quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Morre aos 100 anos o jurista José Afonso da Silva, marco do direito constitucional

Autor de mais de 30 livros, já foi apontado como doutrinador mais citado em decisões do Supremo. Professor emérito da USP, especialista foi descrito como um dos arquitetos da Constituição de 1988


 O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, mostra livro ao jurista José Afonso da Silva, 100, durante homenagem na Faculdade de Direito da USP - Eduardo Knapp/Folhapress

Considerado uma das principais referências no direito constitucional brasileiro, o jurista e professor emérito da USP (Universidade de São Paulo) José Afonso da Silva morreu nesta terça-feira (25), aos 100 anos.

Autor de mais de 30 obras, José Afonso foi apontado em levantamento de 2013 como o doutrinador mais citado em decisões do STF (Supremo Tribunal Federal).

Ao completar 100 anos, em abril, foi homenageado por grandes nomes do direito brasileiro, como pelo então presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, durante sessão da corte e também pela ministra Cármen Lúcia, em sessão no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) sob sua presidência.

Natural do interior de Minas Gerais, José Afonso chegou a São Paulo em 1947, aos 22 anos, sem ter concluído o ensino primário. Na capital paulista, trabalhou como alfaiate enquanto completava os estudos.

Ingressou na Faculdade de Direito da USP aos 27 anos, depois de ter sido aprovado no vestibular. Mais tarde se tornou professor titular da instituição, onde lecionou até 1995. Em 2025, uma semana antes de celebrar seu centenário, recebeu o título de professor emérito.

Lançado em 1976, seu livro "Curso de Direito Constitucional Positivo" chegou à 46ª edição em 2025. "Esse é um livro que me agrada", disse em entrevista à Folha por ocasião de seus 100 anos, depois de contar que teve bastante trabalho para atualizar a obra com a Constituição de 1988. Sua obra favorita, por outro lado, conforme contou na data, era o livro "Aplicabilidade das Normas Constitucionais", publicado em 1968.

Na Assembleia Constituinte, foi assessor do senador Mário Covas, então líder do PMDB. O jurista é descrito por seus pares como um dos grandes arquitetos da Constituição aprovada em 1988.

José Afonso atuou ainda como procurador do Estado de São Paulo e ocupou cargos públicos, como o de secretário de Segurança Pública, no governo Mário Covas (PSDB).

Em celebração por seus 100 anos, ele foi homenageado em evento na Faculdade de Direito da USP marcado por discursos emocionados. Entre os presentes estiveram Luís Roberto Barroso, então presidente do STF, e José Carlos Dias, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Ao discursar, Barroso descreveu José Afonso como um dos principais cérebros por trás da Constituição de 1988 e afirmou que seu trabalho representou uma "virada de chave" no direito constitucional, trazendo uma lógica que seria de "fazer a Constituição funcionar".

A imagem mostra dois homens sentados em uma mesa. O homem à esquerda, mais velho, está usando um terno escuro e parece estar ouvindo atentamente. O homem à direita, mais jovem, está vestido com um terno claro e está segurando um livro, mostrando-o para o homem mais velho. Ambos estão em um ambiente com paredes de madeira e uma mesa com copos de água.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, mostra livro ao jurista José Afonso da Silva, 100, durante homenagem na Faculdade de Direito da USP - Eduardo Knapp/Folhapress

Barroso, que chegou a mostrar a José Afonso um de seus livros escritos pelo professor cheio de marcações e se emocionou em determinado momento, citou ainda a ditadura militar, dizendo que o jurista "manteve a chama do direito constitucional acesa quando se via no Brasil um momento de muita escuridão".

Oscar Vilhena, que é colunista da Folha e professor da FGV Direito, descreveu José Afonso no evento como "arquiteto jurídico" da Constituição de 88. "Sem risco de errar, o livro é um divisor de águas e um marco no direito constitucional."

"José Afonso nos deu régua e compasso para entender o direito constitucional", diz Vilhena. Para ele, trata-se do "constitucionalista mais importante das últimas cinco décadas, além de um jurista comprometido na defesa das instituições democráticas".

Em 2022, José Afonso se emocionou ao ser homenageado durante ato em defesa da democracia inspirado na célebre "Carta aos Brasileiros", lida em 1977 e da qual ele também foi signatário.

