quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Novo Código Civil demole a ordem jurídica

Travestindo populismo jurídico de modernização, proposta amplia o arbítrio judicial, incentiva a judicialização e mina a segurança jurídica. Catastrófica e irremediável, precisa ser arquivada

Brasília (DF) 04/09/2023 Instalação do colegiado e a primeira reunião de trabalho da Comissão de Juristas criada pelo Senado para propor a revisão e atualização do Código Civil. Foto Lula Marques/ Agência Brasil

O Senado instalou em setembro a comissão temporária encarregada de analisar o Projeto de Lei (PL) n.º 4/2025, que pretende reformar o Código Civil de 2002. O movimento ocorre em meio a uma onda de críticas sem precedentes. Não é para menos: longe de modernizar as bases jurídicas do País, ele ameaça dilapidá-las.

Sob o pretexto de atualização, a proposta, gestada por uma comissão presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, altera quase 900 artigos, acrescenta 300, redesenha a estrutura e a linguagem do código e, na prática, fabrica um novo ordenamento civil – tudo produzido em apenas oito meses, sem debate público minimamente proporcional à magnitude da empreitada. Trata-se de uma artimanha: um novo Código Civil travestido de mera “revisão técnica”. O açodamento e a falta de pactuação social revelam não apenas imprudência, mas ilegitimidade.

Os riscos não são abstratos. O texto multiplica conceitos vagos que funcionam como verdadeiros coringas judiciais – “confiança”, “simetria”, “paridade”, “dignidade” –, franqueando ao Judiciário poder discricionário para decidir conforme a interpretação do momento. Em lugar de previsibilidade, cria-se um convite à judicialização. O resultado será a fragmentação de entendimentos, decisões contraditórias e a degradação daquilo que distingue um Estado de Direito de um regime arbitrário: regras claras, universais e estáveis.

Na seara contratual, a reforma transforma em letra morta a segurança dos negócios. O recurso indiscriminado à “função social” da propriedade e dos contratos – cujas referências aumentaram em 450% – abre margem para invalidar cláusulas a critério dos juízes, estimulando litígios intermináveis. A responsabilidade civil, por sua vez, é dilatada de modo caótico: deixa de se limitar ao dano ilícito para assumir funções punitivas, pedagógicas e moralizantes. O dever de indenizar passa a ser um jogo de azar, regido por máximas vagas e pelo gosto de quem julga.

Em carta aberta, a Federação Nacional dos Institutos dos Advogados foi categórica: o projeto é irremediável e deveria ser arquivado. Além de expor cidadãos e empresas à insegurança, fragiliza liberdades fundamentais e cria obstáculos adicionais à atividade econômica. No campo digital, por exemplo, propõe um marco regulatório sem paralelo em democracias avançadas, com restrições a plataformas virtuais que podem gerar retaliações internacionais e colocar o Brasil em rota de colisão com seus principais parceiros comerciais.

Juristas, entidades e veículos de imprensa convergem na denúncia de que o PL 4/2025 institucionaliza um populismo jurídico: promete proteger os vulneráveis, mas mina a previsibilidade das regras, encarece contratos e transfere ao juiz – e não ao legislador democraticamente eleito – o poder de definir os rumos da sociedade. O projeto mistura regras gerais de Direito Civil com proteção especial ao consumidor, propõe experimentos sociais temerários no direito de família e ignora leis recentes.

Mais grave, fragiliza o próprio Estado de Direito. O que está em jogo não é apenas a técnica legislativa, mas o equilíbrio institucional. Ao multiplicar conceitos indeterminados, o novo código legitima o ativismo judicial e reforça a concentração de poder em instâncias que já se mostram alarmantemente propensas ao arbítrio. A República não pode se dar ao luxo de ser alicerçada sobre a areia.

O Brasil não precisa de aventuras legislativas açodadas. O Código Civil, fruto de décadas de debates, permanece sólido em seus fundamentos. Reformas focadas, calibradas e, sobretudo, legitimamente consensuadas, são sempre possíveis; demolir o edifício inteiro, em nome de uma pretensa modernização, é irresponsabilidade.

O Senado tem agora a oportunidade – e a obrigação – de frear esta marcha da insensatez. Só há um caminho responsável: arquivar o PL 4/2025 e abrir, no futuro, um debate sério, amplo e transparente sobre ajustes que de fato se mostrem necessários. Qualquer outra solução será capitulação diante do arbítrio e convite ao caos jurídico.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.09.25

Golpistas não merecem perdão

Rever punições desproporcionais aos bagrinhos do golpe é justo, mas anistiar os líderes da conspiração contra a República, ou abrandar suas penas, seria trair a Constituição e premiar o crime


"Quero dizer aos canalhas que nunca serei preso", garantiu Bolsonaro à sua bagrinhada

O Senado cumpriu sua obrigação de enterrar a infame PEC da Bandidagem, tentativa sem-vergonha de conceder aos próprios parlamentares o poder de decidir se poderiam ou não ser investigados por suspeita de crimes. Agora, cabe à Câmara dos Deputados, se pretende reaver algum resquício de decência, rejeitar de forma igualmente inequívoca o projeto de lei que busca anistiar os golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em especial o principal instigador e beneficiário da sedição, o ex-presidente Jair Bolsonaro.

A anistia aos golpistas não é apenas um disparate jurídico e político. É, sobretudo, um inaceitável retrocesso civilizatório. A Constituição consagra o Estado Democrático de Direito desde o seu preâmbulo. Os princípios basilares do regime das liberdades foram alçados à condição de cláusulas pétreas. Logo, perdoar aqueles que atentaram desabridamente contra a ordem constitucional democrática significa, na prática, demolir a própria fundação estrutural que sustenta esta República.

É verdade que a Procuradoria-Geral da República e o STF, talvez no afã de impor exemplaridade na coerção de condutas inéditas na história recente do País, puniram desproporcionalmente muitos dos idiotas úteis que serviram de massa de manobra no 8 de Janeiro. Casos como o da cabeleireira condenada a 14 anos de prisão por pichar com batom a estátua da Justiça em frente à sede do Supremo merecem revisão criteriosa. O sistema penal não pode ser um instrumento de vingança nem tampouco pode operar em desalinho com os atos que pretende coibir. Mas essa necessária correção de rumos não pode, em hipótese alguma, se estender aos líderes de uma conspiração, sejam civis ou militares, que tramaram e executaram uma tentativa de golpe de Estado.

À luz do direito comparado, a legislação pátria já é bastante branda com crimes contra o Estado Democrático de Direito. O Código Penal prevê penas de 4 a 8 anos de reclusão para abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de 4 a 12 anos para golpe de Estado (359-M). No cotejo internacional, essas sanções são quase prêmios aos golpistas. Alemanha, Argentina, Canadá, França e Reino Unido, por exemplo, preveem prisão perpétua para quem tenta um golpe de Estado. A Espanha estabelece 25 anos de cárcere. Nos Estados Unidos e no México, são até 20 anos de cadeia para os insurgentes. Só a Itália, com pena máxima de cinco anos de reclusão, é menos gravosa que o Brasil.

Ou seja, mesmo sem anistia, a punição aos golpistas brasileiros já é leve. Reduzi-la ainda mais não só nos afastaria do padrão civilizatório estabelecido por democracias mais maduras, como transmitiria à sociedade uma mensagem para lá de infeliz: por aqui, tentar subverter o resultado legítimo de uma eleição não seria crime tão grave. Ora, se os golpistas tivessem tido sucesso em seu intento, decerto não haveria qualquer complacência com os legalistas. É ocioso relembrar aqui o destino reservado por regimes de exceção aos dissidentes e opositores.

O Brasil deu um passo histórico ao condenar, pela primeira vez, um ex-presidente e altas autoridades civis e militares por conspirarem contra a democracia. Esse precedente é um marco institucional que precisa ser preservado, não enfraquecido, pelo Congresso. O Judiciário tem cumprido sua parte ao impor aos golpistas a devida responsabilização. Cabe ao Legislativo não apagar esse legado.

As manifestações no dia 21 passado foram eloquentes. A sociedade bradou “não” à PEC da Bandidagem e também à anistia aos golpistas. Ambas as iniciativas nasceram de um mesmo pacote de impunidade gestado nos corredores do Congresso, em total divórcio com o melhor interesse público. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, afirmou que o grito das ruas revelou a “desconexão” entre sociedade e Parlamento. É verdade. Mas convém lembrar que seu partido, o Republicanos, votou maciçamente pela PEC da Bandidagem. Ademais, Tarcísio encarna pessoalmente a defesa da anistia que as ruas também repeliram.

Rever excessos cometidos contra os bagrinhos da intentona é legítimo. Já abrandar ou perdoar as penas dos articuladores do golpe é inconcebível. Seria um salvo-conduto para que, no futuro, velhos ou novos conspiradores se assanhem.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.09.25

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O Senado não fez mais que a obrigação

Ao rejeitar a PEC da Blindagem, o Senado apenas enterrou o monstrengo fuzilado pela sociedade indignada – que deve permanecer alerta, pois o espectro do corporativismo criminoso segue vivo

CCJ do Senado em reunião

A Câmara dos Deputados escreveu uma das páginas mais vergonhosas da história republicana ao aprovar a chamada “PEC da Blindagem” – ou da “Impunidade”, ou da “Bandidagem”, como queiram. Com ela, os deputados, a título de defender prerrogativas parlamentares, assinaram um pacto de autoproteção criminosa. Ontem, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado rejeitou in totum, por 26 votos a 0, a aberração. Fez bem – mas não fez mais do que a obrigação.

A proposta exumava, em versão ainda mais obscena, o sistema de licença prévia do Congresso para processar parlamentares, mecanismo que vigorou entre 1988 e 2001 e que resultou em quase 300 pedidos de investigação barrados – contra apenas um autorizado. A impunidade de Hildebrando Pascoal, o “deputado da motosserra”, acusado de comandar homicídios brutais e de envolvimento com o narcotráfico, é o emblema desse período de vergonha. Foi justamente para pôr fim a essa era de impunidade que se aprovou a Emenda Constitucional n.º 35/2001. A Câmara, duas décadas depois, quis ressuscitar o cadáver político da licença prévia, pervertendo não só os mais elementares princípios republicanos, mas também o simples bom senso.

