terça-feira, 9 de setembro de 2025

Vamos debater anistia sem hipocrisia?

‘Não é um assunto familiar ao eleitor’

Essa frase foi dita ao vivo pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) ao ser questionado pela jornalista Andrea Sadi se a “PEC da Impunidade” teria aprovação do povo. A referida PEC propunha, dentre outras medidas, o fim do foro privilegiado e a necessidade de aval do Congresso para um parlamentar ser criminalmente processado. O deputado confessou que a iniciativa não tinha amparo das ruas.

Foi um raro momento de honestidade política que deixou bem claro o que anda movendo a atividade legislativa. Pelo menos ele não foi hipócrita. Confessou para o seu eleitor, sem ruborizar, que as iniciativas dos parlamentares estão pouco se lixando para representatividade democrática.

Basta ligarmos um ventilador na névoa que rodeia o debate sobre a anistia dos golpistas para entendermos que é isso que está acontecendo. Não se trata de uma pauta democrática. O ianque Eduardo Bolsonaro já disse textualmente que, sem anistia para o papai, não tem revisão de tarifaço . O senador Davi Alcolumbre propôs uma saída alternativa: anistia para reduzir a pena somente do pessoal do quebra-quebra nos Três Poderes. Os parlamentares chiaram .

Então, sra. Débora Rodrigues dos Santos (conhecida como “tia do batom”), esse povo aí do parlamento não está nem aí para a sua situação.

Quem quer anistia?

A narrativa do momento fala em necessidade de “pacificação” dos conflitos que desencadearam o 8 de janeiro. Anistia ampla e irrestrita para zerar as tensões. Bola no cal. Vida que segue.

Mas é isso mesmo que está em jogo?

Premissa a ser enfrentada: mesmo que a imensa maioria da população desejasse anistia irrestrita, ainda assim a iniciativa seria legítima? Uma vez aprovada a anistia, seria válida?

Lenio Streck e Eduardo Appio escreveram nesta ConJur explicando que uma lei nesses termos seria inconstitucional. Mais didático, impossível. A pretensão de que uma constituição democrática perdoe quem não quer democracia é uma contradição em essência. Numa comparação tacanha, seria o mesmo que aceitar que a esposa vítima da tentativa de homicídio tivesse legitimidade para isentar o marido pelo crime cometido. Não dá. Mínimo ético impede.

Mas o meu foco é algo anterior a isso. Quem realmente quer a anistia? Esse pessoal tem razão?

Como eu disse há pouco, não importa quantas pessoas queiram anistia para o pessoal do golpe. Mesmo que 45 mil estejam protestando na Avenida Paulista, isso não é importante. Nossa Constituição não permite. Se uma pesquisa disser que 80% da população brasileira quer guilhotina em praça pública, mesmo assim a pena de morte não pode ser aprovada. Pesquisas e gritaria não estão acima da Constituição. Bem vindos ao mundo civilizado.

Mas vamos lá, eu gosto de uma treta. Não tem papo com psicótico se o confrontarmos com a realidade. Então, “bora” debater com o metaverso.

Pesquisa Datafolha diz que 65% da população não é favorável à anistia. Alguém me disse que o Datafolha é comunista. A AP/Exata também fez pesquisa e verificou que o número é ainda maior: 75% não aprovam. Eu não sei bem se Marx tem alguma relação com o instituto, mas enfim…

Qualquer pesquisa que acessarmos no Google (que também deve ser comunista) irá demonstrar que a imensa maioria da população brasileira não deseja anistia. Então, como é que iremos pacificar a população se nos curvarmos ao que deseja 20 ou 30% das pessoas? Se concedermos anistia, estaremos frustrando 60 ou 70% das pessoas. E se elas quiserem pegar os seus batons e quebrar tudo, estaria liberado? Decididamente, eu não pacifico meu filho, que destruiu propositalmente o vidro da janela, com um Playstation novo.

Anistia de 1979 x anistia de golpistas

Outra discussão divertida é a que tenta justificar a anistia atual comparando com a que houve em 1979.

Apenas pra lembrar quem ainda se importa com os livros de história: a Lei n° 6.683/79 tratou da anistia aos crimes políticos ocorridos entre 2/9/1961 e 15/8/1979. Foi uma lei aprovada durante um regime de exceção (ou seja: não democrático). Foi uma anistia bilateral: extinguiu o crime dos militares e da população civil. Foi um acordo meio a fórceps. Gis e Caetanos não tinham muita liberdade de escolha. Prova disso é que a lei liberou o pessoal de verde, mas excluiu da anistia os condenados por terrorismo, assalto (sic), sequestro e atentado pessoal (sic) (artigo 1°, § 2°). Ou seja, a galera da tortura saiu de lombo liso.

Em 2010, o STF perdeu a oportunidade (APDF n° 153) de reconhecer a inconstitucionalidade dessa lei. A maioria acompanhou o voto do ministro Eros Grau afirmando que era uma decisão do Congresso que, como tal, não deveria sofrer intervenção do judiciário.

A Argentina foi mais competente ao reconhecer inconstitucionais as Leis do “Ponto Final” (Lei n° 23.492/86) e da “Obediência Devida” (Lei n° 23.508/87), permitindo que as atrocidades praticadas pelos militares comandados por Jorge Rafael Videla fossem processadas criminalmente. Vejam o filme Argentina 1985, com Ricardo Darín, para entender bem o que houve por lá. Talvez não haveria a bagunça no 8 de janeiro se tivéssemos ido pela mesma linha.

A anistia que alguns querem hoje no Brasil é diferente. Estamos num regime democrático. A maioria da população não quer a anistia. Portanto, estamos diante de uma anistia unilateral minoritária: algumas crianças que aprontaram na escola querem o perdão dos pais.

É um devaneio comparar ambas as anistias. Em 1979, a população civil escondida ou exilada não tinha outra opção para voltar ao país. Ou aceitava, quieta, a lei aprovada (com a crença de, no futuro, revê-la), ou seguia clandestina em porões ou morando em outros países. Os militares é que decidiram pelo self rescue. Esse foi o contexto do “acordo” político que justificou a lei na época.

Hoje não tem acordo. Hoje, a maioria da população não quer ver meia dúzia de baderneiros, coordenados pelos mesmos melancias que se safaram em 1979, escaparem da punição pela tentativa de deposição do regime democrático. Gil e Caetano estão em suas residências, livres, com a opção de gritar: Anistia é o C***lho!

Penas elevadas?

Isso tudo me remete a algumas analogias.

Eu fico aqui pensando na torcida de um clube de futebol que está irritada com a direção. Os chefes das torcidas organizadas estão querendo depor o presidente eleito. Para tanto, convocam torcedores para promover um quebra-quebra. Financiam as ações. Após algumas reuniões, definem a estratégia para a invasão e transmitem-na a quem irá executá-la. Porteiros, atônitos, não conseguem impedir. A sede do clube é destruída. Após muito esforço, a polícia consegue conter a rebelião. Uma investigação criminal é instaurada e identifica quem coordenou a ação e alguns dos executores. Todos são processados criminalmente. Um deles, que apenas rompeu o cadeado do portão, alega em sua defesa que a pena pela destruição seria excessiva porque o ato dele seria pífio. Os chefes das torcidas defendem-se dizendo que um bando de loucos agiu sozinho. Em paralelo, alguns torcedores defendem o perdão de todos, para pacificação do conflito.

Desenhando assim, fica claro do que estamos falando?

Não estamos tratando de uma treta de clube. O problema é bem maior. O regime democrático de um país, por muito pouco, não foi deposto por uma minoria. Uma minoria lunática (foi o próprio Bolsonaro que os definiu assim), que outrora tinha vergonha de dizer o que pensava, mas que agora quer se safar alegando ser essa a saída para a pacificação do conflito. Essa minoria foi coordenada por um grupo de pessoas que não aceitava o resultado de uma eleição simplesmente porque não aceitava a derrota. Ou eu, ou ninguém. Esse é o ponto. Todos sabem que a gritaria com fraude de urnas eletrônicas foi uma balela. A revolta não tem conteúdo democrático porque esse povo aí ficou emburrado com o resultado da eleição.

As penas fixadas para o pessoal da linha-de-frente da tentativa de golpe foram excessivas?

A “tia do batom” foi condenada a 14 anos de reclusão. A pena do crime do artigo 359-L é de quatro a oito anos. Ela recebeu quatro anos e seis meses. A pena do crime do artigo 359-M é de quatro a 12 anos. Ela recebeu cinco anos. A pena do crime do artigo 163, parágrafo único, é de seis meses a três anos. Ela recebeu um ano e seis meses. A pena do crime do artigo 62, I, da Lei n° 9.605/98 é de um a três anos. Ela recebeu um ano e seis meses. E a pena do artigo 288 do CP é de um a três anos aumentada até a metade. Ela recebeu um ano e seis meses.

Portanto, as penas foram fixadas bem próximo do mínimo legal. Então, não prospera o argumento de que as penas foram excessivas.

Mas há um ponto, sim, que merece ajuste. Não houve um excesso de penas, mas sim um excesso de delitos imputados. Minha opinião é a de que o artigo 359-M deveria absorver o artigo 359-L. E o artigo 62, I, da Lei n° 9.605/98 deveria absorver o artigo 163, parágrafo único. No Direito Penal, isso recebe o nome de concurso aparente de normas (parecido com o que ocorre quando o crime de estelionato absorve a falsidade ideológica ou material). A solução é dada pelo princípio da consunção.

Vício processual ou excesso de condenação podem ser combatidos com anistia?

Esse é outro ponto que eu acho importante passar a lupa.

O ministro Alexandre de Moraes recebeu muitas críticas na condução dos processos pela tentativa de golpe porque atuou de ofício, ou seja, sem provocação das partes. Isso feriria a garantia de um processo penal acusatório. Eu concordo com essa tese. De fato, um juiz que toma iniciativas probatórias e pratica atos que deveriam ser provocados pelo Ministério Público ou pela polícia pode colocar em risco sua imparcialidade.

Bueno, o ministro Joaquim Barbosa também fez isso na condução do processo do mensalão: “a prova testemunhal é uma das mais relevantes no processo penal. Por esta razão, o juiz pode convocar, de ofício, testemunhas que considere importantes para a formação do seu convencimento”.

