que o STF é um poderoso ator no jogo político, frequentemente chamado a mediar disputas que deveriam se limitar ao Congresso. Daí que as indicações ao Supremo têm respeitado essa característica: já não importa muito se o nomeado tem “notável saber jurídico”, e sim que possa atuar em favor do grupo político do presidente da República. Jair Bolsonaro e Lula, cada qual à sua maneira, contribuíram para essa degeneração ao escolherem nomes que, em vez de uma trajetória jurídica incontestável, demonstraram lealdade pessoal ao governante de turno.

É nessa conjuntura que o Senado, na figura de seu presidente, pretende deixar de ser apenas a instituição que chancela as escolhas ao Supremo para ter o poder de definir a composição da Corte. Por essa razão, somos obrigados a dizer que Lula fez bem em bater o pé e bancar Messias como seu nomeado, mesmo sob risco de provocar a ira de Davi Alcolumbre. Ao fazê-lo, Lula não permitiu que o Senado avançasse sobre as atribuições exclusivas do presidente da República.

Se está descontente com a indicação de Messias, o Senado e seu presidente, em particular, têm todos os meios republicanos para fazer valer a insatisfação. Basta sabatinar e avaliar o indicado, podendo rejeitá-lo caso considere que Messias não preenche os requisitos constitucionais. Mas o que se viu nos últimos dias ultrapassa o campo legítimo da divergência institucional e descamba para a extorsão.

As ressalvas ao nome de Messias, insista-se, permanecem válidas. Porém, o que está em questão é algo maior do que seu perfil: é a integridade do arranjo institucional estabelecido pela Constituição, que fixa claramente a quem cabe indicar e a quem cabe sabatinar futuros ministros do STF. 

Editorial \ Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.11.25

Morre aos 100 anos o jurista José Afonso da Silva, marco do direito constitucional

Autor de mais de 30 livros, já foi apontado como doutrinador mais citado em decisões do Supremo. Professor emérito da USP, especialista foi descrito como um dos arquitetos da Constituição de 1988


 O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, mostra livro ao jurista José Afonso da Silva, 100, durante homenagem na Faculdade de Direito da USP - Eduardo Knapp/Folhapress

Considerado uma das principais referências no direito constitucional brasileiro, o jurista e professor emérito da USP (Universidade de São Paulo) José Afonso da Silva morreu nesta terça-feira (25), aos 100 anos.

Autor de mais de 30 obras, José Afonso foi apontado em levantamento de 2013 como o doutrinador mais citado em decisões do STF (Supremo Tribunal Federal).

Ao completar 100 anos, em abril, foi homenageado por grandes nomes do direito brasileiro, como pelo então presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, durante sessão da corte e também pela ministra Cármen Lúcia, em sessão no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) sob sua presidência.

Natural do interior de Minas Gerais, José Afonso chegou a São Paulo em 1947, aos 22 anos, sem ter concluído o ensino primário. Na capital paulista, trabalhou como alfaiate enquanto completava os estudos.

Ingressou na Faculdade de Direito da USP aos 27 anos, depois de ter sido aprovado no vestibular. Mais tarde se tornou professor titular da instituição, onde lecionou até 1995. Em 2025, uma semana antes de celebrar seu centenário, recebeu o título de professor emérito.

Lançado em 1976, seu livro "Curso de Direito Constitucional Positivo" chegou à 46ª edição em 2025. "Esse é um livro que me agrada", disse em entrevista à Folha por ocasião de seus 100 anos, depois de contar que teve bastante trabalho para atualizar a obra com a Constituição de 1988. Sua obra favorita, por outro lado, conforme contou na data, era o livro "Aplicabilidade das Normas Constitucionais", publicado em 1968.

Na Assembleia Constituinte, foi assessor do senador Mário Covas, então líder do PMDB. O jurista é descrito por seus pares como um dos grandes arquitetos da Constituição aprovada em 1988.

José Afonso atuou ainda como procurador do Estado de São Paulo e ocupou cargos públicos, como o de secretário de Segurança Pública, no governo Mário Covas (PSDB).