Não parava aí. A PEC previa que as decisões sobre prisão em flagrante e formação da culpa fossem tomadas em votação secreta pelo plenário – devolvendo ao submundo o que a Emenda Constitucional n.º 76/2013 havia trazido à luz da transparência. Estendia foro privilegiado a presidentes de partidos, cargo sem função estatal. E hipertrofiava a inviolabilidade parlamentar, tornando-a salvo-conduto absoluto contra qualquer responsabilização. Imunidade pervertida em impunidade, prerrogativa degenerada em privilégio.

Alguns deputados tentaram traficar a falácia de que se tratava de resgatar o “texto original” da Constituição. É um sofisma pernicioso. O dispositivo da licença prévia foi concebido em um contexto de transição democrática, para resguardar os mandatos depois de duas décadas de cassações arbitrárias promovidas pelo regime militar. Hoje, num regime democrático consolidado, o artifício não protege a democracia, mas os corruptos; não defende a liberdade de representação, mas facilita a infiltração do crime organizado no Parlamento. A pretexto de restaurar uma letra morta, a Câmara seviciou o espírito da Constituição.

A indecência foi aprovada com articulação consciente do Centrão e a cumplicidade covarde do presidente da Casa, Hugo Motta. Não houve engano, não houve distração: houve dolo legislativo. O súbito surto de “arrependimento” de alguns deputados, após a reação das ruas e das redes sociais, é oportunismo puro. “Ninguém votou sem saber”, como lembrou o senador Otto Alencar. As desculpas posteriores, de petistas a bolsonaristas, foram apenas exercícios performáticos de marketing de danos.

Coube à sociedade o papel de verdadeiro freio. O recado das multidões nas ruas foi contundente: os brasileiros não toleram um Congresso acima da lei. O Senado, sensível ao custo político das eleições majoritárias e pressionado pela opinião pública, agiu como barreira. Seja pela virtude de alguns ou por instinto de sobrevivência de todos, os senadores rasuraram uma das páginas mais vergonhosas da história do Congresso. Mas não há como apagá-la.

Que ela sirva de lição. A “PEC da Blindagem” não foi acidente, mas sintoma de um padrão corrosivo: o corporativismo voraz que converte o Legislativo em condomínio de interesses privados, blindado contra a Justiça e a sociedade. Esse mesmo espírito explica o uso predatório das emendas orçamentárias, a conivência com “devedores contumazes” ou vendetas contra o Banco Central. É a lógica de um poder capturado, divorciado da nação que deveria representar.

Arquivar a PEC foi o primeiro passo. O segundo é cobrar responsabilidades de quem a patrocinou e blindar – agora sim, de forma legítima – a Constituição contra novos truques regimentais que disfarçam privilégios como “prerrogativas”. A sociedade mostrou que não está anestesiada. A democracia só se sustenta quando a lei vale para todos. E igualdade perante a lei não se negocia.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.09.25

terça-feira, 23 de setembro de 2025

As ruas mandam um recado ao Congresso

Protestos mostram que os cidadãos se dispõem a ir às ruas quando se trata de defender não a agenda de um partido, mas os princípios da vida democrática, ameaçados por políticos oportunistas


Protestos de domingo, 21, fortalece STF no conflito com o Congresso Nacional Foto: Evaristo Sa/EVARISTO SA

Milhares de pessoas foram às ruas no domingo passado para dizer um “basta” ao alheamento do Congresso à realidade do País. Em todas as capitais, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, cidadãos protestaram contra dois símbolos recentes da degradação da representação política: a aprovação, pela Câmara, da chamada PEC da Bandidagem, que visa a blindar parlamentares de investigações criminais, e a concessão de anistia “ampla, geral e irrestrita” a Jair Bolsonaro e outros golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O Monitor do Debate Político da USP, que tem metodologia própria, calculou que 42,4 mil pessoas ocuparam cerca de quatro quarteirões da Avenida Paulista e que 41,8 mil encheram a orla de Copacabana. Como se viu, foram mobilizações muito próximas, em escala, daquelas arregimentadas pelo bolsonarismo no Sete de Setembro, mas com pautas diametralmente opostas. Se na data nacional o objetivo dos manifestantes era pressionar o STF pela impunidade de Bolsonaro e seus cúmplices na trama golpista, além de clamar por intervenção dos EUA – inclusive militar – no curso do julgamento, no dia 21 passado a mensagem foi um sonoro “não” à criação de uma casta de mandatários acima da lei e ao perdão a quem ousou atentar contra a ordem constitucional democrática.

Isso mostra, como primeiro ponto de destaque, que Bolsonaro, nos estertores de sua relevância política, não é mais o senhor das ruas do País. Nos últimos anos, o ex-presidente exerceu com habilidade o protagonismo da mobilização popular, papel outrora desempenhado com igual força e presença por sua nêmesis, Lula da Silva. Mas algo abalou as estruturas da política nacional, levando às ruas um contingente de cidadãos não necessariamente aferrados às agendas de um ou outro polo. Ao que tudo indica, a indignação popular com a defesa explícita da impunidade – seja para parlamentares, seja para golpistas – parece ter despertado um movimento político mais amplo, que não se confunde com a estrita militância partidária.

É um erro, portanto, reduzir as manifestações de domingo a um triunfo da esquerda, menos ainda do PT. A esquerda, sozinha, mal é capaz de levar meia dúzia de gatos-pingados às ruas, como restou evidente no constrangedor ato pelo Dia do Trabalho no ano passado, no qual a presença de Lula só acentuou o vexame da ausência de povo. O PT tampouco tem legitimidade para tremular a bandeira da moralidade pública depois dos escândalos de corrupção que marcaram os governos lulopetistas. Logo, os protestos de domingo só ganharam corpo porque, obviamente, extrapolaram as trincheiras ideológicas e atraíram cidadãos inconformados com o divórcio entre o Congresso e a sociedade, marcado pelo desabrido desrespeito aos valores republicanos, a começar pela igualdade de todos perante a lei.

Não é de agora que o Legislativo mostra afastamento dos reais interesses da população, capturado que está por uma agenda corporativista em torno das emendas ao Orçamento e dos mais mirabolantes mecanismos de autoproteção de seus membros contra a apuração de desvios desses recursos. Mas raramente essa separação ficou tão evidente. A insistência em alçar parlamentares à condição de inimputáveis e o tempo que muitos no Congresso dedicam à agenda de um clã criminoso como o de Bolsonaro, decerto esperando que a subserviência renda votos, demonstram a captura de parte considerável do Legislativo por interesses que nem remotamente passam perto do bem comum. No domingo, ficou claro que muitos cidadãos não toleram isso.

De melhor, extrai-se que as manifestações contra a PEC da Bandidagem e a anistia aos golpistas evidenciaram que a sociedade brasileira não está anestesiada nem as ruas são cativas do bolsonarismo. Uma parcela expressiva da população mostrou disposição para sair de casa em defesa da Constituição e contra a supremacia de uma cultura de privilégios que parece dominar a política nacional. É claro que Lula e o PT, oportunistas que são, vão tentar tirar uma casquinha dos atos, mas todos sabem que o lulopetismo, aquele que protagonizou o mensalão e o petrolão, não tem nada a ver com a defesa da integridade das instituições republicanas.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.09.25

Mirem-se no exemplo de Chico, Gil e Caetano

É muito bonito que o chamado de "vamos às ruas" tenha sido feito por um cidadão de 83 anos que já contribuiu tanto para o Brasil que poderia estar "em casa, guardado por Deus, contando vil metal".

Caetano Veloso, Djavan, Chico Buarque e Gilberto Gil participaram de protesto contra anistia e PEC da Blindagem no Rio de JaneiroFoto: Bruno Kaiuca/AFP/Getty Images

"É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte!" Com os braços levantados, fazendo gestos revolucionários e cheios de energia, os cantores gritavam esses versos para uma multidão que cantava junto. A cena seria bonita de qualquer jeito. Mas, nesse caso, podemos usar o adjetivo "histórico". Isso porque os moços no palco eram os autores da canção Divino, Maravilhoso: Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos com 83 anos. Atrás deles, sentados no palco, estavam Chico Buarque, 81, e Djavan, 76.

A cena aconteceu em Copacabana, Rio de Janeiro, no último domingo, quando os agora octogenários ícones da música brasileira subiram de novo juntos em um palco de um protesto e cantaram hinos de resistência à ditadura e que fazem parte da história do Brasil, como Cálice, Vai passar e Aquele Abraço. O show fez parte de uma manifestação contra a "PEC da Blindagem" e a proposta de anistia aos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

O chamado tinha sido feito três dias antes por Caetano Veloso em um desabafo revoltado publicado nas redes sociais. "A gente tem que ir para a rua! Para frente do Congresso, como já fizemos outras vezes!", desabafou, visivelmente indignado: "não admitimos isso como nação, como povo, não admitimos!".

Além de Gil, Chico e Djavan, Paulinho da Viola, 82 anos, também participou do protesto ao lado dos "colegas". É muito bonito que o chamado de "vamos às ruas", em um momento tão importante da história brasileira (temos a chance de punir golpistas pela primeira vez), tenha sido feito por Caetano, um cidadão de 83 anos que já contribuiu tanto para a música brasileira e que poderia estar "em casa, guardado por Deus, contando vil metal", como diz a música Como os nossos pais, cantada no evento por Maria Gadú.

Nunca é tarde para ir às ruas

Mas também não chega a ser surpreendente. Chico, Caetano e Gil nunca se furtaram de participar da vida pública do país e de lutar pela democracia. Eles sempre estiveram lá. E o comprometimento em ser um cidadão atuante no mundo não é algo que "passe com o tempo".

Nas redes sociais, muitos recuperaram uma foto histórica, onde Caetano, Chico e Gil marcham juntos na "Passeata dos 100 mil", de braços dados, contra a ditadura militar, em 1968, há 57 anos. A foto faz parte dos livros de história. Em 1984, eu era criança, mas mesmo assim meus pais me levaram no Comício das Diretas, no Rio de Janeiro. Chico e Caetano, obviamente, estavam lá.