José Afonso teve três filhos e seis netos. Um deles, Virgílio Afonso da Silva, seguiu os passos do pai e é professor de direito na USP. Também é pai de Helena Augusta Afonso e Nereu Afonso da Silva.

Em comunicado, os filhos agradeceram as homenagens e o apoio recebido. "Guardamos o orgulho de seu legado e o privilégio imenso de tê-lo tido como pai", diz a nota assinada conjuntamente pelos três.

Manteve escritório por décadas no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, que abrigava sua biblioteca pessoal, da qual parte foi doada ao acervo da faculdade da USP. Ao chegar aos 100 anos, ele seguia visitando o local, onde antes trabalhava diariamente, para consulta quando necessário.

Em nota, o presidente do STF, Edson Fachin, lamentou a morte do jurista. "Que o luto por seu passamento seja dignamente iluminado pela memória de um mestre cuja obra e atuação se pautaram pela ética democrática, pela reafirmação do Estado de Direito e pela defesa inabalável dos princípios constitucionais da justiça, da liberdade e da solidariedade", disse no comunicado.

O ministro do STF Gilmar Mendes prestou homenagens a José Afonso em postagem nas redes sociais. "Com sua visão humanista, mostrou que a Constituição deve orientar a vida democrática e proteger a dignidade das pessoas. Seu 'Curso de Direito Constitucional Positivo' tornou-se um marco do pensamento jurídico brasileiro [...]", afirmou.

O advogado-geral da União e indicado de Lula à vaga deixada por Barroso no STF, Jorge Messias, também se manifestou nas redes. Ele celebrou o legado deixado pelo jurista, "que transcende as salas de aula e os tribunais, sendo exemplo de compromisso ético, rigor acadêmico e respeito à cidadania".

Em nota, a Faculdade de Direito da USP anunciou com "extremo pesar" o falecimento, ressaltando também o impacto da obra do jurista nas decisões do Supremo. "Sua interpretação constitucional, que valoriza a justiça social e os direitos fundamentais, tem grande influência na forma como a corte interpreta a Constituição e aplica seus princípios", diz o comunicado.

À Folha o atual diretor da instituição, o professor Celso Campilongo, relembrou a homenagem que José Afonso recebeu na cerimônia de leitura da carta em defesa da democracia, em 2022. Segundo Campilongo, ele foi aplaudido de pé e fico "muito emocionado".

"Foi um marco no constitucionalismo brasileiro e foi muito importante na formação de gerações de juristas empenhados com o Estado de Direito", disse o diretor.

A professora de direito da USP e diretora eleita, Ana Elisa Bechara, lembrou a trajetória de José Afonso, afirmando que o brilhantismo do jurista era "proporcional à sua determinação e resiliência".

"[Ele] precisou 'empurrar o portão' —usando suas palavras —, já que, sem tradição acadêmica e vindo de família pobre, teve que vencer inúmeros obstáculos para conquistar uma cadeira na congregação da tradicional Faculdade de Direito da USP", disse.

O advogado e professor de direito da USP, Marcos Perez, disse que o jurista foi um "dos grandes nomes do direito público em todos os tempos" e ressaltou sua atuação à frente da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

"Um jurista reconhecido mundialmente e o melhor secretário [de Segurança Pública] que o estado teve, ao menos entre aqueles que minha geração presenciou trabalhar. Soube unir a teoria à vida prática da política pública. Um ser humano maiúsculo que fará falta", disse.

Durante a entrevista à Folha em 2025, sua filha Helena Augusta que também estava presente, contou que o pai seguia revisando as próprias obras. "A gente liga na casa dele, às vezes nove e meia, dez horas, e pergunta ‘tá tudo bem, pai’? [E ele diz:] ‘Tô trabalhando’", conta. "É que o chefe dele é realmente muito bravo, né, pai? Seu chefe é muito exigente", brincou ela à época.

"O pior é que ele não paga bem", arrematou o pai, na ocasião, ao que todos riram. Questionado então sobre a frequência com que ainda trabalhava, ele deu uma breve risada, antes de responder: "Eu trabalho todo dia". Contou também que pelas manhãs e à noite reservava cerca de 20 minutos para meditar, prática que já levava consigo há algumas décadas.

O velório será na quarta-feira (26), das 10h às 15h, e o enterro, às 16h do mesmo dia. As cerimônias serão restritas a amigos e familiares.

Renata Galf e João Pedro Abdo, de S. Paulo -  SP para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 25.11.25


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