Em celebração por seus 100 anos, ele foi homenageado em evento na Faculdade de Direito da USP marcado por discursos emocionados. Entre os presentes estiveram Luís Roberto Barroso, então presidente do STF, e José Carlos Dias, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Ao discursar, Barroso descreveu José Afonso como um dos principais cérebros por trás da Constituição de 1988 e afirmou que seu trabalho representou uma "virada de chave" no direito constitucional, trazendo uma lógica que seria de "fazer a Constituição funcionar".

A imagem mostra dois homens sentados em uma mesa. O homem à esquerda, mais velho, está usando um terno escuro e parece estar ouvindo atentamente. O homem à direita, mais jovem, está vestido com um terno claro e está segurando um livro, mostrando-o para o homem mais velho. Ambos estão em um ambiente com paredes de madeira e uma mesa com copos de água.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, mostra livro ao jurista José Afonso da Silva, 100, durante homenagem na Faculdade de Direito da USP - Eduardo Knapp/Folhapress

Barroso, que chegou a mostrar a José Afonso um de seus livros escritos pelo professor cheio de marcações e se emocionou em determinado momento, citou ainda a ditadura militar, dizendo que o jurista "manteve a chama do direito constitucional acesa quando se via no Brasil um momento de muita escuridão".

Oscar Vilhena, que é colunista da Folha e professor da FGV Direito, descreveu José Afonso no evento como "arquiteto jurídico" da Constituição de 88. "Sem risco de errar, o livro é um divisor de águas e um marco no direito constitucional."

"José Afonso nos deu régua e compasso para entender o direito constitucional", diz Vilhena. Para ele, trata-se do "constitucionalista mais importante das últimas cinco décadas, além de um jurista comprometido na defesa das instituições democráticas".

Em 2022, José Afonso se emocionou ao ser homenageado durante ato em defesa da democracia inspirado na célebre "Carta aos Brasileiros", lida em 1977 e da qual ele também foi signatário.

José Afonso teve três filhos e seis netos. Um deles, Virgílio Afonso da Silva, seguiu os passos do pai e é professor de direito na USP. Também é pai de Helena Augusta Afonso e Nereu Afonso da Silva.

Em comunicado, os filhos agradeceram as homenagens e o apoio recebido. "Guardamos o orgulho de seu legado e o privilégio imenso de tê-lo tido como pai", diz a nota assinada conjuntamente pelos três.

Manteve escritório por décadas no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, que abrigava sua biblioteca pessoal, da qual parte foi doada ao acervo da faculdade da USP. Ao chegar aos 100 anos, ele seguia visitando o local, onde antes trabalhava diariamente, para consulta quando necessário.

Em nota, o presidente do STF, Edson Fachin, lamentou a morte do jurista. "Que o luto por seu passamento seja dignamente iluminado pela memória de um mestre cuja obra e atuação se pautaram pela ética democrática, pela reafirmação do Estado de Direito e pela defesa inabalável dos princípios constitucionais da justiça, da liberdade e da solidariedade", disse no comunicado.

O ministro do STF Gilmar Mendes prestou homenagens a José Afonso em postagem nas redes sociais. "Com sua visão humanista, mostrou que a Constituição deve orientar a vida democrática e proteger a dignidade das pessoas. Seu 'Curso de Direito Constitucional Positivo' tornou-se um marco do pensamento jurídico brasileiro [...]", afirmou.

O advogado-geral da União e indicado de Lula à vaga deixada por Barroso no STF, Jorge Messias, também se manifestou nas redes. Ele celebrou o legado deixado pelo jurista, "que transcende as salas de aula e os tribunais, sendo exemplo de compromisso ético, rigor acadêmico e respeito à cidadania".

Em nota, a Faculdade de Direito da USP anunciou com "extremo pesar" o falecimento, ressaltando também o impacto da obra do jurista nas decisões do Supremo. "Sua interpretação constitucional, que valoriza a justiça social e os direitos fundamentais, tem grande influência na forma como a corte interpreta a Constituição e aplica seus princípios", diz o comunicado.