Não seria diferente agora que envelheceram. Inclusive, essa parece ser mais uma das lições dadas por vários representantes dessa geração: nunca é tarde para estar nas ruas e para tentar mudar as coisas. No Brasil, temos Chico, Gil, Caetano, Djavan e Paulinho da Viola. No exterior, temos Jane Fonda, por exemplo, a atriz e ativista do meio ambiente de 87 anos que vive sendo detida em protestos.

Ver esses gênios octogenários indo "para as ruas" de novo é emocionante. Em uma imagem que circula nas redes sociais, uma jovem chora copiosamente enquanto canta Cálice na frente do palco. É de chorar mesmo. Mas é também uma inspiração.

Tomara que a gente consiga fazer como eles e "levantar a bunda do sofá" cada vez que tem preguiça de lutar contra coisas revoltantes ou que repetimos o coro dos acomodados: "ah, mas isso não vai dar em nada". Se Gil, Chico e Caetano pensassem assim, estariam em casa quietos há tempos, não?

"Mamadores da Lei Rouanet"

Os últimos anos não foram fáceis para a cultura brasileira. E nem para Chico, Gil e Caetano. Os três, assim como muitos artistas brasileiros, foram apelidados de "mamadores da Lei Rouanet", chamados de corruptos, desrespeitados e xingados nas ruas e nas redes sociais. Eles poderiam simplesmente ter se cansado de dar a cara a tapa e de se envolver com a vida pública do país, mas algo me diz que eles jamais conseguiriam fazer isso, para nossa sorte.

"Nós não poderíamos deixar de responder aos horrores que vêm se insinuando à nossa volta", disse Caetano na manifestação, ao convidar os "colegas". "Vários de nós aqui já passamos juntos por momentos no Brasil parecidos com esse, e estamos sempre em busca da autonomia cada vez maior do nosso povo. Esse é um momento em que estamos fazendo de novo essa exigência", disse Gil. Ele se referia a um momento em que a extrema direita avança no mundo todo e em que o presidente dos EUA, Donald Trump, faz um dos maiores ataques contra a soberania do Brasil da história. Caetano e Gil têm razão: "é preciso estar atento e forte. Atenção!"

Nina Lemos, a autora deste texto, é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 23.09.25

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Sem anistia

A anistia seria uma derrota do estado de direito diante da exigência de um grupo político condenado justamente por ter atentado contra a democracia.

O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro acena em sua residência em Brasília no último dia do julgamento que selou sua condenação a 27 anos e 3 meses de prisão pela trama golpista — Foto: Sergio Lima/AFP

Não há razão para anistiar o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus companheiros de aventura golpista, sobretudo porque a reivindicação vem a bordo de uma chantagem política baseada na ameaça de um governo estrangeiro. A anistia, assim, seria uma derrota do estado de direito diante da exigência de um grupo político condenado justamente por ter atentado contra a democracia. Seria uma incoerência em si mesma uma decisão nesse sentido, que destoaria dos demais processos históricos anteriores, quando a anistia sempre foi dada como maneira de pacificação por parte do governo legitimamente eleito, ou, como no caso da anistia no golpe militar de 1964, da ditadura agonizante que buscava salvar os seus diante da tendência majoritária no país contrária à sua permanência.

Tanto que a extinção do AI-5 já havia sido decretada e, em seguida, a eleição, mesmo indireta, garantiu o fim da ditadura elegendo Tancredo Neves presidente da República. Em todos os casos, a anistia veio como um gesto de pacificação de governos legítimos ou de ditaduras decadentes. Agora, os perdedores querem anistia para continuar a ameaçar a democracia, aproveitando-se dela para tentar desmontar o estado de direito por dentro.

Os diversos casos acontecidos na nossa História, de anistiados que voltaram a atentar contra a democracia até vencerem no golpe militar de 1964, só demonstram que os governos democráticos que deram anistia como gesto pacificador tiveram como resposta a renovada tentativa de golpe. Desta vez, se os derrotados na tentativa de golpe mesmo assim se sentirem em condições de exigir uma anistia a seus crimes, nada indica que novas tentativas não serão feitas.

A onda de violência política que domina tanto o Brasil quanto os Estados Unidos, para ficarmos nesses dois países que, no momento, vivem ambientes políticos radicalizados, não pode ser alimentada por leniência diante dos que a fazem instrumento de uma guerra insana, distorcendo sua finalidade, que é a ordenação moral das sociedades. Carl von Clausewitz, filósofo e teórico militar escreveu que “a guerra é a continuação da política por outros meios”, mas não queria dizer que a guerra existia depois de esgotados os recursos da política. Pelo contrário, achava que a política sempre deveria ser usada para o intercâmbio entre as forças em disputa, mesmo durante a guerra.

Não há desculpa, portanto, para que se deixe de fazer política, no sentido de dialogar com forças adversas, para se partir para a guerra. Nos tempos atuais, o assassinato do líder extremista de direita Charlie Kirk nos Estados Unidos, ou a facada que sofreu Jair Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018, são exemplos de atitudes “de guerra” contra o adversário, assim como a invasão da Praça dos Três Poderes foi parte de uma tentativa de golpe contra a democracia. Nos dois primeiros casos citados, tudo indica que foram atos isolados de pessoas envenenadas pelo clima violento em vigor. No caso da intentona de janeiro de 2023, e na invasão do Capitólio nos Estados Unidos, são fatos culminantes de uma tentativa de impedir que a vitória do adversário político se oficializasse.

Não é aceitável qualquer desses atentados à democracia, vindos da direita ou da esquerda. É preciso aceitar a alternância de poder e compreender as eleições como o único instrumento válido para reverter o resultado negativo para a força política derrotada. Se o objetivo das forças partidárias em disputa é o progresso do país que almejam governar, qualquer tentativa de burlar a legislação vigente, ainda mais com violência, só pode trazer retrocessos. Os excessos de qualquer um dos Poderes constituídos, anulando o sistema de pesos e contrapesos imaginado por Montesquieu, mesmo que em busca de uma suposta Justiça, só faz abrir brecha para golpistas.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. (Presidente da Academia Brasileira de Letras). Publicado originalmente n'O Globo, em 14.09.25

O país e o julgamento

A democracia não se vinga, mas não pode ignorar o que deu errado no passado, nem deixar de almejar um futuro diferente para as próximas gerações

Primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da trama golpista — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

A democracia não se vinga, mas deve se proteger. Durante mais de um século, esteve frágil diante dos atentados, por um erro plantado no berço da República: a pretensão de que os militares seriam os tutores do poder civil. De tempos em tempos, os que têm as fardas e as armas, fornecidas pelos cofres públicos, assombraram o país ou tomaram o poder diretamente. Sou da geração que pagou o preço mais alto. Pela primeira vez, temos a chance de construir um pacto novo, no qual os militares terão seu papel, sempre essencial, mas jamais para exercer o poder.

A poesia de Affonso Romano de Sant’anna foi trazida aos autos, no voto da ministra Cármen Lúcia que condenou os réus. No poema “Que país é este?”, há versos que parecem simples e são definitivos. “Uma coisa é um país, outra um regimento”.

O ministro Luiz Fux ficou sozinho no seu voto divergente. A democracia sempre aceitará os divergentes, mas o erro do ministro foi ver fatos isolados, onde havia um plano. Ele foi executado à luz do dia, gritado nos palanques de avenidas, analisado em reuniões ministeriais, dito em datas nacionais, escrito em documentos. O mais macabro dos papéis descobertos pela Polícia Federal foi impresso no Palácio do Planalto, e trazia o nosso verde-amarelo entregue a um punhal.

As penas foram duras, mas equivalentes ao mal que viveríamos caso a trama fosse bem-sucedida. “Conhecemos o caminho maldito”, alertou a figura solar de Ulysses Guimarães, quando promulgava a Constituição. As penas foram duras, mas o ultraje foi maior e o Brasil o sofreu por quatro anos. As penas foram duras, mas é fácil imaginar como seria o Brasil, neste momento, caso eles tivessem tido êxito. Nem precisamos da imaginação para construir o cenário, nós o temos de memória.

A História do Brasil tem requintes. O ministro Alexandre de Moraes ter nascido em 13 de dezembro de 1968 é um deles. No dia da decretação do terrível AI-5, nascia a pessoa que um dia seria o relator da primeira ação penal que julgaria generais por golpe de Estado. O governante que ofendeu tanto as mulheres foi condenado pelo voto de uma mulher. A lei usada para condená-los foi sancionada pelo líder da sedição, e tem a assinatura de outros três conspiradores. Uma mulher está no comando do Superior Tribunal Militar no momento em que o tribunal vai analisar a perda de patentes dos oficiais envolvidos, julgando-os pelo tipo penal “indignidade para o oficialato”.

A história tem idas e vindas, dirão. O Congresso pode votar uma anistia. Pode. A Constituição será consultada. A pessoa eleita em 2026 pode indultar os condenados. Pode. A Constituição nos orientará. São cenários possíveis e a beleza da democracia é que o país debate e escolhe seus caminhos em cena aberta. “Uma coisa é um país, outra o confinamento”.

Durante o governo Bolsonaro, não foram poucas as vezes em que escrevi aqui que ele cometia crimes e que a democracia era seu maior alvo. Organizei 153 dessas colunas em um livro publicado em 2021. Queria que fosse um alerta. O título é “A democracia na armadilha”. O último texto avisava que “a democracia morre no fim deste enredo”. Esta coluna começava sustentando: “O agressor da democracia não vai parar. É como o agressor da mulher que após ser perdoado volta a atacar e, muitas vezes, o fim é a morte da vítima.” E concluía: “A democracia está sendo agredida, o agressor é o presidente da República. Ele tem ajudantes militares e civis.” O país estava naquele 2021 na escalada autoritária cujos autores acabam de ser condenados.