Eu também sou um dos que penso que não poderia haver concurso de crimes entre lavagem de dinheiro e crime antecedente quando o autor de ambos seja o mesmo. Isso se chama autolavagem. Há inclusive países cuja lei penal diz que a lavagem de dinheiro só é imputada a quem não foi autor do crime antecedente. Logo, em minha visão — e também sob a ótica de muitos outros autores — houve excesso de punição em muitos acórdãos da “lava jato” e do mensalão [10].

Esses exemplos esses bastam para encerrar a discussão de que  1ª Turma do STF (e não apenas o ministro Alexandre de Moraes) teria cometido alguns erros processuais ou teria fixado condenações exageradas. Críticas como essas fazem parte da jurisdição. Em quase 30 anos de advocacia, tive muitos clientes que, sob a minha ótica, foram vítimas de arbítrios. Eu poderia citar aqui o que Sérgio Moro e sua turma de Curitiba aprontaram desde o caso Banestado. Alguém, nesses casos, levantou a bandeira da anistia ao argumento de que houve arbítrio?

Alguns dirão que a vontade do povo, hoje, é pela anistia. Ora, já vimos que as pesquisas mostram que isso não é verdade. Mas se essa é a questão, porque o povo não pediu anistia para Lula, quando pesquisas apontavam que 43% dos brasileiros não consideravam a condenação justa ?

Mesmo discordando da sua condenação, Lula dobrou-se à Justiça. É isso que se espera de um líder num regime democrático. O filho obedece ao pai, e não o contrário.

Não há espaço democrático para buscarmos anistia quando uma parte da população não gosta que o seu messias vá para a prisão. Se permitirmos isso, no dia seguinte ao resultado da próxima eleição estaremos autorizando que candidatos e eleitores que não ficaram satisfeitos com o desfecho possam promover uma nova tentativa de golpe e um quebra-quebra no Praça dos Três Poderes. Não se vence eleição com gritos ou pedras.

No fundo, o que desejam os favoráveis à anistia?

Então, o que está por trás dessa discussão de anistia é uma nova tentativa de golpe. 20-30% da população, parte do Congresso e a família Bolsonaro estão se lixando para os condenados pelo 8 de janeiro. Eles querem que Bolsonaro não vá preso. Querem que ele concorra na próxima eleição. E querem que ele seja o próximo presidente da República mesmo que não seja eleito. Em suma: não aceitam ninguém menos que Bolsonaro, pouco importando o respeito pelas regras do jogo e o resultado final das urnas. Tudo o que não é Bolsonaro, é comunismo.

Donald Trump foi honesto ao falar: “Muita gente anda dizendo que talvez a gente queira um ditador”. Ficou claro? Bolsonaro e Trump não empunham uma pauta democrática. E todo esse povo deseja que a democracia assine seu próprio atestado de óbito.

A eles, eu e 70% da população devemos dizer: ninguém solta a mão de ninguém. Venha, Tarcísio. Exponha as suas ideias para que possamos escolher qual candidato é o melhor para o país. Mas comporte-se. Senão, a Papuda também terá um lugar para você

Andrei Zenkner Schmidt, o autor deste artigo, é doutor em Ciências Criminais pela PUC-RS e advogado fundador do Zenkner Schmidt, Aspar Lima & Rocha Neto Advogados Associados. Publicado originalmente pela revista eletrônica Consultor Juridico, em 09.09.25

'Jornalista não é flor que se cheire': o julgamento que absolveu Bolsonaro em 1988

A notícia deve ter passado despercebida para muitos leitores que abriram os jornais no dia 3 de setembro de 1986. Era um assunto digno apenas de uma nota pequena, sem muito destaque.

Bolsonaro foi do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista (Crédito: Acervo Pessoal Jair Bolsonaro)

Capitão é punido com 15 dias de reclusão, anunciava a Folha de S.Paulo.

Preso o capitão que escreveu em revista semanal, noticiava O Globo, num espaço ainda mais modesto.

Mas, passados 39 anos, pode-se dizer que os jornais registraram naquele dia de inverno um pedaço da história do Brasil.

O tal capitão da manchete se chamava Jair Messias Bolsonaro, um então desconhecido militar do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, em Deodoro, no Rio de Janeiro.

A revista citada era Veja (Editora Abril) e o que o capitão escreveu foi um artigo com críticas ao que considerava má remuneração dos militares, desafiando assim seus superiores.

A punição disciplinar a Bolsonaro em 1986, ainda que modesta, foi a primeira vez que ele foi privado de sua liberdade por desrespeitar as regras.

Nesta semana, Bolsonaro enfrenta a fase final do julgamento que pode condená-lo a mais de 40 anos de prisão pela acusação de tentar tramar um golpe de Estado que impediria a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2022.

Mas, apesar do pouco espaço inicial dado à primeira prisão do então capitão, aquela punição acabou funcionando como uma catapulta à vida pública de Bolsonaro.

À Justiça Militar, ele chegou a admitir em depoimento que se tornou mais conhecido entre militares e a população justamente após a publicação do artigo na Veja, como mostrou o jornalista Luiz Maklouf Carvalho no livro O Cadete e o Capitão (Editora Todavia).

Durante e depois da prisão, militares demonstraram uma onda de solidariedade com telegramas a Bolsonaro e mulheres de oficiais fizeram protestos em frente de quartéis.

Nos meses que seguiram, a imprensa passou a acompanhar mais de perto a demanda do capitão por melhores salários — o que levou a uma reportagem na própria revista Veja, em 1987, sobre um suposto plano de Bolsonaro e colegas para explodir bombas em quartéis e instalações militares no Rio de Janeiro.

A ideia, segundo apuração e entrevistas da jornalista Cássia Maria, seria pressionar o governo sobre os salários e demonstrar fraqueza do então ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves.

Recortes da revista Veja de 1986 mostra artigo de Bolsonaro e repercussão de sua prisão (Crédito,Reprodução/Revista Veja /Editora Abril)

Bolsonaro sempre negou esse plano, acusando a jornalista e a revista de mentirem, mas foi a julgamento. No Superior Tribunal Militar (STM), ele foi absolvido.

A advogada Elizabeth Diniz Souto, responsável pela bem-sucedida defesa de Bolsonaro no STM em 1988, lembra que seu cliente a procurou em Brasília, na etapa final do julgamento.

"Eu sabia que ele era um simples militar, sem nenhuma projeção no meio e nem era bem quisto no quartel", lembra Souto à BBC News Brasil

Mas, com aquele julgamento, fora dos muros militares, Bolsonaro foi ganhando notoriedade.

"Eu era toda hora entrevistada, os jornais deram muita cobertura", conta a advogada.

Apenas quatro meses depois do julgamento, Bolsonaro se elegeria vereador do Rio de Janeiro como um representante dos militares. Começava ali o caminho que levou ele à Presidência.

Na seção Ponto de Vista da primeira edição de Veja de setembro de 1986, o capitão Bolsonaro assinou o artigo com o título "O salário está baixo".

O então cadete Jair Bolsonaro (Crédito,Acervo Pessoal)

Foi uma escolha de levar a reclamação a público. Em um depoimento à Justiça Militar, Bolsonaro admitiu que levou seus argumentos a seus superiores, mas que, diante do silêncio, preferiu publicar o artigo. O texto dizia:

"Reclamo — como fariam, se pudessem, meus colegas — um vencimento digno da confiança que meus superiores depositam em mim."

"Não consigo sonhar as necessidades mínimas que uma pessoa do meu nível cultural e social poderia almejar."

O capitão justificava que cadetes estavam abandonando a Academia das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ), não porque estavam sendo acusados de uso de drogas e "homossexualismo", como relataram reportagens na imprensa. Mas por falta de perspectiva profissional.

Segundo os documentos revelados no livro O Cadete e o Capitão, Bolsonaro reconheceu posteriormente que sua escolha de publicar o texto configurava um "ato de indisciplina" e "deslealdade".

A publicação foi considerada pelos superiores militares como uma infração a seis artigos do regulamento do Exército em vigor na época.

Entre eles, a manifestação de assuntos políticos, a discussão de assuntos militares em veículos de comunicação e ser indiscreto em relação a assuntos de caráter oficial.

A prisão disciplinar de Bolsonaro por 15 dias teve início no dia 1º de setembro de 1986, dentro do prédio do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, no Rio.

Apesar de ter cometido uma infração considerada grave, o capitão não cumpriu a pena máxima (30 dias), porque aquela era a primeira punição do tipo para ele.

Há poucos detalhes sobre o período em que Bolsonaro ficou preso, já que o próprio ex-presidente não costuma falar sobre o assunto.

O regimento do Exército em vigor na época dizia que a prisão disciplinar consistia "no encarceramento do punido em local próprio e designado para tal".

Ainda assim, segundo o regimento, o preso podia, caso autorizado, se alimentar no refeitório. Como era capitão, Bolsonaro também não ficou preso no mesmo lugar que outros punidos de patentes mais baixas.

Em depoimento em dezembro de 1987, Bolsonaro comentou brevemente que poucos colegas foram visitá-lo durante a prisão disciplinar.

Apesar da punição e das poucas visitas, o protesto de Bolsonaro na revista Veja recebeu apoio quase imediato.

Na edição seguinte ao artigo, a revista trazia imagens de mulheres de oficiais protestando no complexo militar da Praia Vermelha, no Rio. Também relatava o recebimento de 150 telegramas "disparados de todas as regiões do país".

A reportagem trazia o depoimento do capitão Artur Teixeira, do Instituto Militar de Engenharia (IME).

"Ele expôs a insatisfação geral de uma classe."

Após cumprida a pena, Bolsonaro passaria apenas um ano longe das manchetes.

Bolsonaro voltou às manchetes após revelação de plano para explodir bombas

O plano das bombas

Na edição de 28 de outubro de 1987, a Veja revelava o plano de dois capitães, Bolsonaro e Fábio Passos, de explodir bombas na Vila Militar do Rio, na Aman e em quartéis.

A repórter Cássia Maria relatava encontros e conversas com os militares.

"Só a explosão de algumas espoletas", disse Bolsonaro, segundo a reportagem.

"Sem o menor constrangimento, Bolsonaro deu uma detalhada explicação sobre como construir uma bomba-relógio. O explosivo seria o trinitrotolueno, o TNT, a popular dinamite."

