terça-feira, 9 de setembro de 2025

Vamos debater anistia sem hipocrisia?

‘Não é um assunto familiar ao eleitor’

Essa frase foi dita ao vivo pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) ao ser questionado pela jornalista Andrea Sadi se a “PEC da Impunidade” teria aprovação do povo. A referida PEC propunha, dentre outras medidas, o fim do foro privilegiado e a necessidade de aval do Congresso para um parlamentar ser criminalmente processado. O deputado confessou que a iniciativa não tinha amparo das ruas.

Foi um raro momento de honestidade política que deixou bem claro o que anda movendo a atividade legislativa. Pelo menos ele não foi hipócrita. Confessou para o seu eleitor, sem ruborizar, que as iniciativas dos parlamentares estão pouco se lixando para representatividade democrática.

Basta ligarmos um ventilador na névoa que rodeia o debate sobre a anistia dos golpistas para entendermos que é isso que está acontecendo. Não se trata de uma pauta democrática. O ianque Eduardo Bolsonaro já disse textualmente que, sem anistia para o papai, não tem revisão de tarifaço . O senador Davi Alcolumbre propôs uma saída alternativa: anistia para reduzir a pena somente do pessoal do quebra-quebra nos Três Poderes. Os parlamentares chiaram .

Então, sra. Débora Rodrigues dos Santos (conhecida como “tia do batom”), esse povo aí do parlamento não está nem aí para a sua situação.

Quem quer anistia?

A narrativa do momento fala em necessidade de “pacificação” dos conflitos que desencadearam o 8 de janeiro. Anistia ampla e irrestrita para zerar as tensões. Bola no cal. Vida que segue.

Mas é isso mesmo que está em jogo?

Premissa a ser enfrentada: mesmo que a imensa maioria da população desejasse anistia irrestrita, ainda assim a iniciativa seria legítima? Uma vez aprovada a anistia, seria válida?

Lenio Streck e Eduardo Appio escreveram nesta ConJur explicando que uma lei nesses termos seria inconstitucional. Mais didático, impossível. A pretensão de que uma constituição democrática perdoe quem não quer democracia é uma contradição em essência. Numa comparação tacanha, seria o mesmo que aceitar que a esposa vítima da tentativa de homicídio tivesse legitimidade para isentar o marido pelo crime cometido. Não dá. Mínimo ético impede.

Mas o meu foco é algo anterior a isso. Quem realmente quer a anistia? Esse pessoal tem razão?

Como eu disse há pouco, não importa quantas pessoas queiram anistia para o pessoal do golpe. Mesmo que 45 mil estejam protestando na Avenida Paulista, isso não é importante. Nossa Constituição não permite. Se uma pesquisa disser que 80% da população brasileira quer guilhotina em praça pública, mesmo assim a pena de morte não pode ser aprovada. Pesquisas e gritaria não estão acima da Constituição. Bem vindos ao mundo civilizado.

Mas vamos lá, eu gosto de uma treta. Não tem papo com psicótico se o confrontarmos com a realidade. Então, “bora” debater com o metaverso.

Pesquisa Datafolha diz que 65% da população não é favorável à anistia. Alguém me disse que o Datafolha é comunista. A AP/Exata também fez pesquisa e verificou que o número é ainda maior: 75% não aprovam. Eu não sei bem se Marx tem alguma relação com o instituto, mas enfim…

Qualquer pesquisa que acessarmos no Google (que também deve ser comunista) irá demonstrar que a imensa maioria da população brasileira não deseja anistia. Então, como é que iremos pacificar a população se nos curvarmos ao que deseja 20 ou 30% das pessoas? Se concedermos anistia, estaremos frustrando 60 ou 70% das pessoas. E se elas quiserem pegar os seus batons e quebrar tudo, estaria liberado? Decididamente, eu não pacifico meu filho, que destruiu propositalmente o vidro da janela, com um Playstation novo.

Anistia de 1979 x anistia de golpistas

Outra discussão divertida é a que tenta justificar a anistia atual comparando com a que houve em 1979.

Apenas pra lembrar quem ainda se importa com os livros de história: a Lei n° 6.683/79 tratou da anistia aos crimes políticos ocorridos entre 2/9/1961 e 15/8/1979. Foi uma lei aprovada durante um regime de exceção (ou seja: não democrático). Foi uma anistia bilateral: extinguiu o crime dos militares e da população civil. Foi um acordo meio a fórceps. Gis e Caetanos não tinham muita liberdade de escolha. Prova disso é que a lei liberou o pessoal de verde, mas excluiu da anistia os condenados por terrorismo, assalto (sic), sequestro e atentado pessoal (sic) (artigo 1°, § 2°). Ou seja, a galera da tortura saiu de lombo liso.