O fato de o Brasil receber ameaças dos Estados Unidos quando está tomando decisões institucionais chega a ser caricato. Era o que chamávamos antigamente de “imperialismo ianque”. Mas a verdade é esta. O país foi alvo de hostilidades concretas, com as tarifas e com palavras ameaçadoras que incluíam a alusão ao poderio militar dos Estados Unidos. Parte da oposição aplaudiu, parte ficou em silêncio.

A democracia não se vinga, mas não pode ignorar o que deu errado no passado, nem pode deixar de almejar um futuro diferente para as gerações que estão chegando. “Espero que tenha sido encerrado o ciclo do atraso, marcado pelo golpismo”, disse o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, ao fechar a sessão final do julgamento que condenou o ex-presidente, oficiais-generais e alguns civis pelo crime de atentar contra o estado democrático de Direito.

Míriam Leitão, a autora deste artigo, é jornalista - o olhar único que há 50 anos acompanha o que é notícia no Brasil e no mundo. Publicado originalmente n'O Globo, em 14.09.25

Julgamento dá orgulho

Cármen Lúcia foi concisa, de clareza não entediante e natural, o que é raridade entre as disputas por holofotes do colegiado

Cármen Lúcia, durante julgamento da trama golpista — Foto: Evaristo Sa / AFP

Dependendo do que cada um faz da própria vida, 27 anos é uma medida de tempo que se esgota rápido. Tomem-se gigantes da cultura musical como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones, Kurt Cobain, Amy Winehouse. Cada um escolheu um viver em intensidade máxima, acelerada, que durou 27 anos. Morreram prematuramente de forma trágica, deixando órfãs suas legiões de seguidores. No outro extremo está Jair Bolsonaro. A sentença de 27 anos e três meses de prisão, mesmo se algum dia reduzida para um sexto da pena ou aliviada para prisão domiciliar, encontra um homem condenado a um perpétuo vazio. O vazio da desumanidade que semeou.

O que fez da própria vida, em 70 anos? Desperdiçou-a, sempre em busca de atalhos, vantagens, conluios, arranjos. Como militar, foi inglório — chegou a capitão reformado por uma dessas maracutaias, mas a partir da sentença desta semana pode perder também a patente. Como parlamentar, foi desprezível, juntando-se ao que há de mais corrosivo na vida política nacional. E, como presidente, envenenou de tal forma as instituições democráticas que algumas levarão tempo para ser sanitizadas. Uma delas, o Supremo Tribunal Federal (STF), felizmente ficou de pé para julgá-lo.

Ironicamente, é a partir do voto soberano de quatro dos cinco togados da Primeira Turma do STF que Jair Messias Bolsonaro adquire agora uma marca inédita, histórica e indelével para chamar de sua: primeiro ex-presidente do Brasil condenado por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, liderar uma organização criminosa armada para se manter no poder, além de dois outros crimes consoantes. Nosso 11 de setembro também passa a ser data histórica de consequências ainda inalcançáveis. Mas, ao contrário do golpe militar no Chile em 1973 e do atentado terrorista às Torres Gêmeas de 2001, seu sentido exemplar e civilizatório dá orgulho.

Ainda assim, Bolsonaro conseguiu escapar de ser julgado como ser desumano. Não existe tribunal para isso.

— Presidentes não são treinados para ter ou aparentar empatia, nem para fazer as vezes de pastores de almas doídas — escreve o jornalista John Dickerson, autor de “The hardest job in the world — the American presidency”.

Só que esse papel também faz parte do cargo, pois tragédias ocorrem, e a nação precisa receber conforto e atenção do cuidador em chefe. É conhecida a história do pai de um soldado americano morto na Guerra da Coreia que enviou uma carta ao então presidente Harry Truman. Inclusa no envelope, estava a condecoração militar Purple Heart recebida pelo filho. O texto dizia:

— Como o senhor foi diretamente responsável pela morte de nosso filho, pode ficar com essa insígnia para sua coleção de troféus... Lamentamos que sua filha não estivesse na guerra para receber o mesmo tratamento dado a ele.

Truman guardou a carta numa gaveta de sua mesa de trabalho até morrer.

O desdém, o sarcasmo e a irresponsabilidade com que Bolsonaro abandonou perto de 700 mil compatriotas à morte por Covid-19 durante seu mandato permanecem sendo um libelo à parte na avaliação dos males que sua Presidência trouxe ao país. Embora estrangeira à condenação atual, a dimensão desse apagão cívico irreparável também faz parte do DNA do personagem julgado. O desprezo pela vida humana e a tentativa de desconstrução da normalidade democrática andaram de mãos dadas naquele país à deriva, capitaneado por um grupo de salteadores civis e militares.

— A presente ação penal é quase um encontro do Brasil com seu passado, com seu presente e com seu futuro — disse a ministra do STF Cármen Lúcia, no voto que formou a maioria pela condenação dos réus.

O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro acena em sua residência em Brasília no último dia do julgamento que selou sua condenação a 27 anos e 3 meses de prisão pela trama golpista - Sergio Lima/AFP

Condenado, Bolsonaro pode começar a se 'desapegar' do dinheiro que recebe do PL

Foi concisa, de clareza não entediante e natural, o que é raridade entre as disputas por holofotes do colegiado. Única mulher entre os cinco magistrados da Primeira Turma (e também única mulher do total de 11 integrantes da Corte), ela se referia especificamente à área das políticas públicas dos órgãos de Estado.

Pois seria mais do que hora para o atual ou futuros(a)s presidentes da República tirarem o Brasil do atraso e equilibrarem essa composição antediluviana. Pelo menos antes do ano 2060, quando Jair Bolsonaro, então com 105 anos de idade, poderá deixar de ser inelegível.

Dorrit Harazim, a autora deste artigo, é Jornalista e Documentarista. Publicado originalmente n'O Globo, em 14.09.25

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Justiça histórica contra o golpismo

Supremo rompe com uma nefasta tradição de leniência ao condenar Bolsonaro e seus comparsas civis e militares à prisão pela tentativa de impedir a posse de um presidente legitimamente eleito


Bolsonaro só foi ao STF no primeiro dia do julgamento

A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão por tentativa de golpe de Estado, entre outros crimes correlatos, engrandece o Brasil. Sob risco de se perder a real dimensão do feito realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), não se pode analisar o fim do julgamento da Ação Penal (AP) 2.668 somente à luz da punição de criminosos que, desde os mais elevados postos da República, conspiraram contra a Constituição. É preciso reconhecer que, malgrado os problemas jurídicos, de resto compreensíveis ante o ineditismo do processo, e em meio a uma brutal pressão sofrida pelo STF, a democracia brasileira passou com poucos arranhões por seu maior teste desde o fim da ditadura militar e soube lidar com uma ameaça real à sua existência.

Pela primeira vez, um ex-presidente da República é condenado à prisão por insuflar e liderar uma conspiração que pretendia impedir a posse de um presidente legitimamente eleito. Ao lado de Bolsonaro na desonra de ingressar no rol dos culpados, três generais de quatro estrelas e um almirante de esquadra foram igualmente condenados, rompendo-se, assim, a nefasta tradição de leniência com militares sediciosos que conspurca a história republicana. Desde 1889, o País conviveu com reiteradas intervenções de fardados na vida política nacional, sempre sob o signo da impunidade. Nesse sentido, a decisão do STF de não condenar apenas o líder civil da trama golpista resgata uma condição indispensável para o desenvolvimento do Brasil: na democracia, não há lugar para tutela militar sobre os destinos do País. Tampouco há espaço para indulgência com traidores da Pátria, sejam paisanos ou fardados.

A condenação de Bolsonaro, pode-se afirmar, é o corolário de uma vida pública dedicada à insurreição, à violência, à mentira, ao desrespeito às instituições e a tudo o mais que possa ser hostil à convivência em uma sociedade livre. Como bem sublinhou o ministro relator da AP 2.668, Alexandre de Moraes, Bolsonaro foi praticamente um “réu confesso”. Recorde-se que, em agosto de 2021, o então presidente afirmara que só via “três alternativas” para seu futuro: “estar preso, estar morto ou a vitória (na eleição de 2022)”, deixando claro que “a primeira alternativa não existe”. Ou seja, Bolsonaro jamais cogitou de uma transferência pacífica de poder.

A condenação, porém, transcende a biografia do indigitado, um sujeito que nunca ofereceu algo de bom ao Brasil e a seus concidadãos como militar, como deputado e como presidente da República. A decisão do STF é uma vitória da sociedade brasileira, que, a duras penas, reconquistou as liberdades democráticas em 1985 e tem lutado para aprimorá-las desde então. Portanto, a prisão de Bolsonaro por liderar uma tentativa de restauração do arbítrio no País é o triunfo, do ponto de vista coletivo, do ideal de Justiça.

É preciso registrar, ademais, a gravidade das pressões para deslegitimar o julgamento de Bolsonaro e seus asseclas. O presidente dos EUA, Donald Trump, sob influência de Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, impôs sanções ao Brasil e a ministros do Supremo. Há poucos dias, chegou a ameaçar o Brasil até com a possibilidade de intervenção militar para livrar Bolsonaro da cadeia. Em paralelo, o grupo político do sr. Bolsonaro empenhou-se sistematicamente em criar um clima de hostilidade em relação ao Supremo, na expectativa de mudar o destino do ex-presidente, agora um golpista condenado, a depender da mudança de ventos políticos. Infelizmente, não há razão para crer que essa malta recuará, o que prenuncia tempos ainda mais tumultuados.

Seja como for, o Supremo provou-se disposto a cumprir seu papel, mesmo diante das mais severas adversidades. Agora, cabe à sociedade e ao Congresso reafirmar esse pacto democrático. Não se tratou de vingança, mas de justiça. Não se tratou de perseguição, mas de resguardo da Constituição. O Brasil mostrou que é capaz de punir, com o rigor da lei, aqueles que atentam contra a democracia. E que ninguém, nem mesmo um ex-presidente da República ou militares de alta patente, está acima da lei.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.09.25

Por que Bolsonaro sancionou a lei que serviu de base para condená-lo

Considerada uma derrota para Bolsonaro quando aprovada em 2021, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito serviu de base para a condenação do ex-presidente a 27 anos de prisão. 