À Folha o atual diretor da instituição, o professor Celso Campilongo, relembrou a homenagem que José Afonso recebeu na cerimônia de leitura da carta em defesa da democracia, em 2022. Segundo Campilongo, ele foi aplaudido de pé e fico "muito emocionado".

"Foi um marco no constitucionalismo brasileiro e foi muito importante na formação de gerações de juristas empenhados com o Estado de Direito", disse o diretor.

A professora de direito da USP e diretora eleita, Ana Elisa Bechara, lembrou a trajetória de José Afonso, afirmando que o brilhantismo do jurista era "proporcional à sua determinação e resiliência".

"[Ele] precisou 'empurrar o portão' —usando suas palavras —, já que, sem tradição acadêmica e vindo de família pobre, teve que vencer inúmeros obstáculos para conquistar uma cadeira na congregação da tradicional Faculdade de Direito da USP", disse.

O advogado e professor de direito da USP, Marcos Perez, disse que o jurista foi um "dos grandes nomes do direito público em todos os tempos" e ressaltou sua atuação à frente da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

"Um jurista reconhecido mundialmente e o melhor secretário [de Segurança Pública] que o estado teve, ao menos entre aqueles que minha geração presenciou trabalhar. Soube unir a teoria à vida prática da política pública. Um ser humano maiúsculo que fará falta", disse.

Durante a entrevista à Folha em 2025, sua filha Helena Augusta que também estava presente, contou que o pai seguia revisando as próprias obras. "A gente liga na casa dele, às vezes nove e meia, dez horas, e pergunta ‘tá tudo bem, pai’? [E ele diz:] ‘Tô trabalhando’", conta. "É que o chefe dele é realmente muito bravo, né, pai? Seu chefe é muito exigente", brincou ela à época.

"O pior é que ele não paga bem", arrematou o pai, na ocasião, ao que todos riram. Questionado então sobre a frequência com que ainda trabalhava, ele deu uma breve risada, antes de responder: "Eu trabalho todo dia". Contou também que pelas manhãs e à noite reservava cerca de 20 minutos para meditar, prática que já levava consigo há algumas décadas.

O velório será na quarta-feira (26), das 10h às 15h, e o enterro, às 16h do mesmo dia. As cerimônias serão restritas a amigos e familiares.

Renata Galf e João Pedro Abdo, de S. Paulo -  SP para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 25.11.25


A direita dispensa Bolsonaro

O ex-presidente virou um encosto. Será árdua a tarefa de livrar-se dele sem ofendê-lo

O presidente Jair Bolsonaro em sua casa, em Brasília, enquanto cumpria prisão domiciliar - Gabriela Biló - 27.set.2025/Folhapress

A direita não precisa mais de Bolsonaro. Ela lhe deve o mérito de tê-la tirado do armário, mas seus surtos transformaram-no num encosto. O patrono da cloroquina, que dizia ter "o meu Exército", tornou-se um mau espírito encostado no velho conservadorismo nacional.

Afinal, uma direita que teve Roberto Campos, Eugênio Gudin e Castello Branco terá perdido muito em qualidade, mas com Bolsonaro ganhou em quantidade, elegendo um presidente e grandes bancadas parlamentares. Quem tem Tarcísio de Freitas e Ronaldo Caiado governando São Paulo e Goiás produziu quadros qualificados para novos voos. Esse é o caminho da lógica, mas a direita brasileira padece de um oportunismo suicida.

A imagem mostra uma pessoa de costas, vestindo uma camisa azul e calças escuras, caminhando em direção a uma casa. A cena é vista através de uma grade, que cria linhas verticais na imagem. Ao fundo, há uma área verde com plantas e uma estrutura de casa com paredes claras.

Em 1959, na União Democrática Nacional, berço do conservadorismo, havia um candidato à Presidência. Era Juracy Magalhães, tenente de 1930, ex-governador da Bahia e primeiro presidente da Petrobras. O partido resolveu atrelar-se à candidatura de Jânio Quadros. Um demagogo de carreira fulgurante, sem qualquer vínculo partidário capaz de levá-lo ao poder.

Segundo a piada, Jânio era "a UDN de porre". Deu no que deu.

