Este sistema político tão arejado quanto flexível tem raízes na administração do 31.º presidente da República, José Sarney
Sarney, ainda como Vice de Tancredo, sobe a rampa do Palácio do Planalto
Como um ponto cego na História, chama a atenção que o aniversário de 40 anos do governo do presidente José Sarney, iniciado em 23 de abril de 1985, não seja lembrado com o reconhecimento merecido. Se hoje o Brasil persiste no ciclo mais amplo e contínuo das liberdades democráticas de sua história, usufruindo de equilíbrio institucional, autonomia e alternância nos Poderes republicanos, garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, acesso irrestrito à Justiça, livre associação partidária e de manifestação do pensamento, entre vários outros pilares do regime democrático, esse sistema político tão arejado quanto flexível tem raízes na administração do 31.º presidente da República.
Levado ao cargo pela morte prematura do presidente eleito Tancredo Neves, Sarney enfrentou resistências à direita e à esquerda por ser o vice que herdaria o governo fruto de uma coligação do MDB e de dissidentes do PDS, partido do regime militar a que ele pertencera. Mas era não só político de longo curso, como um homem de cultura – e logo criou um ministério específico para essa área, entregando-o a um intelectual da estatura de Celso Furtado, um dos maiores intérpretes do Brasil. Caso único de presidente que escreveu romances, como O Dono do Mar, elogiado por Darcy Ribeiro (“não imaginava José Sarney um romancista poderoso”), fez do Estado mecenas das artes com a Lei Sarney, depois chamada de Rouanet. Ainda hoje, aos 95 anos, vai a reuniões da Academia Brasileira de Letras – dividindo a condição de presidente-imortal apenas com Getúlio Vargas.
Com visão de estadista, compreendeu que após duas décadas de regime militar, a sociedade civil carecia de liberdade institucional para se reorganizar e pacificar num pacto republicano que incluísse as diversas forças políticas que tradicionalmente oscilaram entre a disputa e a cooperação na formação social brasileira – associando-se nos movimentos de ruptura como o combate aos holandeses no Nordeste, a Independência, a Abolição, a República e a Revolução de 30. Conservador, surpreendeu ao promover a liberdade partidária, legalizando agremiações que se arrastavam na clandestinidade, a começar dos partidos comunistas, cujos dirigentes pela primeira vez foram recebidos com cerimônia no Palácio do Planalto.
Em seu governo foi concedido o direito de voto aos analfabetos e aos maiores de 16 anos. Em maio de 1985 foi aprovada a emenda constitucional restabelecendo as eleições diretas – primeiro passo para a transição para a democracia com uma nova Constituição. Convocou a Assembleia Constituinte que em 1988 legou a mais democrática Carta Magna de nossa história. Mas foi profeta ao advertir que o desencorajamento da produção contido na nova Carta poderia transformar o Brasil em “uma máquina emperrada”.
Recriando hiatos de política externa independente, restabeleceu relações diplomáticas com Cuba e aproximação com países africanos e asiáticos. Na ONU, defendeu uma nova ordem econômica mundial, insistindo em que muitos países não tinham meios de pagar suas astronômicas dívidas externas. Na vizinhança, esvaziou uma competição latente com a Argentina, brecando uma disputa nuclear entre os dois países e assinando com seu homólogo Raul Alfonsín a Declaração do Iguaçu, semente do Mercosul.
A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) contou com seu apoio. Em 1986, participou da 8.ª Conferência Nacional de Saúde, da qual surgiu o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), e determinou que a iniciativa fosse apoiada pelo governo. Daí surgiu o SUS, instituído pela Constituição em 1988.
Seu maior desafio foi o dragão da hiperinflação, língua de fogo que incinerava a economia e foi atenuada com o jeitinho brasileiro da indexação, a ponto de os dissídios coletivos contemplarem os trabalhadores com enormes reajustes salariais. Uma sucessão de planos (Cruzado, Cruzado II, Bresser e Verão) não obteve o efeito desejado, mas alguns indicadores econômicos do período foram satisfatórios. O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 3,2%, em média, ao ano. O déficit primário de 2,58% do PIB em 1984 deu lugar a um superávit de 0,8% em 1989. A dívida externa, que exigiu penosas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e até um ensaio de moratória, não subiu exponencialmente, mas aumentou 14%, passando de US$ 108 bilhões a US$ 123 bilhões, e hoje alcança US$ 364 bilhões.
Como era inerente a um período de redemocratização, quando a liberdade recém-conquistada propicia debates e críticas até então represados, o governo foi marcado por ruidosas manifestações de insatisfação, violentas críticas políticas e numerosas greves enfim permitidas. O barco de Sarney não navegou na bonança. Antes, cruzou mares revoltos, exigindo firmeza e serenidade do capitão ao leme, assegurando ao País que a velha e boa democracia estava de volta para garantir, como disse numa entrevista, que, se alguém batesse na casa do cidadão às seis horas da manhã, “ele teria absoluta tranquilidade de que era o leiteiro ou o padeiro, nunca a polícia”. •
Aldo Rebelo, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Foi Presidente da Fundação Ulisses Guimara~es em S. Paulo. Presidiu a Câmara dos Deputados. Foi Relator do Código Florestal, e, ainda - Ministro da Coordenação Politica e Coordenação Institucional; do Esporte, da Ciência, Tecnologia e Inovação; Secretário da Casa Civil do Governo de S. Paulo e de Relações Internacionais do Município de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.09.25
Nenhum comentário:
Postar um comentário