O texto dizia no início que os contatos da repórter com os militares se baseavam "num acordo de sigilo". Mas que este se tornou "impossível" no momento em que eles falaram de bombas.

Chamado para dar explicações na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), Bolsonaro fez uma defesa negando o encontro com a jornalista e o teor da reportagem. A negação e o apoio do Exército foram noticiados nos dias seguintes.

Poucos dias depois, Veja publicou nova manchete: "O ministro do Exército acreditou em Bolsonaro e Fábio, mas eles estavam mentindo".

A reportagem trazia croquis feitos à mão atribuídos a Bolsonaro — peças-chave para o julgamento final.

Um dos desenhos mostrava como funcionava uma bomba-relógio capaz de explodir uma tubulação da adutora do rio Guandu, no Rio de Janeiro. Havia ainda detalhes sobre testemunhas que presenciaram entrevistas do capitão.

Com as reportagens, foi instaurada uma sindicância no Exército.

Foi formado o chamado Conselho de Justificação, e Bolsonaro foi afastado de suas funções.

Esse conselho, formado por três militares, funciona como um procedimento administrativo, explica a advogada e cientista política Erika Kubik, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista na história da Justiça Militar.

Numa primeira avaliação, o órgão concluiu por unanimidade que Bolsonaro mentiu ao negar as conversas com a revista e atestou que havia o plano de explodir bombas.

"O Conselho decide que Bolsonaro é 'não justificado'. Ou seja, entende que esse militar não pode mais continuar na ativa, por ser uma desonra, por exemplo", conta Kubik.

A professora explica que, naquela época pós-ditadura, o conselho tentava "profissionalizar" os militares, em contraponto a atuação política marcada nos anos de chumbo. "Não queriam mais militar falando com a mídia, porque já tinha tido muito problema", diz Kubik.

A decisão do Conselho foi enviada ao ministro do Exército, Leônidas Gonçalves, que concordou com a decisão de afastamento de Bolsonaro e Passos.

No rito natural, o processo subiu ao Superior Tribunal Militar (STM).

Bolsonaro e outros militares em fotografia oficial da época da academia de formaçãoCrédito,Acervo Pessoal

Julgamento no STM

Tanto no Conselho de Justificação quanto no STM, a questão central era: os croquis apresentados pela revista Veja confirmavam a veracidade do plano relatado na reportagem?

Para isso, os desenhos passaram por perícias. Dois laudos periciais incriminaram Bolsonaro, e um foi inconclusivo, relata Luiz Maklouf Carvalho em seu livro.

Na sua defesa, Bolsonaro contratou a advogada Elizabeth Diniz Souto, profissional com larga experiência na Justiça Militar.

Souto havia atuado na defesa de inúmeros presos políticos durante a ditadura e, mais tarde, ganharia notoriedade nacional ao participar do julgamento do assassino de seu marido e de seu filho.

"Eu fazia a defesa de presos políticos por idealismo. No caso de Bolsonaro, foi profissionalismo. É uma diferença muito grande", explica Souto, que diz "pagar preço alto" por essa atuação até hoje.

A advogada conta que construiu sua argumentação em torno da desqualificação dos croquis como provas que ligassem diretamente Bolsonaro à autoria do plano.

"Eu mostrei que era impossível atestar quem havia feito a linha reta de um croqui. A única forma de estabelecer a autoria seria se houvesse impressão digital no papel", recorda.

A defesa também sustentava que, diante da dúvida, deveria prevalecer o princípio do in dubio pro reo, ou seja, o réu deveria ser beneficiado.

Relembrando sua atuação, Souto rejeita a ideia de que o julgamento no STM tenha sido "parcial" a favor de Bolsonaro.

"Eu mostrei [a falta de provas] de acordo com a lei e baseada nos laudos", diz.

Na visão da professora Erika Kubik, após o fim da ditadura, o STM, que já não julgava mais civis, teve atuação de certa forma corporativista.

"Não que fosse um jogo de cartas marcadas, mas creio que eles tinham muito mais uma ideia de autoproteção das Forças Armadas naquele momento de transição", avalia.

Elizabeth Souto conta que, após o julgamento, só voltou a ter contato com a família Bolsonaro uma única vez: recebeu da então esposa do capitão, Rogéria, uma bolsa preta de festa, que guarda até hoje.

"Ele pagou o que pedi e foi isso. Tanto que depois fiquei chocada quando ele virou deputado, porque não era politicamente relevante naquela época", relata.

A longa sessão em que os ministros declararam seus votos, em 16 de junho de 1988, ficou marcada por duras críticas à imprensa e, em especial, à jornalista Cássia Maria, autora da reportagem, que chegou a ser chamada de "cascavel".

"Repórter não é flor que se cheire", declarou na sessão o ministro general Alzir Benjamin Chaloub.

Por 9 votos a 4, o STM absolveu Bolsonaro e o capitão Fábio Passos.

Dessa forma, Bolsonaro foi reintegrado às Forças Armadas brasileiras — mas por pouco tempo: permaneceu apenas alguns meses, até deixar a carreira militar para se dedicar integralmente à vida política.

Vitor Tavares, jornalista, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 08.09.25

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

'Anistia aos golpistas é afronta à Constituição e viola a separação de Poderes', diz Celso de Mello

Ministro aposentado do STF critica debates no Congresso sobre perdão a envolvidos no 8/1 e PEC da Blindagem

Celso de Mello, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal — Foto: Jorge William / Agência O Globo

O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello afirma que a proposta de anistia aos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro, em tramitação no Congresso, afronta diretamente a Constituição por violar o princípio da separação de Poderes. Para o ex-presidente da Corte, a medida representa "um novo, inaceitável e ultrajante vilipêndio contra o Estado de Direito e a supremacia da ordem constitucional".

Em entrevista ao GLOBO, Celso de Mello defendeu que o Parlamento não pode usar a prerrogativa da anistia em para beneficiar quem atentou contra a democracia. O ex-decano do STF criticou ainda a PEC da Blindagem, em discussão no Congresso, e disse que a Corte não vai ser curvar às pressões de potências estrangeiras, em referência aos posicionamentos recentes do governo dos Estados Unidos no curso do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro na trama golpista.

A proposta de anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro voltou a ganhar força no Congresso em meio ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e os outros sete réus do "núcleo crucial" da trama golpista. Como avalia esse movimento político?

O projeto de lei articulado pela oposição bolsonarista, destinado a conceder anistia aos golpistas que dessacralizaram os símbolos da República e do regime democrático, representa, em sua essência, um novo, inaceitável e ultrajante vilipêndio contra o Estado de Direito e a supremacia da ordem constitucional. Tal pretensão encontra obstáculo na própria Constituição. Conceder anistia a quem perverte a democracia e subverte o Estado de Direito traduz ato que afronta, uma vez mais, a soberana autoridade da Constituição.

Quais são, na sua avaliação, os limites constitucionais que impedem o Congresso de aprovar uma anistia nesse caso?

O Congresso não pode exercer seu poder de legislar em matéria de anistia quando houver hipóteses pré-excluídas pela Constituição, como tortura, racismo, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos. Também não pode fazê-lo em casos de desvio de finalidade, o que ocorre neste projeto, pois sua motivação é atribuir ao Parlamento a condição anômala (e inadmissível) de órgão revisor das decisões do STF. Além disso, qualquer tentativa de anistiar quem atentou contra a democracia caracteriza ofensa ao princípio da separação de Poderes e viola cláusulas pétreas.

Caso esse projeto vingue no Congresso, o senhor acha que o STF deve considerá-lo inconstitucional?

Sim. O Supremo já firmou jurisprudência de que atos concessivos de clemência, como graça, indulto e anistia, são plenamente suscetíveis de controle jurisdicional, e que o Congresso não pode transgredir a separação de Poderes nem beneficiar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito. No caso específico, a proposição legislativa incide em algumas transgressões à Constituição, especialmente porque visa beneficiar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito e porque busca converter o Congresso em anômalo órgão revisional de decisões do Supremo Tribunal Federal.

O STF retoma na terça-feira o julgamento da trama golpista. Como vê a possibilidade de o ministro Luiz Fux abrir divergência e votar por penas menores?

A divergência de posições constitui fato natural no âmbito de órgãos colegiados, como o STF. A própria legislação processual prevê essa possibilidade, ao instituir mecanismos de superação das divergências que se manifestem em julgamentos.

O STF é alvo de ataques de aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro e, recentemente, foi acusado pelo governo dos Estados Unidos de promover uma "caça às bruxas" contra Bolsonaro. O que pode ser feito para responder?

Tenho plena fé na integridade e na independência do Supremo Tribunal Federal, por mais complexos que sejam os desafios a enfrentar. A Corte Suprema do Brasil não serve a governos, a pessoas ou a grupos ideológicos nem se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem. O Supremo Tribunal Federal, expressão legítima da soberania nacional, não é vassalo de potestades (potências) estrangeiras nem instrumento servil de pretensões contestáveis , especialmente quando fundadas em pressões (ou em sutis ameaças) conflitantes com o espírito democrático que rege o Estado de Direito em nosso país.

Como vê outras iniciativas do Congresso, como a PEC da Blindagem?

A PEC da Blindagem busca instituir, em torno dos congressistas, um absurdo círculo de imunidade penal e processual penal, absolutamente incompatível com os fundamentos que informam a ideia republicana e regem o princípio democrático. As prerrogativas parlamentares têm por finalidade protegê-los em face de atos que pratiquem no exercício legítimo da atividade legislativa. O abuso parlamentar, portanto, não está, nem deve estar, sob a proteção que a vigente Constituição já confere, de modo suficiente, aos membros do Poder Legislativo. Os autores de referida PEC excederam-se, claramente, na formulação dessa proposta. A garantia constitucional da imunidade parlamentar deve ser compreendida como instrumento destinado a viabilizar a prática legítima e independente do mandato legislativo. Não se destina, contudo, a ampará-lo em casos que traduzam comportamentos abusivos que resvalem para o campo da criminalidade comum.