O Supremo Tribunal Federal (STF) condenou nesta quinta-feira (11/9) o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a 27 anos e três meses de prisão por cinco crimes:

liderança de organização criminosa;

tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito;

golpe de Estado;

dano contra o patrimônio da União;

e deterioração de patrimônio tombado.

Dois deles — abolição violenta do Estado de Direito e golpe de Estado — estão previstos no artigo 359 do Código Penal, onde foram incluídos pela lei de crimes contra a democracia, de número 14.197, e sancionada pelo próprio Bolsonaro em 2021.

Mas por que Bolsonaro sancionou essa lei, que levou à revogação da Lei de Segurança Nacional (LSN), considerada por muitos como um "entulho autoritário" da ditadura?

E por que o então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pautou o tema com urgência, sendo que ele era parte da base do governo Bolsonaro?

Entenda como uma derrota política sofrida por Bolsonaro em 2021, ainda na pandemia, resultou na ironia de o ex-presidente ser condenado por uma lei que ele mesmo sancionou.

A explosão no uso da Lei de Segurança Nacional sob Bolsonaro

A lei que definiu os crimes contra o Estado Democrático de Direito foi aprovada em 2021 para substituir a Lei de Segurança Nacional, de 1983.

Esta foi uma lei criada já no fim da ditadura militar, após o fracasso do segundo Plano Nacional de Desenvolvimento do governo de Ernesto Geisel, e a eleição pelo Colégio Eleitoral, em 1979, de João Figueiredo para a Presidência.

Os militares começaram a perceber então que teriam dificuldade de permanecer no poder, em meio à crise econômica e à crescente pressão social e política.

"Eles perceberam que, mais hora, menos hora, teriam de sair do poder. Uma coisa é você sair chutado, a outra coisa é você sair negociando. Obviamente, eles optaram pela negociação", lembra o sociólogo e jurista José Eduardo Faria, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Conselho de Inovação e Pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV).

"Então, com isso, eles prepararam uma concepção de doutrina de segurança nacional e lançaram uma lei. Em 1983, essa Lei 7.170 institucionaliza o conceito de segurança nacional."

A LSN definia crimes contra a integridade territorial, a soberania nacional e o regime democrático. Mas o principal problema da lei, explica Faria, é que ela era uma norma com conceitos abertos e, portanto, passíveis de interpretação.

"O que se punia não era estritamente o terrorismo como crime tipificado, mas quase todo tipo de antagonismo ao governo de plantão", escreveu o jurista, em um artigo sobre o tema.

"Isso vai fazer com que, quando Bolsonaro é eleito, essa lei na mão de Bolsonaro dava um poder extraordinário a ele", observa Faria, em entrevista à BBC News Brasil.

Nos primeiros dois anos de governo Bolsonaro, o uso da Lei de Segurança Nacional como base para inquéritos da Polícia Federal cresceu 285% em relação ao mesmo período dos governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).

Foram 77 investigações entre 2019 e 2020, ante 20 inquéritos entre 2015 e 2016, conforme reportagem do Estado de S. Paulo à época, com base em dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Os alvos eram opositores do governo Bolsonaro, como cinco manifestantes presos em Brasília, em março de 2021, após estenderem uma faixa com a frase "Bolsonaro genocida" em frente ao Palácio do Planalto. Jornalistas também foram processados com base na LSN à época.

Em março de 2021, cinco manifestantes foram presos em Brasília e enquadrados na Lei de Segurança Nacional por estender esta faixa em frente ao Palácio do Planalto. (Reprodução)

A ameaça de autogolpe em meio à pandemia

"O Congresso começa a perceber então as loucuras do Bolsonaro", observa Faria, autor do livro Degradação Democrática: o Brasil em Risco (Engenho das Letras, 2022).

O jurista lembra, por exemplo, de projeto de lei proposto em março de 2021 pelo deputado bolsonarista e líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), que, tendo a pandemia como justificativa, dava a Bolsonaro poderes absolutos, como o de mandatários em situação de guerra.

Pouco tempo depois, em 14 de abril daquele ano, Bolsonaro fez uma declaração que acendeu todos os alarmes dos demais Poderes, ao sugerir o que foi interpretado à época como a possibilidade de um autogolpe — quando um governante legitimamente eleito rompe as regras do sistema político para se manter no poder ou ampliar seus poderes.

"O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar providência, eu estou aguardando o povo dar uma sinalização. Porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí", disse Bolsonaro, em conversa com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada, naquele abril de 2021.

'O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar providência', disse Bolsonaro em 2021

"Aí a Câmara e o Senado, que não eram totalmente bolsonaristas, começaram a perceber. 'Chega! Está demais. Isso vai ser uma loucura'", lembra o professor da Faculdade de Direito da USP.

"Era um momento que ainda não era essa Câmara tão dominada assim [pela direita], ainda havia margem de negociação", diz Raísa Ortiz Cetra, co-diretora-executiva da ONG Artigo 19, que participou dos debates para a aprovação da lei de defesa do Estado Democrático de Direito no Congresso, representando a sociedade civil.

"Houve uma grande convergência do campo democrático, inclusive do Centrão, de que era necessário revogar a LSN, e o bolsonarismo e a extrema direita ficaram isolados."

Assim, pouco menos de seis meses após a fala de Bolsonaro que acendeu os alarmes quanto à possibilidade de um autogolpe em meio à pandemia, foi aprovada a Lei 14.197 de 2021, que revogou a Lei de Segurança Nacional, após 38 anos dela em vigor.

"A aprovação da lei, então, foi uma derrota para Bolsonaro à época, uma derrota muito difícil", considera Faria.

Mesmo sendo um aliado de Bolsonaro, Arthur Lira (PP-AL) aprovou urgência para o projeto de lei que levaria à revogação da Lei de Segurança Nacional (Crédito: AFP)

As críticas da esquerda à época

A lei que redefiniu os crimes contra a democracia foi aprovada com base em dois projetos de lei que já tramitavam no Congresso há anos.

Um deles, de 1991, teve como autor o jurista e ex-deputado Hélio Bicudo (PT-SP).

O outro projeto foi apresentado em 2002 pelo jurista Miguel Reale Júnior, então Ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) — que ganharia notoriedade novamente anos depois, por ter sido o autor do pedido de impeachment de Dilma Rousseff.

Mas, apesar da "grande convergência do campo democrático" em torno de sua aprovação, como uma forma de revogar a LSN e conter os ímpetos autoritários de Bolsonaro, a lei foi alvo de críticas de movimentos sociais e organizações ligadas à esquerda ao longo de sua tramitação.

"Nunca fomos contra a aprovação de uma lei de proteção do Estado Democrático de Direito e muito menos do fim da Lei de Segurança Nacional", diz Raísa Ortiz Cetra, da Artigo 19.

"Mas havia preocupações com a forma como a lei estava sendo debatida, sobretudo sua tramitação em caráter de urgência, que levou a uma completa ausência de debate público substantivo", diz ela.

"E havia preocupações também quanto ao conteúdo, porque a lei reeditou muitos tipos penais da LSN, trazendo um foco punitivista para a questão", considera.

Plenário do Senado durante a votação do projeto que revogou a Lei de Segurança Nacional (LSN) e inclui na legislação crimes contra o Estado Democrático de Direito

A lei, sancionada com vetos de Bolsonaro, acrescentava no Código Penal um novo título, tipificando crimes contra o Estado democrático, incluindo:

crimes contra a soberania nacional: atentado à soberania, atentado à integridade nacional e espionagem;

crimes contra as instituições democráticas: abolição violenta do Estado democrático de direito e golpe de Estado;

crimes contra o processo eleitoral: interrupção do processo eleitoral e violência política;

e crimes contra o funcionamento de serviços essenciais: sabotagem.

"A grande crítica era que eram muitos tipos penais, que versavam sobre o mesmo tema. Muitos tipos penais abertos e com penas muito altas, que podiam fortalecer o já tradicional punitivismo de determinados setores da sociedade — estou falando de movimentos por direitos, movimentos sociais", explica a diretora-executiva da Artigo 19.

Ela observa que algumas dessas fragilidades da lei, apontadas pela esquerda em 2021, agora são exploradas pelos advogados de defesa de Bolsonaro e dos demais réus no caso da tentativa de golpe, como a sobreposição de tipos penais e as penas elevadas.

Mas Cetra considera que parte desses problemas poderá ser resolvida pelos ministros do Supremo, na decisão desta semana, que deverá criar a jurisprudência para a aplicação da lei à frente

Miguel Reale Júnior, autor de um dos projetos que serviu de base para a lei, considera as críticas feitas pela esquerda à época da tramitação da lei "exageradas" e "anacrônicas".

"Era um pouco de exagero imaginar que a lei tivesse como finalidade atingir movimentos sociais, um pouco de visão anacrônica, imaginando que se estaria aplicando essa lei com os olhos da ditadura, quando nós estamos em plena democracia", disse ele, em entrevista à BBC News Brasil.

'Era um pouco de exagero imaginar que a lei tivesse como finalidade atingir movimentos sociais, um pouco de visão anacrônica', considera Miguel Reale Jr. (AFP)

Reale Jr. lembrou ainda que a lei foi aprovada com um artigo que define claramente que "não constitui crime a manifestação crítica aos poderes constitucionais, nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

Ele também discordou da avaliação de que a lei teria um excesso de tipos penais, que se sobrepõem, são muito abertos e têm penas muito altas.

"Pelo contrário, o projeto que tinha sido encaminhado ao Congresso era bem mais longo, com vários tipos penais. Foram suprimidos muitos por pressão da esquerda, que via na criminalização de atitudes contra o Estado de direito resquícios de perseguição política."

Raísa Ortiz Cetra avalia que, de fato, a lei melhorou bastante ao longo de sua tramitação, a partir das críticas da esquerda. Ainda assim, ela considera que o risco do uso da legislação contra movimentos sociais persiste.

