Travestindo populismo jurídico de modernização, proposta amplia o arbítrio judicial, incentiva a judicialização e mina a segurança jurídica. Catastrófica e irremediável, precisa ser arquivada
Brasília (DF) 04/09/2023 Instalação do colegiado e a primeira reunião de trabalho da Comissão de Juristas criada pelo Senado para propor a revisão e atualização do Código Civil. Foto Lula Marques/ Agência Brasil
O Senado instalou em setembro a comissão temporária encarregada de analisar o Projeto de Lei (PL) n.º 4/2025, que pretende reformar o Código Civil de 2002. O movimento ocorre em meio a uma onda de críticas sem precedentes. Não é para menos: longe de modernizar as bases jurídicas do País, ele ameaça dilapidá-las.
Sob o pretexto de atualização, a proposta, gestada por uma comissão presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, altera quase 900 artigos, acrescenta 300, redesenha a estrutura e a linguagem do código e, na prática, fabrica um novo ordenamento civil – tudo produzido em apenas oito meses, sem debate público minimamente proporcional à magnitude da empreitada. Trata-se de uma artimanha: um novo Código Civil travestido de mera “revisão técnica”. O açodamento e a falta de pactuação social revelam não apenas imprudência, mas ilegitimidade.
Os riscos não são abstratos. O texto multiplica conceitos vagos que funcionam como verdadeiros coringas judiciais – “confiança”, “simetria”, “paridade”, “dignidade” –, franqueando ao Judiciário poder discricionário para decidir conforme a interpretação do momento. Em lugar de previsibilidade, cria-se um convite à judicialização. O resultado será a fragmentação de entendimentos, decisões contraditórias e a degradação daquilo que distingue um Estado de Direito de um regime arbitrário: regras claras, universais e estáveis.
Na seara contratual, a reforma transforma em letra morta a segurança dos negócios. O recurso indiscriminado à “função social” da propriedade e dos contratos – cujas referências aumentaram em 450% – abre margem para invalidar cláusulas a critério dos juízes, estimulando litígios intermináveis. A responsabilidade civil, por sua vez, é dilatada de modo caótico: deixa de se limitar ao dano ilícito para assumir funções punitivas, pedagógicas e moralizantes. O dever de indenizar passa a ser um jogo de azar, regido por máximas vagas e pelo gosto de quem julga.
Em carta aberta, a Federação Nacional dos Institutos dos Advogados foi categórica: o projeto é irremediável e deveria ser arquivado. Além de expor cidadãos e empresas à insegurança, fragiliza liberdades fundamentais e cria obstáculos adicionais à atividade econômica. No campo digital, por exemplo, propõe um marco regulatório sem paralelo em democracias avançadas, com restrições a plataformas virtuais que podem gerar retaliações internacionais e colocar o Brasil em rota de colisão com seus principais parceiros comerciais.
Juristas, entidades e veículos de imprensa convergem na denúncia de que o PL 4/2025 institucionaliza um populismo jurídico: promete proteger os vulneráveis, mas mina a previsibilidade das regras, encarece contratos e transfere ao juiz – e não ao legislador democraticamente eleito – o poder de definir os rumos da sociedade. O projeto mistura regras gerais de Direito Civil com proteção especial ao consumidor, propõe experimentos sociais temerários no direito de família e ignora leis recentes.
Mais grave, fragiliza o próprio Estado de Direito. O que está em jogo não é apenas a técnica legislativa, mas o equilíbrio institucional. Ao multiplicar conceitos indeterminados, o novo código legitima o ativismo judicial e reforça a concentração de poder em instâncias que já se mostram alarmantemente propensas ao arbítrio. A República não pode se dar ao luxo de ser alicerçada sobre a areia.
O Brasil não precisa de aventuras legislativas açodadas. O Código Civil, fruto de décadas de debates, permanece sólido em seus fundamentos. Reformas focadas, calibradas e, sobretudo, legitimamente consensuadas, são sempre possíveis; demolir o edifício inteiro, em nome de uma pretensa modernização, é irresponsabilidade.
O Senado tem agora a oportunidade – e a obrigação – de frear esta marcha da insensatez. Só há um caminho responsável: arquivar o PL 4/2025 e abrir, no futuro, um debate sério, amplo e transparente sobre ajustes que de fato se mostrem necessários. Qualquer outra solução será capitulação diante do arbítrio e convite ao caos jurídico.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.09.25
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