Mariana Muniz, repórter, de Brasília - DF para o Globo - RJ. Publicada originalmente em 08.09.25

Nem paranóico nem psicopata, Jair Bolsonaro é perverso

Psiquiatras chegaram a suspeitar de doença mental já antes de ele ser eleito, mas a classificação adequada é criminoso; e a série de delitos não é pequena

Durante a pandemia de Covid19, o então presidente Jair Bolsonaro retira máscara facial em cerimônia no Palácio do Planalto - Adriano Machado= 10.jun.2021/Reuters

Durante o governo Jair Bolsonaro, particularmente em 2020, ano em que ele começou a desqualificar a ciência, dizendo que a Covid não passava de uma "gripezinha" e tirando selfies com apoiadores, eu me perguntei se ele era louco.

A questão foi esclarecida por Marco Antonio Coutinho Jorge, psiquiatra e psicanalista, no artigo "A Exclusão do Sujeito - Crime e Sadismo a Toda Prova", no qual eu me baseio.

A loucura, em geral, se apresenta através da perda de limites —acentuada falta de cuidado consigo mesmo, imaginação delirante, falta de respeito pela integridade física do semelhante (psicopatia) ou autoengrandecimento narcísico desmedido (paranoia).

Já antes de ser eleito, Bolsonaro, que começa a ser julgado nesta terça-feira (2), chamou a atenção dos especialistas em doença mental. Qual seria, segundo eles, o tipo de comprometimento de um presidente que havia elogiado a tortura, humilhado mulheres, negros, indígenas, homossexuais e nordestinos e que, por isso, mereceu ser chamado de "Bolsonero", em comparação ao imperador romano Nero?

Seria ele paranoico? A paranoia é um tipo de psicose em que o paciente aparenta completa normalidade, mas é movido por ideias delirantes e afetos de ódio. A onipotência leva o sujeito a inventar inimigos que ele passa a perseguir por ter certeza de que o perseguem. Não preciso citar aqui os perseguidos e os perseguidores imaginários de Bolsonaro porque isso é do domínio público.

Seria ele psicopata por ser carente de compaixão e incapaz de medir as palavras? Uma declaração sua poderia me levar a dizer que sim: "Morrer nós todos vamos. E daí?". Como pode o presidente da República dizer "e daí"?

Mas Bolsonaro não pode ser enquadrado no diagnóstico de paranoia, tampouco de psicopatia. Não tem ideias delirantes como o paranoico e, ao contrário do psicopata típico, que passa por cima da família —mata pai e mãe sem culpa alguma—, o ex-presidente tem grande apego pelos seus.

Por isso, houve psiquiatras que não o classificaram como doente mental, mas como criminoso. E a série de delitos inventariada por eles não é pequena: crimes contra a Constituição, o Estado de Direito e a humanidade.

Bolsonaro, como outros líderes contemporâneos, é um perverso, um sádico que goza infligindo dor ao semelhante. Daí os elogios ao coronel Carlos Brilhante Ustra, um conhecido torturador da ditadura militar.

A crueldade do ex-presidente se manifestou das mais diversas formas. Assim como, por exemplo, com a escolha de ministros da Saúde incapazes de lidar com uma pandemia, porém capazes de obedecer cegamente às suas ordens. Entre elas, a de deixar qualquer embarcação —com ou sem doentes contaminados— aportar no Brasil para não interferir no turismo marítimo. Ou a de desinformar a imprensa e a população sobre os óbitos.

O resultado dessa necropolítica foram 693 mil mortos durante o governo Jair Bolsonaro.

Betty Milan, a autora deste artigo, é Escritora e psicanalista. Pertence à Academia Paulista de Letras. Publicado na Folha de S. Paulo, em 01.09.25

Como qualquer paciente de terapia, Brasil resiste a se olhar no espelho

Dá para explicar a bandeira dos EUA usada como símbolo no 7 de Setembro?

Bolsonaristas abrem bandeira dos Estados Unidos em ato na av. Paulista - Eduardo Knapp - 7.set.25/Folhapress

Pensar a conjuntura político-social de uma época e de um território faz parte do DNA da psicanálise. Faz parte da sua busca por entender as condições nas quais se dá o sofrimento psíquico pessoal e coletivo.

Para quem critica os psicanalistas por entrarem nessa seara, só posso perguntar a que psicanálise se referem quando o fazem. Freud nunca deixou de denunciar o autoritarismo e as posturas alienadas que lhe servem de sustentação. As obras dele que provam isso estão ao alcance de um clique: "O Mal-estar na Cultura", "Psicologia das Massas e Análise do Eu", só para começo de conversa.

Colocar o Brasil no divã não é novidade, tem sido uma prática de psicanalistas como Lélia Gonzalez, Helio Pellegrino, Maria Rita Kehl, Contardo Calligaris...

Mas como qualquer paciente, "o gigante" resiste a se encarar no espelho. O sintoma e o sofrimento é que nos obrigam a parar e pensar quem somos. Como a bandeira dos EUA foi usada de símbolo do 7 de Setembro?

Em uma análise, é necessário prestar atenção ao que se repete ao longo da trajetória pessoal. As parcerias amorosas mudam, mas são sempre violentas? Os abandonos se sucedem? Troca-se de emprego, mas a queixa continua igual? Enfim, a maneira como enfrentamos os perrengues da vida nos mostra uma forma própria de existir, que se repete e, muitas vezes, difere das histórias que contamos de nós mesmos.

O Brasil tem uma herança de violência que decorre de sua fundação. A instalação de Daniel Jablonski na Galeria Janaína Torres ilustra bem a relação sinistra que os invasores já tinham com a terra quando aqui chegaram. Mera paisagem a ser usurpada, a relação com o vivente sempre esteve submetida ao capital. A exploração ininterrupta do território justificou a escravização de indígenas locais e de negros sequestrados.

Nossa independência decorreu mais das disputas entre quem deveria ficar com os frutos dessa exploração —as elites de cá ou as elites de lá— do que do reconhecimento de uma identidade nacional.

Desde então, nos vemos divididos entre assumir a construção de um país ou sonhar com a miragem de uma ascendência europeia, fruto da identificação com o agressor. A vira-latice brasileira, no entanto, deveria ser nosso ponto mais forte.

Embora decorra de uma história de miscigenação forçada, é ela que nos impede de ostentar um mito de origem baseado num ideal de superioridade e pureza, que sabemos ser uma das causas do terror que assola o mundo. Não se trata de harmonia entre três raças, mas da assunção de suas diferenças.

Nossa fratura constitutiva, quando reconhecida como tal, pode levar a uma ideia de soberania que valha a pena. Não apenas no sentido jurídico, político ou econômico, mas naquilo que ela traz de reconhecimento simbólico, de uma identidade nacional. Longe da patriotada na qual se pensam as relações exteriores como um "nós contra a rapa", mas da assunção de que estamos todos desamparados diante de um mundo que se desorganiza de forma acelerada.

O julgamento inédito de militares e políticos que atentaram —e ainda atentam— contra nosso direito democrático é o ponto fora da curva da repetição do que nos fundou.

Mais do que responsabilizar quem merece, trata-se de um ato inédito na direção da cura. Não precisa ser psicanalista para antecipar que o desfecho inverso só leva ao pior.

Vera Iaconelli, a autora deste artigo, é Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise. Também autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP. Pubicado originalmente na Folha de S. Paulo, e 08.09.25

sábado, 6 de setembro de 2025

A arte da bajulação

Alguns dos advogados de réus da trama golpista apostaram na estratégia de adular magistrados, a fim de amolecê-los


O advogado Demóstenes Torres durante o julgamento da trama golpista no STF - Luiz Silveira/STF - Luiz Silveira/STF

Fiquei impressionado com alguns dos advogados dos réus da trama golpista. Eles colocaram a arte de bajular num patamar para mim inaudito. Destaco dois deles.

O infatigável Demóstenes Torres, que representa o almirante Almir Garnier, é um maratonista. Dedicou 21 de seus 60 minutos a distribuir elogios entre os cinco ministros que compõem a 1ª Turma do STF.

Um juiz careca, vestido com uma toga preta e gravata, está em pé em um tribunal, segurando um papel e gesticulando com a mão. Ao fundo, há várias pessoas sentadas, algumas em trajes formais, observando atentamente. O ambiente é bem iluminado, com um painel azul ao fundo e uma mesa de tribunal à frente do juiz.

Já Cezar Bitencourt, um dos advogados do tenente-coronel Mauro Cid, é um velocista, investindo em força e intensidade. As palavras que ele reservou para o ministro Luiz Fux não dão margem a dúvida: "sempre saudoso, sempre presente, sempre amoroso e sempre atraente, como são os cariocas".

Enciumado, Flávio Dino disse que não aceitaria menos do que isso e foi agraciado com uma declaração na qual figurava como detentor de elegância e sabedoria.

Os magistrados obviamente não são ingênuos a ponto de achar que os elogios são de todo honestos. Por que então experientes operadores do direito (não é qualquer um que advoga no STF) insistem nessa estratégia? Porque funciona.

Estudos neurocientíficos recentes, como o de Shotaru Fujiwara e colaboradores, sugerem que o elogio sincero tende a ser mais efetivo que a bajulação, mas que ambos são capazes de ativar centros de recompensa do cérebro de quem ouve as loas, num processo análogo àquele pelo qual sentimos prazer. E isso, é claro, pode predispor o recebedor dos elogios em favor de quem os faz.

Não é algo que fará o juiz absolver o réu de cuja culpa ele já esteja convencido, mas pode torná-lo um pouco mais benevolente, com efeitos ainda que marginais sobre a dosimetria das penas.

É que o cérebro não é uno. Mesmo que as áreas dedicadas ao raciocínio lógico nos informem de que o encômio não passa de conversa fiada, outras estruturas se deixam impressionar pelas palavras enaltecedoras e desencadeiam reações eletroquímicas que podem modular nossos sentimentos.

É uma estratégia que pode render frutos, especialmente quando as estratégias alternativas não parecem nada promissoras.

 Hélio Schwartsman, o autor, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. E é o autor de "Pensando Bem…" (Sucesso de público e de crítica). Publicado originalmente em 0609.25

Mesmo com ataque dos EUA, exportações resistem

Vendas para México, Argentina e China fazem contraponto ao tarifaço de Trump, mas ainda há riscos

Apesar de desempenho robusto no comércio, déficit nas contas externas, incluindo balança de serviços, já começa a preocupar

Terminal de contêineres da Portonave, em Navegantes (SC) - Divulgação/Portonave

Mesmo com o cenário global marcado por tensões comerciais e a imposição de tarifas de até 50% ao Brasil por Donald Trump, as exportações nacionais mantêm trajetória positiva, com alguns sinais de adaptação estratégica.