Anos depois, já na ditadura, o conservadorismo emplacou o marechal Castello Branco, um reformador austero. O oportunismo suicida levou a base conservadora do regime a aninhar-se na anarquia militar e na candidatura do ministro da Guerra, general Costa e Silva. Deu no que deu, o Ato Institucional nº 5 e a crise decorrente da isquemia cerebral que o incapacitou em agosto de 1969.

Essa direita que come com garfo e faca achou em Jair Bolsonaro sua oportunidade. A eleição de 2018 foi um arrastão conservador e o ex-capitão acabou do Palácio do Planalto muito mais pelos erros do PT do que pelas suas qualidades.

O último surto de Bolsonaro, contra uma tornozeleira, espantou até mesmo seus aliados. Espanto tardio diante de um personagem que duvidava das vacinas durante uma epidemia que matou 700 mil pessoas e acreditava nas pesquisas de uma empresa americana que tentava transmitir eletricidade sem o uso de fios. (Na cena em que um finório vendeu a Bolsonaro essa maravilhosa ideia, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, tomou distância.)

O ex-capitão que se lembra do que fez em 1987, desenhando um gráfico pueril de explosão de uma adutora, e conseguiu ver-se exonerado de culpa pelo Superior Tribunal Militar, adquiriu uma incompreensão do que são as instituições em geral e o Poder Judiciário em particular. Chamou um ministro do Supremo de "canalha". Anunciou que não cumpriria decisões de tribunais. Flertou com o golpismo da trama contra a posse de Lula.

Será árdua a tarefa de livrar-se do encosto sem ofendê-lo. Os filhos de Bolsonaro gastam mais tempo condenando Tarcísio do que Lula e seu governo. A UDN conseguiu se livrar do encosto de Jânio, e os comandantes militares da ditadura livraram-se do encosto de Costa e Silva com sua saída da cena, remetendo seu principal conselheiro militar, o general Jaime Portela, para um comando de segunda antes de mandá-lo para a reserva.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada". Publicado origialmente na Folha de S. Paulo, em 26.11.25

O que acontece com salários e patentes de Bolsonaro e outros militares presos?

Mas o fim do processo no STF não marca a perda de patentes destes militares. Eles continuarão com suas patentes e manterão seus salários de até R$ 38 mil, ao menos por enquanto.

Braga Netto, Bolsonaro e outros três militares podem perder patente (Crédito, Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Com o encerramento do processo sobre tentativa de golpe nesta terça-feira (25/11) no Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) começou a cumprir sua pena de 27 anos e 3 meses de prisão, na sede da Polícia Federal em Brasília.

Ainda de forma cautelar, Bolsonaro já estava em prisão domiciliar desde agosto e, no sábado (22/11), ele foi encarcerado em uma sala da PF, porque o ministro relator Alexandre de Moraes entendeu que havia risco de fuga - o ex-presidente chegou a usar solda na sua tornozeleira eletrônica.

Além de Bolsonaro, que é um capitão reformado, outros cinco militares também foram condenados no julgamento em setembro e passarão a cumprir suas penas: o general Paulo Sergio Nogueira (ex-ministro da Defesa), o general Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional), o general Walter Braga Netto (candidato a vice na chapa com Bolsonaro), o ex-comandante da Marinha almirante Almir Garnier e o tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens).

O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, comentou em Brasília a conclusão do processo. Falando à imprensa, Múcio disse que "está se encerrando um ciclo". "CPFs estão sendo responsabilizados e punidos e, para felicidade do país, as instituições estão sendo todas preservadas", comentou.

Mas o fim do processo no STF não marca a perda de patentes destes militares. Eles continuarão com suas patentes e manterão seus salários de até R$ 38 mil, ao menos por enquanto.

Na decisão desta terça, Moraes aponta aquilo que indica a Constituição: é o Superior Tribunal Militar (STM) quem decidirá sobre a perda de patente dos militares, num processo sobre "indignidade" à função militar.

Questionada pela BBC News Brasil, a assessoria do STM informou que o desfecho dos casos só deve acontecer ano que vem, citando recesso do Judiciário que começ em 20 de dezembro.