Em janeiro de 2024, por exemplo, lembra ela, o crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito foi citado nos autos de prisões que ocorreram em protestos contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo. Os processos, no entanto, foram arquivados este ano.

Manifestação contra o aumento das tarifas do transporte sobre trilhos, na Avenida Paulista, em São Paulo, em 4 de janeiro de 2024. Os manifestantes, em sua maioria jovens, carregam bandeiras ligadas a grupos de esquerda e uma grande faixa preta onde se lê "Tarifa não, passe livre já"

Em janeiro de 2024, o crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito foi citado nos autos de prisões em protestos contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, destaca Raísa Ortiz Cetra, da ONG Artigo 19 (Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Bolsonaro, da sanção a alvo da lei

Para a diretora da Artigo 19, apesar dos problemas da lei, a aplicação dela contra Bolsonaro e os demais réus no caso da tentativa de golpe de Estado em julgamento no STF revela a importância de sua aprovação em 2021.

"Ela está sendo um instrumento importante na defesa da nossa democracia, mas não podemos descuidar de passar determinados limites que possam fragilizar a democracia em um outro momento", considera.

Já Miguel Reale Jr. defendeu que caberia a condenação dos réus apenas pelo crime de tentativa de golpe de Estado, pois ele já absorveria, no seu entendimento, o crime de tentativa de abolição do Estado democrático de direito.

A posição também foi defendida pelo ministro Luis Roberto Barroso nas ações envolvendo os réus do 8 de Janeiro.

Barroso defendeu que crime de tentativa de golpe de Estado já absorveria o crime de tentativa de abolição do Estado democrático de direito (Crédito,Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

"Eu acho que deve haver uma conjunção, ou seja, a absorção do crime de abolição dos poderes pelo crime de golpe de Estado, e acho que as penas são muito elevadas, que foram estabelecidas penas bases muito elevadas. Eu entendo que a pena justa deveria ser menor", disse Reale Jr., antes da decisão do STF na quinta-feira (11/9), que condenou Bolsonaro pelos dois crimes de forma separada, ao contrário do defendido pelo jurista.

José Eduardo Faria, da USP, também avalia que o Supremo errou ao estabelecer penas muito altas para os réus do 8 de Janeiro. E que uma solução seria reduzir essas penas, para que penas mais altas pudessem ser aplicadas a Bolsonaro e aos demais réus do alto escalão da trama golpista.

Apesar de sua ponderação quanto à aplicação dos tipos penais e a duração das penas, Reale Jr. critica veementemente a possibilidade de anistia aos golpistas.

"Eu creio que é uma traição à democracia", diz o jurista.

Segundo ele, a anistia cabe quando, com o passar do tempo, há uma redução do sentimento social negativo com relação ao fato alvo da anistia. Ou quando se está num processo de transição de um regime autoritário para um regime democrático, como em 1979. Ou para promover uma pacificação.

"Mas não existe pacificação quando os parlamentares defensores da anistia pedem a anistia praticando o crime que eles querem que seja anistiado", diz Reale Jr., se referindo à ocupação da Mesa Diretora da Câmara por deputados apoiadores de Bolsonaro no início de agosto.

"Ou seja, eles querem que se anistie o crime de abolição dos poderes e praticam exatamente o crime de impedimento do exercício [do poder] da Câmara dos Deputados", afirma.

Para o senador Rogério Carvalho (PT-SE), líder do governo no Senado e relator da lei em 2021, a aplicação da norma contra Bolsonaro e os outros membros de seu governo coloca fim ao sentimento de impunidade de setores da direita radical.

"Eles nunca imaginaram que os atos deles seriam alcançados por uma lei, porque eles não prestam muita atenção nisso. Eles não valorizam muito o que está na lei, o que está nos regulamentos, como funcionam as instituições. Eles agem a partir da força", diz Carvalho.

"Eles nunca imaginaram que os atos deles seriam alcançados por uma lei', diz o senador Rogério Carvalho (PT-SE), relator da lei em 2021

Raísa Ortiz Cetra, da Artigo 19, concorda com essa avaliação.

"Naquele momento [em 2021], a gente conseguiu a aprovação da Lei de Proteção do Estado Democrático de Direito, sabendo que a democracia no Brasil estava em risco, mas sem saber concretamente que a gente viveria um 8 de janeiro. Foi um acerto muito grande do campo democrático, de ver que a gente ia precisar de um instrumento que tratasse desse tema", diz ela.

"O campo bolsonarista tem uma certeza de impunidade. Ele [Bolsonaro] sancionou essa lei também, muito provavelmente, na expectativa de que não teria aplicação contra ele."

Thais Carrança, jornalista, de S. Paulo - SP para a BBC News Brasil, em 11.09.25

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Vamos debater anistia sem hipocrisia?

‘Não é um assunto familiar ao eleitor’

Essa frase foi dita ao vivo pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) ao ser questionado pela jornalista Andrea Sadi se a “PEC da Impunidade” teria aprovação do povo. A referida PEC propunha, dentre outras medidas, o fim do foro privilegiado e a necessidade de aval do Congresso para um parlamentar ser criminalmente processado. O deputado confessou que a iniciativa não tinha amparo das ruas.

Foi um raro momento de honestidade política que deixou bem claro o que anda movendo a atividade legislativa. Pelo menos ele não foi hipócrita. Confessou para o seu eleitor, sem ruborizar, que as iniciativas dos parlamentares estão pouco se lixando para representatividade democrática.

Basta ligarmos um ventilador na névoa que rodeia o debate sobre a anistia dos golpistas para entendermos que é isso que está acontecendo. Não se trata de uma pauta democrática. O ianque Eduardo Bolsonaro já disse textualmente que, sem anistia para o papai, não tem revisão de tarifaço . O senador Davi Alcolumbre propôs uma saída alternativa: anistia para reduzir a pena somente do pessoal do quebra-quebra nos Três Poderes. Os parlamentares chiaram .

Então, sra. Débora Rodrigues dos Santos (conhecida como “tia do batom”), esse povo aí do parlamento não está nem aí para a sua situação.

Quem quer anistia?

A narrativa do momento fala em necessidade de “pacificação” dos conflitos que desencadearam o 8 de janeiro. Anistia ampla e irrestrita para zerar as tensões. Bola no cal. Vida que segue.

Mas é isso mesmo que está em jogo?

Premissa a ser enfrentada: mesmo que a imensa maioria da população desejasse anistia irrestrita, ainda assim a iniciativa seria legítima? Uma vez aprovada a anistia, seria válida?

Lenio Streck e Eduardo Appio escreveram nesta ConJur explicando que uma lei nesses termos seria inconstitucional. Mais didático, impossível. A pretensão de que uma constituição democrática perdoe quem não quer democracia é uma contradição em essência. Numa comparação tacanha, seria o mesmo que aceitar que a esposa vítima da tentativa de homicídio tivesse legitimidade para isentar o marido pelo crime cometido. Não dá. Mínimo ético impede.

Mas o meu foco é algo anterior a isso. Quem realmente quer a anistia? Esse pessoal tem razão?

Como eu disse há pouco, não importa quantas pessoas queiram anistia para o pessoal do golpe. Mesmo que 45 mil estejam protestando na Avenida Paulista, isso não é importante. Nossa Constituição não permite. Se uma pesquisa disser que 80% da população brasileira quer guilhotina em praça pública, mesmo assim a pena de morte não pode ser aprovada. Pesquisas e gritaria não estão acima da Constituição. Bem vindos ao mundo civilizado.

Mas vamos lá, eu gosto de uma treta. Não tem papo com psicótico se o confrontarmos com a realidade. Então, “bora” debater com o metaverso.

Pesquisa Datafolha diz que 65% da população não é favorável à anistia. Alguém me disse que o Datafolha é comunista. A AP/Exata também fez pesquisa e verificou que o número é ainda maior: 75% não aprovam. Eu não sei bem se Marx tem alguma relação com o instituto, mas enfim…

Qualquer pesquisa que acessarmos no Google (que também deve ser comunista) irá demonstrar que a imensa maioria da população brasileira não deseja anistia. Então, como é que iremos pacificar a população se nos curvarmos ao que deseja 20 ou 30% das pessoas? Se concedermos anistia, estaremos frustrando 60 ou 70% das pessoas. E se elas quiserem pegar os seus batons e quebrar tudo, estaria liberado? Decididamente, eu não pacifico meu filho, que destruiu propositalmente o vidro da janela, com um Playstation novo.

Anistia de 1979 x anistia de golpistas

Outra discussão divertida é a que tenta justificar a anistia atual comparando com a que houve em 1979.

Apenas pra lembrar quem ainda se importa com os livros de história: a Lei n° 6.683/79 tratou da anistia aos crimes políticos ocorridos entre 2/9/1961 e 15/8/1979. Foi uma lei aprovada durante um regime de exceção (ou seja: não democrático). Foi uma anistia bilateral: extinguiu o crime dos militares e da população civil. Foi um acordo meio a fórceps. Gis e Caetanos não tinham muita liberdade de escolha. Prova disso é que a lei liberou o pessoal de verde, mas excluiu da anistia os condenados por terrorismo, assalto (sic), sequestro e atentado pessoal (sic) (artigo 1°, § 2°). Ou seja, a galera da tortura saiu de lombo liso.

Em 2010, o STF perdeu a oportunidade (APDF n° 153) de reconhecer a inconstitucionalidade dessa lei. A maioria acompanhou o voto do ministro Eros Grau afirmando que era uma decisão do Congresso que, como tal, não deveria sofrer intervenção do judiciário.

A Argentina foi mais competente ao reconhecer inconstitucionais as Leis do “Ponto Final” (Lei n° 23.492/86) e da “Obediência Devida” (Lei n° 23.508/87), permitindo que as atrocidades praticadas pelos militares comandados por Jorge Rafael Videla fossem processadas criminalmente. Vejam o filme Argentina 1985, com Ricardo Darín, para entender bem o que houve por lá. Talvez não haveria a bagunça no 8 de janeiro se tivéssemos ido pela mesma linha.