Em agosto, as vendas para os EUA registraram queda de 18,5%, totalizando US$ 2,76 bilhões, ante US$ 3,39 bilhões no mesmo mês de 2024. Boa parte dessa retração é atribuída diretamente ao tarifaço imposto pelo republicano, que entrou em vigor no início do mês. Ainda resta saber como as empresas vão se adaptar ao novo cenário, mas já é possível captar sinais desse movimento.

Isso porque, no mês passado, o desempenho geral das exportações totais permaneceu robusto, com alta de 3,9% na mesma comparação, para US$ 29,9 bilhões. O superávit comercial ficou em US$ 6,1 bilhões. Tal resultado sugere um redesenho das cadeias de suprimentos, em que o Brasil vai explorar alternativas.

Exemplos incluem o salto de 43,8% nas exportações para o México, beneficiado por acordos como o USMCA, e de 40,4% para a Argentina, por meio do Mercosul. Também houve forte aumento para a China, de 31%, com volumes recordes em commodities.

De janeiro a agosto de 2025, as vendas externas acumuladas bateram recorde histórico de US$ 227,6 bilhões, crescimento de 0,5% ante 2024; já as importações desaceleraram 2% em agosto, para US$ 23,7 bilhões. No ano, elas somam US$ 184,7 bilhões, com trajetória de moderação devido aos juros altos e ao enfraquecimento da demanda interna.

Na soma geral, a balança comercial deve se manter acima de US$ 65 bilhões neste 2025. Em perspectiva mais ampla, contudo, o comércio de bens não se mostra suficiente para conseguir ancorar as contas externas, sinalizando vulnerabilidades.

O agregado de todas as transações, incluindo serviços, resulta na chamada conta corrente, que acumula déficit de US$ 75,3 bilhões, ou 3,5% do PIB, nos 12 meses encerrados em julho —o que começa a suscitar preocupação.

Um alento é o financiamento desse deficit com investimentos de longo prazo, em vez de recursos especulativos. No entanto os volumes não se mostraram suficientes no período. O investimento direto no país (IDP) somou US$ 68,2 bilhões (3,2% do PIB) nos últimos 12 meses.

A resiliência das exportações até o momento é boa notícia, mas é preciso fortalecer a posição do Brasil e minimizar riscos. Novas redes de produção, investimento e comércio deverão surgir para se contrapor ao fechamento comercial dos EUA, abrindo novas oportunidades.

Além de buscar mais capitais internacionais de longo prazo, com melhoria do ambiente de negócios e uma política econômica mais responsável, o país precisa resistir ao protecionismo comercial, diversificar mercados e consolidar presença no cenário de redesenho das cadeias de produção em escala mundial.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 06.09.25 / editoriais@grupofolha.com.br

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa é retrocesso

Lula deve vetar mudança que dilui poder da legislação criada para coibir a influência de criminosos na política

Congresso Nacional, em Brasília — Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo

Com todas as atenções voltadas para o julgamento da tentativa de golpe de Estado no Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso aproveitou para enfraquecer a Lei da Ficha Limpa, em benefício de políticos condenados pela Justiça. Por 50 votos a 24, o Senado referendou o texto, já aprovado pela Câmara, reduzindo a eficácia da lei. Pela nova regra, os oito anos de inelegibilidade impostos a políticos ficha-suja passam a ser contados a partir de sua condenação por tribunal ou órgão colegiado — e não mais do final do cumprimento da pena.

Também foi estabelecido o limite de 12 anos para o tempo que o político ficha-suja ficará proibido de disputar cargos eletivos. O novo texto ainda determina que, para a punição valer em casos de atos de improbidade, será preciso comprovar o dolo. E amplia de quatro para seis meses o período de desincompatibilização de candidatos oriundos de Ministério Público, Defensoria Pública, Forças Armadas e polícia. Todas essas medidas são nocivas. É sintomático que o projeto tenha tramitado em regime de urgência, sem passar por comissões nem ser discutido em audiências públicas.

De acordo com os defensores das mudanças, a intenção é limitar ao máximo de oito anos o afastamento de políticos das urnas. “Está no texto da lei: oito anos. Não pode ser nove, nem 20”, disse o presidente do senado, Davi Alcolumbre (União-AP), ao votar a favor. Na prática, o Legislativo restringiu ao mínimo o poder de dissuasão da lei sobre políticos condenados pela maioria dos crimes comuns.

Tome-se o caso do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, cassado em 2016 por quebra de decoro, pois mentiu à CPI da Petrobras em 2015, ao garantir que não tinha contas bancárias secretas na Suíça. Sua inelegibilidade, pelas regras anteriores, se estenderia até os anos 2040. Com o enfraquecimento da lei, ele tem chance de se candidatar já nas eleições do ano que vem (o projeto aprovado pelo Senado foi apresentado à Câmara pela deputada fluminense Dani Cunha, do União, filha de Eduardo Cunha). Entre dezenas de outros beneficiados, estão também os ex-governadores Anthony Garotinho (RJ) e José Roberto Arruda (DF).

A Lei da Ficha Limpa resultou de uma proposta de iniciativa popular que coletou mais de 1,6 milhão de assinaturas. Sempre esteve na mira dos políticos. Sua constitucionalidade foi garantida pelo STF em 2012 e, cinco anos depois, a Corte decidiu que os oito anos de inelegibilidade seriam contados a partir do final do cumprimento da pena recebida na sentença que enquadra o político na Lei da Ficha Limpa. Foi uma decisão correta, pois não faz sentido que a segunda punição, de caráter eleitoral, seja absorvida pela sentença que serviu de base ao enquadramento do condenado.

É certo que a mudança aprovada pelo Congresso não se aplica a condenados por crimes hediondos ou graves, como lavagem de dinheiro ou tráfico de drogas. Mas isso não atenua o erro do Parlamento. É fundamental que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vete as mudanças na íntegra. É o mínimo que a população exige para que a política não se transforme em porto seguro para criminosos condenados.

Editorial d'O Globo, em 05.09.25

Momento decisivo para a direita liberal

A democracia brasileira precisa de uma direita liberal inequivocamente democrática

Brasil não é quinta nem quintal

Há quem alimente a expectativa de que, condenado Bolsonaro, a direita democrática ressurja com autonomia em relação ao ex-presidente. Tomara, mas os fatos até aqui não apontam nessa direção.

Razões para marcar com clareza a diferença com o bolsonarismo jamais faltaram. Faltou, sim, coragem. Nem sempre foi assim. No passado, liberais-conservadores assumiram riscos que a prudência convencional não recomendava. Em 1968, Djalma Marinho, deputado federal pela Arena, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, se recusou a colocar em votação a autorização para que Márcio Moreira Alves, deputado federal do MDB, fosse cassado pelos militares. Marinho – não o neto, hoje líder da oposição no Senado, mas o avô – arriscou seu futuro político. Não evitou a decretação do AI-5, mas ganhou a autoridade moral que distingue as grandes figuras públicas.

Nenhum dos quatro governadores de direita que postulam a condição de substituto de Bolsonaro parece ser feito desse material. São políticos adaptativos, que se movem por cálculos eleitorais de curto prazo. Nada de surpreendente, no panorama geral da política brasileira. Mesmo o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que tem estofo e trajetória suficientes para se colocar um degrau acima, prefere adotar pose não “beliscosa”, neologismo recém-criado por seu insuperável colega Romeu Zema, governador de Minas Gerais. A rigor, a questão não é ser ou não belicoso, mas, sim, minimamente congruente: quem se diz democrata não pode prometer indulto a quem tramou para subverter a democracia.

O conservadorismo liberal hoje no Brasil opera segundo uma premissa falaciosa: Lula seria pior que Bolsonaro, no máximo igual a ele, o que serve de justificativa para a proximidade com o ex-presidente com vistas a derrotar o atual. Quem se diz democrata não pode sustentar essa premissa. Nunca fui petista ou lulista, mas os fatos desmontam a falácia: Lula sempre se submeteu ao resultado nas várias eleições que perdeu (uma para o governo de São Paulo e três para a Presidência da República); jamais buscou fazer das Forças Armadas um instrumento para se perpetuar no poder; respeitou o limite de uma reeleição consecutiva, quando tinha apoio suficiente para emendar a Constituição e eleger-se pela terceira vez consecutiva; nunca instigou potência estrangeira a prejudicar o Brasil para salvar a própria pele.

Sei que o argumento para não romper com Bolsonaro é racional. Faz sentido não brigar com um líder que comanda um partido digital de alto teor destrutivo e forte influência sobre o voto de pelo menos 20% do eleitorado. A mesma racionalidade, porém, leva à conclusão de que o custo da servidão ao bolsonarismo é crescente. Financiado pelo pai e estimulado por acólitos da extrema direita, Eduardo Bolsonaro prestou um favor a Lula. Ao que tudo indica, seu exílio voluntário nos Estados Unidos entrará para os anais como um dos maiores erros políticos da história brasileira dos últimos 40 anos.

O filho 03 do ex-presidente parece disposto a levar sua aventura às últimas consequências. Continua a instigar a escalada do ataque estadunidense à soberania nacional para alcançar um de dois objetivos: uma anistia, arrancada a fórceps, que permita ao pai concorrer à Presidência em 2026, hipótese improvável, que significaria fazer vistas grossas à trama golpista capitaneada por Bolsonaro, concedendo ampla, geral e irrestrita impunidade a ele e seus liderados; ou uma intervenção estrangeira no processo eleitoral para distorcê-lo ou deslegitimá-lo. Tanto um como outro objetivo representam a continuação da tentativa de golpe de Estado frustrada anteriormente.

Desgastada pela associação com o regime autoritário, a direita no Brasil levou mais de 30 anos para ser competitiva nas eleições presidenciais pelo voto direto. Entre 1985 e 2018, salvo pela eleição e breve presidência de Collor, ela foi ator coadjuvante nas disputas pelo Palácio do Planalto. Em 2019, chegou à Presidência em democracia, sob o comando de um mau ex-militar, notório agitador de quartéis, e parlamentar do baixo clero, inexpressivo em tudo, exceto pela linguagem chula e agressiva na defesa da ditadura e de torturadores.