O único que fica de fora desse processo imediato é Mauro Cid, já que teve uma pena abaixo de dois anos, por ter sido o delator no processo.

Além dos seis militares, dois civis foram condenados à prisão: o ex-ministro da Justiça Anderson Torres e o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem, que está foragido após fugir aos EUA.

Tribunal de honra

Num evento em São Paulo no último dia 29 de agosto, a presidente do STM, ministra Maria Elizabeth Rocha, disse que caberá à Corte que comanda exercer papel de "tribunal de honra" em casos de perda do posto de oficiais das Forças Armadas condenados pelo STF.

Caso o STM entenda que os militares não são "dignos" de fazer parte do quadro das Forças, eles perdem suas patentes — e consequentemente seus salários, se não houver mais possibilidade de recurso, esclarece Erika Kubik, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Justiça Militar.

"A perda de salário vem junto à perda de patente. É uma coisa única, colada, porque ele deixa de ser militar", diz.

Mas esse salário pode se tornar uma pensão ao cônjuge ou filho menor do militar.

"É a tal morte ficta, caso peculiar previsto na legislação de pensões militares, que possui muitas críticas", explica à BBC News Brasil a juíza federal da 12ª Circunscrição Judiciária Militar Patrícia Gadelha.

O entendimento da morte ficta considera a expulsão de um militar como se fosse o seu falecimento, garantindo assim pensão a seus dependentes.

Se houver decisão do STM para perda de patente, haveria então um processo administrativo dentro da respectiva Força, explica o advogado Agnaldo Bastos, especialista em direito público e direito militar.

"O entendimento majoritário é que perda de patente implica perda do soldo e status militar, mas não extingue a pensão de dependente já constituído. Vai ser analisado caso a caso", diz.

"Cada força vai abrir um processo interno para verificar direitos envolvidos sobre reserva, reforma, dependentes e direito à pensão", completa Bastos.

De acordo com a Lei de Pensões Militares, com a morte ficta do militar os dependentes passam a receber pensão proporcional ao tempo de serviço.

Esse assunto, inclusive, tem sido alvo de discussão nos últimos meses em Brasília.

Em um projeto de lei proposto pelo governo Lula em 2024 para alterar a aposentadoria dos militares, um dos itens pede justamente o fim do recebimento de pensão pela família de um militar expulso.

Pela proposta, a família passaria a receber auxílio-reclusão, no valor da metade da última remuneração do ex-militar, durante o período em que ele estiver cumprindo pena de reclusão por sentença transitada em julgado.

Parlamentares de direita e ligados às Forças Armadas já têm se articulado para retirar esse trecho do projeto de lei.

Em análise recente, o Tribunal de Contas da União (TCU) julgou que o direito à pensão militar "por morte" só ocorre após a morte real e não após a expulsão ou a demissão do militar.

Essa situação dos militares é diferente de outros funcionários públicos, que podem perder sua função — e salário — caso sejam condenados à prisão, já na decisão do juiz que o condena.

No caso de Bolsonaro, o ex-presidente recebe cerca de R$ 12,8 mil do Exército. Ele é um capitão reformado, uma espécie de aposentadoria no mundo militar.

Além dos vencimentos do Exército, Bolsonaro recebe ainda cerca de R$ 41 mil da aposentadoria de deputado pela Câmara.

Como é presidente de honra do Partido Liberal (PL), o ex-presidente ganha outros R$ 41 mil, segundo divulgado pelo partido à imprensa.

Entre todos os militares condenados pelo STF, quem recebe o maior salário é o general Augusto Heleno, no valor de R$ 38,1 mil.

Ele recebe proventos equivalentes ao posto de marechal — benefício comum a militares que passam à reserva com remuneração de um cargo acima do que ocupavam na ativa.

Como é o processo militar para perda de patente

Augusto Heleno pode perder o titulo de 'general' (Crédito, Antonio Cruz/Ag. Brasil)

Segundo o Código Penal Militar, um militar só pode perder a patente por uma decisão do Superior Tribunal Militar (STM) — seja ele da ativa, da reserva ou reformado.