A anistia que alguns querem hoje no Brasil é diferente. Estamos num regime democrático. A maioria da população não quer a anistia. Portanto, estamos diante de uma anistia unilateral minoritária: algumas crianças que aprontaram na escola querem o perdão dos pais.

É um devaneio comparar ambas as anistias. Em 1979, a população civil escondida ou exilada não tinha outra opção para voltar ao país. Ou aceitava, quieta, a lei aprovada (com a crença de, no futuro, revê-la), ou seguia clandestina em porões ou morando em outros países. Os militares é que decidiram pelo self rescue. Esse foi o contexto do “acordo” político que justificou a lei na época.

Hoje não tem acordo. Hoje, a maioria da população não quer ver meia dúzia de baderneiros, coordenados pelos mesmos melancias que se safaram em 1979, escaparem da punição pela tentativa de deposição do regime democrático. Gil e Caetano estão em suas residências, livres, com a opção de gritar: Anistia é o C***lho!

Penas elevadas?

Isso tudo me remete a algumas analogias.

Eu fico aqui pensando na torcida de um clube de futebol que está irritada com a direção. Os chefes das torcidas organizadas estão querendo depor o presidente eleito. Para tanto, convocam torcedores para promover um quebra-quebra. Financiam as ações. Após algumas reuniões, definem a estratégia para a invasão e transmitem-na a quem irá executá-la. Porteiros, atônitos, não conseguem impedir. A sede do clube é destruída. Após muito esforço, a polícia consegue conter a rebelião. Uma investigação criminal é instaurada e identifica quem coordenou a ação e alguns dos executores. Todos são processados criminalmente. Um deles, que apenas rompeu o cadeado do portão, alega em sua defesa que a pena pela destruição seria excessiva porque o ato dele seria pífio. Os chefes das torcidas defendem-se dizendo que um bando de loucos agiu sozinho. Em paralelo, alguns torcedores defendem o perdão de todos, para pacificação do conflito.

Desenhando assim, fica claro do que estamos falando?

Não estamos tratando de uma treta de clube. O problema é bem maior. O regime democrático de um país, por muito pouco, não foi deposto por uma minoria. Uma minoria lunática (foi o próprio Bolsonaro que os definiu assim), que outrora tinha vergonha de dizer o que pensava, mas que agora quer se safar alegando ser essa a saída para a pacificação do conflito. Essa minoria foi coordenada por um grupo de pessoas que não aceitava o resultado de uma eleição simplesmente porque não aceitava a derrota. Ou eu, ou ninguém. Esse é o ponto. Todos sabem que a gritaria com fraude de urnas eletrônicas foi uma balela. A revolta não tem conteúdo democrático porque esse povo aí ficou emburrado com o resultado da eleição.

As penas fixadas para o pessoal da linha-de-frente da tentativa de golpe foram excessivas?

A “tia do batom” foi condenada a 14 anos de reclusão. A pena do crime do artigo 359-L é de quatro a oito anos. Ela recebeu quatro anos e seis meses. A pena do crime do artigo 359-M é de quatro a 12 anos. Ela recebeu cinco anos. A pena do crime do artigo 163, parágrafo único, é de seis meses a três anos. Ela recebeu um ano e seis meses. A pena do crime do artigo 62, I, da Lei n° 9.605/98 é de um a três anos. Ela recebeu um ano e seis meses. E a pena do artigo 288 do CP é de um a três anos aumentada até a metade. Ela recebeu um ano e seis meses.

Portanto, as penas foram fixadas bem próximo do mínimo legal. Então, não prospera o argumento de que as penas foram excessivas.

Mas há um ponto, sim, que merece ajuste. Não houve um excesso de penas, mas sim um excesso de delitos imputados. Minha opinião é a de que o artigo 359-M deveria absorver o artigo 359-L. E o artigo 62, I, da Lei n° 9.605/98 deveria absorver o artigo 163, parágrafo único. No Direito Penal, isso recebe o nome de concurso aparente de normas (parecido com o que ocorre quando o crime de estelionato absorve a falsidade ideológica ou material). A solução é dada pelo princípio da consunção.

Vício processual ou excesso de condenação podem ser combatidos com anistia?

Esse é outro ponto que eu acho importante passar a lupa.

O ministro Alexandre de Moraes recebeu muitas críticas na condução dos processos pela tentativa de golpe porque atuou de ofício, ou seja, sem provocação das partes. Isso feriria a garantia de um processo penal acusatório. Eu concordo com essa tese. De fato, um juiz que toma iniciativas probatórias e pratica atos que deveriam ser provocados pelo Ministério Público ou pela polícia pode colocar em risco sua imparcialidade.

Bueno, o ministro Joaquim Barbosa também fez isso na condução do processo do mensalão: “a prova testemunhal é uma das mais relevantes no processo penal. Por esta razão, o juiz pode convocar, de ofício, testemunhas que considere importantes para a formação do seu convencimento”.

Eu também sou um dos que penso que não poderia haver concurso de crimes entre lavagem de dinheiro e crime antecedente quando o autor de ambos seja o mesmo. Isso se chama autolavagem. Há inclusive países cuja lei penal diz que a lavagem de dinheiro só é imputada a quem não foi autor do crime antecedente. Logo, em minha visão — e também sob a ótica de muitos outros autores — houve excesso de punição em muitos acórdãos da “lava jato” e do mensalão [10].

Esses exemplos esses bastam para encerrar a discussão de que  1ª Turma do STF (e não apenas o ministro Alexandre de Moraes) teria cometido alguns erros processuais ou teria fixado condenações exageradas. Críticas como essas fazem parte da jurisdição. Em quase 30 anos de advocacia, tive muitos clientes que, sob a minha ótica, foram vítimas de arbítrios. Eu poderia citar aqui o que Sérgio Moro e sua turma de Curitiba aprontaram desde o caso Banestado. Alguém, nesses casos, levantou a bandeira da anistia ao argumento de que houve arbítrio?

Alguns dirão que a vontade do povo, hoje, é pela anistia. Ora, já vimos que as pesquisas mostram que isso não é verdade. Mas se essa é a questão, porque o povo não pediu anistia para Lula, quando pesquisas apontavam que 43% dos brasileiros não consideravam a condenação justa ?

Mesmo discordando da sua condenação, Lula dobrou-se à Justiça. É isso que se espera de um líder num regime democrático. O filho obedece ao pai, e não o contrário.

Não há espaço democrático para buscarmos anistia quando uma parte da população não gosta que o seu messias vá para a prisão. Se permitirmos isso, no dia seguinte ao resultado da próxima eleição estaremos autorizando que candidatos e eleitores que não ficaram satisfeitos com o desfecho possam promover uma nova tentativa de golpe e um quebra-quebra no Praça dos Três Poderes. Não se vence eleição com gritos ou pedras.

No fundo, o que desejam os favoráveis à anistia?

Então, o que está por trás dessa discussão de anistia é uma nova tentativa de golpe. 20-30% da população, parte do Congresso e a família Bolsonaro estão se lixando para os condenados pelo 8 de janeiro. Eles querem que Bolsonaro não vá preso. Querem que ele concorra na próxima eleição. E querem que ele seja o próximo presidente da República mesmo que não seja eleito. Em suma: não aceitam ninguém menos que Bolsonaro, pouco importando o respeito pelas regras do jogo e o resultado final das urnas. Tudo o que não é Bolsonaro, é comunismo.

Donald Trump foi honesto ao falar: “Muita gente anda dizendo que talvez a gente queira um ditador”. Ficou claro? Bolsonaro e Trump não empunham uma pauta democrática. E todo esse povo deseja que a democracia assine seu próprio atestado de óbito.

A eles, eu e 70% da população devemos dizer: ninguém solta a mão de ninguém. Venha, Tarcísio. Exponha as suas ideias para que possamos escolher qual candidato é o melhor para o país. Mas comporte-se. Senão, a Papuda também terá um lugar para você

Andrei Zenkner Schmidt, o autor deste artigo, é doutor em Ciências Criminais pela PUC-RS e advogado fundador do Zenkner Schmidt, Aspar Lima & Rocha Neto Advogados Associados. Publicado originalmente pela revista eletrônica Consultor Juridico, em 09.09.25

'Jornalista não é flor que se cheire': o julgamento que absolveu Bolsonaro em 1988

A notícia deve ter passado despercebida para muitos leitores que abriram os jornais no dia 3 de setembro de 1986. Era um assunto digno apenas de uma nota pequena, sem muito destaque.

Bolsonaro foi do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista (Crédito: Acervo Pessoal Jair Bolsonaro)

Capitão é punido com 15 dias de reclusão, anunciava a Folha de S.Paulo.

Preso o capitão que escreveu em revista semanal, noticiava O Globo, num espaço ainda mais modesto.

Mas, passados 39 anos, pode-se dizer que os jornais registraram naquele dia de inverno um pedaço da história do Brasil.

O tal capitão da manchete se chamava Jair Messias Bolsonaro, um então desconhecido militar do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, em Deodoro, no Rio de Janeiro.

A revista citada era Veja (Editora Abril) e o que o capitão escreveu foi um artigo com críticas ao que considerava má remuneração dos militares, desafiando assim seus superiores.

A punição disciplinar a Bolsonaro em 1986, ainda que modesta, foi a primeira vez que ele foi privado de sua liberdade por desrespeitar as regras.

Nesta semana, Bolsonaro enfrenta a fase final do julgamento que pode condená-lo a mais de 40 anos de prisão pela acusação de tentar tramar um golpe de Estado que impediria a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2022.

Mas, apesar do pouco espaço inicial dado à primeira prisão do então capitão, aquela punição acabou funcionando como uma catapulta à vida pública de Bolsonaro.

À Justiça Militar, ele chegou a admitir em depoimento que se tornou mais conhecido entre militares e a população justamente após a publicação do artigo na Veja, como mostrou o jornalista Luiz Maklouf Carvalho no livro O Cadete e o Capitão (Editora Todavia).

Durante e depois da prisão, militares demonstraram uma onda de solidariedade com telegramas a Bolsonaro e mulheres de oficiais fizeram protestos em frente de quartéis.