Bolsonaro deu à direita o que até então lhe faltara: votos numa eleição que é essencialmente plebiscitária. Mas submeteu-a a uma chantagem. Por pensar e agir exclusivamente como chefe absoluto de um clã familiar que não leva em consideração a não ser os seus próprios interesses, ameaça castigar quem não se submeta aos seus desejos e desígnios. Sabendo-se irremediavelmente condenado pelos crimes que cometeu, só lhe interessa agora salvar a si mesmo, não importa o preço para o País nem para o futuro da direita no pós-Bolsonaro.

A democracia brasileira precisa de uma direita liberal inequivocamente democrática. Ela vive agora um momento decisivo, que a marcará pelo futuro previsível. Terá a coragem necessária para romper com o bolsonarismo e se erguer à altura dessa oportunidade histórica?

Sergio Fausto, o autor deste artigo, é o Diretor-Geral da Fundação FHC e membro do Gacint-USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.09.25

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Honorários bilionários na AGU

É preciso acabar com o repasse de pagamentos feitos por partes vencidas em processos a advogados públicos

Riscos justificam honorários de sucumbência no setor privado; no público, o Estado já financia o trabalho e servidores têm estabilidade

Fachada da Advocacia-Geral da União, em Brasília (DF) - Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Num país com renda média do trabalho na casa dos R$ 3.400 mensais e teto do funcionalismo de R$ exatos R$ 46.366, é inconcebível que carreiras do sistema de Justiça usem manobras legais para obter remunerações que, por vezes, chegam aos seis dígitos.

O exemplo escandaloso mais recente se dá na Advocacia-Geral da União (AGU). Em janeiro deste ano, pouco mais de 12 mil membros do órgão receberam R$ 1,7 bilhão referente a honorários de sucumbência. Em julho, foram mais R$ 2,3 bilhões. Somando-se os demais meses, esses advogados públicos receberam um total de R$ 5 bilhões no período.

A média dos repasses em julho ficou em R$ 192 mil por servidor beneficiado, sendo que quase metade do grupo ganhou valores próximos a R$ 310 mil —caso do ministro Jorge Messias, chefe da AGU, com R$ 307,9 mil.

Honorários de sucumbência, valores pagos pela parte perdedora num processo à parte vencedora, fazem sentido no setor privado, dados os riscos assumidos por advogados e escritórios.

No setor público, constituem uma insensatez que atenta contra a moralidade administrativa, pois o Estado já financia toda a estrutura necessária ao trabalho, sem contar a estabilidade e os benefícios do funcionalismo.

Honorários de sucumbência para advogados da AGU e procuradores da Procuradoria-Geral Federal, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e do Banco Central foram instituídos por uma lei de 2016, que foi validada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Isso não torna a prática aceitável nem torna o dinheiro público bem empregado. As verbas poderiam ser usadas em áreas prioritárias, em vez de turbinar a conta bancária de servidores.

Os pagamentos são realizados pelo Conselho Curador dos Honorários Advocatícios (CCAH), uma entidade de natureza privada, cujos conselheiros também são beneficiados pelos recursos. De 2017 a 2014, o CCHA recebeu R$ 15,8 bilhões da União.

Tais honorários de sucumbência podem criar incentivos nefastos, ao fazer com que profissionais do serviço público direcionem atenção a processos que tragam maior retorno financeiro.

A reforma administrativa em gestação na Câmara dos Deputados poderá promover alterações em fundos privados de advogados públicos, entre outras medidas para conter supersalários. Há grande risco, porém, de que lobbies e corporativismo detenham a empreitada.

De todo modo, é imperativo abrir caminho para eliminar essa prática nada republicana que atenta contra o erário.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 03.09.25 (edição impressa) / editoriais@grupofolha.com.br

Acordo por anistia a golpistas é pornográfico

Urdida nos subterrâneos do Congresso, uma eventual impunidade para os acusados de tramar um golpe de Estado ora em julgamento no STF é juridicamente teratológica e moralmente inaceitável

O julgamento da Ação Penal (AP) 2.668 mal havia começado quando, a alguns passos do Supremo Tribunal Federal (STF), caciques partidários e autoridades do Congresso, aos quais se juntou o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, já articulavam um pornográfico acordo político para aprovar um projeto de lei de anistia. O contraste é gritante: enquanto o STF exercia seu dever de julgar suspeitos de atentar contra a ordem constitucional democrática, a elite política do País trabalhava para neutralizar a eventual punição dos que vierem a ser condenados por trair o pacto republicano. Anistiá-los não é só uma iniciativa juridicamente teratológica – é moralmente inaceitável.

A monstruosidade desse conchavo salta aos olhos. Admitir a constitucionalidade de uma anistia para réus acusados de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, entre outros crimes, implica admitir que a Constituição conteria um dispositivo de autodestruição. Ademais, cogitar de anistia, a essa altura, é um artifício político para livrar Jair Bolsonaro e seus corréus, civis e militares, das consequências penais de seus atos. Talvez a única centelha de sensatez nessa articulação toda, não que seja aceitável, tenha partido do presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre, que defendeu que uma eventual anistia não pode contemplar o ex-presidente.

Mas antes o problema fosse apenas técnico. É, sobretudo, político e moral. Há evidências em profusão de que Bolsonaro e sua grei tramaram para permanecer no poder à revelia da vontade popular e em flagrante violação da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. O 8 de Janeiro foi a culminação visível de uma conspiração muito mais ampla contra a democracia. Por isso, a sofreguidão pela anistia não visa à proteção dos idiotas úteis que tomaram Brasília à força naquele fatídico dia, mas sim dos mentores do golpe, cujos nomes figuram no topo da política e das Forças Armadas, sabe-se lá por quais interesses. Seja como for, trata-se de um pacto espúrio para manter impunes os que ousaram tentar matar a política como único meio civilizado de concertação dos múltiplos interesses em disputa numa sociedade livre.

Não é a primeira vez que o Brasil se depara com movimento desse jaez. Só no período republicano, cerca de 40 anistias foram aprovadas, quase sempre com o propósito de livrar a cara de militares e políticos envolvidos em insurreições. O resultado foi invariavelmente nefasto para o País. Ao invés de fortalecer a democracia e ensejar a “pacificação da sociedade”, como apregoam os modernos arautos da impunidade, as anistias sistemáticas só serviram de incentivo para novas aventuras golpistas. A História demonstra que cada perdão fomentou a ruptura seguinte. Definitivamente, não é isso o que a Nação deseja, como atestam as pesquisas de opinião.

Até a anistia de 1979, “ampla, geral e irrestrita”, frequentemente invocada pelos bolsonaristas como precedente, ilustra a armadilha. Negociada nos estertores da ditadura militar, a Lei 6.683 serviu como instrumento de transição necessário àquela época, mas ao custo de blindar torturadores, assassinos e contumazes violadores das liberdades individuais. Até hoje o País convive com a impunidade de crimes hediondos cometidos em nome do Estado, mantendo feridas abertas e uma memória histórica inconclusa. O que naquele contexto foi tratado como uma espécie de “mal necessário” se converteu, à luz da experiência, em mal permanente. É esse legado infame que alguns pretendem ressuscitar agora, a pretexto de uma “tradição”.

Se é de tradição que se trata, a cogitação de uma anistia aos golpistas mostra a facilidade com que a elite política condescende com quem mina o império da lei, amesquinha os valores republicanos e faz pouco-caso dos direitos humanos, além de transmitir a mensagem de que, em momentos de crise, sempre haverá brechas para acomodações subterrâneas. Esse tempo precisa passar. Chega. O Brasil que almeja por um futuro mais desenvolvido, justo e próspero para todos tem de encerrar esse ciclo de uma vez por todas.

O julgamento dos golpistas ora em curso no STF é essa inflexão histórica. É a ocasião de afirmar, em termos inequívocos, que a democracia brasileira não admite mais que se passe a mão na cabeça de seus algozes – sejam fardados ou paisanos.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Pulo, em 04.09.25

Congresso Nacional, a casa de tolerância do próximo golpe

Tudo fora das quatro linhas da Constituição

(Crédito: BRENO ESAKI/METRÓPOLES @BrenoEsakifoto)

Em um bordel, tolera-se tudo ou quase tudo. É como no Congresso, este que temos, onde a direita (leia-se: os partidos genéricos do Centrão) e a extrema-direita contam, hoje, com a maioria dos deputados federais e senadores. Ou o curso muda ou o Congresso a ser eleito no próximo ano será definitivamente pior.

Ali, o dinheiro corre solto, sem o mínimo de transparência, para alimentar tenebrosas transações. Dinheiro público, do Orçamento da União, que parlamentares, líderes de partidos e os presidentes da Câmara e do Senado administram para garantir a renovação dos seus mandatos, pagar despesas particulares e ficar mais ricos.

Ali também brotam, germinam e florescem as mais absurdas ideias às quais se dá os nomes de projetos de lei, decretos e propostas de emenda à Constituição. Muitas das ideias acabam por vingar, alcançando seus objetivos e fazendo mal ao país. A Constituição de 1988 está sendo reescrita a um ritmo alucinante.

Uma dessas ideias apenas espera a melhor hora para ser reapresentada. É a que subtrai ao Supremo Tribunal Federal o poder de investigar qualquer parlamentar suspeito de crime à revelia dos seus pares. Buscas em gabinetes? Só com permissão da Câmara ou do Senado. Prender parlamentares? Nunca mais.

O Congresso, agora, quer o poder de demitir diretor do Banco Central que não cumpra “adequadamente suas funções” ou “fira os interesses nacionais”. Adequadamente, como? Por “interesses nacionais”, entenda-se o quê? Não se sabe. Ver-se-á na hora de votar e a depender da composição momentânea do plenário.

Legisla-se no Congresso de acordo com a ocasião, e não importa o que a maioria dos brasileiros pense. A maioria, por exemplo, pensa que o Brasil foi alvo de uma tentativa de golpe para anular o resultado da eleição presidencial de 2022 que deu a vitória a Lula; e é contra o eventual retorno de Bolsonaro à vida pública.

Pela primeira vez em nossa história, um ex-presidente da República e militares acusados de golpe estão sendo julgados e poderão ser condenados e presos. Mas, e daí? O Congresso parece pronto para votar uma anistia ampla, geral e irrestrita que os beneficie. Isso é flagrantemente contra a Constituição. E daí?