Há distintos caminhos a depender da pena estabelecida na Justiça comum sem possibilidade de recurso, explica a professora Erika Kubik, da UFF.

Caso a pena seja menor do que dois anos de prisão, é acionado o chamado Conselho de Justificação dentro das Forças Armadas — espécie de processo administrativo.

A depender da decisão do conselho e consequente avaliação do comandante da Força, o caso sobe ao STM.

O único que se enquadra nessa situação é Mauro Cid, que teve a menor pena.

Mesmo que o réu seja totalmente absolvido no STF, o Ministério Público Militar (MPM) também pode entrar com ação "por entender, ainda assim, que há ali uma desonra militar", diz Kubik.

Mas "no caso de condenação acima de dois anos, não há a participação da Força Armada. É o MPM que promoverá, ao seu exclusivo critério, a ação", explica à BBC News Brasil o procurador-geral de Justiça Militar Clauro Roberto de Bortolli.

Segundo Bortolli, seu posicionamento atual "é no sentido de oferecer, sempre, a ação de representação, após ter a ciência da condenação de um oficial a pena acima de dois anos".

No STM, o julgamento será para avaliar a "indignidade ou incompatibilidade" — ou seja, não é um julgamento criminal, mas perante um "tribunal de honra".

Não há um prazo fixo para que o STM termine esse julgamento, que deve ser individual para cada militar.

"O prazo não é específico, mas como a situação tem repercussão institucional, envolve militares alta patente, é possível haver uma celeridade", avalia o advogado especialista Agnaldo Bastos

Uma vez que haja a decisão do STM, os réus só poderiam apelar para algum recurso caso a defesa entenda que a decisão violou algum dispositivo da Constituição, avalia a juíza Patrícia Gadelha.

Ou seja: não cabe apelação dentro da Justiça Militar, mas é possível provocar o STF.

"Uma vez declarada a indignidade, a perda do posto e da patente é definitiva, salvo reforma posterior da decisão em instância constitucional, o STF", diz.

Desde 2018, 47 militares das Forças Armadas foram condenados com a perda da patente, segundo o MPM.

Quanto ganham os militares condenados

Paulo Sergio Nogueira e Bolsonaro (Crédito,Governo Federal)

Encerrado o processo no STM e caso os militares condenados sejam excluídos das Forças Armadas, eles não recebem mais o "salário" propriamente dito.

De acordo com dados do Portal da Transparência em junho de 2025, eles recebem os seguintes salários brutos (sem descontos) enquanto militares:

Augusto Heleno: R$ 38.144,69

Almir Garnier: R$ 37.585,59

Walter Braga Netto: R$ 36.881,74

Paulo Sérgio Nogueira R$ 36.881,74

Mauro Cid: R$ 28.242,64

Jair Bolsonaro: R$ 12.861,61

Durante o julgamento no STF, o advogado do almirante Almir Garnier, o ex-senador Demóstenes Torres, chegou a dizer que o militar "não tem recurso para pagar advogado".

"Um dia bateu nas minhas portas o almirante Garnier. Eu fiquei com pena dele. Porque é uma pessoa que vai inteirar agora 65 anos de idade [...] Ele não teve dinheiro para pagar", disse Torres.

Também durante o julgamento, o advogado de Mauro Cid, o relator que confessou os planos golpistas, disse que seu cliente pediu para ir para a reserva do Exército por não ter mais "condições psicológicas" de seguir na ativa.

Caso o Exército aceite o pedido, Cid passa a receber como militar da reserva — e, caso condenado pelo STM, é possível que o vencimento passe para seus dependentes.

Isso porque a lei que dispõe sobre as pensões militares aponta que o oficial que perder posto e patente deixa aos seus beneficiários a "pensão militar correspondente ao posto que possuía, com valor proporcional ao tempo de serviço".

"A pensão militar tem legislação própria e ela não se confunde com salário do militar ativo", explica o advogado Agnaldo Bastos.