Em 2010, o STF perdeu a oportunidade (APDF n° 153) de reconhecer a inconstitucionalidade dessa lei. A maioria acompanhou o voto do ministro Eros Grau afirmando que era uma decisão do Congresso que, como tal, não deveria sofrer intervenção do judiciário.

A Argentina foi mais competente ao reconhecer inconstitucionais as Leis do “Ponto Final” (Lei n° 23.492/86) e da “Obediência Devida” (Lei n° 23.508/87), permitindo que as atrocidades praticadas pelos militares comandados por Jorge Rafael Videla fossem processadas criminalmente. Vejam o filme Argentina 1985, com Ricardo Darín, para entender bem o que houve por lá. Talvez não haveria a bagunça no 8 de janeiro se tivéssemos ido pela mesma linha.

A anistia que alguns querem hoje no Brasil é diferente. Estamos num regime democrático. A maioria da população não quer a anistia. Portanto, estamos diante de uma anistia unilateral minoritária: algumas crianças que aprontaram na escola querem o perdão dos pais.

É um devaneio comparar ambas as anistias. Em 1979, a população civil escondida ou exilada não tinha outra opção para voltar ao país. Ou aceitava, quieta, a lei aprovada (com a crença de, no futuro, revê-la), ou seguia clandestina em porões ou morando em outros países. Os militares é que decidiram pelo self rescue. Esse foi o contexto do “acordo” político que justificou a lei na época.

Hoje não tem acordo. Hoje, a maioria da população não quer ver meia dúzia de baderneiros, coordenados pelos mesmos melancias que se safaram em 1979, escaparem da punição pela tentativa de deposição do regime democrático. Gil e Caetano estão em suas residências, livres, com a opção de gritar: Anistia é o C***lho!

Penas elevadas?

Isso tudo me remete a algumas analogias.

Eu fico aqui pensando na torcida de um clube de futebol que está irritada com a direção. Os chefes das torcidas organizadas estão querendo depor o presidente eleito. Para tanto, convocam torcedores para promover um quebra-quebra. Financiam as ações. Após algumas reuniões, definem a estratégia para a invasão e transmitem-na a quem irá executá-la. Porteiros, atônitos, não conseguem impedir. A sede do clube é destruída. Após muito esforço, a polícia consegue conter a rebelião. Uma investigação criminal é instaurada e identifica quem coordenou a ação e alguns dos executores. Todos são processados criminalmente. Um deles, que apenas rompeu o cadeado do portão, alega em sua defesa que a pena pela destruição seria excessiva porque o ato dele seria pífio. Os chefes das torcidas defendem-se dizendo que um bando de loucos agiu sozinho. Em paralelo, alguns torcedores defendem o perdão de todos, para pacificação do conflito.

Desenhando assim, fica claro do que estamos falando?

Não estamos tratando de uma treta de clube. O problema é bem maior. O regime democrático de um país, por muito pouco, não foi deposto por uma minoria. Uma minoria lunática (foi o próprio Bolsonaro que os definiu assim), que outrora tinha vergonha de dizer o que pensava, mas que agora quer se safar alegando ser essa a saída para a pacificação do conflito. Essa minoria foi coordenada por um grupo de pessoas que não aceitava o resultado de uma eleição simplesmente porque não aceitava a derrota. Ou eu, ou ninguém. Esse é o ponto. Todos sabem que a gritaria com fraude de urnas eletrônicas foi uma balela. A revolta não tem conteúdo democrático porque esse povo aí ficou emburrado com o resultado da eleição.

As penas fixadas para o pessoal da linha-de-frente da tentativa de golpe foram excessivas?

A “tia do batom” foi condenada a 14 anos de reclusão. A pena do crime do artigo 359-L é de quatro a oito anos. Ela recebeu quatro anos e seis meses. A pena do crime do artigo 359-M é de quatro a 12 anos. Ela recebeu cinco anos. A pena do crime do artigo 163, parágrafo único, é de seis meses a três anos. Ela recebeu um ano e seis meses. A pena do crime do artigo 62, I, da Lei n° 9.605/98 é de um a três anos. Ela recebeu um ano e seis meses. E a pena do artigo 288 do CP é de um a três anos aumentada até a metade. Ela recebeu um ano e seis meses.

Portanto, as penas foram fixadas bem próximo do mínimo legal. Então, não prospera o argumento de que as penas foram excessivas.