Deputados e senadores sabem de antemão que a anistia, se aprovada, será derrubada pelo Supremo Tribunal Federal.Mas, quando nada, a direita (Centrão) e a extrema direita bolsonarista ganharão mais um discurso para impulsionar seu possível candidato a presidente em 2026, Tarcísio de Freitas.

O próprio Tarcísio despiu a máscara de bom moço e pôs-se à frente das tropas bárbaras que defendem a anistia e que não temem afrontar a Justiça. Tarcísio não tem votos para se eleger. Nenhum nome da direita tem. Então, ele precisa agradar a extrema-direita na esperança de herdar os votos de Bolsonaro. Simples assim.

A casa de tolerância que se tornou o Congresso deixará suas digitais em mais uma tentativa de golpe

Ricardo Noblat, o autor deste comentário, é jornalista, editor do Blog do Noblat. Publicado no  https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/, em 04.09.25

Processo penal no regime militar e aos atos do 8 de Janeiro

Tem sido assunto frequente e recorrente na imprensa brasileira a veiculação de opiniões de que os terroristas do 8 de Janeiro têm sido submetidos a um processo penal de exceção e que seus direitos humanos têm sido violados pela Suprema Corte. 


Manifestação em defesa da anistia dos condenados pelo 8 de janeiro ( Crédito: Joédson Alves/Agência Brasil ).

Com o propósito de demonstrar cabalmente o absurdo e o disparate dessa percepção, é interessante fazer um cotejamento comparativo entre o verdadeiro processo penal de exceção que vigorava durante a ditadura militar tão exaltada pelos aludidos terroristas e o processo penal balizado pelos ditames da Constituição ao qual estão sendo submetidos os citados golpistas.

Na ditadura militar de 1964 a 1985, principalmente no período de vigência do Ato Institucional número 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, vigorou no Brasil o verdadeiro direito penal do inimigo. A tortura era institucionalizada, e não havia Habeas Corpus para acusados de crimes contra a segurança nacional. As pessoas eram detidas, mesmo as que não eram participantes da luta armada das organizações da extrema esquerda da época, e torturadas e assassinadas como se fossem.

A Justiça Militar julgava os civis que fossem acusados por crimes contra a segurança nacional, e o acesso dos advogados aos acusados era praticamente impossível. Era inexistente o direito à ampla defesa e ao contraditório, e as sentenças eram exaradas com base em depoimentos e confissões obtidos sob tortura. Muitos dos detidos nessa época, quer tivessem vínculo efetivo com a luta armada ou não, foram assassinados ou desaparecidos em virtude dos suplícios a que foram submetidos nas masmorras dos cárceres da Oban, do DOI-Codi e dos serviços secretos das três armas.

Outra característica desses processos é que os réus eram processados e condenados com base nos antes mencionados depoimentos e confissões obtidos sob tortura ainda na fase do inquérito policial, procedimento de caráter inquisitorial, no âmbito do qual não há direito de defesa nem contraditório, antes mesmo de se tornarem réus nas ações penais. Da mesma forma, as denúncias elaboradas pelo Ministério Público na época eram embasadas nos mesmos depoimentos e confissões obtidos sob tortura.

O AI-5 foi um instrumento tão autoritário e ilegítimo que determinava que atos do presidente da República (PR) não poderiam ser objeto de apreciação judicial. O presidente também tinha o poder de confiscar bens, demitir sumariamente servidores públicos, isto é, demitir sem dar o direito de defesa, cassar os direitos políticos de cidadãos por dez anos, poder para intervir nos estados e municípios de forma discricionária, violando o pacto federativo e a autonomia política dos entes subnacionais, alegando ameaça à segurança nacional, entre outras barbaridades. Ou seja, era um regime cuja institucionalidade era totalmente antidemocrática, autocrática, no qual a separação de poderes, a federação, os direitos e garantias individuais eram letra morta, e o governo militar ilegítimo da época praticava o terrorismo de Estado.

Julgamento do 8 de Janeiro é bem diferente

Já os terroristas do 8 de Janeiro estão sendo julgados por um processo penal democrático fundamentado nas garantias processuais penais estabelecidas pela Constituição, que foi promulgada por uma assembleia Nacional Constituinte eleita diretamente pelo povo, ao contrário do AI-5, imposto e outorgado à sociedade brasileira de forma totalmente autoritária e ilegítima pelo Conselho de Segurança Nacional naquele famigerado 13 de dezembro de 1968.

Aos acusados de tentar instituir novamente o regime do AI-5 no Brasil em 8 de janeiro de 2023, estão sendo assegurados a esses réus as garantias processuais penais constitucionais do promotor natural, do juiz natural, da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal entre outras. Inclusive merece destaque a transparência da realização do julgamento, em que pode se constatar que os advogados dos réus tiveram todas as condições de realizar seu trabalho exercendo a ampla defesa dos seus clientes.

O resultado do trabalho meticuloso de investigação da Polícia Federal, que demorou dois anos e meio para ser concluído, serviu de subsídio para a formulação da denúncia minuciosa e judiciosa elaborada pelo procurador-geral da República (PGR), a qual individualizou apropriadamente a conduta de cada acusado, tendo sido aceita pela 1ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF), foro apropriado para a realização do processo e julgamento da causa.

A respeito da competência de o STF julgar as causas do 8 de janeiro houve também certa controvérsia. Entretanto, efetivamente a competência é do Supremo, tendo em vista que o artigo 43 do seu Regimento Interno (RISTF) atribui ao presidente do Tribunal, quando a infração à lei penal ocorrer na sede ou dependência do Tribunal, a competência de instaurar inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição.

Concentração de julgamentos no STF

Neste último caso, a causa jurídica em questão, além de ter se constituído na destruição das dependências do Supremo Tribunal, abrange também deputados federais, como é o caso de Ramagem, e outros membros do Congresso implicados nos atos de 8 de janeiro. Devido a isso, e considerando os princípios da conexão e continência previstos nos artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal, os réus pessoas comuns foram atraídos para serem julgados pelo STF juntamente com os parlamentares citados cujo julgamento nas infrações penais comuns é competência constitucional originária do Pretório Excelso, evitando a dispersão do processo por instâncias judiciais diferentes.

Cabe também lembrar, como bem registra Patrick Luiz Martins Freitas Silva no artigo “A competência do STF para julgar atos do 8 de Janeiro alcança cidadãos comuns?“, publicado nesta Conjur, que a “a Súmula 704 da corte buscou pacificar a questão, afirmando que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados. (…) — Inq 2.688, relatora ministra Cármen Lúcia, red.p/ o ac. ministro Gilmar Mendes, 2ª T, j. 2-12-2014, DJE 29 de 12-2-2015”.

Idoneidade e licitude do processo

Além disso, o RISTF atribui ao seu presidente a autoridade para escolher o relator do inquérito. A propósito, o STF, como guardião da Constituição, e instância máxima do controle de constitucionalidade brasileiro, declarou constitucional o referido artigo 43 do RISTF no âmbito da ADPF 572.

Lembrando, como complemento, que o STF decidiu em março de 2025, por 7 a 4 no plenário físico, que as autoridades mantêm a prerrogativa de foro mesmo após deixarem os altos cargos públicos que ocupavam. Outro detalhe é que no final de 2023 houve modificação no Regimento Interno do Pretório Excelso no sentido de que as ações penais voltariam a ser competência das turmas. Logo, o que fica caracterizada é a total, completa, absoluta, integral idoneidade e licitude de todo o processo de julgamento dos terroristas/golpistas do 8 de Janeiro pela Corte Suprema brasileira.

Inclusive o tratamento concedido pelo relator do caso, o ministro Moraes, ao principal réu, o ex-presidente entre 2019 e 2022, foi extremamente condescendente e benevolente, tendo em vista que o ex mandatário não foi preso preventivamente em algumas ocasiões em que tal decretação da prisão cautelar teria sido pertinente. Entre essas ocasiões, destaca-se quando, em pleno Carnaval de 2024, o ex-presidente se refugiou na embaixada da Hungria, caracterizando uma situação em que, acintosamente, estava procurando se evadir para evitar as consequências da aplicação da lei penal, o que constitui motivo idôneo para a decretação da prisão cautelar.

Outra ocasião foi quando o réu confessou abertamente em entrevista que estava financiando as atividades ilegais de seu filho deputado nos Estados Unidos, atividades essas que constituíam ações de coação no curso do processo e de obstrução à Justiça, ambas as ações ensejadoras de decretação da prisão preventiva respectiva pela autoridade judicial competente àquele que estava financiando tais atividades ilegais.

Proteção da ordem econômica

Além das justas causas para a decretação da prisão cautelar do referido réu relatadas precedentemente, há também a necessidade de proteger a ordem econômica do país quando esta for objeto de sabotagem por parte do réu (outra hipótese legal para justificar a determinação da prisão preventiva), ordem econômica essa atingida pelo estabelecimento pelo governo americano de tarifas elevadíssimas sobre os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos como represália, retaliação pelo julgamento justo a que está sendo submetido aquele que quase instituiu uma nova ditadura fascista no Brasil.


Para esse fato, contribuiu decisivamente a ação do deputado federal filho do réu, para a qual o referido réu declarou expressamente que está financiando essa ação do filho nos Estados Unidos visando a promover a sabotagem ao Brasil. No entanto, a prisão cautelar deste réu só foi decretada recentemente, devido ao fato de que transgrediu as cautelares que haviam sido a ele determinadas pelo relator do processo, ao participar remotamente de comício cujo motivo de realização era, exatamente, pedir a anistia para aqueles que desejaram implantar no Brasil novamente a maldita ditadura militar fascista da extrema-direita das Forças Armadas que, desgraçadamente, durou a eternidade de 21 anos no Brasil.


Lembrando que todo o processo golpista teve início de forma mais intensa desde que a vitória do presidente Lula em 30 de outubro de 2022 foi confirmada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com os acampamentos nas portas dos quartéis pedindo a volta da ditadura militar e da tortura e o desrespeito à decisão popular expressa na eleição, o bloqueio das estradas pelo agronegócio simpatizante da extrema direita fascista, os atos terroristas executados em Brasília no dia da diplomação do presidente Lula em 12 de dezembro de 2022, com a invasão e depredação do prédio da Polícia Federal na Asa Norte, a tentativa de atentado a bomba no Aeroporto de Brasília na véspera do Natal de 2022, culminando com a tentativa frustrada de golpe de 8 de Janeiro. Isto sem falar na utilização criminosa da Polícia Rodoviária Federal para impedir que os eleitores do Nordeste votassem no segundo turno, e a compra de votos despudorada com dinheiro público que ocorreu nos últimos dez dias de outubro de 2022, com a utilização também criminosa da máquina administrativa almejando a reeleição do então incumbente.