"O valor não passa automaticamente à família. O que pode existir é o direito a pensão, isso vai depender se aquele militar já tinha alcançado tempo de serviço, se cumpriu requisitos. Cada caso é avaliado", completa o especialista.

A BBC News Brasil entrou em contato com o Exército e Marinha para mais esclarecimentos sobre o processo administrativo, mas não obteve resposta.

Bastos explica ainda que para servidores públicos não militares, a própria Constituição diz que uma sentença condenando a pessoa no âmbito criminal já pode gerar perda de cargo. Não há um processo interno como o dos militares.

"Na decisão judicial que condena servidor, automaticamente vai trazer de forma expressa que, em decorrência de condenação, o servidor vai perder cargo e salário."

O projeto de lei do governo Lula que muda a regra para aposentadoria e pensão de militares está nas mãos do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB).

Ao anunciar o projeto, que inclui ainda idade mínima para militares irem para reserva, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que seriam "mudanças justas e necessárias" para combater "privilégios incompatíveis com o princípio da igualdade".

Segundo Haddad, foi feito um acordo com as Forças Armadas para acabar com morte ficta.

A proposta foi apresentada em novembro, quando o governo anunciou medidas para economizar R$ 70 bilhões em dois anos aos cofres públicos, visando o ajuste fiscal.

Vitor Tavares, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 25.11.25 (atualização da matéria pubicada em 10.09.25)

Generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira são presos e cumprirão pena no Comando do Exército

A decisão que determinou o fim do processo para Bolsonaro vale também para três militares da alta patente: o almirante Almir Garnier Santos e os generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira.

O general Augusto Heleno cumprirá pena no Comando Militar do Planalto (Crédito, EVARISTO SA/AFP via Getty Images)

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou o encerramento do processo que condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro a pena de 27 anos e 3 meses por golpe de Estado.

A decisão mantém Bolsonaro na Superintendência da Polícia Federal de Brasília, onde ele está desde sábado (22/11) quando foi preso preventivamente.

A decisão que determinou o fim do processo para Bolsonaro vale também para três militares da alta patente: o almirante Almir Garnier Santos e os generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira.

Heleno e Nogueira cumprirão pena no Comando Militar do Planalto, em Brasília, para onde já foram levados.

O ex-ministro da Justiça Anderson Torres e o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), que está nos Estados Unidos, também tiveram o início de suas penas determinado.

Outro condenado, o general Walter Braga Netto, está preso preventivamente desde dezembro de 2024 no Comando da 1ª Divisão de Exército, no Rio de Janeiro, e lá deve ficar.

A reação do ministro da Defesa e das Forças Armadas

Na decisão, Moraes indica que o Superior Tribunal Militar (STM), como determina a Constituição, é que decidirá sobre a perda de patente dos generais Augusto Heleno, Paulo Sergio e Braga Netto, assim como Almir Garnier, e a de Bolsonaro, capitão reformado do Exército.

Questionado pela BBC News Brasil, a assessoria do STM disse que os casos dos réus militares, assim como o de Bolsonaro, só devem ser julgados no ano que vem.

O ministro da Defesa, José Múcio, celebrou o fim de um ciclo "doloroso" e diz que não comentaria a decisão de Moraes nem os procedimentos da Justiça Militar. "Decisão da Justiça a gente pode gostar, pode não gostar, mas tem que aprender a acatar", afirmou.

"Vocês não viram durante esse períod ter saído uma nota de indignação. Não saiu nem das instituições, nem das pessoas físicas. Então eu só tenho que agradecer. Estou feliz porque o ciclo está se encerrando. A gente precisa virar essa página, olhar para frente", disse a jornalistas durante visita à Câmara nesta terça.

Múcio disse, no entanto, que alguns integrantes receberam "alguns constrangidos, indignados" a notícia das punições.

"Está se encerrando um ciclo onde os CPFs estão sendo responsabilizados e punidos e, para felicidade do país, as instituições estão todas preservadas. Foi doloroso o processo, mas é o ciclo da vida. Estamos agora administrando o fim do processo."