Mas há um ponto, sim, que merece ajuste. Não houve um excesso de penas, mas sim um excesso de delitos imputados. Minha opinião é a de que o artigo 359-M deveria absorver o artigo 359-L. E o artigo 62, I, da Lei n° 9.605/98 deveria absorver o artigo 163, parágrafo único. No Direito Penal, isso recebe o nome de concurso aparente de normas (parecido com o que ocorre quando o crime de estelionato absorve a falsidade ideológica ou material). A solução é dada pelo princípio da consunção.

Vício processual ou excesso de condenação podem ser combatidos com anistia?

Esse é outro ponto que eu acho importante passar a lupa.

O ministro Alexandre de Moraes recebeu muitas críticas na condução dos processos pela tentativa de golpe porque atuou de ofício, ou seja, sem provocação das partes. Isso feriria a garantia de um processo penal acusatório. Eu concordo com essa tese. De fato, um juiz que toma iniciativas probatórias e pratica atos que deveriam ser provocados pelo Ministério Público ou pela polícia pode colocar em risco sua imparcialidade.

Bueno, o ministro Joaquim Barbosa também fez isso na condução do processo do mensalão: “a prova testemunhal é uma das mais relevantes no processo penal. Por esta razão, o juiz pode convocar, de ofício, testemunhas que considere importantes para a formação do seu convencimento”.

Eu também sou um dos que penso que não poderia haver concurso de crimes entre lavagem de dinheiro e crime antecedente quando o autor de ambos seja o mesmo. Isso se chama autolavagem. Há inclusive países cuja lei penal diz que a lavagem de dinheiro só é imputada a quem não foi autor do crime antecedente. Logo, em minha visão — e também sob a ótica de muitos outros autores — houve excesso de punição em muitos acórdãos da “lava jato” e do mensalão [10].

Esses exemplos esses bastam para encerrar a discussão de que  1ª Turma do STF (e não apenas o ministro Alexandre de Moraes) teria cometido alguns erros processuais ou teria fixado condenações exageradas. Críticas como essas fazem parte da jurisdição. Em quase 30 anos de advocacia, tive muitos clientes que, sob a minha ótica, foram vítimas de arbítrios. Eu poderia citar aqui o que Sérgio Moro e sua turma de Curitiba aprontaram desde o caso Banestado. Alguém, nesses casos, levantou a bandeira da anistia ao argumento de que houve arbítrio?

Alguns dirão que a vontade do povo, hoje, é pela anistia. Ora, já vimos que as pesquisas mostram que isso não é verdade. Mas se essa é a questão, porque o povo não pediu anistia para Lula, quando pesquisas apontavam que 43% dos brasileiros não consideravam a condenação justa ?

Mesmo discordando da sua condenação, Lula dobrou-se à Justiça. É isso que se espera de um líder num regime democrático. O filho obedece ao pai, e não o contrário.

Não há espaço democrático para buscarmos anistia quando uma parte da população não gosta que o seu messias vá para a prisão. Se permitirmos isso, no dia seguinte ao resultado da próxima eleição estaremos autorizando que candidatos e eleitores que não ficaram satisfeitos com o desfecho possam promover uma nova tentativa de golpe e um quebra-quebra no Praça dos Três Poderes. Não se vence eleição com gritos ou pedras.

No fundo, o que desejam os favoráveis à anistia?

Então, o que está por trás dessa discussão de anistia é uma nova tentativa de golpe. 20-30% da população, parte do Congresso e a família Bolsonaro estão se lixando para os condenados pelo 8 de janeiro. Eles querem que Bolsonaro não vá preso. Querem que ele concorra na próxima eleição. E querem que ele seja o próximo presidente da República mesmo que não seja eleito. Em suma: não aceitam ninguém menos que Bolsonaro, pouco importando o respeito pelas regras do jogo e o resultado final das urnas. Tudo o que não é Bolsonaro, é comunismo.

Donald Trump foi honesto ao falar: “Muita gente anda dizendo que talvez a gente queira um ditador”. Ficou claro? Bolsonaro e Trump não empunham uma pauta democrática. E todo esse povo deseja que a democracia assine seu próprio atestado de óbito.

A eles, eu e 70% da população devemos dizer: ninguém solta a mão de ninguém. Venha, Tarcísio. Exponha as suas ideias para que possamos escolher qual candidato é o melhor para o país. Mas comporte-se. Senão, a Papuda também terá um lugar para você

Andrei Zenkner Schmidt, o autor deste artigo, é doutor em Ciências Criminais pela PUC-RS e advogado fundador do Zenkner Schmidt, Aspar Lima & Rocha Neto Advogados Associados. Publicado originalmente pela revista eletrônica Consultor Juridico, em 09.09.25

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