Dosimetria das penas

Agora abordando a questão da dosimetria das penas infligidas aos réus, o que ocorre é que as elevadas penas cominadas àqueles que promoveram a tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, de realização de golpe de Estado e os outros graves delitos de que são acusados os réus, são de responsabilidade não dos julgadores que aplicam a lei, mas sim do Legislativo que instituiu essas penas, aprovando a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, bem como do próprio ex-presidente da República que sancionou a lei.

As penas são longas porque os crimes cometidos são muito graves, penas com duração alta mesmo se considerando as penas mínimas para os delitos de que se trata. Como os crimes foram cometidos em concurso de pessoas/autores, as penas vão se somando/acumulando resultando numa pena total bastante alta, tendo visto que são cinco os crimes de que os réus estão sendo acusados (abolição violenta do Estado democrático de direito; golpe de Estado; dano qualificado; deterioração de patrimônio tombado; associação criminosa).

O que alguns advogados de defesa estão argumentando, de forma apropriada a meu juízo, é que o STF poderia promover a absorção de um crime menos grave por outro mais grave, sendo que a gravidade do crime seria mensurada pela severidade da pena atribuída a cada um dos delitos. Esse conceito jurídico penal da absorção ocorreria quando a prática de um crime menos grave fosse meio necessário ou fase de preparação para a execução de outro crime mais grave, tendo em vista serem esses tipos penais semelhantes. Por exemplo, seria a situação dos crimes de Abolição violenta do Estado democrático de direito e de golpe de Estado. Como o primeiro está de certa forma contido no segundo, em vez de sancionar o réu pelos dois delitos, puni-lo apenas pelo mais grave, seria razoável, o que acarretaria um apenamento de menor duração. Isso, penso eu, seria admissível.

Não obstante, o Ministério Público ofereceu a centenas de envolvidos o acordo de não persecução penal naqueles casos em que a pena determinada foi de até quatro anos de prisão, pelo qual os réus do 8 de janeiro, caso aceitassem frequentar um curso sobre democracia, não usassem redes sociais por dois anos, e os que tivessem recursos pagassem uma multa de R$ 5 mil ficariam livres da condenação criminal. Cerca de metade aceitou cumprir esse acordo, a outra metade optou por continuar encarcerada. Ou seja, ficaram presos porque quiseram. Na época da ditadura militar, principalmente depois da decretação do AI-5, não eram oferecidos acordos como esses aos acusados que, ao contrário de agora, eram assassinados e trucidados nos porões da ditadura militar tão exaltada pelos fascistas.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, afirmou que um acordo foi oferecido a dois terços dos golpistas de 8 de Janeiro para que não precisassem cumprir a pena na prisão. Segundo o ministro, entretanto, mais da metade recusou ou não respondeu à proposta oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

A conclusão a que se chega é que os atuais terroristas tiveram um julgamento bem mais justo e civilizado sob as regras da Constituição do que os “terroristas” do passado tiveram quando o que vigorava era o Estado de exceção do AI-5. A eles não eram oferecidos acordos de não persecução penal, e sim era oferecida a possibilidade de morrer depois de muita tortura, ou no pau de arara ou na cadeira do dragão. Enquanto isso, aos golpistas de 8 de Janeiro foi assegurada a rigorosa observância do mandamento constitucional contido no artigo 5º, inciso III, que reza que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”

Carlos Frederico Alverga, o autor deste artigo, é economista graduado na UFRJ, especialista em administração pública pelo Cipad/FGV e em Direito do Trabalho e Crise Econômica pela Universidade de Castilla La Mancha (Espanha) e mestre em Ciência Política pela UnB. Publicado originalmente pela revista eletrônica Consultor Jurídico, em 04.09.25

Por que qualquer anistia para golpistas é inconstitucional

O Parlamento quer criar uma crise institucional. Visivelmente. Uma crise se cria quando, deliberadamente, um Parlamento aprova uma lei que sabe de antemão ser inconstitucional e, assim, proporcionar um desgaste ao Supremo Tribunal encarregado da fiscalização da constitucionalidade das leis.

No auge do julgamento dos envolvidos nos atos golpistas, partidos de oposição ligados a um dos réus — o ex-presidente Bolsonaro — articulam a aprovação de anistia para todos os golpistas. Para beneficiar Bolsonaro.

A propalada lei será inconstitucional. Por vários motivos. Em primeiro lugar, há que se rejeitar argumentos (existem muitos divulgados na mídia) de que uma lei de anistia não seria inconstitucional porque a Constituição não proíbe.

Esse parece ser o principal argumento a favor da tese da anistia. Trata-se de uma tese que no direito chamamos de textualista, pela qual “o que a Constituição não proíbe, permite”.  Isto quereria dizer que o legislador, toda vez que a CF não estabelecer o contrário ou não dizer algo sobre o tema, pode aprovar qualquer tipo de lei. Ora, pensar assim é fazer pouco caso da Constituição. É pensar que a CF é uma espécie de simples código. Como se a Constituição fosse uma lei ordinária. Ora, isso está superado desde 1803, com o caso Marbury v. Madison. Elementar.

Um exemplo singelo derruba os argumentos textualistas. Se uma lei proíbe cães no parque, um textualista — que defende a constitucionalidade de uma lei de anistia para os golpistas — por certo responderia que “a lei não proíbe ursos”. Logo, são permitidos. Pior ainda: por certo o textualista dirá que, proibidos cães, o cão-guia do cego está impedido de transitar no parque. Esta é a melhor maneira de se saber o conceito de “interpretação textualista”. A interpretação textualista chumba o causídico ou o aluno no exame de Ordem. Ou na prova do terceiro semestre.

Em segundo lugar, temos o precedente Daniel Silveira. Não era proibido expressamente pela Constituição que o presidente Bolsonaro concedesse indulto. Mas o STF, baseado em forte doutrina e na interpretação sistemática, entendeu que o ato contrariou a Constituição. Percebem?

Nesse precedente (ADPF 964), já se vê a pista da inconstitucionalidade de eventual lei anistiando golpistas. Há uma passagem em que se lê: “Indulto que pretende atentar, insuflar e incentivar a desobediência a decisões do Poder Judiciário é indulto atentatório a uma cláusula pétrea prevista no artigo 60 da CF”. Isto é o que se chama “proibição implícita”. Igualzinha à vedação de ursos. Não precisa ser dito. Está implícita a proibição. Chama-se a isso de hermenêutica da função da lei (Fuller, MacIntyre e Wittgenstein).

Que é proibido anistiar a quem comete crime de golpe de Estado já foi percebido na Argentina, pelos tribunais e pela doutrina (Bidart Campos, por exemplo). Por aqui, setores do direito tentam aplicar uma espécie de “textualismo seletivo”.

Ainda sobre o “precedente Daniel Silveira”, consta no acórdão, no voto do ministro Alexandre de Moraes: “Seria possível o STF aceitar indulto coletivo para todos aqueles que eventualmente vierem a ser condenados pelos atos de 8 de janeiro, atentados contra a própria democracia, contra a própria Constituição?” E a resposta: “Obviamente que não. Isso está implícito na Constituição”.  Aliás, no caso Silveira, o STF usa mais de 40 vezes a tese de que há vedações implícitas na Constituição ao direito de anistia e indulto.

Já no nosso exemplo, parece óbvio que, proibidos cães, ursos não são permitidos. E por quê? Porque onde está escrito cães, leia-se “animais perigosos”. E onde está escrito democracia e Estado Democrático de Direito, leia-se “ninguém pode usar a democracia contra ela mesma”. Nenhuma Constituição admitirá perdão (indulto, anistia) para quem atenta contra o Estado democrático. Tudo porque a Constituição não é um oxímoro. Não dá para “contentar-se de contentamento”. Na poesia dá; no direito, não!

A esquecida Lei 9.140, que se os parlamentares lessem, perceberiam o equívoco da anistia

Explico aqui uma questão esquecida. Foi o próprio parlamento — que agora se mostra hostil e perigosamente conspirador contra o STF e a democracia (lembremos do motim de 36 horas bem recente) — que aprovou uma lei que mostra a diferença entre a anistia de 1979 e eventual anistia de agora. A lei determina (artigos 1º, 2º e 10) que

(1) todos os que lutaram contra a ditadura têm o direito a receber indenização.

(2) portanto, todos os que lutaram contra a ditadura estavam em desobediência civil.

(3) logo, se lutaram contra a ditadura e o parlamento disse, a contrário sensu (afinal, manda indenizar) que a luta foi justa e legal, então deixou também assentado que não havia Estado de Direito.

(4) isto quer dizer que a anistia de 1979 foi feita em situação de não democracia. E foi exatamente por isso que os militares e torturadores foram incluídos.

Eventual anistia de agora ocorre em ambiente totalmente contrário. Porque

(1) Vivemos em democracia e

(2) os candidatos à anistia tentaram derrubar e liquidar a própria democracia.

(3) onde estaria o paralelismo? Em lugar nenhum. A de 1979 nada tem a ver com o que ora se discute em 2025. Nada. O parlamento deveria ler a Lei 9.140/1995. Não se pode comparar ovos com caixa de ovos.

Por tudo isso, é totalmente inconstitucional qualquer tipo de anistia para quem tentou acabar com a democracia. A democracia não é um oximoro. Não se pode pensar que uma democracia faz haraquiri.

Em nome dela — da democracia — não pode ser permitido, sob qualquer hipótese, o perdão ao que tentaram com ela acabar.

O Brasil pagaria um mico para o mundo.

A propósito: Ferrajoli, em visita ao Brasil, considera necessária a punição dos golpistas e correto o agir do STF. Ele é, nada mais e nada menos, que o “pai do garantismo”. Só para registro.

Lenio Luiz Streck, o autor deste artigo, é professor, parecerista, advogado e sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br. Publicado originalmente pela revista eletrónica Consultor Jurídico, em 04.09.25