O general Paulo Nogueira, assim como Augusto Heleno, Almir Garnier, Braga Netto e Bolsonaro, serão julgados no Superior Tribunal Militar (Crédito, EVARISTO SA/AFP via Getty Images)

Como é o processo militar para perda de patente

Enquanto os condenados não forem julgados no STM, continuarão com suas patentes e manterão seus salários de até R$ 38 mil.

Caso o STM entenda que os militares não são "dignos" de fazer parte do quadro das Forças, eles perdem suas patentes — e consequentemente seus salários, se não houver mais possibilidade de recurso, esclarece Erika Kubik, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Justiça Militar.

"A perda de salário vem junto à perda de patente. É uma coisa única, colada, porque ele deixa de ser militar", diz.

Mas esse salário pode se tornar uma pensão ao cônjuge ou filho menor do militar.

"É a tal morte ficta, caso peculiar previsto na legislação de pensões militares, que possui muitas críticas", explica à BBC News Brasil a juíza federal da 12ª Circunscrição Judiciária Militar Patrícia Gadelha.

O entendimento da morte ficta considera a expulsão de um militar como se fosse o seu falecimento, garantindo assim pensão a seus dependentes.

Se houver decisão do STM para perda de patente, haveria então um processo administrativo dentro da respectiva Força, explica o advogado Agnaldo Bastos, especialista em direito público e direito militar.

"O entendimento majoritário é que perda de patente implica perda do soldo e status militar, mas não extingue a pensão de dependente já constituído. Vai ser analisado caso a caso", diz.

"Cada força vai abrir um processo interno para verificar direitos envolvidos sobre reserva, reforma, dependentes e direito à pensão", completa Bastos.

De acordo com a Lei de Pensões Militares, com a morte ficta do militar os dependentes passam a receber pensão proporcional ao tempo de serviço.

Segundo o Código Penal Militar, um militar só pode perder a patente por uma decisão do Superior Tribunal Militar (STM) — seja ele da ativa, da reserva ou reformado.

Há distintos caminhos a depender da pena estabelecida na Justiça comum sem possibilidade de recurso, explica a professora Erika Kubik, da UFF.

Caso a pena seja menor do que dois anos de prisão, é acionado o chamado Conselho de Justificação dentro das Forças Armadas — espécie de processo administrativo.

A depender da decisão do conselho e consequente avaliação do comandante da Força, o caso sobe ao STM.

O único que se enquadra nessa situação é Mauro Cid, que teve a menor pena.

Mesmo que o réu seja totalmente absolvido no STF, o Ministério Público Militar (MPM) também pode entrar com ação "por entender, ainda assim, que há ali uma desonra militar", diz Kubik.

"No caso de condenação acima de dois anos, não há a participação da Força Armada. É o MPM que promoverá, ao seu exclusivo critério, a ação", explica à BBC News Brasil o procurador-geral de Justiça Militar Clauro Roberto de Bortolli.

Segundo Bortolli, seu posicionamento atual "é no sentido de oferecer, sempre, a ação de representação, após ter a ciência da condenação de um oficial a pena acima de dois anos".

No STM, o julgamento será para avaliar a "indignidade ou incompatibilidade" — ou seja, não é um julgamento criminal, mas perante um "tribunal de honra".

Não há um prazo fixo para que o STM termine esse julgamento, que deve ser individual para cada militar.

"O prazo não é específico, mas como a situação tem repercussão institucional, envolve militares alta patente, é possível haver uma celeridade", avalia o advogado especialista Agnaldo Bastos

Uma vez que haja a decisão do STM, os réus só poderiam apelar para algum recurso caso a defesa entenda que a decisão violou algum dispositivo da Constituição, avalia a juíza Patrícia Gadelha.

Ou seja: não cabe apelação dentro da Justiça Militar, mas é possível provocar o STF.

"Uma vez declarada a indignidade, a perda do posto e da patente é definitiva, salvo reforma posterior da decisão em instância constitucional, o STF", diz.

Desde 2018, 47 militares das Forças Armadas foram condenados com a perda da patente, segundo o MPM.

Marina Rossi e Vitor Tavares, de S. Paulo para a BBC News Brasil em São Paulo, em 25.11.25