Rever punições desproporcionais aos bagrinhos do golpe é justo, mas anistiar os líderes da conspiração contra a República, ou abrandar suas penas, seria trair a Constituição e premiar o crime
O Senado cumpriu sua obrigação de enterrar a infame PEC da Bandidagem, tentativa sem-vergonha de conceder aos próprios parlamentares o poder de decidir se poderiam ou não ser investigados por suspeita de crimes. Agora, cabe à Câmara dos Deputados, se pretende reaver algum resquício de decência, rejeitar de forma igualmente inequívoca o projeto de lei que busca anistiar os golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em especial o principal instigador e beneficiário da sedição, o ex-presidente Jair Bolsonaro.
A anistia aos golpistas não é apenas um disparate jurídico e político. É, sobretudo, um inaceitável retrocesso civilizatório. A Constituição consagra o Estado Democrático de Direito desde o seu preâmbulo. Os princípios basilares do regime das liberdades foram alçados à condição de cláusulas pétreas. Logo, perdoar aqueles que atentaram desabridamente contra a ordem constitucional democrática significa, na prática, demolir a própria fundação estrutural que sustenta esta República.
É verdade que a Procuradoria-Geral da República e o STF, talvez no afã de impor exemplaridade na coerção de condutas inéditas na história recente do País, puniram desproporcionalmente muitos dos idiotas úteis que serviram de massa de manobra no 8 de Janeiro. Casos como o da cabeleireira condenada a 14 anos de prisão por pichar com batom a estátua da Justiça em frente à sede do Supremo merecem revisão criteriosa. O sistema penal não pode ser um instrumento de vingança nem tampouco pode operar em desalinho com os atos que pretende coibir. Mas essa necessária correção de rumos não pode, em hipótese alguma, se estender aos líderes de uma conspiração, sejam civis ou militares, que tramaram e executaram uma tentativa de golpe de Estado.
À luz do direito comparado, a legislação pátria já é bastante branda com crimes contra o Estado Democrático de Direito. O Código Penal prevê penas de 4 a 8 anos de reclusão para abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de 4 a 12 anos para golpe de Estado (359-M). No cotejo internacional, essas sanções são quase prêmios aos golpistas. Alemanha, Argentina, Canadá, França e Reino Unido, por exemplo, preveem prisão perpétua para quem tenta um golpe de Estado. A Espanha estabelece 25 anos de cárcere. Nos Estados Unidos e no México, são até 20 anos de cadeia para os insurgentes. Só a Itália, com pena máxima de cinco anos de reclusão, é menos gravosa que o Brasil.
Ou seja, mesmo sem anistia, a punição aos golpistas brasileiros já é leve. Reduzi-la ainda mais não só nos afastaria do padrão civilizatório estabelecido por democracias mais maduras, como transmitiria à sociedade uma mensagem para lá de infeliz: por aqui, tentar subverter o resultado legítimo de uma eleição não seria crime tão grave. Ora, se os golpistas tivessem tido sucesso em seu intento, decerto não haveria qualquer complacência com os legalistas. É ocioso relembrar aqui o destino reservado por regimes de exceção aos dissidentes e opositores.
O Brasil deu um passo histórico ao condenar, pela primeira vez, um ex-presidente e altas autoridades civis e militares por conspirarem contra a democracia. Esse precedente é um marco institucional que precisa ser preservado, não enfraquecido, pelo Congresso. O Judiciário tem cumprido sua parte ao impor aos golpistas a devida responsabilização. Cabe ao Legislativo não apagar esse legado.
As manifestações no dia 21 passado foram eloquentes. A sociedade bradou “não” à PEC da Bandidagem e também à anistia aos golpistas. Ambas as iniciativas nasceram de um mesmo pacote de impunidade gestado nos corredores do Congresso, em total divórcio com o melhor interesse público. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, afirmou que o grito das ruas revelou a “desconexão” entre sociedade e Parlamento. É verdade. Mas convém lembrar que seu partido, o Republicanos, votou maciçamente pela PEC da Bandidagem. Ademais, Tarcísio encarna pessoalmente a defesa da anistia que as ruas também repeliram.
Rever excessos cometidos contra os bagrinhos da intentona é legítimo. Já abrandar ou perdoar as penas dos articuladores do golpe é inconcebível. Seria um salvo-conduto para que, no futuro, velhos ou novos conspiradores se assanhem.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.09.25
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