Nos meses que seguiram, a imprensa passou a acompanhar mais de perto a demanda do capitão por melhores salários — o que levou a uma reportagem na própria revista Veja, em 1987, sobre um suposto plano de Bolsonaro e colegas para explodir bombas em quartéis e instalações militares no Rio de Janeiro.

A ideia, segundo apuração e entrevistas da jornalista Cássia Maria, seria pressionar o governo sobre os salários e demonstrar fraqueza do então ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves.

Recortes da revista Veja de 1986 mostra artigo de Bolsonaro e repercussão de sua prisão (Crédito,Reprodução/Revista Veja /Editora Abril)

Bolsonaro sempre negou esse plano, acusando a jornalista e a revista de mentirem, mas foi a julgamento. No Superior Tribunal Militar (STM), ele foi absolvido.

A advogada Elizabeth Diniz Souto, responsável pela bem-sucedida defesa de Bolsonaro no STM em 1988, lembra que seu cliente a procurou em Brasília, na etapa final do julgamento.

"Eu sabia que ele era um simples militar, sem nenhuma projeção no meio e nem era bem quisto no quartel", lembra Souto à BBC News Brasil

Mas, com aquele julgamento, fora dos muros militares, Bolsonaro foi ganhando notoriedade.

"Eu era toda hora entrevistada, os jornais deram muita cobertura", conta a advogada.

Apenas quatro meses depois do julgamento, Bolsonaro se elegeria vereador do Rio de Janeiro como um representante dos militares. Começava ali o caminho que levou ele à Presidência.

Na seção Ponto de Vista da primeira edição de Veja de setembro de 1986, o capitão Bolsonaro assinou o artigo com o título "O salário está baixo".

O então cadete Jair Bolsonaro (Crédito,Acervo Pessoal)

Foi uma escolha de levar a reclamação a público. Em um depoimento à Justiça Militar, Bolsonaro admitiu que levou seus argumentos a seus superiores, mas que, diante do silêncio, preferiu publicar o artigo. O texto dizia:

"Reclamo — como fariam, se pudessem, meus colegas — um vencimento digno da confiança que meus superiores depositam em mim."

"Não consigo sonhar as necessidades mínimas que uma pessoa do meu nível cultural e social poderia almejar."

O capitão justificava que cadetes estavam abandonando a Academia das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ), não porque estavam sendo acusados de uso de drogas e "homossexualismo", como relataram reportagens na imprensa. Mas por falta de perspectiva profissional.

Segundo os documentos revelados no livro O Cadete e o Capitão, Bolsonaro reconheceu posteriormente que sua escolha de publicar o texto configurava um "ato de indisciplina" e "deslealdade".

A publicação foi considerada pelos superiores militares como uma infração a seis artigos do regulamento do Exército em vigor na época.

Entre eles, a manifestação de assuntos políticos, a discussão de assuntos militares em veículos de comunicação e ser indiscreto em relação a assuntos de caráter oficial.

A prisão disciplinar de Bolsonaro por 15 dias teve início no dia 1º de setembro de 1986, dentro do prédio do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, no Rio.

Apesar de ter cometido uma infração considerada grave, o capitão não cumpriu a pena máxima (30 dias), porque aquela era a primeira punição do tipo para ele.

Há poucos detalhes sobre o período em que Bolsonaro ficou preso, já que o próprio ex-presidente não costuma falar sobre o assunto.

O regimento do Exército em vigor na época dizia que a prisão disciplinar consistia "no encarceramento do punido em local próprio e designado para tal".

Ainda assim, segundo o regimento, o preso podia, caso autorizado, se alimentar no refeitório. Como era capitão, Bolsonaro também não ficou preso no mesmo lugar que outros punidos de patentes mais baixas.

Em depoimento em dezembro de 1987, Bolsonaro comentou brevemente que poucos colegas foram visitá-lo durante a prisão disciplinar.

Apesar da punição e das poucas visitas, o protesto de Bolsonaro na revista Veja recebeu apoio quase imediato.

Na edição seguinte ao artigo, a revista trazia imagens de mulheres de oficiais protestando no complexo militar da Praia Vermelha, no Rio. Também relatava o recebimento de 150 telegramas "disparados de todas as regiões do país".

A reportagem trazia o depoimento do capitão Artur Teixeira, do Instituto Militar de Engenharia (IME).

"Ele expôs a insatisfação geral de uma classe."

Após cumprida a pena, Bolsonaro passaria apenas um ano longe das manchetes.

Bolsonaro voltou às manchetes após revelação de plano para explodir bombas

O plano das bombas

Na edição de 28 de outubro de 1987, a Veja revelava o plano de dois capitães, Bolsonaro e Fábio Passos, de explodir bombas na Vila Militar do Rio, na Aman e em quartéis.

A repórter Cássia Maria relatava encontros e conversas com os militares.

"Só a explosão de algumas espoletas", disse Bolsonaro, segundo a reportagem.

"Sem o menor constrangimento, Bolsonaro deu uma detalhada explicação sobre como construir uma bomba-relógio. O explosivo seria o trinitrotolueno, o TNT, a popular dinamite."

O texto dizia no início que os contatos da repórter com os militares se baseavam "num acordo de sigilo". Mas que este se tornou "impossível" no momento em que eles falaram de bombas.

Chamado para dar explicações na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), Bolsonaro fez uma defesa negando o encontro com a jornalista e o teor da reportagem. A negação e o apoio do Exército foram noticiados nos dias seguintes.

Poucos dias depois, Veja publicou nova manchete: "O ministro do Exército acreditou em Bolsonaro e Fábio, mas eles estavam mentindo".

A reportagem trazia croquis feitos à mão atribuídos a Bolsonaro — peças-chave para o julgamento final.

Um dos desenhos mostrava como funcionava uma bomba-relógio capaz de explodir uma tubulação da adutora do rio Guandu, no Rio de Janeiro. Havia ainda detalhes sobre testemunhas que presenciaram entrevistas do capitão.

Com as reportagens, foi instaurada uma sindicância no Exército.

Foi formado o chamado Conselho de Justificação, e Bolsonaro foi afastado de suas funções.

Esse conselho, formado por três militares, funciona como um procedimento administrativo, explica a advogada e cientista política Erika Kubik, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista na história da Justiça Militar.

Numa primeira avaliação, o órgão concluiu por unanimidade que Bolsonaro mentiu ao negar as conversas com a revista e atestou que havia o plano de explodir bombas.

"O Conselho decide que Bolsonaro é 'não justificado'. Ou seja, entende que esse militar não pode mais continuar na ativa, por ser uma desonra, por exemplo", conta Kubik.

A professora explica que, naquela época pós-ditadura, o conselho tentava "profissionalizar" os militares, em contraponto a atuação política marcada nos anos de chumbo. "Não queriam mais militar falando com a mídia, porque já tinha tido muito problema", diz Kubik.

A decisão do Conselho foi enviada ao ministro do Exército, Leônidas Gonçalves, que concordou com a decisão de afastamento de Bolsonaro e Passos.

No rito natural, o processo subiu ao Superior Tribunal Militar (STM).

Bolsonaro e outros militares em fotografia oficial da época da academia de formaçãoCrédito,Acervo Pessoal

Julgamento no STM

Tanto no Conselho de Justificação quanto no STM, a questão central era: os croquis apresentados pela revista Veja confirmavam a veracidade do plano relatado na reportagem?

Para isso, os desenhos passaram por perícias. Dois laudos periciais incriminaram Bolsonaro, e um foi inconclusivo, relata Luiz Maklouf Carvalho em seu livro.

Na sua defesa, Bolsonaro contratou a advogada Elizabeth Diniz Souto, profissional com larga experiência na Justiça Militar.

Souto havia atuado na defesa de inúmeros presos políticos durante a ditadura e, mais tarde, ganharia notoriedade nacional ao participar do julgamento do assassino de seu marido e de seu filho.

"Eu fazia a defesa de presos políticos por idealismo. No caso de Bolsonaro, foi profissionalismo. É uma diferença muito grande", explica Souto, que diz "pagar preço alto" por essa atuação até hoje.

A advogada conta que construiu sua argumentação em torno da desqualificação dos croquis como provas que ligassem diretamente Bolsonaro à autoria do plano.

"Eu mostrei que era impossível atestar quem havia feito a linha reta de um croqui. A única forma de estabelecer a autoria seria se houvesse impressão digital no papel", recorda.

A defesa também sustentava que, diante da dúvida, deveria prevalecer o princípio do in dubio pro reo, ou seja, o réu deveria ser beneficiado.

Relembrando sua atuação, Souto rejeita a ideia de que o julgamento no STM tenha sido "parcial" a favor de Bolsonaro.

"Eu mostrei [a falta de provas] de acordo com a lei e baseada nos laudos", diz.

Na visão da professora Erika Kubik, após o fim da ditadura, o STM, que já não julgava mais civis, teve atuação de certa forma corporativista.

"Não que fosse um jogo de cartas marcadas, mas creio que eles tinham muito mais uma ideia de autoproteção das Forças Armadas naquele momento de transição", avalia.

Elizabeth Souto conta que, após o julgamento, só voltou a ter contato com a família Bolsonaro uma única vez: recebeu da então esposa do capitão, Rogéria, uma bolsa preta de festa, que guarda até hoje.

"Ele pagou o que pedi e foi isso. Tanto que depois fiquei chocada quando ele virou deputado, porque não era politicamente relevante naquela época", relata.

A longa sessão em que os ministros declararam seus votos, em 16 de junho de 1988, ficou marcada por duras críticas à imprensa e, em especial, à jornalista Cássia Maria, autora da reportagem, que chegou a ser chamada de "cascavel".

"Repórter não é flor que se cheire", declarou na sessão o ministro general Alzir Benjamin Chaloub.

Por 9 votos a 4, o STM absolveu Bolsonaro e o capitão Fábio Passos.

Dessa forma, Bolsonaro foi reintegrado às Forças Armadas brasileiras — mas por pouco tempo: permaneceu apenas alguns meses, até deixar a carreira militar para se dedicar integralmente à vida política.

Vitor Tavares, jornalista, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 08.09.25